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Bento Prado JR e A Intermitência de Ser: Início Artigo Dossiê Ensaio Tradução Entrevista Crítica
Bento Prado JR e A Intermitência de Ser: Início Artigo Dossiê Ensaio Tradução Entrevista Crítica
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ISSN: 2359-3121
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As novas que
trago são novas de Rei...
Não digo
mentiras, só digo o que sei...
Está tudo
escrito
à guisa de lei,
no cerne, na
carne,
no firme no vivo
do meu coração...
Para
mim é uma honra falar de Bento Prado de Almeida Ferrás Júnior. Entendo que essa
não seja uma
prerrogativa minha, sobretudo
considerando-se todos os pesquisadores sérios que o admiram, mas para mim
além
de honra é um desafio: nunca me ocorreu ter o pensamento do filósofo Bento como
objeto. Ele sempre foi,
para mim, orientador.
Foi sob sua orientação que, em 2006 eu defendi meu doutorado em São Carlos; e ecos
muito fortes desse período permanecem
vivos ainda hoje em minha pesquisa sobre Sartre: o projeto de estágio
pós-doutoral sobre a ética do porvir (Lyon, 2016), por exemplo, teve o início
de sua gestação mais de dez anos
atrás, em longas conversas com o professor,
sábados à tarde, na sala de sua casa. Orientações sempre leais e
respeitosas, mas
raramente pacíficas. Bento era um leitor duro e um ‘adversário’ mordaz (dureza difícil de se
ver,
considerando-se toda sua perspicácia e educação). Não gostava de
meias-palavras, e gastava palavras-e-
meias para fazer ver seu ponto de vista;
isso mesmo: fazer ver! Mesmo tendo o posto de orientador – e a
admiração canina
de seus orientandos – Bento jamais fez
valer sua condição na defesa de
suas ideias. Divertia-se
no processo de fazer
ver, ao mesmo tempo em que cegava
seu orientando; suas perguntas desconcertantes
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tornavam evidente aquilo que, depois de argumentos e mais argumentos – prós
e contras –, ele já havia
anunciado no início do debate, em meio a um sorriso
de canto de boca, em parte encoberto pelo bigode.
***
Até
mesmo para propor alguns indicativos
de resposta para essa pergunta será preciso, antes, justificar
nossa
empreitada: além de não se impor (ou usar o definitivo
argumento da autoridade), mas de
esforçar-se por
fazer ver seu ponto
de vista, Bento Prado também era um libertário
no tocante ao filosofar.
Libertário,
existencialista, anarquista e rebelde,
Bento cuidava de não negar a ninguém a liberdade de pensamento que lhe
rendeu o exílio;
cabe dar novamente voz ao professor: “Ou a filosofia é entendida de maneira
puramente escolar,
técnica, e então ela cuida de assuntos técnicos e volta suas
costas às transformações do mundo contemporâneo,
ou a filosofia, por mais
abstrata que seja o seu tema, está ligada ao destino contemporâneo da
humanidade”
(PRADO JR, 2005). De novo a ocasião de escolha: ou... ou; assim,
não se trata de negar ou desqualificar a
filosofia puramente escolar e técnica – ela cumpre seu papel. A fatura dessa
empresa tecnicista, porém, já está
fechada: virar
as costas ao mundo contemporâneo; a alternativa à escolástica filosófica Bento
mesmo anuncia:
voltar-se para as
transformações da atualidade. Uma filosofia da práxis, do mundo, situada,
viva... a filosofia
do cotidiano seria
a alternativa à filosofia séria que,
num horizonte pascaliano, é digna de piada? Ou a piada
ficaria por conta dessa
tentativa, absolutamente inócua, de filosofar a partir de um mundo que, apesar de
contemporâneo – presente –
escapa a toda síntese? Bento Prado não responde. Cabe a seu leitor decidir, seja ele
seu inimigo ou o discípulo mais fervoroso. Para quem admira o professor,
tudo se esclarece facilmente: a
trajetória da existência de Bento, sua estreita
ligação com fatos históricos, tanto
no Brasil de antes e depois do
exílio, quanto na França que o acolheu, já são
suficientes para mostrar que a verdadeira
filosofia – aquela ligada
ao destino
contemporâneo da humanidade – ri da filosofia séria, escolar e técnica.
Assim,
se a postura dos amigos se define em grande medida pela vida de trabalho partilhada com Bento
Prado, o que diria seu inimigo? Levada a esse ambiente, a verdadeira filosofia, que ri da filosofia, não
repete de
modo algum a dicotomia contemporânea
(e amplamente debatida por Bento) entre uma filosofia continental e
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filosofia insular.[5] Ao contrário, o interesse filosófico de Bento, que sabidamente começou por
Bergson e
passou por Rousseau, desembarca em Wittgenstein;[6] e se Bento Prado Neto faz ver os pontos
cegos alvejados
por seu pai nessa trajetória, sobretudo a mudança de postura na abordagem de Wittgenstein
quando comparada
àquela dispensada a Bergson, cabe agora ao leitor inimigo refazer a pergunta
inicial: não se trata mais de,
somente,
tentar entender qual seria a verdadeira
filosofia. É preciso, também, averiguar a
partir de onde o mestre
Bento se instala para propor aos demais homens a revisão de seu filosofar; ou, noutras palavras,
se cabe à
verdadeira filosofia rir da
filosofia, trata-se agora de saber o que é
engraçado. Longe da preocupação técnico-
escolástica,
a obra inaugural do pensamento de Bento
Prado Jr revisita Bergson para, ali, encontrar “um ponto
de vista
privilegiado para refletir sobre a filosofia contemporânea (isto é, na época,
Sartre e Merleau-Ponty): uma
espécie de ‘ponto cego’ (...) dessa tradição, o
recalque de uma dívida que não era sem consequências para o seu
trajeto” (PRADO
NETO, 2007, p. 50). Sem aventurar-se nessas consequências, o inimigo se satisfaz em
provocar: que
seja, mas também não seria cego o
ponto de vista contemporâneo sobre a contemporaneidade,
sobretudo se ele se volta ao passado da França (Bergson)
para refletir sobre o então presente filosófico francês
(Merleau-Ponty e Sartre)? Ou, dito de outro modo, Bento não teria colocado a
filosofia francesa contra ela
própria, fazendo-a
rir de si mesma? A obra inaugural dessa intermitência de ser, revelada pelo
agora filósofo
Bento Prado Jr,
anuncia-se sorrateira nas páginas de Presença
e campo transcendental.[7]
Por
exemplo, a filosofia de Sartre é filosofia da liberdade, absoluta e situada,
individual e coletiva, que
ele teria desenvolvido desde seus estudos de
fenomenologia a partir de 1932, quando viaja a Berlin, ensina a
história da filosofia. A filiação de
Sartre a Husserl e Heidegger é, desse ponto de vista, evidente: ele se debate
até 1940, aplicando a intencionalidade da consciência em suas pesquisas, mas
recusando-se a admitir a epoché; a
partir de então (O Imaginário) Sartre
substitui a redução pela noção heideggeriana
da situação do Dasein
mundano-concreto... que seja, e Bento Prado não nega
isso. Todavia,
É
através do nascimento da práxis derivada do desejo que o real aparece como
atravessado pelo negativo,
como ‘povoado’ de ausência; é o próprio sujeito da
práxis, o organismo, que se passa a experimentar,
também, como carência. E já
então relacionávamos essa genealogia da negação com a realizada por Sartre
em L’être et le néant e na Critique de la raison dialectique.
(...). A despeito do paralelismo entre a
Fenomenologia
do Espírito e a Crítica da Razão
Dialética, a descrição sartriana opõe-se à hegeliana e se
aproxima da
bergsoniana, já que a práxis não explicita uma negatividade já inscrita no Ser,
e a negação não
ultrapassa os limites da subjetividade humana (PRADO JR, 1989,
pp. 187-8).
A verdadeira filosofia,
essa intermitência de ser que não
justifica criar uma ordem religiosa (seu
monge está
perdido), revela o que é
engraçado: apesar da intenção husserliana
de Sartre, ele é tributário de Bergson. Mas a
vraie philosophie não vai poupar Merleau-Ponty, nem Rousseau, nem
mesmo Wittgenstein e todo seu palavrório
analítico,
ou ainda Heidegger, e suas proposições
sem sentido (ou falsos problemas).
Mas, afinal, de que lado
está Bento Prado? Seu amigo diria que essa obstinação filosófica revela a procura monacal
pela verdade; mas, e
o inimigo já
percebeu há bastante tempo, Bento desconfia dela,
ele transvalora valores. Em filosofia
o inimigo é
o melhor amigo, não se pode esquecer; o ato de amizade de Bento por Sartre foi revelar que, para além da
psicanálise existencial (e de toda a vontade
de novidade que o levou à Alemanha), há relações
íntimas
(condenáveis ou não) entre a
filosofia sartriana e Bergson. De novo o inimigo: Bento é amigo de Sartre?
Ou
seria bergsoniano? Ou, quem sabe, admirador do iluminismo? Ou, ainda, um teólogo faltado (Pascal)?
***
O
pensamento de Bento Prado Jr carrega sim ecos da filosofia da liberdade de
Sartre, mas isso não faz
dele um sartriano;[8] todavia, se o adversário mais mordaz é,
a toda prova, o melhor amigo Bento, além
de
contemporâneo de Sartre é também seu camarada:
ele faz ver, antes de todos, um ponto
cego no qual a
negatividade de Sartre, por vezes buscada em Hegel, noutras
em Kojev, enraíza-se na verdade em Bergson; e,
sobre a temporalidade de Sartre, melhor nada dizer. Entretanto,
pode-se considerar a revelação de uma
traição
um ato de amizade? Sobretudo se, como no caso em voga, traidor e traído são o mesmo homem? De
início,
Sartre dedica-se a cantar salvas à fenomenologia mas, por esse tempo, filosofa
em bom francês (com sotaque
bergsoniano);
claro que não se trata de insinuar falta
de inventividade de Sartre, afinal Bento também revela em
seu livro uma diferença
irreconciliável entre Bergson e Sartre no tocante às noções e limites da
ontologia e da
metafísica (o que atenua bastante a traição de si mesmo, da qual Sartre fora vítima); e pelas voltas que o mundo
dá, a França encontra
em casa aquilo que fora buscar distante. A verdadeira filosofia prega mais uma
peça na
linearidade e causalidade, claras e distintas, de todo parentesco e
filiação filosóficas, mostra Bento; a razão perde
mais uma batalha, revela o
monge, e a história da filosofia se faz piada.
Riem os amigos, enquanto o inimigo
redargua: se a fenomenologia de Sartre tem suas origens mais remotas em Bergson,
onde estariam enterradas as
raízes dessas
suspeitas de Bento Prado? Ou, dito de outro modo, quais seriam as origens
daquilo que, até agora,
revelou-se como filosofia
bentoniana?
A linearidade e causalidade filosóficas insistem; mas não
se trata de, agora, desviar o tema para o âmbito
genealógico da constituição de uma árvore familiar da filosofia de Bento Prado. Isso é inútil, revela
o monge,
pois essa indagação levará invariavelmente a Tales de Mileto e sua insatisfação muito
pessoal com as respostas
míticas às grandes questões da vida humana; e
desnecessário, mostra Bento, pois até mesmo Tales, se olhado por
olhos contemporâneos,
não revelará mais do que uma perspectiva de
nosso mundo contemporâneo. A
verdadeira filosofia é atual. O inimigo
se refestela: Bento Prado Jr, tal qual Zaratustra, seria um niilista que,
monge perdido, não se lança ao mar nem se arrisca
continente adentro. Seria Nietzsche o guia de Bento Prado
pelas praias sem fim? Ideia tentadora, mas não é o
filósofo alemão quem se esconde no sopé das suspeitas
bentonianas (ainda que esteja ali presente, pois não há como negar
ecos do perspectivismo e muita suspeita na
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filosofia de Bento); o
mesmo pode ser dito de Pascal ou Voltaire, como acima anunciado; e Sartre.
Assim,
seguindo um bom conselho –
quem fala demais dá bom dia ao cavalo –, parece mais apropriado deixar
Nietzsche
e Tales em seu tempo, e indagar sobre o tempo de Bento Prado. Antes do exílio, e dos trabalhos sobre
Rousseau,
seus alvos eram apenas Sartre
e Merleau-Ponty, como, depois, serão Derrida e Althusser? Ou, conforme afirma
Débora Morato, “Bento parece ter procurado em Bergson, para pensar contra si
mesmo e contra Sartre, uma
filosofia calcada na apreensão intuitiva do real,
tomando esse real como ‘algo’ a ser intuído pelas potências
cognitivas do
sujeito, numa perspectiva realista que se irmanava com a ciência” (PINTO, 2007,
p. 24). Escrever
contra filósofos franceses, que seja; mas isso é novidade: Bento também usa Bergson para pensar contra si
mesmo. É assim que o convite
do filósofo, perguntar sobre a verdadeira filosofia, perde toda sua
graça: Bento
revela que o risco de trair
a si mesmo, tal qual se passou com Sartre, é a condição de todo filósofo, ou de
todo
homem que se arrisque a indicar um
caminho. Ri o inimigo que, enfim, parece aproximar-se de algo importante
dessa filosofia que poderá
rir das demais; teme o homem sério,
carcomido por certezas que nunca se
confirmaram, mas que obrigatoriamente serão assim (marxista); assusta-se o filósofo
inovador (analítico), já
desconfiado de suas certezas.
Bento Prado Jr, como o leão que se diverte com coelhos
e animais curiosos, não se
decifra tão
facilmente. É sim engraçado revela-lo
como um leitor de Bergson que desafia Sartre e Merleau-Ponty, ou leitor
de
Rousseau que encara Althusser e Derrida; mas como colocar Wittgenstein nesse
imbróglio todo? Bento Prado
revela em Sartre o Bergson que Sartre mesmo não
conhecia; na contrapartida como, senão divertindo-se
com
isso, ele poderia combater o Sartre que ele encontra em si mesmo? A verdadeira filosofia pelas mãos de Bento
começa a se revelar: ele
mira Sartre, acerta Bergson e, no fim, reconhece-se como o sartriano a ser questionado.
E será em meio a um sorriso, talvez confrangido, pensa o inimigo, que Bento parte para seu exílio (1969-74);
Merleau-Ponty
já tinha morrido, é verdade, mas Sartre ainda caminhava pela França. E, de novo, a filosofia
brinca: por essa época, e apesar de todos os esforços de Sartre, da
causa do povo e do interminável
Flaubert, ele
já não é mais o
homem-filósofo contemporâneo francês; seu tempo de universal singular tinha
se acabado, e
serão de Derrida a Foucault
os contemporâneos do exílio. A verdadeira filosofia reinicia a discórdia
com a
filosofia, a França mais uma vez redobra-se
sobre si mesma, revela Bento: o desconstrucionismo
de Derrida e o
estruturalismo marxista de
Althusser terão, agora, que se haver com Rousseau. A essa altura perguntam
juntos,
inimigo e discípulo, mas por
que Rousseau? Bento Prado Neto, num testemunho confiável, responde: porque
“Bento Prado Jr acreditava encontrar nessa crítica (...) sua atualidade, ou
melhor, um pensamento ‘vivo’”
(PRADO NETO, 2007, p. 51). Contemporâneo, pode-se
concluir; o tempo do exílio exige, agora, criticar
a
cultura atual.
Dessa feita, prevenido pela peça que lhe fora pregada
pela filosofia verdadeira, Bento
trata logo de eleger
o filósofo a
partir do qual sua crítica da cultura se
fará ouvir no início da década de 1970: Rousseau, e isso não é
um detalhe,
afinal dentre os franceses ditos libertários
Sartre é legítimo herdeiro de
Rousseau. Ainda assim, o
que está efetivamente em jogo nesse momento é certa concepção retrospectiva da
cultura: a verdadeira filosofia
exige
repactuar as relações entre teoria e
prática culturais, locando-as no
presente. Rousseau é, nesse sentido,
portador de uma filosofia viva que incomoda o túmulo no qual tanto marxismo quanto
estruturalismo
acreditaram ter enterrado o cadáver da filosofia verdadeira: ela, que riu de sua incursão pelo passado
(não da
filosofia em geral, mas daquela mais ligada a Sartre e Merleau-Ponty),
diverte-se agora com a pretensão – ligada
ao futuro – de controlar, conhecer ou antever
o fim da história (estruturalismo, marxismo). A filosofia é atual e,
assim,
nela nada pode haver de certo; e até mesmo as certezas atuais cabe colocar em xeque: é
Rousseau, um
filósofo do século XVIII, o antídoto receitado por Bento Prado para filosofia francesa da segunda metade
do
século XX. Ou melhor, receitar já
é muito; ainda que a filosofia, essa arte
do universal, tenha sido reduzida à
mera
disciplina universitária, Bento insiste que o Ser é, desde Kant, intermitente;
mas, mesmo assim, ele se
revela. Nas
palavras do mestre “Hoje uma disciplina apenas
universitária, de duvidosa cientificidade (...), a
Filosofia foi a técnica ou a
arte do universal ou da universalização possível da vida humana, ao mesmo tempo
necessária e impossível, já que irremediavelmente vinculada ao singular ou à
idiotia” (PRADO JR, 1999); a
filosofia meramente
técnica é, desde sempre, uma piada
para Bento Prado. Talvez, piada de mau gosto.
A filosofia foi
universalização, e hoje é mera tarefa universitária; o monge perdido, desde
as praias sem
fim, lembra: foi e pode voltar a ser. Ela é desconstrução,
Bento volta-se contra seu sartrianismo pela
via
bergsoniana, mostra Débora Morato;[9] depois, quando de seu exílio, ele desenvolve certa crítica da cultura,
revela Bento Prado Neto.[10] Assim, comemora o inimigo, estaria nosso
filósofo lutando contra alguma
concepção de cultura que, além de
presente na França, ele teria detectado em
si mesmo? Pois, além de atual, a
filosofia verdadeira revelada pelo monge mira
sempre o avesso, o não visto, os pontos
cegos e ligações
subterrâneas:
Bento nunca se iludiu em se achar, é monge
perdido! Mas estar perdido cumpre
uma função
metodológica: quem nada sabe não
formula perguntas nem encontra o que busca, Mênon tem razão; mas, revela
Bento,
quem está perdido pode parar ou
continuar caminhando. A metáfora do cego que guia cegos toma pelas
mãos do
filósofo, um novo sentido (BÍBLIA, 1993, Lc 6:39): ainda que a sina do cicerone seja igual àquela do
guia que não sabe o caminho, sua obrigação é seguir adiante; e Bento
segue. [11] Não se trata somente de
fazer
ver a cegueira de Rousseau,
pois se a ele coube questionar a
liberdade do teatro de concorrer com
as festas
cívicas suíças – postura efetivamente risível para a verdadeira filosofia (Carta a D’Alembert) –, será ele um dos
mais contundentes defensores
da liberdade (além de criador do
iluminismo) e crítico da propriedade privada. A
postura conservadora de
Rousseau, também presente em suas obras educacionais
(Emílio), não desqualifica em
nada sua afirmação da natureza humana quando
contraposta às decisões da razão. A filosofia verdadeira,
revelada por
Bento Prado, faz ver o filósofo como homem
de seu tempo; e a ele, mesmo perdido,
cabe indicar o
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caminho. O filósofo pode não
estar certo de para onde deve ir, mas ele pode sempre seguir adiante, ele não
é
cego.
***
A
cegueira de Rousseau é a mesma de todo filósofo: sair da caverna é tão cegante quanto voltar a ela;
mas entre duas
cegueiras há sempre algo que foi visto. O ser se mostra como quer: Bento Prado, após reprimir
Sartre em si mesmo e tornar-se referência mundial em Bergson (comparável a
Deleuze, conforme lembra Débora
Morato), faz-se crítico da cultura a partir do trabalho com Rousseau. Em seguida
será a vez de voltar-se para
Wittgenstein, ou, como não se cansava de lembrar,
“um dos alvos, talvez o alvo de
Wittgenstein era justamente
essa civilização tecno-científica que Heidegger vê
como subsolo da concepção objetivante da linguagem e do
pensamento, concepção
da qual Wittgenstein, por outro lado, nunca abriu mão. Não é preciso indicar
para que
lado se inclinavam as simpatias de Bento Prado Jr.” (PRADO NETO, 2007,
p. 63). Partindo de Bergson,
passando por Rousseau e chegando a Wittgenstein, a
verdadeira filosofia pode até mesmo
fazer rir, mas para isso
exige uma graciosidade
enorme daquele que indica o caminho.
O prejuízo na cartografia filosófica
se justifica:
Confessemos, nós professores de filosofia, que nossa arte é
bem pouco refletida no presente. Toda minha
simpatia ainda vai para gente como
Nietzsche e Wittgenstein, que consideravam nossa profissão um
terrível perigo e
nossa situação institucional, um convite à falsificação. O que tem o ensino da
filosofia,
hoje, com o esforço de tornar-se digno de viver? (...) Como o
leitor, continuo desconfiando do ‘pathos’ que
anima essa retórica que acabo de
exibir, especialmente no jargão da autenticidade. Mas não posso dormir
sem
desconfiar que vai aí algo de Verdade (PRADO JR, 1999).
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mas a filosofia fica. Qual filosofia? O filósofo
Bento Prado ensina aos inimigos e
amigos que, de fato, a
verdadeira
filosofia debocha da filosofia; sua verdade,
todavia, somente pode ser mensurável em
seu tempo.
Difícil dizer, hoje, o que significaram essas declarações do Bento Prado, cada uma
delas a seu tempo; mas isso,
na verdade, não parece ter importância alguma no
contexto de sua indagação filosófica, que se move levada pelo
infinito, ininterrupto e absolutamente irresistível fluxo de ser. Afinal, pergunta o filósofo,
“onde, na verdade, se
opõem a descrição do Lebenswelt
e a gramática da linguagem quotidiana, a análise do mundo comum e a da
linguagem comum?” (PRADO JR, 1999a). Risível é, assim, a filosofia, contemporânea ou não – independendo
de
sua matriz (insular ou continental) – que vira as costas para seu mundo. Revela-se o enigma: a filosofia (toda
filosofia) leva em si mesma o antídoto para o maior mal filosófico – o absolutismo da verdade –, afinal, ela pode
rir de si mesma. A vida de Bento Prado se faz filosofia, tanto na
seriedade exigida pelo inimigo que é, pelas
mãos do filósofo, transvalorada em admiração e respeito, quanto na graciosidade esperada do discípulo, que
realiza
de modo circunspecto e sério sua devoção. A filosofia de Bento
Prado é sim conflito, mas não admite
violência; trata-se de filosofia como duelo, no melhor estilo daquelas
hilariantes lutas de caratê com outro
saudoso professor desse Departamento – Mark Julian Richter Cass (São Carlos,
19-01-2013). Concluo com essa
lembrança: Bento, de terno, gravata borboleta e
bengala, desafiava o gigante nórdico
da lógica para um combate
até a morte; tudo terminava em gargalhadas. A verdadeira
filosofia, que ri da filosofia, é verbo,
ensina Bento,
não substantivo.
AUTOR
*Luciano Donizetti da Silva possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (1999), mestrado em
Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Federal do Paraná (2002) e doutorado em História da Filosofia pela
Universidade Federal de São Carlos (2006). Atualmente é professor de Filosofia na Universidade Federal de Juiz de Fora,
MG, no Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Filosofia. Bolsista CAPES, Estágio Sênior (Université Jean Moulin,
Lyon), processo n° 2631/15-6.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA
SAGRADA. (1993). Edição Pastoral. 6ª
reimpressão. Trad. Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. São
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PRADO JR, B. (1999). Um convite à falsificação. Uol. Disp. http://www1.folha.
uol.com.br/fsp/mais/fs1912199905.htm, consuta 26-04-17, 13h43.
ROUSSEAU, J.
J. (1758). Lettre a M. D’Alembert. Disp.
http://www.espace-
rousseau.ch/f/textes/lettre%20%C3%A0%20d'alembert%20utrecht%20corrig%C3%A9e.pdf,
consulta 27-05-17,
1h12.
coelho, havia um leão. O papel de coelho cabe aos orientandos, e claro, de leão escondido ao orientador.
casualmente. O
professor universitário é solicitado institucionalmente a produzir dentro de
sua área. A atividade de escrever sobre outros assuntos exige um estímulo
externo”
retomada
no prefácio de PRADO JR, B. (2004). Erro,
ilusão, loucura. São Paulo: 34, p. 15.
moral do julgamento
zomba da moral do espírito, que não tem regras. Pois o julgamento é aquele ao
qual pertence o sentimento, como as ciências pertencem ao espírito. Zombar da
tradição
filosófica inglesa; nesse sentido, a
fenomenologia nasce do debate de Husserl com Kant que, por sua vez, critica Descartes e Hume sendo esses –
cada um a seu modo –
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fenomenologia é
categórico: Husserl, com a noção de intuição
categorial, liberta o ser do juízo, donde a ontologia somente é possível como
fenomenologia (DA SILVA, L. D. 2012
Conhecer
e ser no mundo, disp. https://periodicos.
ufrn.br/principios/article/view/7579/5642). Ainda, não se pode esquecer, o adversário primeiro e imediato da filosofia analítica
(dita insular porque nascida na Inglaterra e radicada nos Estados Unidos da América) é a
fenomenologia: seja por uma questão de proximidade temporal, o fato é que “Frege foi o
avô da
filosofia analítica, Husserl o fundador da escola fenomenológica, dois movimentos
filosóficos radicalmente diferentes. Em 1903, como eles teriam aparecido a qualquer
por Rousseau”
(PRADO NETO, 2007, p. 49).
fileiras
da fenomenologia francesa não foi
Husserl, mas Bergson; aquele ar de
novidade da fenomenologia quando de sua recepção na França – e essa seria a
piada – faz-se a partir
da sombra
bergsoniana, que em Sartre rejeita a
epoché e em Merleau-Ponty parte do
corpo (BENTO PRADO JR, 1989). Ora, isso cumpre a obrigação de uma filosofia
ligada a seu
tempo (contemporânea) e,
ao mesmo tempo, revela o risco sempre presente de tornar doutrinação o métier filosófico.
Sartre’. Ele disse que caberia a mim mesmo decidir por ele, pois preocupar-se com a própria aparência é o auge da alienação; e,
vendo meu desapontamento, acrescentou: _ O
janelinha do céu!
[9] “Aliando
uma invejável capacidade de trabalho ao amor pela boemia, o professor
propiciava aos colegas, funcionários e alunos uma convivência alegre e um
aprendizado
tempero
e alento em meio às dificuldades da pesquisa e do exercício da reflexão no
contexto da universidade brasileira. Poder trabalhar com filosofia e ouvir
Bento cantando ópera,
imitando artistas de cinema, recitando a Divina Comédia de cor em italiano, emocionando-se com
as canções de Chico Buarque, contando histórias deliciosas do passado e do
Prado
Jr. sobre Wittgenstein, nos quais é a crítica da cultura atual é que está em jogo” (PRADO NETO, 2007, p. 51).
caminhada, da
gravura de Goya, dar no abismo. Ele ficou sério e pensativo por alguns
instantes; riu, e compartilhou sua lembrança de Tales, no episódio em que o
primeiro filósofo,
mesmo
para cair; e acrescentou: Por isso os
caminhantes não deveriam estar atados uns aos outros por cordas! Acendeu um
cigarro. Sem dizer Bento disse que cabe ao coelho
com certa
irresponsabilidade, mas com muita vitalidade. Num artigo que escrevi sobre
isso, disse que éramos socialistas, sim, mas com Proust e Kafka. O
existencialismo tornou-se
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Luiz Almeida (G Sair
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