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Transtorno de Acumulação
Transtorno de Acumulação
TRANSTORNO DE ACUMULAÇÃO
Introdução
Nas últimas décadas, a quantidade de posses da maior parte da população tem
aumentado exponencialmente. Geralmente, esses pertences são adquiridos para
aumentar a sensação de segurança ou proporcionar algum tipo de conforto. No entanto,
quando eles passam a atrapalhar o uso do espaço ou não têm mais utilidade, a maioria
das pessoas costuma descartá-los. Alguns indivíduos, todavia, podem perder a
capacidade de determinar a real utilidade de muitos de seus pertences, passando a
mantê-los para serem usados em um futuro que quase nunca chega.1
Em linhas gerais, o transtorno de acumulação (TA) é caracterizado pela dificuldade
persistente de descartar itens (independentemente de seus valores reais), associada à
desorganização e ao impedimento do uso adequado de partes da habitação daqueles que
sofrem do transtorno.
Um componente fundamental para o diagnóstico do TA, que consta na Classificação
Internacional de Doenças – 11ª edição (CID-11),2 mas que é apenas facultativo no
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª edição (DSM-5), é a
aquisição excessiva e intencional de itens.3 Os sintomas de TA podem gerar, além de
um sofrimento significativo, uma disfunção social, ocupacional ou em outra área de
importância funcional.3
Embora os sintomas de acumulação sejam conhecidos há décadas, o TA foi considerado
um diagnóstico independente somente no DSM-5, em que consta no capítulo do
transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e dos transtornos relacionados (TRs).3,4 Até a
revisão do DSM – 4ª edição (DSM-IV-TR), os indícios de acumulação eram
classificados como sintomas do transtorno de personalidade obsessivo-compulsiva
(TPOC). Entretanto, quando graves, esses sintomas eram considerados do TOC. Os
diagnósticos de TOC e TPOC poderiam coexistir se os critérios de ambos fossem
preenchidos.4–7
Dentre as diferentes razões que sustentaram a necessidade de um diagnóstico de TA
independente do diagnóstico do TOC, encontram-se as respostas insuficientes do
primeiro a tratamentos padrão-ouro do segundo, como a terapia de exposição e
prevenção de resposta e as medicações serotoninérgicas.8
O TA determina prejuízos substanciais na qualidade de vida dos pacientes e de seus
familiares, tornando a intervenção de profissionais de saúde especializados não apenas
importante, mas fundamental. Embora não existam estudos de follow up a indivíduos
com TA, supõe-se que poucos pacientes irão apresentar a remissão espontânea de seus
sintomas sem uma intervenção adequada. Além disso, quando comparado a outros
transtornos psiquiátricos (como o próprio TOC), verifica-se que o TA conta com
pesquisas escassas sobre a eficácia de diferentes estratégias terapêuticas.
Objetivos
Ao final da leitura deste capítulo, o leitor será capaz de
estabelecer o diagnóstico do TA;
identificar o TA em meio a seus diagnósticos diferenciais;
reconhecer as opções de tratamento farmacológico e psicoterápico para o TA.
Esquema conceitual
Diagnóstico do transtorno de
acumulação
Para o diagnóstico do TA, a CID-11 difere do critério do DSM-5, que exige espaços
desordenados e obstruídos que impeçam seu uso adequado, como será visto a seguir.
Essa diferença entre as classificações se dá devido aos indivíduos que apresentam os
demais critérios diagnósticos e sofrimento significativo, mas que ainda manejam a
utilização razoável de seu espaço apesar das acumulações.9
Classificação Internacional de Doenças – 11ª edição
De acordo com as diretrizes de diagnóstico da CID-11, o TA apresenta características
essenciais, que são elencadas no Quadro 1.
Quadro 1
O TRANSTORNO DE ACUMULAÇÃO SEGUNDO A CLASSIFICAÇÃO
INTERNACIONAL DE DOENÇAS – 11ª EDIÇÃO
Características Descrição
O excessivo apego aos itens acumulados,
1. Acumulação excessiva e apego independentemente de seu valor real, pode ocorrer
às posses, independentemente do por várias razões. Essa característica é distinta dos
seu valor real. fenômenos comuns ao TOC e a outros TRs (p. ex.,
as obsessões presentes no TOC).
As evidências sugerem que os indivíduos que negam
aquisição excessiva relatam evitação de situações
2. Impulsos ou comportamentos
que favoreçam um desejo de adquirir itens.
repetitivos relacionados a compra,
Entretanto, eles também tendem a apresentar
roubo ou acumulação de itens.
aquisição excessiva quando essas situações não são
evitadas.
A dificuldade para descartar itens e a
3. Dificuldade em descartar itens
aquisição excessiva são critérios exigidos para o
devido à necessidade percebida de
diagnóstico na CID-11, uma vez que há evidências
guardá-los e ao sofrimento
recentes de que ambos os fatores pertencem a um
associado ao seu descarte.
único fenótipo de acumulação unidimensional.
TOC: transtorno obsessivo-compulsivo; TRs: transtornos relacionados.
Fonte: Adaptado de Stein e colaboradores (2016).9
Especificadores
O transtorno é classificado como TA com aquisição excessiva se a dificuldade de
descartar os pertences está acompanhada da aquisição excessiva de itens desnecessários
para os quais não existe espaço disponível.
Características associadas
Dentre as características comumente observadas em pacientes com TA, estão:3
indecisão (incluindo evitação de situações que demandem algum tipo de tomada
de decisão);
esquiva;
procrastinação (também como forma de evitar tomar decisões);
perfeccionismo;
dificuldade de planejar e organizar tarefas;
distratibilidade.
A acumulação de animais é uma manifestação especial do TA, definida como a
acumulação de animais associada à incapacidade de oferecer padrões mínimos de
nutrição, saneamento e cuidados veterinários e de intervir diante de animais em
sofrimento, seja por causa de doenças, fome ou morte ou por sobrevivem em um
ambiente superpopuloso ou insalubre.3
ATIVIDADES
Diagnóstico diferencial
O sintoma de acumulação pode estar presente em diversos outros transtornos
psiquiátricos ou orgânicos que exigem diagnóstico diferencial e tratamento direcionado.
Portanto, para o diagnóstico do TA, os critérios diagnósticos “E” e “F” (ver Quadro 2)
devem ser abrangidos, excluindo outras condições médicas ou mentais como causa dos
sintomas.
Transtorno obsessivo-compulsivo
Os estudos indicam uma prevalência de comportamento acumulador em grupos de
TOC (incluindo adultos, crianças e adolescentes) de 18 a 40%, embora, em menos de
5% dessa população, os sintomas de acumulação apresentem importância clínica
significativa. No TOC, os sintomas de acumulação são causados por obsessões
prototípicas, como os fenômenos intrusivos e involuntários. Por exemplo, os pacientes
com TOC podem acumular facas por obsessões de agressão (como medo de esfaquear
amigos).10
LEMBRAR
Conforme mostra o critério diagnóstico “D” do TA (ver Quadro 2), os sintomas de
acumulação não podem ser secundários à outra condição médica, como lesão cerebral,
doenças cerebrovasculares e síndrome genética (por exemplo, a síndrome de Prader-
Willi).
A síndrome de Prader-Willi é, sabidamente, associada a transtornos psiquiátricos,
especialmente, o TOC, o transtorno de escoriação, os transtornos psicóticos e os
sintomas de acumulação.
ATIVIDADES
Tratamento
Alguns dos desafios apresentados pelos pacientes com TA são:
os baixos níveis de insight e de motivação para mudança;14
as altas taxas de comorbidades psiquiátricas;15
a ambivalência em relação à acumulação;
a indecisão.
Os pacientes com TA acabam buscando tratamento com uma frequência menor do que a
ideal. Uma interessante representação desse quadro foi um estudo, realizado entre 2008
e 2011, conduzido em uma amostra de 664 indivíduos, que buscaram informação a
respeito do TA por e-mail ou telefone. Dessas pessoas, 53,6% solicitaram apenas
informações gerais a respeito do TA e somente 24,8% buscaram se informar a respeito
de tratamentos disponíveis.16
Em um outro estudo online, realizado entre 2013 e 2014, 203 indivíduos que se
autoidentificaram como “acumuladores”, foram questionados quanto à aceitação dos
métodos de tratamento disponíveis. Apenas 3, dentre os 11 tratamentos e serviços
disponíveis, foram considerados aceitáveis pelos participantes: TCC individual, auxílio
por um organizador profissional e livros de autoajuda. Um terço da amostra nunca havia
feito nenhum dos tratamentos disponíveis, e, dentre os acumuladores com história de
tratamento, os serviços mais utilizados foram TCC e leitura de autoajuda.17
Além dos desafios já mencionados, talvez por influência de modelos que consideravam
a acumulação compulsiva como um sintoma do TOC, os pacientes com sintomatologia
importante de acumulação eram tratados da mesma forma com que são tratados os
pacientes com TOC, ou seja, com inibidores da receptação da serotonina (IRS) e terapia
de exposição e prevenção de resposta. Somente após um número razoável de estudos
que demonstraram a ineficácia dessas abordagens é que as terapias mais específicas para
o TA passaram a ser testadas.18
As opções de tratamento que vêm sendo utilizadas nessa psicopatologia incluem
terapias farmacológicas e não farmacológicas.
Terapia não farmacológica
A seguir, são tratadas as seguintes terapias não farmacológicas:
terapia cognitivo-comportamental (TCC);
abordagem familiar;
abordagem multidisciplinar comunitária.
Terapia cognitivo-comportamental
A TCC é a modalidade de tratamento mais estudada para o TA. Ela tem como alvo as
crenças, os padrões de prevenção e os déficits neuropsicológicos associados ao
transtorno.19
Essa terapia busca abordar os motivos (estéticos, utilitários e sentimentais) para a
acumulação das posses. O componente comportamental envolve:19
o estabelecimento de metas;
a prática de classificar, descartar e resistir à aquisição de objetos;
a exposição gradual ao descarte das posses.
O MC, que não depende apenas da motivação intrínseca do paciente, ajuda a incentivar
os indivíduos a viverem experiências comportamentais nas quais possam testar e
desafiar crenças e comportamentos problemáticos. Além disso, o MC pode ser aplicável
a pacientes com notáveis comorbidades médicas e psiquiátricas, contribuindo para
tornar a técnica uma alternativa relevante no tratamento do TA.22
Abordagem familiar
O tratamento com abordagem familiar tem como foco a psicoeducação dos pais, a
exposição ao descarte e a estratégia de MC familiar. Essa abordagem é especialmente
útil para o tratamento do TA em crianças e adolescentes, já que o hábito de acumulação,
nesse grupo, costuma ser negativamente reforçado pelas reações dos pais.23
O reforço positivo, como elogios e sistema de recompensa, é encorajado aos pais, no
intuito de suprimir os comportamentos acumuladores dos filhos. Além disso, a
determinação de prazos para descarte de itens também pode auxiliar no tratamento.23
Abordagem multidisciplinar comunitária
Uma vez que o TA impacta diversas áreas da vida do indivíduo e pode afetar a
comunidade, uma abordagem ampla e multidisciplinar pode apresentar bons
resultados sobre os sintomas de acumulação e os problemas sociais relacionados,
incluindo a violência doméstica. Além do suporte médico e psicológico, podem ser
oferecidos outros serviços, como limpeza e organização profissional e treinamento de
familiares, para que auxiliem no tratamento.24
Terapia farmacológica
Infelizmente, sabe-se mais sobre a ineficácia do que sobre a eficácia da farmacoterapia
no TA. A experiência clínica sugere que a farmacoterapia, quando administrada
isoladamente, não é um tratamento razoável para um transtorno tão complexo como
esse. No entanto, reconhece-se que muitos pacientes acabam utilizando somente
medicações na ausência de qualquer forma de psicoterapia. Isso pode ocorrer por:
falta de iniciativa ou desconhecimento dos clínicos que acompanham os
pacientes;
disponibilidade reduzida de profissionais treinados;
resistência dos pacientes a visitas domiciliares.
LEMBRAR
Os estudos a respeito da farmacoterapia do TA são poucos e, geralmente, não
controlados e com pequenas amostras.
Os antidepressivos foram a classe de medicamentos mais estudada no tratamento dos
sintomas de acumulação. Os estudos sugerem que os inibidores seletivos da
recaptação de serotonina (ISRS) e os inibidores da recaptação de serotonina e
noradrenalina (IRSN) reduzem, significativamente, os sintomas do TA, sendo,
atualmente, as medicações mais utilizadas nesse transtorno. No entanto, esses
medicamentos (especialmente a paroxetina e a venlafaxina) foram testados apenas em
pacientes com TOC, e não em grupos com diagnóstico específico de TA.19
Um estudo, realizado com 79 pacientes com diagnóstico de TOC com e sem
sintomatologia relevante de acumulação (32 e 47 sujeitos, respectivamente), avaliou o
efeito da paroxetina no comportamento acumulador. Nesse ensaio clínico aberto, uma
dose média de 41,6 ± 12,8mg/dia da medicação foi usada por um tempo médio de 80,4
± 23,5 dias. Ao final do estudo, foi observada uma melhora dos sintomas de acumulação
e de outros sintomas presentes no TOC, sugerindo eficácia de ISRS no TA.25
Outro estudo, sem grupo placebo, envolveu 24 indivíduos com diagnóstico de TA
tratados com venlafaxina (um IRSN), por 12 semanas, com posologia média de 204 ±
72mg/dia. Como resultado, houve redução na gravidade dos sintomas de acumulação,
com melhora nos principais componentes do transtorno: dificuldade de descartar posses,
aquisição excessiva, desordem e incapacidade funcional.26 Esse estudo sugere que os
IRSN podem também ser utilizados em pacientes com TA.
Outra relevante abordagem farmacológica no TA tem base na frequente queixa de
desatenção dos pacientes. De fato, os estudos indicam que o transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade (TDAH) — especialmente o subtipo desatento — é uma
comorbidade particularmente frequente e importante do TA. Com base na hipótese de
que a desatenção é um componente central do TA, pacientes com esse transtorno
fizeram uso de metilfenidato por 4 semanas, com dose inicial de 18mg/dia e aumento
semanal de 18mg, até a dose máxima de 72mg/dia, conforme indicação clínica e
tolerância.27
Ao final do período de tratamento, 3 dos 4 pacientes apresentaram redução superior a
50% da desatenção na escala de autoavaliação de TDAH, e dois pacientes tiveram
modesta redução (25 e 32%) dos sintomas de acumulação pela escala Saving Inventory-
Revised, com maior impacto na aquisição excessiva. Apesar dos resultados positivos,
nenhum dos participantes escolheu permanecer em tratamento com a medicação devido
aos efeitos adversos, como insônia e palpitação. Esse estudo sugere, entretanto, que
psicoestimulantes podem ser eficazes no tratamento do TA e merecem estudos mais
amplos.27
Também com base na frequente queixa de déficit de atenção entre os pacientes com TA,
e na hipótese de esse fator contribuir para a dificuldade de tomada de decisão e a
persistência do comportamento acumulador, um teste clínico com uma medicação
utilizada no TDAH (atomoxetina) foi realizado com 12 pacientes com diagnóstico de
TA. Nesse ensaio, sem grupo placebo, a atomoxetina foi administrada em doses que
variaram de 40 a 80mg por 12 semanas. Além de redução nos sintomas de déficit de
atenção e impulsividade, também foi observada uma melhora dos sintomas de
acumulação e do funcionamento global.28 A atomoxetina não está disponível no Brasil
até o momento.
ATIVIDADES
Caso clínico
Paciente A., sexo feminino, 63 anos de idade, divorciada há 25 anos, aposentada, chega
ao consultório acompanhada da filha de 35 anos de idade.
Enquanto a paciente permanece calada e sem manter contato visual, sua filha relata a
seguinte história: recorda-se que, desde a infância, observava que sua mãe sempre
guardava muitos papéis, recibos e embalagens vazias em sua bolsa de uso diário. Com o
tempo, passou a observar que os armários e as estantes da casa também estavam
inteiramente preenchidos com roupas, livros e diversos outros objetos com pouco ou
nenhum uso.
Após mudar-se de casa para outra cidade, passou a ir esporadicamente à casa da mãe, e,
a cada visita, notava o espaço mais preenchido. Isso chegou a impedir o uso de partes da
casa, como o quarto de hóspedes, a poltrona e a escrivaninha do quarto da mãe e mais
da metade da sala, onde não é mais possível sentar-se no sofá. Refere que determinados
espaços se encontram sujos, pois não há acesso para uma limpeza adequada. Porém, ao
tentar organizar e descartar alguns itens, sua mãe sempre se exalta e a impede.
Após longo período da consulta sem falar, a paciente manifesta-se e justifica sua reação,
alegando que suas posses “não são lixo”, mas, itens pelos quais tem carinho e acredita
que terão utilidade em algum momento. Nega que atrapalhem sua vida, já que não
recebe visitas há mais de 10 anos, porque já não tem relações sociais ou românticas. Ao
ser questionada se ficaria constrangida caso recebesse visita de alguém, responde: “Não
sei, talvez.”.
Nega comorbidades, embora não tenha tido consultas médicas ou exames há alguns
anos. Nega uso de medicações regulares, uso de álcool ou outras substâncias. Refere uso
eventual de clonazepam quando se sente angustiada, embora essa seja sua primeira
consulta psiquiátrica, como faz questão de afirmar. Repete que não tem problema nem é
doida.
Após a avaliação detalhada, é dado o diagnóstico de TA.
ATIVIDADES
13. Você concorda com o diagnóstico? Justifique com base nos critérios diagnósticos do
DSM-5.
Confira aqui a resposta
14. Como você classifica o insight da paciente? Justifique.
Confira aqui a resposta
15. Qual deve ser a conduta ideal?
Confira aqui a resposta
Conclusão
O reconhecimento do TA como um diagnóstico independente, no DSM-5, possibilitou o
aumento progressivo das informações a respeito do transtorno, favorecendo um
diagnóstico mais preciso e um tratamento mais adequado. Esse grupo de pacientes pode
se beneficiar de TCC, abordagem familiar, abordagem multidisciplinar comunitária e
farmacoterapia.
Entretanto, ainda que os avanços já sejam notados nesse campo, como revisado neste
capítulo, mais investigações são necessárias, principalmente por meio de estudos
clínicos controlados randomizados, para determinar a intervenção terapêutica mais
eficaz e, assim, amenizar as consequências pessoais, familiares e comunitárias
decorrentes desse transtorno.