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Título: O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo

Autor: Charles Dickens


Digitalização e correcção: Gaia Inclusiva – Serviço de Leitura
Especial da Biblioteca Pública Municipal de Vila Nova de Gaia

Página de rosto

CHARLES DICKENS
O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo
Tradução de Lucília Filipe
COLECÇÃO MIL FOLHAS

Ficha técnica
Colecção Mil Folhas
PÚBLICO
O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo
Charles Dickens
Título original: A Christmas Carol e The Chimes
Tradução: Lucília Filipe
© PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. 2001
© 2002 M.E.D.I.A.S.A.T. / Promoway Portugal Comércio de Produtos
Multimédia, Ltda. para esta edição.
Impressão Printer, Industria Gráfica, S.A.
Barcelona
Data de impressão Dezembro de 2002
ISBN 84-96075-69-9
Depósito Legal B. 45 430-2002
PÚBLICO COMUNICAÇÃO SOCIAL SA
Rua João de Barros 265
4150-414 Porto

Este livro é vendido exclusivamente com o jornal PÚBLICO.


Todos os direitos reservados.

Índice

O Natal do senhor Scrooge 5


Estrofe I - O fantasma de Marley 11
Estrofe II - O primeiro dos três espíritos 35
Estrofe III- O segundo dos três espíritos 57
Estrofe IV - O último dos espíritos 87
Estrofe V - O fim de tudo 107

Os Sinos de Ano Novo 115


Primeiro quarto 117
Segundo quarto 147
Terceiro quarto 173
Quarto quarto 199
O NATAL DO SENHOR SCROOGE
A história de um Natal assombrado

Personagens

BOB CRATCHIT, empregado de Ebenezer Scrooge.


PETER CRATCHIT, filho do anterior.
TIM CRATCHIT (o pequeno Tim), um aleijado, filho mais novo de Bob
Cratchit.
Mr. FEZZIWIG, um velho comerciante, bondoso e jovial.
FRED, sobrinho de Scrooge.
ESPÍRITO DO NATAL PASSADO Natal, um fantasma que mostra os factos
passados.
ESPÍRITO DE NATAL PRESENTE, um espírito de temperamento amável,
generoso e bom.
ESPÍRITO DE NATAL FUTURO, uma aparição que mostra as sombras dos
factos que poderão vir a acontecer.
O FANTASMA DE JACOB MARLEY, o espectro do ex-sócio de Scrooge.
JOE, um negociante, com uma loja de artigos náuticos e receptor de
mercadoria roubada.
EBENEZER SCROOGE, um velho avarento e ambicioso, o sócio sobrevivente
da firma Scrooge e Marley.
Mr. TOPPER, um bacharel.
DlCK WILKINS, um aprendiz de Scrooge.
BELLE, uma alegre matrona, antiga namorada de Scrooge.
CAROLINE, mulher de um dos devedores de Scrooge.
MRS. CRATCHIT, mulher de Bob Cratchit.
BELINDA E MARTHA CRATCHIT, filhas da anterior.
MRS. DILBER, uma lavadeira.
FAN, irmã de Scrooge
MRS FEZZING,uma companheira digna do senhor Fezziwig

Prefácio

Embrenhei-me neste assombrado livrinho para acordar o espírito de uma


ideia. Que ele não ponha o leitor de mal consigo, com os outros, com
o tempo ou comigo. Que ele invada agradavelmente a sua casa e que
ninguém sinta o desejo de o pôr de lado.
O vosso amigo e servo fiel
C. D.
Dezembro de 1843.

ESTROFE I
O fantasma de Marley
Para começar, Marley tinha morrido. Disso não restam dúvidas. O
registo do seu enterramento estava assinado pelo pastor, pelo oficial
do cartório, pelo cangalheiro e pelo principal enlutado. Scrooge
assinara-o. E o nome de Scrooge valia ouro, quando ele se resolvia a
pôr a mão em qualquer coisa.
O velho Marley estava mais morto do que um prego de porta.
Note-se que isto não significa que eu saiba claramente o que há de
especialmente morto num prego de porta. Cá por mim, até talvez me
sentisse mais inclinado a olhar um prego de caixão como a coisa mais
morta no reino da ferragem. Mas na comparação reside a sabedoria dos
nossos antepassados e não serão as minhas mãos profanas que deverão
perturbá-la, ou então o País está perdido. Permitir-me-ão, portanto,
que repita enfaticamente que Marley estava morto como um prego de
porta!
Scrooge sabia que ele estava morto? Claro que sabia. E como não
havia de sabê-lo? Scrooge e ele foram sócios durante não sei quantos
anos. Scrooge era o seu único testamenteiro, o seu único
administrador, o seu único cessionário, o seu único herdeiro
universal, o seu único amigo e o único que por ele pôs luto. E mesmo
assim, Scrooge não ficou tão terrivelmente deprimido pelo triste
acontecimento que não tivesse ainda feito um excelente negócio no

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próprio dia do funeral, celebrando-o com uma pechincha.


O facto de mencionar o funeral de Marley fez-me voltar ao ponto de
partida. Não há dúvida de que Marley estava morto. Isto deve ficar
perfeitamente entendido, pois de contrário nada de maravilhoso
ressaltará da história que vou contar. Se não estivéssemos plenamente
convencidos de que o pai de Hamlet morrera antes de começar a peça,
não haveria no facto de ele passear à noite pelas muralhas, envolvido
pelo vento leste, nada de mais extraordinário do que no de qualquer
outro cavalheiro de meia-idade aparecer intempestivamente depois de
escurecer, num lugar ventoso — o cemitério de St. Paul, por exemplo —
apenas para perturbar o espírito fraco de seu filho.
Scrooge nunca apagara o nome do velho Marley. Ali permanecera ano
após ano, sobre a porta do armazém: Scrooge e Marley. A firma era
conhecida por Scrooge e Marley. Umas vezes os novos no negócio
chamavam Scrooge a Scrooge e outras chamavam-lhe Marley, mas ele dava
por qualquer dos nomes. Tanto lhe fazia!
Ah!, mas, para obrigar a trabalhar, ele era um punho de ferro.
Scrooge! Um velho pecador, extorsionário, sovina, avarento,
mesquinho. Uma ave de rapina! Duro e afiado como uma pederneira da
qual nenhum aço conseguira fazer saltar uma centelha de generosidade;
secreto, reservado e solitário como uma ostra. O frio que havia
dentro dele gelava-lhe os traços, enregelava-lhe o nariz pontiagudo,
enrugava-lhe as faces, endurecia-lhe o porte, avermelhava-lhe os
olhos, azulava-lhe os finos lábios e transparecia no rabugento tom da
sua voz desagradável. Tinha a cabeça, as sobrancelhas e o magro
queixo cobertos de geada. Levava sempre consigo a sua baixa
temperatura que gelava o seu escritório nos dias de canícula e não
aumentava nem um grau no Natal.

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O frio e o calor exteriores pouca influência exerciam sobre Scrooge.


Não havia calor que o aquecesse nem frio que o enregelasse. Não
soprava nenhum vento mais agreste do que ele, nem a neve que caía era
mais obstinada no seu propósito, nem a bátega de chuva mais
impenetrável. O mau tempo não sabia como ultrapassá-lo. A chuva, a
neve, o granizo e a geada mais fortes podiam num único ponto gabar-se
de lhe levar a palma. É que «caíam» muitas vezes docemente e Scrooge
nunca.
Nunca ninguém o fez parar na rua para lhe dizer, com ar prazenteiro:
«Como vai, meu caro Scrooge? Quando é que me faz uma visita?». Nenhum
pedinte lhe implorava que lhe desse alguma coisinha, nenhuma criança
lhe perguntava as horas, nunca homem ou mulher perguntou na sua vida
a Scrooge qual o caminho para tal ou tal lugar. Até os cães de cego
pareciam conhecê-lo e quando o viam aproximar-se puxavam os donos
para um portal ou para dentro dum pátio, abanando depois a cauda como
se dissessem: «Não há olhar superior ao olhar do mal, meu dono
cego!».
E Scrooge que se importava! Era mesmo do que ele gostava. Abrir
caminho pelas veredas da vida, apinhadas de gente, avisando todo o
calor humano para que se afastasse à sua passagem. Por isso os
ajuizados chamavam doido a Scrooge.
Certa vez — de todos os santos dias do ano, este era a véspera de
Natal — estava o velho Scrooge sentado a trabalhar no seu escritório.
Fazia um tempo frio, glacial e agreste e além disso enevoado. Ouvia
lá fora no pátio as pessoas que iam e vinham buliçosamente, batendo
com as mãos no peito e com os pés nas pedras da calçada, para os
aquecerem. Os relógios da cidade tinham acabado de bater as três, mas
já estava bastante escuro — durante todo o dia não tinha havido muita
luz — e as velas tremeluziam nas janelas dos escritórios vizinhos,

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como manchas rosadas de encontro ao ar acastanhado. O nevoeiro


começou a penetrar em cada fenda e em cada fechadura e era tão denso
lá fora que, embora o pátio fosse dos mais estreitos, as casas
fronteiriças não passavam de espectros. Ao ver a nuvem escura descer,
escurecendo tudo, poderia julgar-se que a natureza mal existia e que
estava a preparar uma tempestade em larga escala.
A porta do escritório de Scrooge estava aberta, para que pudesse ir
vigiando o seu empregado, que copiava cartas num exíguo cubículo em
frente, uma espécie de tanque. Scrooge tinha um fogo pequeníssimo,
mas o do empregado era tão mais pequeno que parecia ser apenas um
carvão e não podia reabastecê-lo porque Scrooge guardava a caixa do
carvão no seu escritório e, claro, quando o empregado apareceu com
uma pá, o patrão avisou-o de que tinham de repartir. Por conseguinte
o empregado pôs o seu cachecol e tentou aquecer-se na vela, no que
falhou por ser um homem de fraca imaginação.
— Feliz Natal, tio! Deus o salve! — gritou uma voz alegre. Era a voz
do sobrinho de Scrooge, o qual se dirigiu a ele tão rapidamente que
aquilo foi o primeiro sinal da sua aproximação.
— Bah! — disse Scrooge —, aldrabices!
Este sobrinho de Scrooge aquecera de tal maneira com a caminhada
apressada pelo nevoeiro e geada que todo ele irradiava calor. O rosto
era rosado e bonito, os olhos brilhavam e o seu hálito fumegava.
— O Natal é uma aldrabice, tio?! — disse o sobrinho de Scrooge. —
Tenho a certeza de que não fala a sério.
— Falo — disse Scrooge. — Feliz Natal! Que direito tens tu de te
sentires feliz? Que razão tens para ser feliz? És muito pobre.
— Deixe-se disso — retorquiu o sobrinho jovialmente. — Que direito

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tem o tio de estar triste? Que razão tem para estar taciturno? É
muito rico.
Scrooge, não tendo melhor resposta pronta de repente, disse «Bah!»
outra vez e repetiu:
— Aldrabices!
— Não esteja zangado, tio! — disse-lhe o sobrinho.
— Que mais posso eu estar — objectou o tio —, vivendo num mundo
destes? Feliz Natal! Deixa-te de Feliz Natal! O que é para ti o Natal
além da época de pagar as contas sem dinheiro, altura de dares
contigo mais velho um ano, mas nem uma hora mais rico, altura de
fazeres o balanço das tuas contas e teres cada parcela delas, em
todos os doze meses do ano, com um saldo negativo? Se eu pudesse agir
à minha vontade — disse Scrooge, indignado —, todo o idiota que anda
para aí com essa de «Feliz Natal» na boca devia ser cozinhado com o
seu pudim e enterrado com uma estaca de azevinho espetada no coração.
Isso é que devia!
— Tio! — suplicou o sobrinho.
— Sobrinho! — respondeu o tio asperamente. — Vive o Natal à tua
maneira que eu vivo-o à minha.
— Vive-o! — repetiu o sobrinho de Scrooge. — Mas o senhor não o
vive.
— Então deixa-me não o viver — disse Scrooge. — Vale de muito!
Sempre te valeu de muito!
— Eu diria que há muitas coisas das quais talvez tenha tirado algo
de bom e de que não tirei nenhum lucro — retorquiu o sobrinho. —
Entre elas o Natal. Mas sei que sempre pensei no Natal — não falando
na veneração devida ao seu sagrado nome e origem, se é que algo a ele
ligado pode estar afastado dela —, pensei nele sempre como uma época
boa; uma época de perdão, de caridade e de alegria; a única época de
todo o ano, que eu saiba, durante a qual homens e mulheres parecem
abrir,de comum acordo e livremente, os seus corações fechados e

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pensar nos que estão abaixo deles como se de facto fossem seus
companheiros de viagem para a sepultura e não uma outra raça de seres
destinados a outras viagens. E por isso, meu tio, ainda que ele não
me tenha metido ao bolso uma só migalha de ouro ou de prata, acredito
que me tem feito bem e me fará... bem e digo: bendito seja!
O empregado que estava no cubículo aplaudiu involuntariamente.
Apercebendo-se imediatamente da inconveniência, atiçou o lume e
apagou definitivamente a última e ténue centelha.
— Que eu oiça outro som teu — disse Scrooge — e vais viver o teu
Natal sem emprego! Vossa excelência é um grande orador — acrescentou
virando-se para o sobrinho —, até admira não estar no Parlamento!
— Vá lá tio, não se zangue. Olhe, venha jantar connosco amanhã.
Scrooge despediu-se dele — foi o que fez. E utilizou toda a extensão
da expressão dizendo que o queria ver à distância.
— Mas porquê? — gritou o sobrinho de Scrooge. — Porquê?
— Porque é que te casaste? — disse Scrooge.
— Porque estava apaixonado.
— Porque estavas apaixonado! — rosnou Scrooge, como se aquilo fosse
no mundo a única coisa mais ridícula do que um feliz Natal. — Boa
tarde!
— Não, tio, mas antes de isso ter acontecido o senhor nunca me foi
visitar. Porque apresenta agora isso como razão para não ir?
— Boa tarde — disse Scrooge.
— Não lhe peço nada. Nada quero de si. Porque é que não havemos de
ser amigos?

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— Boa tarde — disse Scrooge.
— Lamento de todo o coração vê-lo tão irredutível. Nunca houve entre
nós qualquer discussão, na qual eu tivesse sido participante. Mas em
homenagem ao Natal fiz a minha tentativa e manterei a minha boa
disposição de Natal até ao fim, por isso, tio: Feliz Natal!
— Boa tarde! — disse Scrooge.
— E Feliz Ano Novo!
— Boa tarde! — disse Scrooge.
O sobrinho deixou a sala sem uma palavra exaltada e sem oposição.
Parou na porta exterior para apresentar ao empregado as saudações da
época e aquele, embora frio como estava, conseguiu ser mais caloroso
que Scrooge, porque lhas retribuiu cordialmente.
— Ali está outro — murmurou Scrooge que o tresouviu: — O meu
empregado com quinze xelins por semana, mulher e família e a falar de
feliz Natal. Vou é para Bedlam.
Aquele lunático, ao acompanhar o sobrinho de Scrooge à porta,
deixara entrar duas pessoas. Eram cavalheiros imponentes, agradáveis
à vista, e estavam agora de pé no escritório de Scrooge, tendo tirado
os chapéus. Tinham na mão livros e papéis e faziam-lhe vénias.
— Scrooge e Marley, segundo creio — disse um dos cavalheiros
reportando-se à sua lista. — A quem tenho o prazer de me dirigir, ao
senhor Scrooge ou ao senhor Marley?
— O senhor Marley morreu há sete anos — respondeu Scrooge. — Faz
exactamente sete anos esta noite.
— Não temos a mínima dúvida de que a sua liberalidade está
condignamente representada pelo seu sócio sobrevivente — disse o
cavalheiro, apresentando as suas credenciais.
E é que estava mesmo, porquanto ambos tinham sido espíritos da mesma

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têmpera. Ao ouvir a agourenta palavra «liberalidade», Scrooge franziu


o sobrolho e abanou a cabeça, devolvendo as credenciais.
— Senhor Scrooge, nesta festiva época do ano — disse o cavalheiro
pegando numa caneta — é mais do que habitual e desejável que façamos
uma pequena provisão para os pobres e desprotegidos, que nesta altura
tanto sofrem. Muitos milhares estão à míngua do necessário e centenas
de milhares sentem a falta das comodidades básicas.
— Não há asilos? — indagou Scrooge.
— Há imensos asilos — disse o cavalheiro, voltando a pousar a
caneta.
— E os albergues do Estado? — perguntou Scrooge.
— Ainda estão em actividade?
— Estão sim. Ainda que — continuou o cavalheiro — me fosse grato
dizer que não.
— O Treadmill e a Poor Law ainda estão em vigor? — inquiriu Scrooge
(Nota da tradutora: Treadmill – A roda; Poor Law - Lei de assistência
aos pobres).
— E ambos em grande actividade.
— Ah, é que, pelo que disse a princípio, temi que algo tivesse
surgido a impedir a sua útil acção — disse Scrooge. — Fico contente
por sabê-lo.
— Perante a sensação de que eles prodigalizam escasso apoio moral e
auxílio material à população — continuou o cavalheiro —, alguns de
nós estamos empenhados em angariar um fundo que nos permita comprar
alguma carne, bebida e agasalhos para os pobres. Escolhemos esta
época porque é aquela de entre todas em que a necessidade é mais
agudamente sentida e a abundância festejada. De quanto será a sua
comparticipação que devo anotar?

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— De nada! — respondeu Scrooge.


— Deseja conservar o anonimato?
— Desejo que me deixem em paz — disse Scrooge. — Já que me perguntam
o que desejo, meus senhores, eis a minha resposta. Eu não me divirto
no Natal e não posso dar-me ao luxo de fazer felizes os preguiçosos.
Ajudo a manter os estabelecimentos a que me referi e que custam
bastante. Os que estão em más condições que lá se dirijam.
— Muitos não podem lá ir e outros prefeririam morrer a fazê-lo.
— Se prefeririam morrer — acrecentou Scrooge —, seria melhor
fazerem-no e diminuírem assim o excesso de população. Além disso,
desculpem-me, mas não sei nada disso.
— Mas podia saber — observou o cavalheiro.
— Não é da minha conta — respondeu Scrooge. — Já basta um homem ter
de saber dos seus negócios e não interferir nos dos outros. Os meus
ocupam-me permanentemente. Bom dia, meus senhores!
Vendo perfeitamente que era inútil continuarem a insistir, os dois
cavalheiros retiraram-se. Scrooge retomou as suas tarefas com melhor
opinião da sua pessoa e com uma disposição mais jovial do que lhe era
habitual.
Entretanto, o nevoeiro e a escuridão tornaram-se tão densos que as
pessoas andavam de cá para lá com archotes brilhantes, oferecendo os
seus préstimos para precederem os cavalos de carruagem e guiá-los no
seu caminho. A velha torre duma igreja, cujo velho e mal-humorado
sino estava sempre a espiar dissimuladamente Scrooge, pela janela
gótica, tornou-se invisível e batia as horas e os quartos entre
nuvens, com trémulas vibrações depois, como se lá em cima batesse os
dentes na sua cabeça gelada. O frio tornou-se intenso. Na rua
principal, à esquina do pátio, alguns trabalhadores reparavam os

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canos do gás e tinham acendido um belo lume numa braseira, à volta da


qual estava reunido um grupo de rapazes e homens esfarrapados que
aqueciam as mãos e piscavam os olhos, extasiados, em frente do fogo.
A boca de incêndio abandonada exibia o seu fluxo extravasante
tristemente congelado e transformado em misantrópico gelo. O brilho
das lojas, onde ramos de azevinho e bagas estalavam ao calor dos
candeeiros das montras, tornava rosadas as caras pálidas quando por
elas passavam. O negócio dos galinheiros e merceeiros transformava-se
numa esplêndida brincadeira: um espectáculo glorioso perante o qual
era difícil imaginar que houvesse ali algo de semelhante a coisas tão
prosaicas como a oferta e a procura. O Lorde Maior, na fortaleza da
sua poderosa casa senhorial, dava ordens aos seus cinquenta
cozinheiros e mordomos para que mantivessem o Natal à altura duma
casa de Lorde Maior e até o alfaiatezito a quem tinha multado na
segunda-feira anterior, por andar pelas ruas bêbado e desvairado,
batia agora nas suas águas-furtadas o pudim para amanhã, enquanto a
sua escanzelada mulher e o bebé tinham saído para comprar a carne.
O nevoeiro era ainda mais cerrado e fazia mais frio. Um frio
penetrante, insidioso e cortante. Se o bom S. Dunstan tivesse tentado
beliscar levemente o nariz do Demónio com um toque de semelhante
frio, em vez de ter utilizado as suas armas tradicionais, teria
alcançado tão ambicioso intento. O senhor dum pequeno e jovem nariz,
roído e mastigado pelo frio, tal como os ossos são roídos pelos cães,
deteve-se à porta de Scrooge para o brindar com um hino de Natal, mas
ao ouvir-se
Deus o abençoe, feliz cavalheiro!
Que nada o aflija!

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Scrooge pegou na régua com uma tal decisão de agir que o cantor
desapareceu aterrorizado, deixando aquela porta ainda mais envolvida
pelo nevoeiro e por uma geada que lhe era mais congenial. Por fim
chegou a hora de fechar o seu escritório. Scrooge desceu do banco, de
má vontade, e tacitamente deu consentimento ao empregado que esperava
no seu cubículo e que instantaneamente apagou a vela e pôs o chapéu.
— Suponho que queres ter todo o dia, amanhã? — disse Scrooge.
— Se lhe convém, senhor Scrooge.
— Não me convém — disse Scrooge — e não é justo. Se te descontasse
meia coroa, achar-te-ias explorado, creio?
O empregado sorriu timidamente.
— E afinal — acrescentou Scrooge — não me consideras explorado,
quando te pago o salário de um dia sem trabalhares.
O empregado objectou que isso acontecia apenas uma vez no ano.
— Isso é uma fraca desculpa para se pilhar a bolsa dum homem todos
os anos no dia vinte e cinco de Dezembro! — disse Scrooge, abotoando
o sobretudo até ao pescoço. — Bom, mas afinal de contas acho que
deves ter o dia todo. Faz por cá estares bem cedo na manhã seguinte.
O empregado prometeu que estaria e Scrooge saiu com um resmungo. O
escritório foi fechado num instante e o empregado, com as pontas do
cachecol a balouçarem-lhe sobre o peito (porque sobretudo era coisa
que não tinha), escorregou vinte vezes até Cornhill, atrás duma fila
de rapazes, em honra da Véspera de Natal, e correu depois até casa,
em Candem Town, tão depressa quanto podia, para jogar à cabra-cega.
Scrooge comeu o seu jantar melancólico, na habitual e melancólica

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taberna, e, tendo lido todos os jornais e passado o resto do serão


com os seus livros de contas, foi para casa deitar-se. Vivia numas
dependências que outrora tinham pertencido ao seu falecido sócio. Era
um soturno conjunto de divisões, num sombrio bloco de edifícios que
formavam um pátio e onde estava tão deslocado que dificilmente se
poderia deixar de imaginar que ela, quando ainda era uma jovem casa,
para ali correra a jogar às escondidas e esquecera onde era a saída.
Era agora suficientemente velha e suficientemente triste para que
ninguém, a não ser Scrooge, a habitasse, estando toda alugada para
escritórios. O pátio era tão escuro que até Scrooge, que lhe conhecia
cada pedra, se resignava a caminhar às apalpadelas. O nevoeiro e a
geada pairavam de tal modo em torno do velho portão que era como se o
Génio do Tempo estivesse sentado na soleira, em tristonha meditação.
O facto é que nada havia de especial no que respeita ao batente da
porta, a não ser o facto de ser muito grande. Também é um facto que
Scrooge o vira noite e dia, durante todo o tempo de residência
naquela casa, e também que Scrooge tinha tão pouco daquilo a que se
chama imaginação como qualquer outro homem de Londres, incluindo
mesmo — e isto é arriscado de dizer — os sócios do grémio, os
vereadores e os membros da Livery Company (Nota da tradutora:
Corporação inglesa). Tenhamos também em mente que Scrooge não
dedicara um único pensamento a Marley, desde que, naquela tarde,
mencionara o sétimo aniversário da morte do seu sócio. Expliquem-me
agora, se puderem, como é que, ao meter a chave na fechadura, Scrooge
viu no batente, sem passar por qualquer processo de transformação,
não um batente, mas a cara de Marley.

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O rosto de Marley! Não estava mergulhado na mesma sombra


impenetrável que envolvia os outros objectos do pátio, antes havia à
sua volta uma funesta luz, como se fosse uma lagosta estragada numa
cave escura. Não estava zangado, nem colérico, antes parecia a
Scrooge o Marley que sempre fora: com os óculos fantasmagóricos
erguidos sobre a fantasmagórica testa. O cabelo, curiosamente, estava
como que revolto por um sopro ou pelo ar quente e os olhos, ainda que
abertos, estavam absolutamente imóveis. Esse facto e a sua cor lívida
tornavam-na horrível, mas esse horror parecia existir mais para além
do rosto e ultrapassando o seu controlo do que fazer parte da sua
expressão.
Enquanto Scrooge olhava fixamente este prodígio, o batente voltou a
ser batente.
Dizer que ele não estava aterrado, ou que lhe não invadia o sangue
uma sensação que já não experimentava desde a infância, seria faltar
à verdade. No entanto, pôs a mão na chave que tinha largado, girou-a
firmemente, entrou e acendeu a vela.
Parou de facto, num momento de hesitação, antes de fechar a porta e
espreitou realmente primeiro, cautelosamente, por trás dela, como se
esperasse ser aterrorizado com a visão do rabicho de Marley apontando
para o corredor. Mas nada havia atrás da porta, além dos parafusos e
porcas que prendiam o batente, e exclamou então: «Bah! Bah!», e
fechou-a de rompante.
O som ecoou pela casa como um trovão. Era como se cada divisão no
andar superior, e cada casco lá em baixo na adega, tivesse o seu eco
próprio. Scrooge não era homem que se assustasse com ecos. Aferrolhou
a porta, atravessou o corredor e subiu as escadas, mas vagarosamente,
equilibrando a vela à medida que caminhava.
Pode referir-se como abstracção ao facto de se conduzir um carro de

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três parelhas por uma escadaria ou de abrir caminho por uma lei
recém-criada e errada; mas o que eu quero realmente dizer é que se
poderia fazer subir por aquela escada um carro funerário
transversalmente, com a barra de tracção virada para a parede e a
porta para a balaustrada e fá-lo-íamos com toda a facilidade. Talvez
por esta razão, Scrooge pensou ver um carro funerário avançando à sua
frente na escuridão. Meia dúzia de candeeiros a gás não chegariam
para iluminar suficientemente a entrada, por isso já se pode imaginar
quão escuro estava só com a vela de sebo que Scrooge levava.
Scrooge subiu, sem se importar com isso. A escuridão não lhe custava
dinheiro, e isso era o que agradava a Scrooge. Antes, porém, de
fechar a pesada porta, deambulou pelas dependências, para se
certificar de que tudo estava bem. Tinha ainda bem presente a
recordação daquele rosto, para sentir vontade de agir assim.
Sala de estar, quarto de dormir, quarto de arrumações. Ninguém
debaixo da mesa, ninguém debaixo do sofá; um lume fraco na grelha, a
colher e a malga prontas e a caçarola com o caldo de aveia na estufa
do fogão (Scrooge estava com coriza). Ninguém debaixo da cama,
ninguém no armário, ninguém no seu roupão que pendia da parede com ar
suspeito. O quarto de arrumação estava como de costume. Um velho
guarda-fogo, sapatos velhos, dois cestos para peixe, um lavatório de
três pernas e um atiçador.
Satisfeito, fechou a porta e trancou-se por dentro; deu duas voltas
à chave, o que não era seu costume. Seguro assim contra qualquer
surpresa, tirou a gravata, vestiu o roupão, calçou as chinelas, pôs o
barrete de dormir e sentou-se em frente do lume para comer o caldo de
aveia.
O lume estava realmente bastante fraco; em semelhante noite era como
se não existisse. Viu-se obrigado a sentar-se muito perto e a

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aninhar-se sobre ele, antes que pudesse extrair algum calor daquele
punhado de combustível. O fogão de sala, velho, teria sido há muito
construído por algum comerciante holandês e era todo ele forrado com
estranhos azulejos holandeses, cujos desenhos ilustravam as
Escrituras. Havia Cains e Abeis, filhas de faraó, rainhas do Sabá,
angélicos mensageiros descendo do ar, das nuvens semelhantes a
colchões de penas, Abraões, Baltazares, Apóstolos largando para o mar
em molheiras, centenas de figuras que lhe atraíam os pensamentos, no
entanto aquele rosto de Marley, morto havia sete anos, aparecia-lhe
como o bordão do antigo profeta e envolvia tudo. Se cada azulejo liso
estivesse inicialmente em branco e possuísse o dom de dar forma na
sua superfície a qualquer figura, em cada um deles haveria uma cópia
do rosto de Marley, proveniente dos fragmentos dispersos dos seus
pensamentos.
— Tretas! — disse Scrooge e atravessou o quarto. Depois de várias
voltas, tornou a sentar-se. Ao encostar a cabeça na cadeira,
aconteceu os seus olhos pousarem numa campainha, uma campainha sem
utilidade que estava pendurada na sala e que, para algum fim
esquecido, comunicava com um quarto no andar superior do edifício.
Foi com grande espanto e inexplicável temor que viu a campainha
começar a balouçar. A princípio balouçava tão levemente que mal se
ouvia o som, mas subitamente soou alto, o mesmo sucedendo a todas as
campainhas da casa.
Isto deve ter durado meio minuto, ou um minuto, mas pareceu durar
uma hora. As campainhas calaram-se, tal como tinham começado a soar,
simultaneamente. Sucedeu-lhes um ruído de tinir, lá no fundo, como se
alguém estivesse a arrastar uma pesada corrente sobre os cascos, lá
em baixo na adega do taberneiro. Scrooge lembrou-se, então, de ter

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ouvido dizer que os fantasmas arrastavam correntes, nas casas


assombradas.
A porta da adega abriu-se com estrondo e ele pôde ouvir o som muito
mais alto, lá em baixo no pavimento, e depois subindo as escadas e
avançando para a sua porta.
— Mesmo assim é treta! — disse Scrooge. — Não acredito!
Contudo, mudou de cor quando, sem paragem, aquilo atravessou a
pesada porta e penetrou na sala, perante o seu olhar. Após a sua
entrada, o lume semiapagado reacendeu-se como se gritasse: «Conheço-
-o. É o fantasma de Marley!», e voltou a esmorecer.
Era o mesmo rosto, o mesmíssimo. Era Marley com o seu rabicho, o seu
habitual colete, as suas calças justas e as botas, as borlas destas
de pêlos eriçados, tal como o seu rabicho, a orla do seu casaco e
todo o seu cabelo. A corrente que ele arrastava estava-lhe cravada no
meio do corpo, era comprida e serpenteava em volta dele como se fosse
uma cauda e era feita (Scrooge observou-a de perto) de caixas de
dinheiro, chaves, cadeados, livros Razão, contratos e pesadas bolsas
de aço lavrado. O corpo era transparente e assim, observando-o e
olhando através do seu colete, Scrooge podia ver os dois botões de
trás, do casaco.
Scrooge ouvira dizer muitas vezes que Marley não tinha entranhas,
mas até àquele momento nunca acreditara.
Não, nem mesmo naquele momento. Ainda que mirasse e remirasse o
fantasma e o visse ali na sua frente, ainda que sentisse o gelado
poder do seu olhar mortalmente gélido, e observasse a própria textura
da faixa que lhe envolvia a cabeça e o queixo, faixa essa em que
ainda não tinha reparado, continuava incrédulo e lutava contra os
seus sentidos.

26

— Então? — disse Scrooge, cáustico e frio como sempre. — Que queres


de mim?
— Muito! — Era a voz de Marley, não havia dúvida.
— Quem és tu?
— Pergunta-me quem fui.
— Quem foste, então? — disse Scrooge, elevando a voz. — Para um
espectro és demasiado minucioso. — Ia a dizer «como espectro» mas
substituiu a expressão por achar a outra mais própria.
— Fui em vida o teu sócio, Jacob Marley.
— Podes...podes sentar-te? — indagou Scrooge, olhando-o desconfiado.
— Posso.
— Então, senta-te.
Scrooge formulou a pergunta porque não sabia se um fantasma tão
transparente conseguiria arranjar maneira de se sentar e sentia que,
no caso de ser impossível, isso poderia implicar a necessidade duma
explicação embaraçosa, mas o fantasma sentou-se do outro lado da
lareira como se a isso estivesse absolutamente habituado.
— Não acreditas em mim — observou o espírito.
— Não — disse Scrooge.
— Que outra prova quererias da minha realidade, além da dos teus
sentidos?
— Não sei — disse Scrooge.
— Porque duvidas dos teus sentidos?
— Porque — disse Scrooge — há um pequeno nada a afectá-los. Uma
pequena indisposição de estômago está a falseá-los. Tu podes ser o
resultado dum pedaço de carne mal digerido, dum pingo de mostarda,
duma migalha de queijo ou dum bocado de batata mal cozida. Sejas lá
tu quem fores, és mais funcional do que sepulcral!
Scrooge não tinha por hábito dizer piadas, nem sequer sentia naquele
27

momento qualquer sinal de gracejo, no fundo do seu coração. A verdade


é que tentava ironizar de forma a distrair a sua própria atenção e
diminuir o seu terror, porque a voz do espectro lhe arrepiava a
própria medula.
Scrooge sentia que estar ali sentado, olhando aqueles olhos vítreos
seria como que emparceirar ao jogo com ele. Havia algo de terrível no
facto de o espectro possuir uma atmosfera infernal muito própria.
Scrooge não conseguia senti-la, mas era o que acontecia, porquanto,
se bem que o fantasma estivesse sentado, perfeitamente imóvel, o seu
cabelo, as abas e as borlas eram agitadas como que pelo ar quente dum
forno.
— Estás a ver este palito? — disse Scrooge, voltando à carga, pela
razão já apresentada e ansiando, ainda que por um segundo, desviar de
si o olhar insensível do fantasma.
— Vejo — respondeu o espírito.
— Não estás a olhar — disse Scrooge.
— Contudo, vejo-o — disse o fantasma.
— Bem! — disse Scrooge. — Só tenho de engolir isto, para passar o
resto dos meus dias a ser perseguido por uma legião de duendes todos
eles produto da minha criação. Tretas, digo-to eu! Tretas!
Nesse momento o espírito soltou um grito aterrador e sacudiu a
corrente com um barulho tão assustador e lúgubre que Scrooge se
agarrou com força à cadeira, para evitar desmaiar. Mas muito maior
foi o seu pavor ao ver o fantasma tirar a ligadura que lhe envolvia a
cabeça, como se estivesse demasiado calor para a usar dentro de casa,
e o maxilar inferior cair-lhe sobre o peito.
Scrooge caiu de joelhos e enclavinhou as mãos sobre o rosto.
— Piedade! — disse. — O terrível aparição, porque me atormentas?

28

— Ó homem profano! — respondeu o espírito. — Acreditas em mim ou


não?
— Acredito — disse Scrooge. — Tenho de acreditar. Mas porque vêm os
espíritos à terra e porque me procuram?
O espírito respondeu:
— Espera-se que o espírito que habita em cada homem saia dele e
vagueie entre os outros homens e viaje por toda a parte; se esse
espírito não emana em vida, está condenado a fazê-lo depois da morte.
Fica condenado a vaguear pelo mundo — oh!, ai de mim! — e a ser
testemunha daquilo de que não pôde compartilhar, mas poderia ter
compartilhado em vida e transformado em felicidade!
O espectro soltou novamente um grito, sacudiu a corrente e torceu as
transparentes mãos.
— Estás preso com cadeias — disse Scrooge a tremer. — Diz-me porquê.
— Trago comigo a corrente que forjei em vida — respondeu o fantasma.
— Construí-a elo a elo e jarda a jarda; cingi-a de minha única e
livre vontade, e de minha única e livre vontade a trago. O material
de que é feita, não te é familiar?
Scrooge tremia cada vez mais.
— Saberás tu — prosseguiu o espírito — o peso e o comprimento da
forte corrente que tu próprio trazes? Era tão pesada e comprida como
esta há sete Natais. Desde aí tens continuado a trabalhar nela. É uma
pesada corrente!
Scrooge deitou um olhar para o chão à sua volta, esperando ver-se
rodeado de umas cinquenta ou sessenta toesas de cabo de ferro, mas
nada viu (Nota da tradutora: Antiga medida de comprimento, de seis
pés).
— Jacob — disse em tom suplicante. — Velho Jacob

29

Marley, conta-me mais. Diz-me palavras de conforto, Jacob!


— Não tenho nem uma para te dizer — replicou o fantasma. — Essas vêm
de outras paragens, Ebenezer Scrooge, e são transmitidas por outros
ministros, a outro tipo de homens. Nem te posso dizer o que queria.
Já só me é permitido muito pouco mais. Não posso descansar, não posso
ficar, não posso fixar-me seja onde for. O meu espírito nunca saiu do
nosso escritório — nota bem! —, e em vida nunca o meu espírito
ultrapassou os estreitos limites do nosso antro de cambista e
fatigantes viagens me esperam.
Scrooge tinha por hábito, sempre que ficava pensativo, meter as mãos
nos bolsos das calças. Assim fizera enquanto meditava no que o
espírito tinha dito, mas sem levantar os olhos ou abandonar a posição
de ajoelhado.
— Deves ter sido muito lento, Jacob — disse Scrooge.
— Lento?! — repetiu o fantasma.
— Morto há sete anos — ruminou Scrooge — e sempre a caminhar!
— Sempre — disse o fantasma. — Sem descanso nem paz. A incessante
tortura do remorso.
— Viajas depressa? — perguntou Scrooge.
— Nas asas do vento — respondeu o fantasma.
— Em sete anos podias ter dominado uma quantidade de terreno —
replicou Scrooge.
Ao ouvir isto o fantasma soltou outro grito e sacudiu a corrente tão
aterradoramente, no silêncio mortal da noite, que a guarda teria
razão para o acusar de infracção.
— Ó prisioneiro, submetido e duplamente agrilhoado — gritou o
fantasma. — Não saberes que se esvairão na eternidade, séculos de
incessante labor, praticado por criaturas imortais para este mundo,
antes que todo o bem de que ele é susceptível seja totalmente
praticado. Não saberes que cada alma cristã trabalhando caridosamente

30

no seu limitado ambiente, seja ele qual for, achará a sua vida mortal
demasiado curta para as suas vastas possibilidades de utilidade. Não
saberes que nenhum arrependimento ilimitado poderá compensar uma
oportunidade desperdiçada na vida! E assim eu fiz! Oh! Assim eu fiz!
— Mas sempre foste um bom homem de negócios, Jacob — gaguejou
Scrooge, que começava agora a aplicar a si próprio aquelas palavras.
— Negócios! — gritou o espírito, torcendo novamente as mãos. — A
humanidade é que era o meu negócio. O bem comum é que era o meu
negócio: a caridade, a misericórdia, a tolerância e a benevolência,
esses sim eram os meus negócios. A forma de negociar, no meu
comércio, era apenas uma gota de água no oceano que compreendia o meu
negócio!
Ergueu os braços a toda a altura e com eles a corrente, como se nela
estivesse toda a causa do seu inútil pesar, e de novo a arremessou
pesadamente ao chão.
— Nesta altura do ano que decorre — disse o espectro —, sofro ainda
mais. Porque haveria eu de ter caminhado por entre a multidão dos
meus semelhantes de olhos postos no chão e nunca os hei-de ter
erguido para essa abençoada estrela que conduziu os Reis Magos a uma
pobre morada! Será que não havia casas pobres onde a sua luz me
tivesse conduzido?
Scrooge estava imensamente aterrado ouvindo o espectro prosseguir
neste tom e começou a tremer muitíssimo.
— Escuta-me! — gritou o fantasma. — O meu tempo está quase a findar.
— Escuto-te — disse Scrooge —, mas não sejas difícil comigo! Não
sejas poético, Jacob! Diz!
— Não te sei dizer como é que te apareço sob uma forma que consegues

31

ver. Por muitos e muitos dias estive sentado a teu lado, em forma
invisível.
Não era uma ideia agradável. Scrooge tremia e limpou o suor da
testa.
— Esta não é uma parte leve da minha pena — prosseguiu o fantasma. —
Estou aqui esta noite para te avisar de que ainda tens uma
oportunidade e uma esperança de escapares ao meu destino. Uma
oportunidade e uma esperança por minha intervenção, Ebenezer.
— Sempre foste um bom amigo — disse Scrooge. — Obrigado!
— Vais ser perseguido por três espíritos — resumiu o fantasma.
A expressão de Scrooge esmoreceu quase tanto como a do fantasma.
— É essa a oportunidade e a esperança que mencionaste, Jacob? —
perguntou em voz titubeante.
— É.
— Acho que era melhor que não fosse — disse Scrooge-
— Sem as visitas deles — disse o fantasma —, não poderás ter
esperança de evitar o caminho que eu trilho. Espera o primeiro
amanhã, quando o sino bater a uma.
— Não poderia recebê-los logo todos ao mesmo tempo e acabarmos com
isto, Jacob? — sugeriu Scrooge.
— Espera o segundo na noite seguinte, à mesma hora. O terceiro na
noite seguinte, quando tiver deixado de vibrar a última badalada da
meia-noite. Não esperes voltar a ver-me e tenta para teu próprio bem
lembrar-te do que se passou entre nós!
Ao terminar estas palavras, o fantasma pegou na ligadura que estava
em cima da mesa e enrolou-a à cabeça, como estava antes. Scrooge
soube-o, pelo som esquisito que os dentes produziram, quando a
ligadura uniu os dois maxilares. Ousou erguer novamente os olhos e

32

deparou-se-lhe o seu visitante sobrenatural, na sua frente, numa


postura erecta, com a corrente completamente enrolada ao braço.
A visão afastou-se dele e a cada passo que dava a janela levantava-
-se um pouco mais, de modo que, quando o espectro a alcançou, já
estava completamente aberta.
Fez sinal a Scrooge para que se aproximasse, e ele assim fez. Quando
estavam a dois passos um do outro, o fantasma de Marley ergueu a mão,
fazendo-lhe sinal para que não se aproximasse. Scrooge deteve-se.
Não tanto por obediência como por surpresa e medo, pois que, no
momento em que ele levantou a mão, Scrooge apercebeu-se de sons
confusos no ar, sons incoerentes de lamentação e remorso, prantos
inexplicavelmente dolorosos e de auto-acusação. Depois de escutar por
um momento, o espectro juntou-se ao lamentoso canto fúnebre e lançou-
-se na noite escura e fria.
Scrooge avançou para a janela e, desesperado de curiosidade, olhou
para fora.
O ar estava cheio de fantasmas, que vagueavam de cá para lá e de lá
para cá, numa pressa inquieta e lamentando-se enquanto se deslocavam.
Cada um deles usava correntes como o fantasma de Marley, alguns
(deviam ser governantes venais) estavam acorrentados uns aos outros.
Nenhum deles estava solto. Muitos tinha-os Scrooge conhecido
pessoalmente em vida. Dum velho fantasma tinha sido muito íntimo,
daquele que usava um colete branco e trazia um monstruoso cofre de
ferro acorrentado ao tornozelo e que gritava lastimosamente ao ver-se
impossibilitado de ajudar uma mulher miserável com uma criança, que
via lá em baixo, na soleira duma porta. A desdita de todos eles via-
-se que era claramente devida a tentarem interferir positivamente nos
assuntos dos humanos e terem para sempre perdido a capacidade de o

33

fazer. Não saberia dizer se aquelas criaturas se esvaíram no nevoeiro


ou se o nevoeiro as envolveu. Mas eles e as suas fantasmagóricas
vozes desapareceram simultaneamente e a noite voltou a ser como era
quando Scrooge regressara a casa.
Fechou a janela e observou a porta por onde o fantasma tinha
entrado. Estava fechada à chave, tal como ele a fechara com as suas
próprias mãos, e os ferrolhos estavam impecáveis. Tentou dizer
«tretas!», mas deteve-se na primeira sílaba. E, ou fosse da emoção
por que tinha passado, ou das fadigas do dia, ou de ter espreitado o
mundo invisível, ou da fastidiosa conversa do fantasma, ou do
avançado da hora, estando muito necessitado de repouso foi direito à
cama e, sem se despir, caiu a dormir instantaneamente.

ESTROFE II
O primeiro dos três espíritos

Estava tão escuro quando Scrooge acordou que, olhando da cama, mal
conseguia distinguir a janela transparente da opacidade das paredes
do quarto. Estava ele a tentar penetrar a escuridão com o seu olhar
agudo quando os sinos duma igreja vizinha bateram os quatro quartos.
Ficou à escuta esperando ouvir a hora.
Para sua grande surpresa, o pesado carrilhão passou das seis para as
sete, das sete para as oito e assim por diante até às doze; então,
parou. Doze! Já passara das duas quando se deitara. O relógio não
estava certo. Um pingente de gelo devia ter penetrado no mecanismo.
Doze.
Tocou no botão do relógio de repetição, para emendar aquele
carrilhão idiota, mas o seu pulsar rápido bateu as doze e parou.
— Ah!, não é possível — disse Scrooge — que eu tenha dormido um dia
inteiro e continuado a dormir outra noite. Não é possível que tenha
acontecido alguma coisa ao Sol e que seja meio-dia!
Como esta ideia era assustadora, rebolou para fora da cama e
caminhou às apalpadelas até à janela. Teve de limpar a geada com a
manga da camisa de noite para conseguir ver alguma coisa, e mesmo
assim conseguiu ver muito pouco. A única coisa que conseguiu
distinguir foi que ainda estava nevoeiro e fazia um frio intenso e
que não havia barulho de pessoas a correr de cá para lá, nem o grande

35

rebuliço que sem dúvida haveria se a noite tivesse expulsado o dia


claro e se tivesse apoderado do mundo.
Isso era um grande alívio, quando não aquilo de «a três dias de
vista desta letra de câmbio, pague-se ao senhor Ebenezer Scrooge ou à
sua ordem», e assim por diante, ter-se-ia transformado numa mera
acção dos Estados Unidos se não houvesse dias para contar.
Scrooge voltou para a cama, pensou, pensou e tornou a pensar e nada
conseguia concluir daquilo. Quanto mais pensava, mais espantado
ficava — e quanto mais tentava não pensar, mais pensava. O fantasma
de Marley perturbara-o muitíssimo. Sempre que decidia para consigo,
depois de pensar maduramente, que tudo aquilo fora um sonho, o seu
espírito recuava, como se fosse uma mola forte que se soltasse e
voltasse à posição inicial e apresentava o mesmo problema para
resolução: «Foi ou não um sonho?».
Scrooge ficou nesse estado até o carrilhão voltar a bater mais três
quartos de hora, quando de repente se lembrou de que o fantasma o
prevenira de que teria uma visita quando soasse a uma. Decidiu
permanecer acordado até passar a hora e isto era talvez o melhor que
tinha a fazer, já que adormecer lhe era tão impossível como entrar no
Céu.
O quarto de hora tardava tanto que por mais de uma vez se convenceu
que devia ter cochilado inconscientemente e ter perdido o toque do
relógio. Finalmente soou ao seu ouvido atento.
— Ding, dong!
— Um quarto — disse Scrooge, contando.
— Ding, dong!
— Meia! — disse Scrooge.
— Ding, dong!
— Falta um quarto — disse Scrooge.
— Ding,dong!

36

— A hora certa — disse Scrooge triunfantemente — e nada mais!


Falara antes de bater a hora, o que aconteceu naquele momento, com
uma badalada profunda, triste, oca e melancólica. Fez-se luz
instantaneamente no quarto e as cortinas da cama ergueram-se.
É como disse: as cortinas da cama foram erguidas, por uma mão. Não
as cortinas dos pés da cama, nem as que ficavam por detrás dele, mas
aquelas para onde tinha a cara virada. As cortinas foram afastadas
para o lado e Scrooge, erguendo-se precipitadamente e passando a uma
posição de semi-recostado, encontrou-se cara a cara com o
sobrenatural visitante que as erguera, tão perto dele como eu estou
agora de si — e estou em espírito a seu lado.
Era uma estranha figura — como que uma criança e, no entanto, mais
parecida com um velho do que com uma criança, observado através de um
instrumento sobrenatural que lhe dava o aspecto de se ter afastado da
vista, tendo sido reduzido à dimensão duma criança. O cabelo que
pendia em volta do pescoço e pelas costas era branco como que pela
idade, mas no entanto a cara não tinha uma só ruga e mostrava na pele
a mais doce frescura. Os braços eram muito compridos e musculados, o
mesmo acontecendo com as mãos, como se o seu abraço fosse de enorme
força; os pés e as pernas, de forma delicada, estavam tal como os
braços, despidos. Vestia uma túnica da maior alvura e a cintura era
cingida por um cinto brilhante, dum brilho maravilhoso. Trazia na mão
um ramo de fresco azevinho verde e, em estranha contradição com este
símbolo de Inverno, tinha o vestido guarnecido com flores estivais.
Mas o mais estranho de tudo isto era o facto de do alto da sua cabeça
brotar um brilhante feixe de luz, que permitia que tudo isto fosse
visível e que, sem dúvida, por ocasião dos seus momentos mais
tristes, fazia com que ele usasse um grande extintor como barrete,

37

que nesse momento trazia debaixo do braço.


Ao olhá-lo com crescente fixidez, Scrooge viu que, no entanto, não
era este o seu mais estranho atributo, pois quando o cinto cintilava
e brilhava, ora num sítio, ora noutro, o que era num momento luz era
no outro momento escuridão e assim a própria figura flutuava na sua
claridade, sendo agora uma coisa com um braço, agora uma só perna,
agora vinte pernas, agora um par de pernas sem cabeça, agora uma
cabeça sem corpo, de cujas partes que desapareciam não era visível
nem um traço na profunda escuridão em que se fundia. E, no mesmo
momento desse prodígio, voltava a ser o mesmo, tão claro e distinto
como fora.
— Vossa excelência é o espírito cuja vinda me foi anunciada? —
perguntou Scrooge.
— Sou!
A voz era baixa e amável. Era singularmente baixa, como se, em vez
de estar tão perto dele, estivesse afastado.
— Quem é e o que é você? — inquiriu Scrooge.
— Eu sou o Espírito do Natal Passado.
— Dum passado remoto? — perguntou Scrooge, observando a sua estatura
de anão.
— Não, do teu passado.
Talvez que, se alguém lhe tivesse perguntado, Scrooge não soubesse
dizer porquê, mas tinha o especial desejo de ver o espírito com o
barrete posto e pediu-lhe que o pusesse.
— O quê?! — exclamou o fantasma. — Quererias apagar tão depressa,
com mãos terrenas, a luz que eu irradio? Não te basta seres um
daqueles que teceram este barrete com as suas paixões e que me
obrigam a trazê-lo enfiado até aos olhos durante anos e anos?!
Reverentemente Scrooge negou qualquer intenção de ofender ou

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qualquer conhecimento de ter deliberadamente «enfiado o barrete» no


espírito, em qualquer época da sua vida. Arriscou-se depois a
inquirir o que ali o tinha trazido.
— O teu bem-estar! — disse o fantasma.
Scrooge declarou-se muito obrigado, mas não pôde deixar de pensar
que uma noite de descanso ininterrupto teria levado mais a esse fim.
O espírito deve tê-lo ouvido pensar, porque respondeu imediatamente:
— É essa a tua reclamação, então. Toma atenção!
Enquanto falava estendeu a mão forte e agarrou-o cuidadosamente pelo
braço.
— Levanta-te e vem comigo!
Teria sido inútil a Scrooge protestar, dizendo que o tempo e a hora
não eram próprios para caminhadas, que a cama estava quente e o
termómetro muito abaixo de zero, que estava precariamente vestido com
chinelos, camisa de noite e barrete de dormir e que naquele momento
estava cheio de frio. A pressão que exercia, embora fosse leve como a
de uma mão de mulher, não era de molde a que se lhe resistisse.
Ergueu-se, mas, percebendo que o espírito se dirigia para a janela,
agarrou-se à sua túnica numa súplica.
— Eu sou um mortal — objectou Scrooge — e por isso susceptível de
cair.
— Recebe apenas um toque da minha mão aí— disse o espírito pousando-
-a no coração de Scrooge — e serás apoiado em muito mais do que isto!
Mal pronunciou estas palavras, atravessaram a parede e ficaram
suspensos sobre uma estrada campestre, com campos de um lado e do
outro. A cidade desaparecera por completo. Dela não se via nem sinal.
Com ela tinham desaparecido a escuridão e a neblina e estava-se num
dia de Inverno, frio e claro, com neve cobrindo o chão.

39

— Meu Deus! — disse Scrooge pondo as mãos enquanto olhava à sua


volta. — Eu fui criado aqui. Aqui fui rapaz!
O espírito olhou-o docemente. O seu toque, embora leve e momentâneo,
ainda parecia presente na sensibilidade do velho. Tinha a noção de
milhares de odores que pairavam no ar, cada um deles ligado a
milhares de pensamentos, esperanças, alegrias e preocupações há
muito, muito tempo esquecidas!
— Tens o lábio a tremer — disse o espírito. — E que é isso no
queixo?
Scrooge murmurou, com um calor na voz que não lhe era habitual, que
se tratava duma borbulha e pediu ao espírito que o conduzisse onde
tencionava.
— Recordas-te do caminho? — indagou o Espírito.
— Lembro-me! — gritou Scrooge com fervor. — Seria capaz de o
percorrer de olhos vendados.
— É estranho que o tenhas esquecido durante tantos anos! — observou
o espírito. — Prossigamos.
Caminharam pela estrada, reconhecendo cada portão, poste, cada
árvore, até que surgiu à distância uma pequena vila, com a sua ponte,
a sua igreja e o seu rio serpenteante. Viam-se agora alguns póneis
felpudos trotando em direcção a eles e trazendo montados garotos que
chamavam outros que iam em cabriolés rústicos e em carroças
conduzidas por lavradores. Todos estes rapazes estavam muito alegres
e gritavam uns para os outros, até que os largos campos se encheram
de tal modo de alegre música que o ar encrespado se alegrava ao ouvi-
-la.
— Estes são apenas sombras daquilo que foram — disse o fantasma. —
Não se apercebem da nossa presença.
Os alegres viajantes aproximaram-se e, à medida que se aproximavam,
Scrooge conhecia e nomeava cada um deles. Porque estaria tão
exultante de os ver? Porque brilhavam os seus olhos frios e o seu

40

coração palpitava quando eles passavam? Porque se sentia tão contente


ao ouvi-los desejar uns aos outros feliz Natal, quando se separavam
em encruzilhadas e atalhos, dirigindo-se às suas casas? Que era feliz
Natal para Scrooge? Maldito feliz Natal! Que bem é que ele já lhe
fizera?
— A escola não está completamente deserta — disse o fantasma. —
Ainda lá ficou um garoto solitário, abandonado pelos seus colegas.
Scrooge disse que o conhecia. E soluçava.
Deixaram a estrada principal e tomaram por um atalho, de que bem se
lembrava, aproximando-se em breve duma grande casa de tristonho
tijolo vermelho, com um catavento no cimo do telhado, do qual pendia
uma campainha. Era uma casa grande mas de má sina, pois que os seus
vastos compartimentos eram pouco utilizados, as paredes estavam
húmidas e musguentas, as janelas partidas e os portões arruinados. As
galinhas cacarejavam e pavoneavam-se nos estábulos e as cocheiras e
os telheiros estavam cheios de erva. O interior também não evocava o
seu antigo estado porque, ao entrarem no assustador átrio e deitando
um olhar pelas portas abertas às muitas salas, acharam-nas pobremente
mobiladas, frias e enormes. Havia no ar um cheiro a coisas terrenas,
uma arrepiante desolação naquele lugar que, de certo modo, se
coadunava com o levantar ainda de noite e o pouco que comer.
O fantasma e Scrooge atravessaram o átrio e dirigiram-se a uma porta
que havia nas traseiras. Abriu-se na sua frente e deixou ver um
compartimento comprido, nu e triste, que parecia ainda mais nu pelas
filas de vulgares bancos corridos e secretárias. A uma destas estava
sentado um rapaz solitário que lia junto dum débil lume. Scrooge
sentou-se num banco e chorou ao ver o seu pobre e esquecido eu, tal
como costumava estar.

41

Não havia nem um eco latente na casa, nem o chiar e o tumulto dos
ratos no forro, nem o pingar da goteira semiderretida, lá atrás no
pátio, nem um suspiro entre os ramos sem folhas dum tristonho choupo,
nem o balançar indolente duma porta de armazém, nada, nem um estalido
no lume, mas o coração de Scrooge foi tocado por uma branda
influência e deu livre curso às lágrimas.
O espírito tocou-lhe no braço e apontou-lhe para o seu eu mais novo,
debruçado na leitura. Subitamente apareceu lá fora, na janela, um
homem com traje de estrangeiro, maravilhosamente real e distintamente
visível, com um machado preso no cinto e trazia à rédea um burro
carregado de lenha.
— Olha, é o Ali Babá! — exclamou Scrooge extasiado. — É o meu
querido e honesto, o meu velho Ali Babá! Sim, sim, já sei! Foi num
Natal, quando aquela criança solitária aqui foi deixada completamente
só, que ele apareceu, pela primeira vez, tal qual assim. Pobre rapaz!
E Valentine — disse Scrooge —, e o seu irmão selvagem, o Orson, lá
vão eles! E como se chama aquele, o que foi posto em ceroulas, a
dormir às portas de Damasco, não vê? E o Lacaio do Sultão, posto de
pernas para o ar pelo Génio. Lá está ele de cabeça para baixo! E bem
feito. Ainda bem. Que é que ele tinha de casar com a Princesa?
Teria sido, sem dúvida, uma grande surpresa para os seus
companheiros de negócios, da cidade, ver Scrooge despender toda a
energia da sua natureza em coisas daquelas e com uma voz invulgar,
entre o riso e as lágrimas, bem como o seu rosto extasiado e
excitado.
— Lá esta o Papagaio! — gritou Scrooge. — De corpo verde e cauda
amarela e com uma coisa semelhante a uma alface no cimo da cabeça. Lá
está ele! Pobre Robinson Crusoé, chamava-lhe ele, quando voltou para
casa depois de ter navegado em torno da ilha. «Pobre Robinson Crusoé,

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onde é que estiveste, Robinson Crusoé?». O homem pensava que estava a


sonhar, mas não estava, era mesmo o papagaio, sabe? Lá vai o Sexta-
-Feira a correr em direcção à pequena baía para salvar a vida. Hooh!
Eia! Hooh!
Com uma rápida transição, muito estranha ao seu feitio habitual,
disse então, apiedado do seu ex-eu: «Pobre rapaz!». E chorou de novo.
— Quem me dera — murmurou Scrooge, levando a mão ao bolso e olhando
em volta, depois de ter limpo os olhos ao lenço —, mas agora é tarde
de mais.
— Que é? — perguntou o espírito.
— Nada — disse Scrooge. — Nada. Ontem à noite houve um rapaz que foi
cantar uma balada de Natal, à minha porta. Gostaria de lhe ter dado
alguma coisa. É isso.
O fantasma sorriu pensativamente e acenou com a mão enquanto dizia:
— Ora vejamos outro Natal!
A estas palavras, o ex-eu de Scrooge cresceu e a sala tornou-se um
pouco mais escura e mais suja. O forro da casa abateu, as janelas
estalaram, caíram do tecto fragmentos de caliça e ficaram à vista os
simples barrotes, mas como tudo isso aconteceu era coisa que Scrooge,
tal como você, não sabia. Sabia apenas que tudo estava certo, que
assim acontecera e que ali estava ele, novamente só, quando todos os
rapazes tinham ido para casa passar umas alegres férias.
Agora não estava a ler, mas a caminhar desesperadamente dum lado
para o outro. Scrooge olhou para o fantasma e, acenando
lamentosamente a cabeça, deitou o olhar ansiosamente para a porta.
A porta abriu-se e uma rapariguinha, muito mais nova do que o rapaz,
lançando-se a ele e abraçando-lhe o pescoço, beijando-o
repetidamente, dirigiu-se-lhe como «Meu querido irmão».

43

— Vim buscar-te para te levar para casa, meu querido irmão! — disse
a criança, batendo as mãozitas e curvando-se a rir. — Levar-te para
casa, para casa, para casa!
— Para casa, minha pequena Fan? — respondeu o rapaz.
— Sim! — disse a criança, transbordante de alegria. — Para casa e
para sempre e tudo. Para casa e para sempre, sempre. O pai está muito
mais carinhoso do que era e aquela casa é um céu! Ele falou-me tão
ternamente numa doce noite, quando eu me ia deitar, que não tive medo
de lhe pedir mais uma vez que te deixasse vir para casa e ele disse
que sim, que virias e mandou-me vir buscar-te de carruagem. E vais
fazer-te um homem! — disse a criança abrindo os olhos. — E nunca mais
voltarás para aqui, mas primeiro vamos passar juntos toda a época do
Natal e vamos divertir-nos como ninguém.
— És uma verdadeira mulher, querida Fan! — exclamou o rapaz. Ela
bateu as palmas e riu e tentou tocar-lhe na cabeça; mas, como era
muito pequenina, riu-se e ficou em bicos de pés para o abraçar.
Depois começou a puxá-lo para a porta, na sua ansiedade infantil;
nada contrariado de ir, acompanhou-a.
Uma voz terrível gritou no átrio: «Tragam para baixo a mala do
menino Scrooge!», e no átrio apareceu o próprio professor, que olhou
para o menino Scrooge com uma feroz condescendência e o lançou num
estado de espírito terrível, só de lhe apertar a mão. Confiou-o
depois à irmã, numa sala de visitas horrível, que era o mais velho
poço que jamais se vira, no qual os mapas suspensos da parede e os
globos terrestre e celeste que estavam nas vitrinas luziam com o
frio. Aqui fazia ele aparecer uma decantação de vinho fraco e um
bloco de pesado bolo e oferecia pedaços daquelas guloseimas aos
jovens, mandando ao mesmo tempo um criado escanzelado oferecer um

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cálice de «qualquer coisa» ao estafeta, que respondia que agradecia


ao senhor, mas que se era o mesmo líquido que provara no ano
anterior, preferia não aceitar. Como o baú do menino Scrooge já
estava atado ao tejadilho da carruagem, as crianças fizeram uma vénia
de despedida ao professor, de muito boa vontade, e entrando para ela
dirigiram-se alegremente pela extensão do jardim enquanto as rodas
rápidas, faziam, como pulverizadas, saltar a branca geada e a neve
que havia por sobre as folhas escuras dos ramos de sempre-vivas.
— Sempre uma criatura delicada que um sopro podia fazer murchar —
disse o espírito. — Mas tinha um grande coração!
— Isso tinha — disse Scrooge a chorar. — Tem razão. Não digo o
contrário, espírito. Deus me livre!
— Morreu já mulher — disse o espírito — e segundo me parece deixou
filhos.
— Um filho — retorquiu Scrooge.
— É verdade — disse o fantasma. — O teu sobrinho! Scrooge parecia
pouco à vontade com a sua consciência e respondeu laconicamente:
— Sim.
Embora tivessem acabado de deixar atrás de si a escola, estavam
agora na movimentada via pública duma cidade onde os peões sombrios
passavam e repassavam, onde sombrias carruagens abriam caminho a
custo e onde existiam todo o tumulto e azáfama duma verdadeira
cidade. Pela ornamentação das lojas era muito evidente que também
novamente aqui era Natal, mas era noite e as ruas estavam iluminadas.
O fantasma parou à porta de certo armazém e perguntou a Scrooge se
ele o conhecia.
— Se o conheço! — disse Scrooge. — Fui ali aprendiz! Entraram. Ao
ver um velho de peruca galesa, sentado por trás duma secretária tão

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alta que, se fosse duas polegadas mais alta, o faria bater com a
cabeça no tecto, Scrooge gritou muito excitado:
— É o velho Fezziwig! Abençoado seja. E o Fezziwig novamente vivo!
O velho Fezziwig pousou a caneta e levantou os olhos para o relógio
que marcava as sete. Esfregou as mãos, apertou o colete largo, abriu-
-se num sorriso que lhe ia dos sapatos até ao órgão da bondade e
chamou numa voz fluente, rica, forte e jovial:
— Ei, vocês aí! Ebenezer! Dick!
O ex-eu de Scrooge, agora já um jovem, entrou subitamente
acompanhado pelo aprendiz seu colega.
— É o Dick Wilkins, com certeza! — disse Scrooge ao espírito. —
Valha-me Deus, é mesmo. Ali está ele. Era muito meu amigo, aquele
Dick. Pobre Dick! Caro, caro Dick!
— Ei, rapazes! — disse Fezziwig. — Por hoje acabou-se o trabalho. É
a véspera de Natal, Dick. Natal, Ebenezer! Vamos pendurar os taipais
— gritou Fezziwig com uma sonora batidela de palmas —, antes que o
Diabo esfregue um olho!
Nem imaginam como aqueles dois se atiraram a isso! Avançaram para a
rua com os taipais — um, dois, três —, já os tinham colocado —
quatro, cinco, seis —, trancaram-nos e aparafusaram-nos — sete, oito,
nove — e regressaram antes de contar até doze, arquejantes como
cavalos de corrida.
— Eia! — gritou o velho Fezziwig, escorregando da sua alta
secretária com uma estupenda agilidade. — Sumam-se, rapazes, e
deixemos o campo livre! Viva, Dick! Ânimo, Ebenezer!
Desaparecer! Não houve nada que não fizessem desaparecer ou que
pudessem não ter feito desaparecer, com o velho Fezziwig a vigiar.

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Ficou pronto num minuto. Tudo o que era móvel foi arrecadado, como se
fosse para desaparecer da circulação para sempre. O chão foi varrido
e regado, prepararam-se os candeeiros, foi lançado combustível na
lareira e o armazém ficou tão agradável, tão quente, tão seco e tão
brilhante como uma sala de baile, tal como se desejaria vê-la numa
noite de Inverno.
Entrou um violinista com uma pauta, subiu para a cadeira alta da
secretária e formou uma orquestra que soava como cinquenta dores de
estômago. Entrou a senhora Fezziwig, com um enorme sorriso. Entraram
três meninas Fezziwig, resplandecentes e adoráveis. Entraram os seis
jovens acompanhantes, cujos corações elas despedaçaram. Entraram
todos os homens e mulheres que trabalhavam no negócio. Entrou a
criada com o seu primo padeiro. Entrou a cozinheira com o amigo
íntimo de seu irmão, o leiteiro. Entrou o rapaz que era de mais longe
e que se suspeitava não ser convenientemente bem alimentado pelo
patrão e que tentava esconder-se atrás da rapariga da segunda porta
depois da nossa e a quem sabíamos ter a patroa puxado as orelhas.
Todos entravam uns após outros. Uns timidamente, outros
atrevidamente, outros graciosamente, outros desajeitadamente, uns
empurrando, outros puxando. Todos eles entravam de qualquer maneira e
por todo o lado. De novo todos desapareciam, vinte pares ao mesmo
tempo. As mãos em semiarco e de novo voltando à mesma posição. Ao
meio e para cima, rodando, rodando em várias poses de amistosos
grupos. O velho casal da frente, virando sempre no sítio errado, o
novo casal da frente recomeçando, mal lá chegavam, por fim todos os
casais à frente sem nenhum na retaguarda a ajudá-los! Quando se
atingiu este resultado, o velho Fezziwig gritou, batendo as palmas
para que a dança parasse: «Muito bem!», e o violinista mergulhou o
rosto quente num púcaro de cerveja preta, especialmente arranjada

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para a ocasião. Mas no momento de recomeçar, e esquecendo o cansaço,


atacava de novo, embora não houvesse ainda dançarinos, como se outro
violinista tivesse sido levado em braços, exausto, e ele fosse um
homem novinho em folha e decidido a vencê-lo ali ou a morrer.
Houve mais danças e houve jogos de prendas e mais danças e houve um
bolo e houve sangria e houve um grande pedaço de assado frio e houve
um grande pedaço de cozido frio e houve pastéis de carne e cerveja a
rodos. Mas a sensação da noite veio depois do assado e do cozido,
quando o tocador (um bicho habilidoso, note-se! O tipo de homem que
sabia mais do seu ofício do que vocês ou eu lhe poderíamos ensinar)
atacou com a Sir Roger de Coverley. O velho Fezziwig levantou-se para
dançar com a senhora Fezziwig e para serem o par da frente também,
com uma boa dose de trabalho às costas: três ou quatro pares e vinte
pares, gente que não era para menosprezar. Pessoas que iam dançar e
nem caminhar sabiam.
Mas se eles fossem o dobro — até quatro vezes mais —, o velho
Fezziwig chegaria para todos eles e também a senhora Fezziwig. Quanto
a ela, era digna de emparceirar com ele em toda a acepção do termo. E
se isto não é um grande louvor, sugiram-me outro e eu utilizá-lo-ei.
Uma luz verdadeira parecia irradiar das barrigas das pernas de
Fezziwig, porque elas brilhavam em todos os pontos da dança, como
luas. Não se poderia predizer, a dado momento, o que é que elas
fariam no momento seguinte, nem quando o senhor e a senhora Fezziwig
tinham executado a dança; avançar e recuar, dar as mãos ao par,
reverência e vénia, pirueta, «o enfiar da agulha» e de novo ao seu
lugar; o corte de Fezziwig cortava tão destramente que parecia
pestanejar com as pernas e voltar a ser apoiado pelos pés sem
cambalear.

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Quando o relógio bateu as onze, este baile doméstico cessou. O


senhor e a senhora Fezziwig postaram-se um em cada lado da porta e,
apertando a mão a cada pessoa individualmente, à medida que ele ou
ela saía, desejavam a cada um feliz Natal. Quando todos se tinham
retirado excepto os dois aprendizes, fizeram a estes o mesmo e assim
as vozes alegres se afastaram e os rapazes ficaram para se deitar. As
suas camas ficavam debaixo dum balcão, nas traseiras da loja.
Durante todo aquele tempo Scrooge actuara como se fosse um homem
fora dos seus sentidos. O seu coração e a sua alma estavam metidos na
cena com o seu ex-eu. Ele tudo corroborava, de tudo se lembrava, de
tudo gostava e passou pela mais estranha agitação. Só naquele
momento, quando os rostos de Dick e do seu ex-eu se voltaram, é que
se lembrou do fantasma e tomou consciência de que ele o olhava em
cheio, enquanto a luz que tinha sobre a cabeça brilhava muito
claramente.
— Uma coisa tão pouca — disse o fantasma —, deixar assim aqueles
palermas tão gratos.
— Pouca?! — repetiu Scrooge.
O espírito fez-lhe sinal para que ouvissem. Os dois aprendizes
elevavam os corações em louvor a Fezziwig; e, depois de o terem feito
disse:
— Ah, não é? Ele não fez mais do que gastar algumas libras do vosso
dinheiro terreno. Talvez umas três ou quatro. É caso para merecer
tamanho louvor?
— Não é isso? — disse Scrooge, espicaçado pelo remoque e falando
inconscientemente como o seu ex-eu, não como o seu eu actual. — Não é
isso, espírito. Ele tem o poder de nos fazer felizes ou infelizes, de
nos tornar o serviço leve ou um fardo, um prazer ou uma fadiga.
Digamos que o seu poder reside nas palavras e nos olhares. Em coisas
tão insignificantes e ligeiras que é impossível somá-las ou contá-las

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e depois? A alegria que ele nos dá é quase tão grande como se tivesse
custado uma fortuna.
Sentiu o olhar do espírito e deteve-se.
— Que há? — insistiu o fantasma.
— Nada de especial — disse Scrooge.
— Acho que há algo — insistiu o fantasma.
— Não — disse Scrooge. — Não. Gostaria de poder dizer uma palavra ao
meu empregado, neste momento. Só isso.
O seu ex-eu apagou as luzes enquanto ele exprimia o seu desejo e
Scrooge e o espírito voltaram a estar novamente lado a lado, ao ar
livre.
— Já tenho pouco tempo — avisou o espírito. — Depressa!
Isto não se dirigia a Scrooge ou a quem quer que estivesse à vista,
mas provocou um efeito imediato, porque de novo Scrooge se viu a si
próprio. Era agora mais velho. Um homem na flor da vida. O rosto não
possuía as linhas duras e rígidas dos anos posteriores, mas já
começava a dar sinais de preocupação e avareza. Havia no olhar um
movimento ávido, ambicioso e inquieto que denotava a paixão que se
enraizara e o local onde a árvore que crescia iria tombar.
Não estava só, pelo contrário, estava sentado ao lado duma bela
jovem vestida de luto e em cujos olhos havia lágrimas que brilhavam à
luz que irradiava do Espírito do Natal Passado.
— Pouco importa — dizia ela baixinho. — Para ti, muito pouco. Outro
ídolo roubou o meu lugar; e se eu puder dar-te alegria e conforto num
futuro, como eu tentaria fazer, não tenho razão para estar triste.
— Que ídolo é que te roubou o lugar? — retorquiu ele.
— Um de ouro.

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— Essa é a conduta imparcial do mundo! — disse ele. — Não há nada


com que seja mais duro do que com a pobreza e não há nada que declare
condenar tão severamente como a procura de riqueza!
— Temes demasiado o mundo — respondeu-lhe ela docemente. — Todas as
tuas esperanças se fundiram na esperança de te manteres fora do
alcance da sua mesquinha censura. Vi as tuas aspirações mais nobres
desabarem uma a uma, até a paixão-mestra chamada Lucro te
monopolizar. Não foi?
— E depois? — respondeu. — Ainda que eu me tenha tornado mais
sensato, que é que tem? Não mudei para contigo.
Ela abanou a cabeça.
— E eu?
— O nosso compromisso é antigo. Foi celebrado quando ambos éramos
ainda pobres e contentes de o ser, até em devido tempo podermos
aumentar a nossa parca fortuna através do nosso paciente trabalho. Tu
estás diferente. Quando o compromisso foi celebrado, eras outro
homem.
— Era um rapaz — disse impacientemente.
— Os teus próprios sentimentos dizem-te que já não és aquele que
eras — respondeu-lhe ela. — Eu sou a mesma. Aquela a quem prometeste
felicidade, quando éramos um só coração, está cheia de pesar agora
que somos dois. Nem direi quantas vezes e quão vivamente pensei
nisto. Basta que tenha pensado e que te liberte.
— Alguma vez pedi que me libertasses?
— Por palavras, não. Nunca.
— Então como?
— Pela modificação da tua maneira de ser, pelo teu espírito
diferente, por outra forma de vida, por outra esperança e seu grande
objectivo. Por tudo o que tornou o meu amor sem qualquer valor ou

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merecimento a teus olhos. Se nada disto tivesse existido entre nós —


disse a rapariga, olhando-o doce mas firmemente —, diz-me, procurar-
-me-ias agora e tentarias conquistar-me? Ah, não!
Ele parecia concordar com a justeza desta suposição, embora a
contragosto. Mas disse, lutando consigo:
— Achas que não?
— De boa vontade pensaria de outro modo, se pudesse — respondeu ela.
— Deus sabe! Se me apercebi de semelhante verdade, também sei quão
forte e irresistível deve ser. Mas, se fosse livre, hoje, ontem,
amanhã, poderei imaginar que escolherias uma rapariga sem dote — tu
que, na própria intimidade com ela, medias tudo pelo Lucro; ou que a
escolherias, se por um momento fosses suficientemente falso ao teu
princípio-mestre para assim agires, pensas que não sei que o teu
arrependimento e remorso se seguiriam por certo? Sei. E liberto-te.
Com o coração cheio, pois que um dia foste o seu amor.
Ele ia falar, mas virando-lhe a cara ela concluiu:
— Podes sentir desgosto com isto; a recordação do que se passou faz-
-me semiesperar que o sintas. Por muito, muito pouco tempo, e
apagarás a lembrança disto, de boa vontade, como a de um sonho
inútil, de que foi bom teres acordado. Que sejas feliz na vida que
escolheste!
Ela deixou-o e separaram-se.
— Espírito — disse Scrooge —, não me mostres mais! Leva-me a casa.
Porque te comprazes em torturar-me?
— Só mais uma sombra! — exclamou o fantasma.
— Mais não! — gritou Scrooge. — Mais não! Não quero ver. Não me
mostres mais.
Mas o implacável fantasma agarrou-o pelos dois braços e obrigou-o a
olhar o que se seguiu.
Estavam num outro local. Uma sala não muito grande, nem bonita, mas

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muito confortável. Perto da lareira estava sentada uma linda jovem,


tão parecida com a última que Scrooge julgou ser a mesma, até que a
viu a ela, agora uma simpática matrona, sentada em frente da sua
filha. O barulho na sala era absolutamente tumultuoso, porque havia
ali mais crianças do que Scrooge, com o seu espírito agitado, poderia
contar; e, longe do rebanho cantado no poema, não eram quarenta
crianças a portarem-se como se fossem uma, mas cada uma a portar-se
como se fosse quarenta. A consequência era um barulho incalculável,
mas ninguém parecia importar-se; pelo contrário, mãe e filha riam com
gosto e estavam a gostar muito e a última depressa se misturou aos
jogos e foi assaltada pelos pequenos bandidos de forma implacável. O
que eu não daria para ser um deles! Ainda que nunca tivesse
conseguido ser tão agressivo, não! Nem por todo o ouro do mundo teria
apertado e desmanchado aquele cabelo entrançado. E quanto ao precioso
sapatinho não lho teria arrancado nem para me salvar a vida. Deus me
livre! Também medir-lhe a cintura na brincadeira, como eles fizeram
(rapaziada atrevida), era coisa que eu não faria. Ficaria à espera
que o meu braço se encurvasse para castigo e que nunca mais se
endireitasse. E, no entanto, muito me teria agradado ter eu próprio
tocado os seus lábios, tê-la interrogado para que os entreabrisse;
ter olhado os seus olhos descaídos sem nunca ter provocado um rubor;
ter soltado ondas de cabelo, uma polegada dos quais seria uma
relíquia inestimável; resumindo: teria gostado, confesso, de ter a
mais leve das licenciosidades duma criança e ser no entanto
suficientemente homem para me aperceber do valor dela.
Porém fez-se ouvir uma pancada na porta e seguiu-se uma tal correria
que ela foi levada, de rosto sorridente e vestido desmanchado, no
centro do excitado e turbulento grupo, a tempo de cumprimentar o pai

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que regressava a casa acompanhado por um homem carregado de


brinquedos de Natal e presentes. E os gritos, a luta e o ataque que
foram lançados contra o indefeso carregador! O que eles treparam por
ele com cadeiras a servir de escada, para mergulharem nos seus
bolsos, para o despojarem dos embrulhos de papel pardo, pendurarem-se
na sua gravata, cingi-lo pelo pescoço, bater-lhe nas costas e ponta-
pear-lhe as pernas com incontido afecto! Os gritos de espanto com que
era recebido o desfazer de cada embrulho! A declaração de que o bebé
tinha sido surpreendido a meter uma frigideira das bonecas na boca e
que havia quase a certeza de que engolira um peru fictício que estava
colado a uma travessa de madeira! E que alegria ao descobrir-se que
era falso alarme! A alegria, a gratidão, o êxtase! Como se assemelham
todos! Basta dizer-se que gradualmente as crianças e as suas emoções
abandonaram a sala e degrau a degrau dirigiram-se ao cimo da casa,
onde se deitaram e assim acalmaram.
Scrooge olhava agora mais atentamente que nunca, quando o dono da
casa, tendo a filha ternamente inclinada para ele, se sentou com ela
e a mãe junto da lareira e quando pensou que outra criatura como
aquela, tão graciosa e prometedora, lhe poderia ter chamado pai e ter
sido um sopro de Primavera no pálido Inverno da sua vida, a sua vista
turvou-se.
— Belle — disse o marido, virando-se para a mulher com um sorriso —,
vi um velho amigo teu, esta tarde.
— Quem era?
— Adivinha!
— Como posso adivinhar? Tate, já sei — disse ela dum fôlego, rindo
com ele. — O senhor Scrooge.
— E foi mesmo o senhor Scrooge. Passei pela janela do escritório
dele e, como não estava fechada e havia luz lá dentro, não podia

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evitar vê-lo. Dizem que o sócio dele está a morrer e ele ali está
sentado sozinho. Só no mundo, creio eu.
— Espírito! — disse Scrooge em voz alquebrada. — Leva-me deste
lugar.
— Já te disse que isto são sombras de coisas passadas — disse o
fantasma. — Se elas são o que são, não me tornes as culpas!
— Leva-me daqui! — exclamou Scrooge. — Não suporto isto!
Virou-se para o fantasma e vendo que ele o olhava com uma cara na
qual, por qualquer estranha razão, havia pedaços de todas as caras
que lhe mostrara, lutou com ele.
— Deixa-me! Leva-me de volta. Não me persigas mais!
Durante a luta, se é que àquilo se poderia chamar luta, enquanto o
fantasma, sem qualquer aparente resistência da sua parte, se mostrava
imperturbado por qualquer esforço exercido pelo adversário, Scrooge
observou que a sua luz brilhava clara e forte e, fazendo uma obscura
ligação entre isto e a sua influência sobre ele, agarrou no barrete e
com um movimento rápido enfiou-lho na cabeça.
O espírito caiu debaixo dele e assim o barrete cobriu toda a sua
forma; mas, embora Scrooge enterrasse o barrete com toda a força, não
conseguia esconder a luz que se escapava por baixo em jorro
ininterrupto, espalhando-se pelo chão.
Tinha a consciência de que estava exausto e avassalado por uma
irresistível sonolência e além disso de que estava no seu quarto.
Apertou o barrete como numa despedida, depois do que relaxou a mão e
mal teve tempo de cambalear para a cama antes de mergulhar num pesado
sono.

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Página em branco
ESTROFE III
O segundo dos três espíritos

Tendo acordado no meio dum formidável ronco e sentando-se na cama


para pôr os pensamentos em ordem, Scrooge não teve tempo de se
aperceber de que o sino estava novamente a bater a uma. Sentiu que
tinha recuperado consciência no momento certo, com o objectivo
preciso de ter uma conversa com o segundo mensageiro enviado até ele
por intercessão de Jacob Marley. Mas, apercebendo-se de que arrefecia
desconfortavelmente quando começava a pensar qual das cortinas este
novo fantasma levantaria, afastou as duas com as próprias mãos e,
deitando-se novamente, montou uma cerrada vigilância à volta da cama,
porque queria enfrentar o fantasma no momento da sua aparição e não
queria ser apanhado de surpresa e enervado.
Os cavalheiros de tipo descuidado que se gabam de serem espertos e
iguais à hora do dia, exprimem o largo alcance da sua capacidade de
aventura dizendo que servem para tudo, desde jogar cara ou coroa até
matar um homem. Entre estes termos opostos existe uma gama de temas
amplamente vastos. Sem querer fazer para Scrooge uma previsão tão
ousada como essa, não me repugna chamar-vos a atenção para que
acreditem que ele estava preparado para um largo leque de estranhas
aparições e que nada lhe causaria grande espanto, desde um bebé até
um rinoceronte.

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Estando assim preparado para quase tudo, não estava de maneira


nenhuma preparado para nada e, consequentemente, quando o sino bateu
a uma e nenhuma figura apareceu, foi assaltado por um violento acesso
de tremuras. Cinco minutos, dez minutos e um quarto de hora passaram
e nada aconteceu. Todo este tempo permanecera sobre a cama o âmago e
o próprio centro dum clarão de luz rubra, que caiu sobre ele quando o
relógio bateu a hora e que, por ser só luz, era mais assustador do
que uma dúzia de fantasmas, porque se sentia impotente para discernir
o que aquilo queria dizer ou o que pretenderia; e sentiu-se por vezes
apreensivo, pensando que pudesse ser um caso interessante de
combustão espontânea, sem ter, no entanto, a consolação de o saber.
Contudo, por fim, começou a pensar — tal como você ou eu teríamos
pensado de princípio, pois que é sempre aquele que não está na
situação que sabe o que deveria ter sido feito e o teria sem dúvida
executado —, dizia eu que por fim começou a pensar que a fonte e o
segredo desta fantasmagórica luz poderia estar no quarto ao lado,
donde, depois de a seguir com os olhos, parecia provir. Tendo-se
apoderado dele esta ideia, levantou-se cuidadosamente e, arrastando
os pés metidos nos chinelos, caminhou para a porta.
No momento em que a mão de Scrooge pousou no fecho, uma estranha voz
chamou-o pelo nome e convidou-o a entrar. Obedeceu.
Estava no seu próprio quarto, não havia dúvida. Mas o quarto tinha
sofrido uma surpreendente modificação: das paredes e do tecto pendia
tanta verdura que parecia um autêntico bosque, onde brilhavam por
toda a parte luzidias bagas. As folhas encaracoladas do azevinho, do
visco e da hera reflectiam a luz como se muitos espelhinhos tivessem
por ali sido espalhados; e pela chaminé subia rugindo uma tão potente

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chama como essa lareira estupidamente petrificada jamais conhecera no
tempo de Scrooge, de Marley e de há muitas e muitas estações.
Empilhados no chão, a formarem uma espécie de trono, havia perus,
gansos, caça, criação, brawn, grandes peças de carne, leitões,
grandes fieiras de salsichas, pastelões, pudins de ameixas, barricas
de ostras, castanhas em brasa, maçãs vermelhas, tigelas de ponche
fervente que enevoavam o quarto com o seu vapor delicioso (Nota da
tradutora: Brawn - preparado em que entra cabeça de porco, língua e
chispe, tudo picado, cozido e temperado). Sobre este trono estava
sentado um gigante de aspecto glorioso, que tinha na mão um facho
brilhante de forma não muito diferente da cornucópia e o levantava
muito alto, para derramar sobre Scrooge a sua luz, quando ele
apareceu a espreitar à porta.
— Entra! — exclamou o fantasma. — Entra, homem, e vem conhecer-me
melhor!
Scrooge entrou timidamente e em frente do espírito pendeu a cabeça.
Já não era o obstinado Scrooge que tinha sido; e, ainda que o
espírito tivesse um olhar límpido e bom, não queria fixá-lo.
— Eu sou o Espírito do Natal Presente — disse o espírito. — Olha
para mim!
Reverentemente, Scrooge assim fez. Vestia uma simples túnica verde
debruada de pele branca. Este trajo pendia tão solto da silhueta que
o seu largo peito estava destapado, como se desdenhasse ser protegido
ou limitado por qualquer ornamento. Os pés, que eram visíveis por
baixo das pregas da túnica, estavam também descalços e na cabeça não
usava outra coisa senão uma grinalda de azevinho, presa aqui e ali
por brilhantes pingentes de gelo. Os seus caracóis castanho-escuro
eram compridos e estavam soltos, livres com o seu rosto genial,

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o olhar cintilante, a mão aberta, a voz jovial, o porte descontraído


e o ar prazenteiro. Em volta do peito tinha uma bainha, mas não havia
nela espada e o velho estojo estava roído pela ferrugem.
— Nunca viste nada parecido comigo?! — exclamou o espírito.
— Não, nunca — respondeu Scrooge.
— Nunca caminhaste com os membros mais novos da minha família;
refiro-me (porque sou muito novo) aos meus irmãos mais velhos
nascidos nestes últimos anos? — prosseguiu o fantasma.
— Acho que não — retorquiu Scrooge. — Receio bem que não. Tens
muitos irmãos, espírito?
— Mais de mil e oitocentos — disse o fantasma.
— É uma grande família para sustentar! — murmurou Scrooge.
O Espírito do Natal Presente levantou-se.
— Espírito — disse Scrooge obedientemente — leva-me onde quiseres.
Ontem saí compulsivamente e aprendi uma lição que está agora a
frutificar. Se esta noite tens algo a ensinar-me, que eu o aproveite.
— Toca na minha túnica!
Scrooge assim fez e agarrou-se rapidamente a ela.
Azevinho, visco, bagas vermelhas, hera, perus, gansos, caça,
criação, brawn, carne, porcos, salsichas, ostras, empadas, pudins,
frutos e ponche — tudo desapareceu instantaneamente, o mesmo
acontecendo ao quarto, à lareira, à chama vermelha, à hora da noite,
e eles surgiram nas ruas da cidade em plena manhã de Natal, onde
(porque o tempo estava mau) as pessoas produziam uma espécie de
música tosca, mas rápida e não desagradável, ao varrerem a neve do
pavimento em frente de suas casas e dos telhados, donde era um prazer
para os rapazes vê-la cair e estatelar-se cá em baixo, na rua,

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explodindo em pequenas tempestades de neve.


As frontarias dos prédios pareciam bastante escuras e as janelas
ainda mais escuras, contrastando com o macio lençol branco de neve
sobre os telhados e com a neve ainda mais suja do chão, cuja última
camada tinha sido escavada em profundos sulcos pelas rodas dos trens
e das carroças; sulcos que se cruzavam e recruzavam centenas de vezes
nos sítios em que as ruas se ramificavam e formavam intrincados
canais, difíceis de localizar na espessa lama amarelada e na água
gelada. O céu estava tristonho e as ruas mais curtas estavam
obstruídas por uma neblina escura, semiderretida semigelada, cujas
partículas mais pesadas desciam em chuveiro de átomos fuliginosos,
como se todas as chaminés da Grã-Bretanha tivessem começado a arder
todas à uma e estivessem crepitando a bom crepitar. Nada havia de
muito alegre na atmosfera da cidade — e no entanto havia em todas as
direcções uma alegria que o mais claro ar de Verão e o mais brilhante
Sol poderiam tentar em vão penetrar.
Porque as pessoas que escavavam no cimo dos telhados estavam alegres
e cheias de jovialidade, chamando-se umas às outras dos parapeitos e
trocando agora e logo uma atrevida bola de neve — um míssil mais bem
humorado do que muitas piadas verbais —, rindo com gosto se acertavam
e não com menos gosto se falhavam. Os galinheiros ainda estavam
semiabertos e os fruteiros estavam radiantes de alegria. Havia
grandes cestos redondos atafulhados de castanhas e em forma de
coletes de alegres velhotes, encostados às portas e tombando para a
rua em toda a sua apopléctica opulência. Havia cebolas espanholas,
rubras de cara castanha, com uma tosca cinta, que brilhavam na
obesidade do seu crescimento como frades espanhóis e das suas
prateleiras piscavam o olho às raparigas com dissimulada malícia,

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quando elas passavam e olhavam modestamente o azevinho pendurado.


Havia peras e maçãs empilhadas em florescentes pirâmides; havia
cachos de uvas que pela benevolência do lojista eram pendurados a
balouçar em enormes ganchos e que as bocas dos que passavam podiam
provar; havia montes de avelãs, musgosas e castanhas, fazendo lembrar
pela sua fragância, caminhadas passadas pelos bosques onde os
tornozelos se enredavam nas folhas caídas; havia maçãs de Norfolk,
rechonchudas e tisnadas, espreitando entre o amarelo das laranjas e
limões, suplicando e rogando ansiosamente, no fundo compacto das suas
sumarentas pessoas, que as levassem para casa em cartucho de papel e
as comessem depois de jantar. O próprio peixe dourado e prateado
espreitava por entre estes frutos de eleição, numa terrina, e ainda
que sendo membros duma raça enfadonha e de sangue frio, pareciam
saber que algo estava a passar-se e, como peixes que eram,
continuavam arfando e volteando no seu pequeno mundo, com uma
excitação desapaixonada.
E as mercearias! Oh, as mercearias! Quase fechadas, com um ou até
dois taipais corridos; mas, por entre aquelas frinchas, que
espectáculo!
Não era só pelos pratos da balança que ao baixarem sobre o balcão
produziam um alegre som, ou a guita e a bobina separando-se
bruscamente, ou pelas caixas que eram chocalhadas como em
prestidigitação, ou até pelos aromas do chá e do café tão gratos ao
nariz, ou mesmo por as uvas serem tão abundantes e raras, as amêndoas
tão extraordinariamente brancas, os paus de canela tão longos e
direitos, as outras especiarias tão deliciosas, as frutas
cristalizadas tão solidificadas e salpicadas de calda de açúcar que
fariam o mais frio dos mirones sentir-se tonto e depois bilioso. Nem
sequer era pelos figos húmidos e carnudos, ou porque as ameixas

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francesas coravam com ligeira acidez nas suas caixas finamente


decoradas ou porque tudo era bom de comer na sua cobertura de Natal,
mas o certo é que os clientes iam tão apressados e tão ansiosos pela
promessa do dia, chocando violentamente os seus cestos de vime,
deixando as compras sobre o balcão e voltando atrás a correr para as
virem buscar e cometiam centenas de erros semelhantes, sempre com o
melhor humor possível, enquanto o merceeiro e os seus eram tão
francos e joviais que os polidos corações com que prendiam à frente
os aventais poderiam ser muito bem os seus próprios corações, usados
de fora para que todos os vissem e para que as gralhas de Natal os
debicassem se quisessem.
Em breve, porém, o campanário chamava toda a boa gente para a igreja
e a capela e aí vinham eles em bando pelas ruas, nos seus melhores
trajes e com o seu rosto mais alegre, e ao mesmo tempo emergiam das
inúmeras ruas vizinhas, becos e inqualificáveis esquinas inumeráveis
pessoas que traziam o seu jantar para o forno do padeiro. A visão
destes pobres foliões pareceu interessar muitíssimo o espírito,
porque estava com Scrooge no portal dum padeiro e, destapando os
tabuleiros à medida que os portadores passavam por ele, espargia
incenso da sua tocha por sobre o jantar deles. E tratava-se dum tipo
de tocha muito pouco vulgar, porque quando por uma ou duas vezes
houve entre eles uma troca de palavras azedas, por algum dos que
levavam o jantar se terem empurrado, ela verteu sobre eles umas gotas
de água e imediatamente lhes voltou o bom humor, porque diziam eles
que era uma vergonha discutirem no dia de Natal. E assim era! Assim
era, na graça de Deus!
A certa altura calaram-se os sinos e fecharam os padeiros e havia,
no entanto, um genial jogo de luz e sombra proveniente de todos estes

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jantares e do andamento da sua cozedura, na mancha de humidade


dissolvida por sobre cada forno de padeiro, cujo pavimento fumegava
como se as próprias pedras estivessem também a cozer.
— Há algum aroma especial no que é espargido da tua tocha? —
perguntou Scrooge.
— Há. O meu próprio aroma.
— E aplica-se a qualquer espécie de jantar no dia de hoje? — indagou
Scrooge.
— A qualquer que seja dado caridosamente. Especialmente a um de
pobre.
— Porquê especialmente a um de pobre? — volveu Scrooge.
— Porque é quem mais precisa dele.
— Espírito — disse Scrooge, depois de reflectir uns momentos —,
admiro-me que tu, de entre todas as criaturas dos diversos mundos que
nos rodeiam, tenhas sido a que desejas restringir as oportunidades
desta pobre gente se divertir inocentemente.
— Eu! — gritou o espírito.
— Tu privá-los-ias dos meios para que jantassem ao sétimo dia, de
que se diz frequentemente ser o único em que jantam — disse Scrooge.
— Não é?
— Eu! — respondeu o espírito.
— Tu procuras fechar os locais ao sétimo dia — disse Scrooge —, o
que vem a dar no mesmo.
— Eu procuro? — exclamou o espírito.
— Perdoa-me se me engano. E em teu nome que tem sido feito, ou pelo
menos no da tua família — disse Scrooge.
— Há neste vosso mundo — retorquiu o espírito — aqueles que reclamam
conhecer-nos e que praticam em nosso nome os seus actos de paixão,
orgulho, má vontade, ódio, inveja, intolerância e egoísmo, e que são

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tão estranhos a nós e aos nossos amigos e parentes como se nunca


tivessem existido. Lembra-te disso e acusa-os a eles dos seus actos,
não a nós.
Scrooge assim prometeu e continuaram, invisíveis como até aí, para
os subúrbios da cidade. Era uma qualidade do espírito (Scrooge
observara-a quando estavam no padeiro): apesar da sua gigantesca
estatura, conseguia acomodar-se facilmente em qualquer parte e ficava
em pé debaixo dum telhado baixo, tão graciosamente e com ar de
criatura sobrenatural, como ficaria em qualquer salão altíssimo.
E, ou fosse pelo prazer que o bom espírito tinha em demonstrar o seu
poder, ou pela sua maneira de ser, bondosa e piedosa para com todos
os pobres, o certo é que se dirigiu direitinho a casa do empregado de
Scrooge, lá foi ele com Scrooge agarrado à sua túnica e à entrada da
porta o espírito sorriu e parou para abençoar a morada de Bob
Cratchit com a sua tocha pulverizante. Imaginem! O Bob, que só
recebia quinze bobs por semana, que só metia ao bolso, todos os
sábados, quinze cópias do seu nome de baptismo e a quem, mesmo assim,
o Espírito do Natal Presente abençoava a casa de quatro divisões!
(Nota da tradutora: Bobs - Denominação coloquial da moeda inglesa
xelim).
Ergueram-se então a senhora Cratchit, a mulher de Cratchit, pronta
mas pobremente vestida, com um vestido que já tinha sido virado duas
vezes, mas a que ficavam muito bem as fitas, que são baratas e fazem
boa figura por tuta e meia, e pôs a toalha ajudada pela sua segunda
filha, Belinda Cratchit, também ela cheia de fitas, enquanto o menino
Peter Cratchit metia um garfo na panela das batatas e, metendo na
boca os bicos do seu descomunal colarinho(propriedade privada de Bob,

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oferecido a seu filho e herdeiro em honra do dia), alegrava-se de se


ver tão elegantemente ataviado e ansiava por exibir a sua camisa nos
Parques elegantes. Agora entraram os dois Cratchits mais pequenos de
rompante, gritando que à porta do padeiro lhes tinha cheirado a ganso
e que o tinham identificado como seu; e, aquecidos por exuberantes
pensamentos sobre salva e cebola, estes jovens Cratchits dançaram em
torno da mesa e exaltaram ao máximo o menino Peter Cratchit enquanto
ele (sem orgulho, embora os colarinhos quase o sufocassem) assoprava
o lume até que as batatas, que demoravam, começaram a fervilhar e
bateram sonoramente na tampa da caçarola, para que as tirassem e
pelassem.
— Que é que terá acontecido ao bom do vosso pai? — disse a senhora
Cratchit. — E ao teu irmão, pequeno Tim? E a Marta, será que vem como
no Natal passado, meia hora atrasada?
— Aqui está a Marta, mãe! — disse a rapariga, aparecendo
imediatamente.
— Aqui está a Marta, mãe — gritaram os dois Cratchits mais pequenos.
— Viva! Marta, temos cá um destes gansos!
— Viva! Deus te abençoe, minha querida, como vens atrasada! — disse
a senhora Cratchit, beijando-a uma dúzia de vezes e tirando-lhe o
xaile e o gorro e pegando-lhes com um solícito cuidado.
— Tivemos ontem à noite uma quantidade de trabalho a acabar — disse
a rapariga — e tivemos de arrumar tudo hoje, mãe!
— Bom, não importa, o que interessa é que vieste — disse a senhora
Cratchit. — Senta-te aqui em frente do lume, aquece-te e que Deus te
abençoe!
— Não, não! Vem lá o pai — gritaram os dois Cratchits mais pequenos,

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que estavam em toda a parte ao mesmo tempo. — Esconde-te, Marta,


esconde-te!
Marta escondeu-se e entrou então o pequeno Bob, o pai, que trazia
pelo menos três pés do cachecol, sem franja, pendurados à frente e as
roupas poídas estavam passadas e escovadas de forma a parecerem
apresentáveis e trazia aos ombros o pequeno Tim. Infelizmente para
ele, o pequeno Tim usava uma pequena muleta e os seus membros eram
amparados por uma moldura de ferro!
— Olá, onde está a nossa Marta? — exclamou Bob Cratchit olhando em
redor.
— Não vem — disse a senhora Cratchit.
— Não vem?! — disse Bob, com um súbito declínio no seu bom humor,
porque tinha sido a montada de Tim desde a igreja e chegara a casa
exuberante. — Não vem, no dia de Natal?!
Marta não gostava de vê-lo decepcionado ainda que só por uma
brincadeira, por isso saiu prematuramente de trás da porta do armário
e correu para os braços dele, enquanto os dois Cratchits mais
pequenos empurravam o pequeno Tim e o amparavam até ao lavadouro,
para que ouvisse o pudim a chiar na caldeira de cobre.
— E como é que se portou o pequeno Tim? — perguntou a senhora
Cratchit, depois de Bob se ter refeito da sua credulidade e de ter
abraçado a filha tanto quanto lhe apeteceu.
— Foi ouro sobre azul — disse Bob — ou melhor ainda. Estando muito
tempo entregue a si próprio, ele torna-se de certa forma pensativo, e
pensa as coisas mais estranhas de que já ouviram falar. Ao regressar
a casa, disse-me que esperava que as pessoas o tivessem visto na
igreja, porque era um aleijado e talvez lhes fosse agradável
lembrarem-se, naquele dia de Natal, de Quem fez com que os mendigos
coxos andassem e os cegos vissem.

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A voz de Bob tremia ao dizer-lhes isto e mais tremia quando disse
que o pequeno Tim ia crescendo forte e alegre.
A sua muletazinha diligente ouviu-se a bater no chão e, antes que
dissessem outra palavra, aí vinha o pequeno Tim, escoltado pelo irmão
e pela irmã, dirigindo-se ao seu banquinho junto da lareira, enquanto
Bob, arregaçando os punhos — pobre diabo, como se fossem susceptíveis
de se gastar mais —, preparava num jarro uma mistura quente com gim e
limão, mexia e remexia e punha-a na chapa do fogão para ferver a fogo
lento. O menino Peter e os dois irmãos, com o dom da ubiquidade,
foram buscar o ganso e em breve regressaram com ele em procissão.
Seguiu-se um tal alvoroço que se poderia pensar que um ganso era o
mais raro dos animais, um fenómeno emplumado à vista do qual um cisne
negro era coisa vulgar — e assim era realmente naquela casa. A
senhora Cratchit fazia o molho (pronto antecipadamente, numa pequena
caçarola) chiar de quente; o menino Peter esmagava as batatas com um
incrível vigor, a menina Belinda adoçava o molho de maçã, Marta
limpava os pratos quentes, Bob levou o pequeno Tim para o pé dele, a
um cantinho da mesa, os dois pequenos Cratchits puseram as cadeiras
para todos, não esquecendo as suas e montando guarda aos seus
lugares, de colheres cheias na boca para que não gritassem a pedir
ganso antes de chegar a vez de serem servidos. Por fim os pratos
foram postos e foram dadas graças. Sucedeu-se um silêncio em que nem
se respirava, quando a senhora Cratchit, olhando lentamente ao longo
da faca de trinchar, se preparou para a espetar no peito; mas quando
assim fez e quando brotou o jorro de recheio, ergueu-se um murmúrio
de prazer em volta da mesa, e até o pequeno Tim, incitado pelos dois

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jovens Cratchits, batia com o cabo da faca na mesa e gritava de-


bilmente: «Viva!».
Nunca houvera ganso semelhante. Bob afirmou que não acreditava que
jamais se tivesse cozinhado um ganso assim. A sua macieza e sabor,
tamanho e barateza, foram pontos de universal admiração. Aumentado
com o molho de maçã e com o puré de batata, era um jantar suficiente
para toda a família e de facto tal como a senhora Cratchit disse com
grande prazer (observando cada átomo de osso ainda no prato),
acabaram por nem o comer todo! No entanto, cada um comera o
suficiente e especialmente os jovens Cratchits estavam atafulhados de
salva e cebolas até ao nariz! Agora, e enquanto os pratos eram
mudados pela menina Belinda, a senhora Cratchit saiu da sala sozinha
— demasiado nervosa para suportar testemunhas —, para desenformar e
trazer o pudim.
E se não estivesse bem cozido? E se se partisse ao desenformar? E se
alguém tivesse saltado o muro do quintal e o tivesse roubado enquanto
eles se regozijavam com o ganso — hipótese que deixava lívidos os
dois pequenos Cratchits! Toda a espécie de horrores foi imaginada.
Eia! Muito vapor! O pudim saíra da caldeira. Cheirava como em dia de
barrela! Era do pano. Um cheiro parecido com o de uma casa de comidas
e de uma pastelaria ao lado uma da outra e com uma lavandaria ao lado
das duas! Assim era o pudim! Passado meio minuto, a senhora Cratchit
entrou, ruborizada mas sorrindo orgulhosamente, trazendo o pudim como
uma bala de canhão malhada, tão duro e firme, ardendo em metade de
meio quartilho de brande chamejante e ornado com azevinho de Natal
espetado no cimo.
Oh, que maravilhoso pudim! Bob Cratchit afirmou, calmamente, que
encarava aquele como o maior sucesso conseguido pela senhora Cratchit
desde o seu casamento,ao que ela respondeu, agora que o peso já

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estava passado, que confessava ter tido as suas dúvidas sobre a


quantidade de farinha. Todos tiveram algo a dizer sobre ele, mas
ninguém disse ou pensou que fosse um pudim pequeno para tão grande
família. Teria sido uma rematada heresia dizê-lo. Qualquer Cratchit
teria corado só de aludir a tal facto.
Por fim o jantar estava acabado, a toalha foi limpa, a lareira
varrida e o lume aceso. Foi provada a mistura do jarro e considerada
perfeita, puseram-se na mesa laranjas e maçãs e no lume uma pazada de
castanhas. Então toda a família Cratchit se reuniu em volta da
lareira, naquilo a que Bob Cratchit chamava de um círculo, sendo
embora um semicírculo; e ao lado de Bob Cratchit ficava o serviço de
vidros da família. Dois copos e uma chávena almoçadeira sem uma asa.
Contudo todos eles tiravam o conteúdo do jarro como se usassem taças
de ouro e Bob servia-o com olhares brilhantes, enquanto as castanhas
estalavam barulhentamente e saltavam no fogo. Então Bob propôs:
— Um feliz Natal para todos nós, meus queridos. Deus vos abençoe!
Toda a família o repetiu.
— Deus abençoe cada um de nós! — disse o pequeno Tim, o último de
todos.
Estava sentado no seu banquinho, muito perto do pai. Bob segurava
nas suas aquela mãozinha mirrada como se amando a criança desejasse
conservá-la a seu lado e temesse que pudessem afastá-la dele.
— Espírito — disse Scrooge com um interesse que nunca antes sentira
—, diz-me se o pequeno Tim viverá.
— Vejo um lugar vago — respondeu o espírito — no canto da pobre
chaminé e uma muleta sem dono, cuidadosamente conservada. Se estas
sombras não forem alteradas pelo futuro, a criança morrerá.

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— Não, não — disse Scrooge. — Não, bom espírito! Diz que ele será
poupado.
— Se estas sombras permanecerem inalteradas pelo futuro, nenhum
outro da minha raça o encontrará aqui — respondeu o espírito. — E
depois? Se tiver de morrer que morra. Assim diminuirá o excesso
populacional.
Scrooge deixou pender a cabeça ao ouvir as suas próprias palavras
repetidas pelo espírito e foi assaltado pelo remorso e pelo desgosto.
— Homem — disse o espírito —, se é que humano e não de rocha é o teu
coração, abstém-te dessa maldosa hipocrisia até teres descoberto o
que é o excesso populacional e onde existe. Decidirás tu quem deve
viver e quem deve morrer? Pode ser que, aos olhos do Altíssimo, sejas
tu menos valioso e apto a viver do que milhões como o filho daquele
pobre homem. Oh, céus! Ouvir o insecto da folha pronunciar-se sobre o
excesso de vida existente entre os seus esfomeados irmãos do pó!
Scrooge curvou-se perante a censura do fantasma e, a tremer, pôs os
olhos no chão, mas ao ouvir o seu próprio nome levantou-os
rapidamente.
— O senhor Scrooge! — disse Bob. — Ofereço-te o senhor Scrooge como
o patrono da festa.
— Claro, o patrono da festa! — gritou a senhora Cratchit, corando. —
Quem me dera tê-lo aqui. Dar-lhe-ia um pedaço do meu pensamento, para
com ele festejar, e desejava-lhe bom apetite.
— Querida, olha as crianças! — disse Bob. — É dia de Natal!
— Deve ser mesmo no dia de Natal tenho a certeza — disse ela —, que
se deve beber à saúde de tão odioso, avarento, duro e insensível
homem como o senhor Scrooge. E tu sabes que é, Robert! Ninguém melhor
do que tu, ó infeliz, sabe isso!

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— Querida — respondeu Bob brandamente —, é dia de Natal!


— Bebo à sua saúde por ti e pelo dia que é, não por ele. Que viva
por muitos e muitos anos! Feliz Natal e próspero Ano Novo! Ele deve
estar feliz e próspero, não duvido!
As crianças beberam depois dela. Foi a primeira das suas atitudes a
que faltou sinceridade. O pequeno Tim foi o último a beber, mas sem
ligar nenhuma. Scrooge era o ogre da família. Só de mencionar o seu
nome, desceu sobre a festa uma sombra que não se dissipou durante
cinco minutos.
Depois que ela se dissipou, ficaram dez vezes mais alegres do que
antes, pelo simples facto de Scrooge, o Maligno, ter sido tolerado.
Bob Cratchit disse-lhes que trazia debaixo de olho uma colocação para
o menino Peter, que no caso de ser conseguida renderia cinco ou seis
pennies por semana. Os dois Cratchits mais novos riram-se imenso com
a ideia de verem Peter transformado em homem de negócios e o próprio
Peter olhava pensativamente o fogo, por entre os seus colarinhos,
como se estivesse a decidir quais os investimentos especiais que
deveria favorecer quando estivesse de posse dessa espantosa quantia.
Marta, que era uma pobre aprendiza de modista de chapéus, contou-lhes
então o género de trabalho que tinha de efectuar e quantas horas
trabalhava com a forma e como desejava ficar na cama no dia seguinte
de manhã, para um belo e longo repouso, visto que era um feriado, que
passava em casa. E também contou como vira uma condessa e um lorde
que «era quase tão alto como o Peter», ao que Peter correspondeu
puxando os colarinhos tão para cima que se você lá estivesse não
conseguiria ver-lhe a cabeça. Durante todo este tempo as castanhas e
o jarro andavam de mão em mão e por acaso tiveram uma canção,

72

que falava duma criança perdida na neve, cantada pelo pequeno Tim,
que tinha uma voz arrastada e cantou realmente muito bem.
Nada havia de especial. Não eram uma família elegante, não estavam
bem vestidos, os seus sapatos estavam bem longe de serem à prova de
água, as roupas eram escassas e Peter devia conhecer, e provavelmente
conhecia, por dentro, a casa de penhores. Mas estavam felizes, gratos
e satisfeitos uns com os outros e contentes com a época; e ao
desvanecerem-se, parecendo ainda mais felizes envolvidos nos
brilhantes salpicos da tocha do espírito que se afastava, Scrooge
manteve o olhar pousado neles até ao fim, especialmente no pequeno
Tim.
Nesta altura estava a escurecer muito e a nevar fortemente e, à
medida que Scrooge e o espírito avançavam pelas ruas, era maravilhoso
o brilho das lareiras bramindo nas cozinhas, nas salas e em todas as
divisões. Aqui o tremular da chama denunciava os preparativos para um
aconchegado jantar, com tabuleiros quentes a assar no lume e com as
cortinas vermelhas prontas a serem cerradas, isolando do frio e da
escuridão exteriores. Ali corriam as crianças da casa pela neve, ao
encontro das suas irmãs casadas, dos irmãos, dos primos, das tias,
para serem os primeiros a saudá-los. Aqui, de novo, havia nas
venezianas das janelas sombras de convidados reunidos; e ali ia um
grupo de belas raparigas de capuz e calçadas de pele, falando todas
ao mesmo tempo e saltando ligeira e levemente dirigiam-se a alguma
casa das vizinhanças e aí, mal do simples humano que as visse entrar
resplandecentes — artificiosas feiticeiras, elas bem o sabiam!
Mas, se tivessem visto as pessoas que havia no seu caminho em
amigáveis grupos, poderiam ter pensado que não havia ninguém em casa
para as acolher quando lá chegassem, em vez de em todas as casas se

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estava a aguardar companhia e a encher de lenha a lareira. Lançando-


-lhes bênçãos, o espírito exultava! Como ele descobria toda a
superfície do peito e abria a sua enorme palma da mão e continuava a
flutuar, espalhando com a mão generosa o mirto brilhante e inofensivo
sobre tudo o que estava ao seu alcance! O próprio homem que acende os
candeeiros e que ia à frente, dotando as ruas escuras com manchas de
luz, e que estava vestido como que para passar a noite onde calhasse,
riu sonoramente quando o espírito passou, embora poucos reconhecessem
o homem que acendia os candeeiros e soubessem que tinha por
companheiro apenas o Natal!
E agora, sem uma palavra de advertência do espírito, pairavam sobre
um ermo e deserto baldio onde estavam espalhados moles imensas de
pedra bruta, como se se tratasse dum cemitério de gigantes; e a água
espalhava-se por onde havia inclinação, ou ter-se-ia espalhado se não
fosse o gelo mantê-la prisioneira, e nada ali crescia a não ser o
musgo e o tojo e a erva vulgar e espessa. Lá em baixo, para oeste, o
Sol poente deixara uma tira de vermelho-rubro, que por momentos
brilhou sobre aquela desolação, como um olho escuro e, franzindo o
sobrolho mais, mais e mais ainda, perdeu-se na espessa negrura da
mais escura noite.
— Que lugar é este? — inquiriu Scrooge.
— É o lugar onde vivem os mineiros, cujo trabalho é feito nas
entranhas da terra — respondeu-lhe o espírito. — Mas eles conhecem-
-me. Olha!
Da janela duma cabana partia uma luz e para lá avançaram
rapidamente. Atravessando a parede de lama e pedra encontraram um
alegre grupo reunido em torno da lareira. Um velho muito velho e uma
mulher, com os seus filhos e os filhos dos seus filhos, e outra
geração posterior, todos enfeitados com os seus atavios de Natal.

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O velho cantava-lhes uma canção de Natal, numa voz que raramente se


sobrepunha ao uivo do vento no ermo baldio (aquela era já uma velha
canção ainda ele era criança) e de vez em quando todos se lhe
juntavam em coro. Era certo que, quando eles elevavam as vozes, o
velho se tornava jovial e ruidoso e certo era que, quando eles
paravam, o seu vigor decaía novamente.
O espírito não se demorou ali, mas pediu a Scrooge que se agarrasse
à sua túnica e, sobrevoando o baldio, apressou-se... para onde? Para
o mar, não?! Sim, para o mar! Para pavor de Scrooge, viu, ao olhar
para trás, o último pedaço de terra, uma assustadora fileira de
rochedos atrás deles e ensurdecia-o o barulho da água que rolava e
bramia por entre as terríveis cavernas que cavara, tentando
ousadamente minar a terra.
Construído sobre um pequeno recife de rochas submersas,
aproximadamente a uma légua da costa, onde as águas batiam e chocavam
todo o agreste ano, ali estava um farol. Grandes montes de algas
estavam agarrados à sua base e procelárias (poderia julgar-se que
nascidas do vento como as algas da água) elevavam-se e baixavam em
torno dele como as vagas que roçavam.
Até mesmo aqui, dois homens que vigiavam o farol tinham acendido uma
fogueira que, através do buraco existente na espessa parede de pedra,
espalhava um raio de luz por sobre o terrível mar. Apertando as mãos
calejadas sobre a tosca mesa a que estavam sentados, desejaram-se
mutuamente feliz Natal, com a sua caneca de grogue; e o mais velho
dos dois, de rosto estragado e marcado pelo mau tempo, tal como a
figura de proa dum navio, começou a tocar uma vigorosa canção que era
ela própria como um temporal.
Novamente o espírito voou por sobre o negro e agitado mar, voou,
voou, até que, estando, como ele disse a Scrooge, afastado de

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qualquer costa, focaram um navio. Ficaram ao lado do timoneiro que


estava ao leme, de atenção fixa na proa. Os oficiais que estavam de
vigia eram silhuetas escuras e fantasmagóricas nos seus vários
postos. Todos, porém, entoavam uma melodia de Natal ou tinham um
pensamento de Natal, ou falavam em surdina ao companheiro dum dia de
Natal já passado, a que estavam ligadas lembranças de casa. E a bordo
cada homem, acordado ou a dormir, bom ou mau, tivera para outro uma
palavra mais amável do que em qualquer outro dia do ano e de certo
modo partilhara a sua festa e lembrara-se dos que lá longe o amavam e
tivera a certeza de que eles o recordavam.
Foi para Scrooge uma grande surpresa, enquanto ouvia o lamento do
vento e pensava como era solene deslocar-se pela solitária escuridão
sobre o abismo desconhecido cujas profundas eram segredos tão grandes
como a morte, foi uma surpresa para Scrooge, enquanto assim absorto,
ouvir uma franca gargalhada. Maior foi a surpresa ao reconhecê-la
como sendo do seu sobrinho e ao encontrar-se numa sala iluminada,
seca, esplendorosa, com o espírito sorrindo a seu lado e olhando para
o seu sobrinho com aprovadora afabilidade:
— Ah, Ah! — ria-se o sobrinho de Scrooge. — Ah, ah, ah!
Se porventura lhes acontecesse conhecerem homem mais feliz, com uma
gargalhada, do que o sobrinho de Scrooge, a única coisa que posso
dizer é que gostaria também de o conhecer. Apresentem-mo e cultivarei
essa relação.
É o justo, imparcial e nobre ajustamento das coisas que faz com que,
enquanto a doença e a tristeza são contagiosas, nada haja no mundo de
tão irresistivelmente contagioso como o riso e o bom humor. Quando o
sobrinho de Scrooge se ria assim: agarrando-se às ilhargas, rodando a

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cabeça e torcendo o rosto nas mais extravagantes contorsões, a


sobrinha de Scrooge, por afinidade, ria-se tão francamente como ele,
e os seus amigos reunidos, sem lhes ficarem atrás, riam-se
estrondosamente.
— Ah, ah! Ah, ah, ah!
— Ele disse que o Natal era uma treta, da maneira como eu o vivia! —
gritou o sobrinho de Scrooge. — E acreditava nisso!
— Pior para ele, Fred! — disse a sobrinha de Scrooge,
indignadamente. Abençoadas essas mulheres que não deixam nada a meio.
Vão até ao fim.
Ela era muito bonita; extremamente bonita. Com um rosto belo, de
covinhas na face e expressão de surpresa, uma boquinha madura que
parecia feita para ser beijada — o que sem dúvida era. O seu queixo
era um conjunto de belos pontinhos que se fundiam quando ela ria e
possuía o mais brilhante par de olhos que já se viram em qualquer
carita. No conjunto era aquilo a que se chama provocante, mas também
satisfatória. Oh, absolutamente satisfatória.
— Ele é um velhote cómico — disse o sobrinho de Scrooge —, essa é
que é a verdade; e não é tão agradável como deveria. Contudo, os seus
pecados arrastam o seu próprio castigo e nada tenho a dizer contra
ele.
— Tenho a certeza de que é riquíssimo, Fred — alvitrou a sobrinha de
Scrooge. — Pelo menos foi o que sempre me disseste.
— E depois, querida? — disse o sobrinho. — A sua riqueza não lhe
serve de nada. Nada faz de bem com ela, nem se serve dela para viver
confortavelmente. Nem tem a satisfação de pensar — ah, ah, ah! — que
nos irá algum dia beneficiar com ela.
— Não tenho paciência para ele — objectou a sobrinha. A irmã da

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sobrinha e todas as outras senhoras exprimiram a mesma opinião.


— Oh, eu tenho! — disse o sobrinho de Scrooge. — Tenho pena dele e
ainda que quisesse não conseguiria zangar-me com ele. Quem sofre com
os seus caprichos? Sempre ele. Por exemplo, meteu na cabeça que não
gosta de nós e que não há-de vir jantar connosco. Qual o resultado?
Não perde lá grande jantar!
— Acho que perde realmente um bom jantar — interveio a sobrinha de
Scrooge. Todos corroboraram e tinham direito a ser considerados
juízes competentes, porque tinham acabado de jantar; e, com a
sobremesa em cima da mesa, estavam agora reunidos em volta do lume, à
luz do candeeiro.
— Bom, fico contente por ouvir isso! — disse o sobrinho de Scrooge —
, porque não tenho lá grande fé nestas jovens donas de casa. Que
dizes, Topper?
Era claro que Topper estava de olho fisgado numa das irmãs da
sobrinha de Scrooge, pois respondeu que um homem solteiro era um
desditoso marginalizado que não tinha direito a expressar a sua
opinião sobre o assunto. Nesse momento corou a irmã da sobrinha de
Scrooge (a gorducha, de lenço de renda, não a das rosas).
— Continua Fred — disse a sobrinha, batendo as palmas. — Ele nunca
acaba o que vai dizer! É um tipo mais ridículo!
O sobrinho de Scrooge soltou outra gargalhada e, como era impossível
manter afastado o contágio (embora a irmã gorducha o tivesse tentado
com vinagre aromático), foi unanimemente imitado.
— Eu ia a dizer — continuou o sobrinho — que a consequência de ele
não gostar de nós e de não se divertir connosco é, penso eu, perder
uns momentos agradáveis que não lhe fariam mal nenhum. Tenho a
certeza de que ele perde companheiros mais agradáveis do que aqueles

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que pode encontrar nos seus próprios pensamentos, no seu velho e


bolorento escritório ou na sua casa poeirenta. Tenciono dar-lhe todos
os anos a mesma oportunidade, quer ele goste, quer não, porque tenho
pena dele. Ele pode injuriar o Natal até morrer, mas desafio-o a não
pensar melhor dele se me vir lá, de bom humor, ano após ano e
dizendo: «Como está, tio Scrooge?»; e, se isso ao menos bastar para
que ele se disponha a dar quinze libras ao seu empregado, já é alguma
coisa; e acho que ontem o abalei.
Agora foi a vez deles se rirem com a ideia de ele ter abalado
Scrooge. Sendo, porém, profundamente bem humorado e não se importando
da razão porque riam de qualquer modo, encorajou-os na sua alegria e
passou-lhes alegremente a garrafa.
Depois do chá tiveram um pouco de música, porque eram uma família
musical e garanto-vos que sabiam o que faziam quando cantavam um
cânone ou uma copla, sobretudo o Topper, que era capaz de troar como
um baixo dos bons, sem nunca lhe incharem as veias da testa ou sem
ficar corado. A sobrinha de Scrooge tocava bem a harpa e entre outras
melodias tocava uma simples ariazinha (uma coisinha de nada, que se
poderia aprender a assobiar em dois minutos) que seria conhecida
daquela criança que foi buscar Scrooge ao internato, como lhe
lembrara o Espírito do Natal Passado. Quando soou este fio de música,
todas as coisas que o espírito lhe mostrara lhe acudiram à mente;
comoveu-se cada vez mais e pensou que, se pudesse tê-la ouvido muitas
vezes, há anos, talvez tivesse cultivado as coisas ternas da vida,
por suas mãos e para sua própria felicidade, sem utilizar a pá de
coveiro que enterrara Jacob Marley.
Mas não dedicaram todo o serão à música. Daí a pouco jogaram às
prendas, porque é bom às vezes ser-se criança e para isso não há

79

melhor época do que o Natal, quando o seu próprio Fundador foi também
uma criança. Alto! Houve primeiro um jogo de cabra-cega. Claro que
houve. E acredito tanto que o Topper estivesse mesmo cego como que
tivesse olhos nas botas. A minha opinião é de que havia coisa
combinada entre ele e o sobrinho de Scrooge e que o Espírito do Natal
Presente estava a par. A forma como ele perseguiu a irmã gorducha de
lenço de renda era uma afronta à credulidade humana. Derrubando os
atiçadores do lume, tropeçando nas cadeiras, esbarrando no piano,
embrulhando-se nos cortinados, onde quer que ela fosse, ele ia! Sabia
sempre onde estava a irmã gorducha. Não apanhava mais ninguém. Se se
lhe metesse à frente de propósito (como alguns deles fizeram), fingia
uma tentativa de o apanhar, que seria uma afronta à sua compreensão e
imediatamente se esgueirava em direcção à irmã gorducha. Às vezes ela
gritava que não era justo; e não era mesmo. Mas quando por fim ele a
agarrou; quando, apesar de todo o frufru da seda das suas rápidas
passagens por ele, conseguiu apanhá-la num canto donde não havia
saída; então a sua conduta foi do mais execrável. Fingindo não a
conhecer e fingindo ser necessário tocar-lhe o toucado, e além disso
para se assegurar da sua identidade ter de apalpar um certo anel que
ela tinha no dedo e uma certa corrente que tinha ao pescoço, foi
simplesmente vil e monstruoso! Sem dúvida que ela lhe exprimiu a sua
opinião sobre o facto quando, estando já de serviço outro homem
vendado, ficaram muito juntos confidenciando, por trás das cortinas.
A sobrinha de Scrooge não estava metida na brincadeira da cabra-
cega, mas sim instalada numa ampla cadeira com um banquinho para os
pés num aconchegado canto, onde por trás dela estavam Scrooge e o
fantasma. Mas juntou-se-lhes no jogo das prendas e encantou o seu

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amado até à admiração, no jogo das letras do alfabeto. Do mesmo modo,


no jogo do Como Quando e Onde, ela foi óptima e, para secreta
satisfação do sobrinho de Scrooge, venceu as suas irmãs, se bem que
elas também fossem raparigas espertas, como diria Topper. Haveria lá
umas vinte pessoas, velhos e novos, mas todos jogaram e Scrooge
também, porque, esquecendo por completo, dado o interesse que tinha
no que estava a passar-se, que a sua voz não era audível por eles,
saía-se por vezes com a sua resposta em voz alta e muitas vezes dava
respostas muito acertadas; porque a mais afiada agulha, a melhor
Whitechapel, com garantia de não quebrar pelo fundo, não era mais
fina do que Scrooge, parecendo embora embotado.
O fantasma estava muito contente por vê-lo naquela disposição e
olhava-o com tanto obséquio que ele lhe pediu, como uma criança, que
ficassem até os convidados se irem embora, mas o espírito respondeu-
-lhe que não podia ser.
— Aí está outro jogo — disse Scrooge. — Só mais meia hora, espírito,
só uma!
Era um jogo chamado Sim e Não, no qual o sobrinho de Scrooge tinha
de pensar em qualquer coisa e os outros tinham de adivinhar o quê,
respondendo ele às suas perguntas apenas com sim ou não, conforme o
caso. O súbito bombardeamento de perguntas a que foi sujeito sugeriu
que ele estava a pensar num animal, um ser vivo, um animal muito
desagradável, um animal selvagem, um animal que rugia e por vezes
rosnava e por vezes, ainda, falava. Vivia em Londres e andava pelas
ruas, não se exibia nem se deixava levar por ninguém, não vivia em
nenhuma colecção de animais, nunca era morto em mercado e não era um
cavalo, nem um burro, nem uma vaca, nem um touro, nem um tigre, nem
um cão, nem um porco, nem um gato, nem um urso. A cada nova pergunta

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que lhe era feita, o sobrinho soltava uma nova gargalhada e era tão
inexplicavelmente atacado de riso que era obrigado a levantar-se do
sofá e a bater o pé. Por fim a irmã gorducha, que caíra num estado
semelhante, gritou:
— Já descobri! Já sei o que é, Fred! Sei o que é!
— Que é? — gritou Fred.
— É o tio Scro-o-o-o-oge!
E era mesmo. A admiração foi geral, embora alguns tivessem objectado
que a resposta a «E um urso?» deveria ter sido «Sim!», visto que uma
resposta negativa era suficiente para lhes ter afastado o pensamento
do senhor Scrooge, se é que se tinham chegado a inclinar para que
fosse ele.
— Ele tem-nos feito divertir muito — disse Fred —, e seria
ingratidão não bebermos à sua saúde. Temos neste momento aqui à mão
um copo de vinho quente e eu digo: «Ao tio Scrooge!».
— Sim! Ao tio Scrooge! — gritaram.
— Feliz Natal e próspero Ano Novo para o velhote, seja lá ele o que
for! — disse o sobrinho de Scrooge. — De mim não o aceitaria, mas
mesmo assim desejo-lho. Ao tio Scrooge!
Imperceptivelmente, o tio Scrooge tornara-se tão alegre e de coração
tão leve que, se o fantasma lhe tivesse dado tempo, teria brindado em
troca, à despreocupada companhia, e ter-lhes-ia agradecido em
discurso inaudível. Mas toda a cena desapareceu com o sopro da última
palavra dita pelo sobrinho e ele e o espírito em breve viajavam de
novo.
Muito viram e muito viajaram e muitos lares visitaram, mas todos com
um final feliz. O espírito esteve à cabeceira de doentes e eles
estavam alegres; em terras estrangeiras e todos estavam próximo de
casa; junto de homens que lutavam e eles eram pacientes na sua maior

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esperança; junto dos pobres e eles sentiam-se ricos. No asilo, no


hospital e na cadeia, em todos os refúgios da miséria, onde o homem
fútil, com a sua fugaz autoridade, não tivesse trancado a porta e
impedido o espírito de entrar, ele deixou a sua bênção e ensinou a
Scrooge os seus preceitos.
Era uma longa noite, se é que era uma só noite, porque as férias de
Natal pareciam estar condensadas no espaço de tempo que passavam
juntos. Também era estranho que, enquanto Scrooge permanecia
inalterável na sua forma exterior, o espírito envelhecia cada vez
mais. Scrooge observara esta mudança, mas nada dissera até que, ao
saírem duma festa infantil na Véspera de Reis e olhando o espírito,
quando já se encontravam cá fora, reparou que ele tinha o cabelo
cinzento.
— Os espíritos vivem assim tão pouco tempo? — indagou Scrooge.
— A minha vida neste mundo é muito breve — respondeu o fantasma. —
Termina esta noite!
— Esta noite? — exclamou Scrooge.
— Esta noite à meia-noite. Escuta! Aproxima-se a hora. Naquele
momento, os sinos batiam as onze e três quartos.
— Desculpa-me se a minha pergunta não é justificada — disse Scrooge,
olhando atentamente para a túnica do espírito —, mas vejo algo de
estranho e que não te pertence a sair das tuas abas.É um pé ou uma
garra?
— Poderia ser uma garra, pela carne que traz agarrada — foi a
lamentosa resposta do espírito. — Olha.
Das pregas da túnica tirou duas crianças, desprezíveis, abjectas,
assustadoras, horrendas, miseráveis. Ajoelharam-se a seus pés e
prenderam-se à parte exterior das suas vestes.

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— Oh, homem! Olha! Olha aqui para baixo! — exclamou o fantasma.


Eram um rapaz e uma rapariga. Amarelos, magros, andrajosos,
carrancudos, famintos, mas também prostrados na sua humildade. Onde
estava a graciosa juventude que deveria percorrer-lhes os traços e
tocá-los com as suas mais frescas tintas? Uma mão envelhecida e
enrugada como a do Tempo tinha-os beliscado e torcido e reduzido a
farrapos. Onde deveriam reinar os anjos espreitavam os demónios e
olhavam ameaçadores. Nenhuma mutação, degradação ou perversão da
humanidade, em qualquer dos graus de todos os mistérios da
maravilhosa criação, tem monstros que se assemelhem em metade ao
horror e pavor daqueles.
Scrooge recuou assustado. Vendo-os assim, tentou dizer que eram
belas crianças, mas as palavras preferiram silenciar-se a participar
numa mentira de tal monta.
— Espírito! São teus? — Scrooge nada mais conseguiu dizer.
— São do homem — disse o espírito olhando para eles. — E agarram-se
a mim, rogando pelos seus pais. Este rapaz chama-se Ignorância e esta
rapariga Miséria. Afasta-te deles e de todos os seus graus, mas
sobretudo afasta-te deste rapaz, porque na sua fronte vejo escrita
Condenação, a não ser que a palavra seja apagada. Nega-o! - gritou o
espírito estendendo as mãos na direcção da cidade. — Maldiz aqueles
que o tratam por «senhor»! Os que o aceitam para os seus facciosos
fins e o tornam pior! E espera o fim!
— Esses não têm fuga ou recurso? — gritou Scrooge.
— Não há asilos? — disse o espírito, virando-se para ele pela última
vez, com estas palavras. — Não há albergues?
O sino bateu as doze.
Scrooge olhou à sua volta mas não mais viu o fantasma. Quando a

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última badalada deixou de vibrar, lembrou-se da profecia do velho


Jacob Marley e, erguendo os olhos, viu um solene fantasma envolto em
pano e encapuçado, vindo em direcção a ele como neblina.
Página em branco
ESTROFE IV
O último dos espíritos

O fantasma aproximou-se lenta, grave e silenciosamente. Quando


chegou junto dele, Scrooge ajoelhou-se, porque este espírito parecia
espalhar uma aura de mistério no próprio ar por onde se deslocava.
Estava envolto numa veste completamente preta, que lhe cobria a
cabeça, a cara, a forma, e dele nada deixava visível, excepto uma mão
estendida. Por isso teria sido difícil distinguir da noite a sua
silhueta e separá-la da escuridão que a envolvia.
Quando chegou a seu lado, sentiu que era alto e majestoso e que a
sua presença o enchia dum solene terror. Nada mais sabia, porque o
espírito não falava nem se mexia.
— Estou na presença do Espírito do Natal Futuro? — perguntou
Scrooge.
O Espírito não respondeu, mas apontou com a mão para a frente.
— Estás prestes a mostar-me as sombras das coisas que não se
passaram, mas que virão a passar-se daqui para o futuro — continuou
Scrooge. — Não é assim, espírito?
A porção superior das vestes contraiu-se por momentos nas suas
pregas, como se o espírito tivesse inclinado a cabeça. Esta foi toda
a resposta que recebeu.
Embora por esta altura já estivesse muito habituado a companhias

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fantasmagóricas, Scrooge temia tanto aquela silhueta silenciosa que


as pernas lhe tremiam e, quando se preparou para o seguir, descobriu
que mal se sustinha de pé. O espírito parou por um momento, como que
notando o seu estado e dando-lhe tempo para se recompor.
Mas Scrooge estava péssimo para este fantasma. Ele arrepiava-o,
provocando-lhe um horror vago e indefinido o facto de saber que, por
detrás daquela mortalha escura, havia olhos fantasmagóricos fixos
nele, enquanto ele, embora esforçando os seus ao máximo, nada mais
conseguia ver além duma mão espectral e uma enorme massa negra.
— Espírito do futuro! — exclamou. — Temo-te mais do que a qualquer
outro dos espectros que já vi. Mas, visto que sei que a tua intenção
é fazer-me bem e como espero viver para vir a ser um outro homem
diferente daquele que fui, estou preparado para suportar a tua
companhia e a fazê-lo de coração reconhecido. Não falarás comigo?
Não lhe deu resposta. A mão apontava exactamente em frente.
— Continua! — disse Scrooge. — Continua! A noite escoa-se
rapidamente e sei que o tempo me é precioso! Continua, espírito!
O fantasma afastou-se tal como dele se aproximara. Scrooge seguiu-
-lhe a sombra da túnica, o que lhe dava coragem, pensou, e o
arrastava.
Pareciam mal ter entrado na cidade, porque a cidade mais parecia
brotar em torno deles e com esse próprio acto circundá-lo. Mas ali
estavam eles no coração dela, na Bolsa, entre comerciantes que se
apressavam para lá e para cá, chocalhando o dinheiro nos bolsos,
conversando em grupos, olhando para os seus relógios e brincando

88

pensativamente com os seus grandes sinetes de ouro, tal como Scrooge


os vira tantas vezes.
O espírito parou junto dum pequeno grupo de negociantes. Vendo que a
mão apontava para eles, Scrooge avançou para ouvir a sua conversa.
— Não — dizia um homem enorme e gordo, com um queixo monstruoso. —
Não sei grande coisa sobre o assunto, só sei que morreu.
— Quando é que morreu? — inquiriu outro.
— Acho que foi a noite passada.
— Porquê? Que é que ele tinha? — perguntou um terceiro, tirando uma
grande quantidade de tabaco de cheirar duma grande caixa de rapé. —
Julguei que nunca mais morria.
— Sabe Deus! — disse o primeiro com um suspiro.
— Que é que ele fez ao dinheiro? — indagou o cavalheiro rubicundo
com uma excrescência pendular na ponta do nariz, que balouçava como a
papada dum peru.
— Não soube nada — disse o homem com o queixo grande, suspirando de
novo. — Talvez o tenha deixado à sua empresa. A mim não mo deixou.
Isso sei eu.
Esta piada foi recebida com uma risada geral.
— Parece que vai ser um funeral muito reles — disse o mesmo
interlocutor —, pois que em toda a minha vida não conheci ninguém que
lá vá. E se nós nos reuníssemos e nos oferecêssemos como voluntários?
— Eu não me importo de ir, se me derem almoço — observou o
cavalheiro da verruga no nariz. — Mas para ir têm de me dar de comer.
Outra risada.
— Bem, afinal de contas, de entre todos vós eu sou o mais
desinteressado — disse o primeiro interveniente —, porque nunca uso
luvas pretas e nunca almoço, mas ofereço-me para ir se alguém mais o

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fizer. Quando penso no assunto, pergunto-me se não seria eu o seu


amigo mais íntimo, porque costumávamos parar e falar quando nos
encontrávamos. Adeuzinho!
Falantes e ouvintes afastaram-se e misturaram-se com os outros
grupos. Scrooge conhecia os homens e olhou para o espírito à espera
duma explicação.
O fantasma deslizou para uma rua, de dedo apontado para duas pessoas
que se tinham encontrado. Scrooge ouviu mais uma vez, pensando que
talvez ali estivesse a explicação.
Conhecia esses homens. Eram homens de negócios, muito ricos e
importantes. Tinha decidido manter-se sempre nas suas boas graças, do
ponto de vista de negócios, apenas do ponto de vista de negócios.
— Como estás? — disse um.
— Como estás? — respondeu o outro.
— Bem! — disse o primeiro. — O velho Scratch lá teve finalmente a
sua conta, hem?
— Já me disseram — respondeu o segundo. — Está frio, não está?
— Próprio da época de Natal. Não és patinador, pois não?
— Não, não. Tenho mais em que pensar. Bom dia! Nem mais uma palavra.
Assim fora o seu encontro, a sua conversa e a sua despedida.
A princípio Scrooge começou por ficar espantado por o espírito dar
tanta importância a conversas aparentemente tão triviais; mas,
pressentindo que elas escondiam qualquer finalidade, pôs-se a pensar
qual seria. Não podia minimamente pensar-se que elas estavam
relacionadas com a morte de Jacob, o seu velho sócio, porque isso
pertencia ao passado e o foro deste fantasma era o futuro. Nem
conseguia lembrar-se de alguém ligado intimamente a si a quem elas se
90

pudessem aplicar. Mas, não duvidando de que, a quem quer que elas se
referissem, continham em si qualquer moralidade latente e que
serviria para a sua melhoria, resolveu entesourar cada palavra que
ouvia e tudo quanto via; e sobretudo observar a sua própria sombra
quando ela aparecesse, porque guardava a esperança de que a conduta
do seu eu futuro lhe daria a pista que lhe faltava e facilmente lhe
daria também a resposta a estes enigmas.
Olhou em volta, naquele mesmo lugar, à procura da sua própria
imagem; mas havia outro homem no seu canto habitual e, embora o
relógio marcasse a hora habitual do dia em que ele ali estava, não
viu nem sombras de si entre a multidão que afluía pelo pórtico. Isso,
no entanto, não lhe causou grande surpresa, pois que tinha estado a
meditar numa mudança de vida e esperou ver naquela as suas recém-
-tomadas resoluções.
O fantasma permanecia a seu lado, silencioso e negro, de mão
estendida. Quando acordou da sua pensativa investigação, imaginou,
pela posição da mão e pela sua posição em relação a ele, que os Olhos
Ocultos o olhavam penetrantemente, o que o fez estremecer e gelar.
Deixaram aquela cena movimentada e dirigiram-se a uma parte escura
da cidade, onde Scrooge nunca penetrara, se bem que conhecesse a sua
localização e a sua má reputação. Os caminhos eram imundos e
estreitos, as lojas e casas arruinadas, as pessoas seminuas,
embriagadas, desmazeladas e feias. Becos e travessas, como se fossem
fossas, vomitavam sobre as ruas vizinhas o cheiro, o lixo e a vida; e
todo o quarteirão cheirava a crime, a sujidade e a miséria.
No fundo deste antro de infame frequência havia uma loja baixa e
saliente, por baixo dum alpendre onde se comprava ferro, farrapos,
garrafas, ossos e sebo de reses. Lá dentro, no chão, estavam

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empilhadas montes de chaves enferrujadas, pregos, correntes, gonzos,


arames, pratos de balança, pesos e todo o género de sucata de ferro.
Segredos que poucos gostariam de desvendar ocultavam-se e
alimentavam-se sob montanhas de farrapos incríveis, pilhas de gordura
apodrecida e sepulcros de ossos. Sentado entre as velharias que
negociava, junto do fogão de carvão de lenha feito de velhos tijolos,
estava um malandrim de cabelo grisalho e com uns setenta anos, que se
tinha protegido do ar frio com uma desmazelada cortina feita de
farrapos diversos pendurados em fila. Fumava o seu cachimbo com toda
a delícia dum pacato descanso.
Scrooge e o fantasma chegaram junto do homem exactamente quando uma
mulher com uma grande trouxa irrompeu pela loja. Mas, mal esta tinha
entrado, já outra igualmente carregada entrara também e de perto a
seguiu um homem vestido de preto ruço e que não ficou menos espantado
ao vê-las do que elas tinham ficado ao verem-se uma à outra.
Após um breve instante de silencioso espanto, durante o qual o velho
veio ter com eles, desataram os três às gargalhadas.
— Que a jornaleira seja a primeira! — disse esta que chegara
primeiro. — Que a lavadeira seja a segunda e o cangalheiro o
terceiro. Olha lá, velho Joe, tiveste sorte! E se nós não nos
tivéssemos aqui encontrado por acaso?
— Não podiam ter-se encontrado em melhor lugar — respondeu o velho
Joe tirando o cachimbo da boca. — Venham para a sala. Contigo já não
faço cerimónia e os outros dois não são estranhos. Esperem aí, dei-
xem-me fechar a porta da loja. Ah!, como ela range! Parece-me que não
há por aqui outro pedaço de metal tão enferrujado como estes gonzos,

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nem ossos mais velhos do que os meus. Ah, ah! Estamos bem uns para os
outros, fazemos um lindo par! Venham para a sala. Venham para a sala!
A sala era um espaço por detrás da cortina de farrapos. O velho
espevitou o lume com um velho varão de passadeira e, tendo regulado o
enfarruscado candeeiro com a haste do cachimbo, voltou a pô-lo na
boca.
Enquanto fazia isto, a mulher que já tinha falado pôs a trouxa no
chão e sentou-se num banco em atitude importante, cruzando os braços
em volta dos joelhos e olhando os outros dois com ar de desafio.
— Que é que há de mal nisto? Que é que há de mal, senhora Dilber? —
disse a mulher. — Todos têm o direito de olhar por si. Foi isso que
ele sempre fez.
— Lá isso é verdade! — disse a lavadeira. — Ninguém mais do que ele
o fez.
— Então, mulher, não fiques para aí a olhar como se tivesses medo.
Quem é o mais esperto? Acho que não vamos pôr-nos a cortar na casaca
uns dos outros!
— Claro que não! — disseram ao mesmo tempo a senhora Dilber e o
homem. — Esperamos bem que não!
— Pois muito bem! — gritou a mulher. — Já chega. A quem é que
prejudica a perda dumas coisitas como estas? Ao morto não é com
certeza, acho eu.
— Claro que não — disse a senhora Dilber a rir.
— Se queria conservá-las depois da sua morte, aquele velho patifório
— prosseguiu a mulher —, porque é que não foi bom em vida? Se o
tivesse sido, teria tido quem olhasse por ele quando estava a morrer,
em lugar de ficar ali sozinho a dar as últimas.
— É a maior verdade que já foi dita — afirmou a senhora Dilber. — É
um juízo sobre ele.
— Quem me dera que fosse um juízo mais severo — respondeu a mulher —
; e devia ter sido, lá isso podes estar certa. Ah!, se eu pudesse ter

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deitado a mão a mais alguma coisa! Abre essa touxa, Joe, e diz-me lá
quanto vale. Fala sinceramente. Não tenho medo de ser a primeira, nem
tenho medo que eles vejam. Acho que sabíamos muito bem que nos
estávamos a abotoar antes mesmo de nos termos encontrado aqui. Não é
pecado. Abre a trouxa, Joe.
Mas a delicadeza dos companheiros não o permitiu e o homem vestido
de preto ruço, antecipando-se, exibiu o seu saque. Não era grande. Um
sinete ou dois, um estojo de lápis, um par de botões de punho, um
broche de pouco valor — era tudo. Foram minuciosamente examinados
pelo velho Joe, que ia escrevendo a giz na parede a quantia que
estava disposto a pagar por cada um; e, vendo que nada mais havia,
fez a soma.
— Esta é a tua conta — disse Joe — e, nem que me matem, não te dou
nem mais um cêntimo. Quem se segue.
Seguia-se a senhora Dilber. Lençóis e toalhas, alguma roupa usada,
duas colheres de chá, de prata, já antiquadas, um par de tenazes de
açúcar e uns pares de botas. A sua conta foi igualmente feita na
parede.
— Dou sempre demasiado às senhoras. É uma fraqueza minha e é assim
que me arruino — disse o velho Joe. — Esta é a tua conta. Se me
pedisses mais um penny e fizesses questão nisso, arrependia-me de ser
tão liberal e descontava-te meia coroa.
— E agora desfaz a minha trouxa, velho Joe — disse a primeira
mulher.
Joe ajoelhou-se para maior comodidade em abrir e, depois de desatar
uma data de nós, tirou de lá um pesado rolo de tecido escuro.
— Que é isto? — disse Joe. — São cortinas de cama!
— Ah! — retorquiu a mulher, rindo e dobrando-se sobre os braços
cruzados. — São cortinas de cama!

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— Não me digas que as tirastes, com argolas e tudo, com ele lá


estendido! — disse Joe.
— Ah, isso tirei — afirmou a mulher. — E porque não?
— Nasceste para te governares — disse Joe — e o certo é que te
governas.
— Não fico de mão quieta se ao estendê-la puder apanhar qualquer
coisa, muito menos por um homem como ele, lá isso te garanto, Joe —
respondeu-lhe a mulher friamente. — Agora, não entornes a gordura em
cima dos cobertores.
— São os cobertores dele? — perguntou Joe.
— De quem pensas que seriam? — respondeu a mulher. — Diria que ele
não vai apanhar frio sem eles.
— Espero que não tenha morrido de doença contagiosa, hem? — disse o
velho Joe, parando o trabalho e olhando para cima.
— Disso não tenhas medo — respondeu a mulher. — Se tivesse, não
gosto assim tanto da companhia dele que perdesse tempo à sua volta
por estas coisas. Ah!, podes olhar através dessa camisa até te doerem
os olhos, mas não lhe encontras um buraco, nem um sítio passajado. É
a melhor que ele tinha e é de boa qualidade. Se não fosse eu, tinham-
-na deitado fora.
— A que é que chamas deitar fora? — perguntou o velho Joe.
— Vestir-lha, claro, e enterrá-lo com ela — respondeu a mulher com
uma gargalhada. — Alguém foi suficientemente parvo para o fazer, mas
eu despi-lha. Se o pano de algodão não serve para aquilo, então não
serve para nada. Fica-lhe mesmo a matar no corpo. Não pode ficar mais
feio do que estava com esta.
Scrooge ouvia horrorizado este diálogo. Enquanto estavam sentados em
volta dos seus despojos, à escassa luz que o candeeiro do velho

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difundia, ele imaginou-os com um nojo e uma repugnância que maiores


não podiam ser, ainda que eles tivessem sido demónios asquerosos,
negociando o próprio cadáver.
— Ah, ah! — riu a mesma mulher, quando o velho Joe, exibindo uma
bolsa de flanela com dinheiro, espalhou no chão os seus diversos
lucros. — E assim acabou, vêem? Assustou todos em vida e afastou-os,
para nos dar lucro depois de morto! Ah, ah, ah!
— Espírito! — disse Scrooge tremendo dos pés à cabeça. — Entendo.
Entendo. O caso deste infeliz pode vir a ser o meu. A minha vida para
lá se encaminha, agora. Deus de misericórdia, que é isto?!
Recuou aterrado, porque a cena mudara e agora estava quase a tocar
numa cama, uma cama nua e sem cortinas, sobre a qual, coberto por um
lençol esfarrapado, estava qualquer coisa que, embora sem palavras,
se fez anunciar numa linguagem horrível.
O quarto estava muito escuro, demasiado escuro para poder ser
examinado minuciosamente, embora Scrooge tivesse deitado uma olhadela
em volta, obedecendo a um impulso secreto e ansioso por saber que
espécie de quarto era aquele. Uma pálida luz que se erguia lá fora
incidiu directamente na cama e ali, saqueado, despojado,
desprotegido, sem quem o chorasse e desprezado, jazia o corpo daquele
homem.
Scrooge lançou um olhar ao fantasma. A sua mão firme apontava para a
cabeça. A cobertura estava tão mal posta que o mínimo toque, o
movimento dum dedo de Scrooge, teria descoberto a cara. Ele pensou
nisso, sentiu como seria fácil fazê-lo e desejou efectuá-lo; mas, tal
como para fazer retirar de junto de si o espectro, também para
afastar a mortalha não tinha poder suficiente.
Oh, fria, fria, rígida e horrível Morte, que aqui ergueste o teu

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altar e sobre ele depuseste tais horrores, à tua ordem, pois que este
é o teu domínio! Mas da cabeça amada, respeitada e honrada, não podes
tu mudar um só cabelo para os teus terríveis fins, ou tornar as
feições odiosas. Não interessa que a mão esteja pesada e caia quando
a largam, não interessa que o coração e o pulso tenham cessado, o que
importa é que a mão enquanto aberta foi generosa e leal, o coração
corajoso, quente e terno e o pulso o de um homem. Ataca, Sombra,
ataca! E da ferida verás brotar as suas boas acções para semearem no
mundo a vida imortal!
Nenhuma voz pronunciara estas palavras ao ouvido de Scrooge, e no
entanto ouviu-as quando olhava para a cama. Pensou então quais seriam
os principais pensamentos daquele homem se pudesse ser ressuscitado
nesse momento. Seriam preocupações pungentes, de avareza ou de
negócios difíceis? Esses tinham-no, de facto, levado a um lindo fim!
Ali jazia numa casa vazia, sem homem, mulher ou criança que pudesse
dizer: «Ele foi bom para mim, nisto ou naquilo e em memória duma boa
palavra vou ser bom para ele». Um gato esgatanhava na porta e havia
barulho de ratos a roer, por baixo da pedra da lareira. Scrooge não
se atrevia a pensar o que queriam eles duma câmara funerária e porque
estavam tão desassossegados e inquietos.
— Espírito! — disse. — Este lugar é tenebroso. Ao deixá-lo, acredita
que não esquecerei a lição que encerra. Vamos!
No entanto o espírito continuava a apontar para a cabeça com um dedo
imóvel.
— Compreendo-te — retorquiu Scrooge — e fá-lo-ia, se pudesse. Mas,
espírito, não tenho esse poder! Não tenho esse poder!

97

Ele pareceu novamente estar a olhá-lo.


— Se existe nesta cidade alguém que experimente alguma emoção pela
morte deste homem — disse Scrooge muito perturbado —, mostra-me essa
pessoa, imploro-te!
O fantasma estendeu na frente dele por um momento a sua veste
escura, como se fosse uma asa, e ao retirá-la revelou-lhe um quarto à
luz do dia, onde estava uma mãe com os seus filhos.
Ela esperava alguém com ansiosa impaciência, porque andava no quarto
de um lado para o outro, parava a cada som, olhava pela janela,
espreitava o relógio; tentava em vão trabalhar com a agulha e mal
podia suportar as vozes dos filhos que brincavam.
Ao fim de algum tempo soaram as pancadas tão longamente esperadas.
Ela correu para a porta e deu com o marido, um homem de rosto gasto
pelas preocupações e abatido, embora novo. Havia agora nele uma
expressão especial, como de solene prazer de que se sentia
envergonhado e que lutava para reprimir.
Sentou-se para o jantar que estivera guardado para ele junto do
lume; e, quando ela lhe perguntou baixinho (depois de prolongado
silêncio) quais eram as notícias, ele pareceu embaraçado.
— São boas ou más? — disse ela para o ajudar.
—Más — respondeu.
— Estamos completamente arruinados?
— Não. Ainda há esperança, Caroline.
— Se ele se apiedar, há — disse ela espantada. — Nada está perdido
se um tal milagre se der.
— Ele já não pode apiedar-se — disse o marido. — Morreu.
Ela era uma criatura dócil e paciente, se a cara não enganava, mas
ficou feliz ao ouvir aquilo e disse-o batendo as mãos. No momento
seguinte pediu perdão e arrependeu-se, mas o primeiro momento foi de

98

emoção no seu coração.


— Aquilo que me disse aquela mulher meio embriagada, de que te falei
ontem à noite, quando tentei vê-lo e obter uma semana de adiamento e
que pensei ser uma mera desculpa para me evitar, revelou-se verdade.
Naquela altura ele estava não só muito doente, mas moribundo.
— Para quem será transferida a tua dívida?
— Não sei. Mas antes dessa altura temos de ter o dinheiro; e mesmo
que o não tivéssemos, seria realmente um grande azar que o seu
sucessor fosse um credor tão desumano. Esta noite podemos dormir com
o coração aliviado, Caroline!
Sim. Agora, acalmados, os seus corações estavam mais leves. Os
rostos das crianças, caladas e apinhadas em volta para ouvirem aquilo
de que tão pouco entendiam, estavam mais alegres. Era uma casa mais
feliz pela morte deste homem! A única emoção que o Fantasma lhe podia
mostrar, provocada pelo acontecimento, era de alegria.
— Mostra-me alguma piedade relacionada com uma morte — disse Scrooge
—, ou aquele quarto escuro que acabámos de deixar, espírito, para
sempre me ficará presente.
O fantasma conduziu-o por algumas ruas a que os seus pés estavam
habituados. À medida que avançavam, Scrooge olhava para um lado e
para outro na esperança de se ver a si próprio, mas não se via em
lado algum. Entraram em casa do pobre Bob Cratchit, a morada que já
visitara, e encontrou a mãe e os filhos sentados em volta da lareira.
Em silêncio. Muito em silêncio. Os pequenos Cratchits, sempre
barulhentos, estavam imóveis como estátuas a um canto, sentados e
99

olhando para Peter que tinha na frente um livro. Mãe e filha estavam
ocupadas a coser, mas estavam também muito caladas!
— E Ele tomou uma criança e sentou-a no meio deles.
Onde é que Scrooge já ouvira aquelas palavras? Não as tinha sonhado.
O rapaz devia estar a lê-las, quando ele e o espírito cruzaram a
soleira. Porque é que ele não continuou?
A mãe pousou o trabalho na mesa e levou a mão ao rosto.
— A cor fere-me os olhos — disse.
A cor? Ah, pobre pequeno Tim!
— Agora já estão melhores — disse a mulher de Cratchit. — A luz da
vela enfraquece-os e não quero, por nada deste mundo, mostrar olhos
enfraquecidos ao vosso pai, quando ele regressar. Deve estar na hora
de ele chegar.
— Até já passa — respondeu Peter fechando o livro. — Mas acho que
nestas últimas noites deve ter vindo mais devagar do que é costume,
mãe.
Ficaram de novo muito calados. Por fim ela disse, numa voz alegre e
firme que só hesitou uma vez:
— Lembro-me de ele caminhar... lembro-me de ele caminhar com o
pequeno Tim aos ombros e muito depressa.
— Também eu — exclamou Peter. — Muitas vezes.
— Também eu — disse outro. E todos se lembravam. — Mas ele era
levezinho — rematou ela, concentrada no seu trabalho — e o pai amava-
o tanto que isso não o maçava nada, nada. Aí está o vosso pai, à
porta!
Ela correu ao seu encontro e o pequeno Bob, com o seu cachecol (bem
precisava dele, pobre homem), entrou. O chá estava pronto na chapa do
fogão e todos queriam ser quem mais ajudava. Então os dois Cratchits

100

mais novos treparam-lhe para os joelhos e cada criança apoiou a sua


facezita contra a cara dele, como se lhe dissessem: «Deixa lá, pai!
Não estejas triste!».
Bob foi caloroso para com eles e falava com toda a família em tom
animado. Olhou o trabalho que estava em cima da mesa e louvou a
diligência e a rapidez da senhora Cratchit e das filhas. Disse que
iriam ficar prontos antes de domingo.
— Domingo! Então foste lá hoje, Robert? — disse a mulher.
— Sim, querida — respondeu Bob. — Quem me dera que pudesses ter ido.
Ter-te-ia feito bem veres como tudo aquilo está verde, mas hás-de vê-
-lo muitas vezes. Prometi-lhe que ia lá no domingo. Meu querido
filho! — soluçou Bob. — Meu querido filho!
De repente deixou-se abater. Não conseguiu evitá-lo. Se tivesse
conseguido, talvez ele e o filho não estivessem tão ligados como
estavam. Saiu da sala e subiu para o quarto lá de cima, que estava
alegremente iluminado e onde pendiam os enfeites de Natal. Havia uma
cadeira junto da criança e havia sinais de alguém lá ter ido
recentemente. O pobre Bob sentou-se nela e, depois de pensar um
momento e de se recompor, beijou a carita. Estava conformado com o
que se passara e desceu novamente feliz.
Reuniram-se em volta do lume e falaram, continuando mãe e filhas a
trabalhar. Bob contou-lhes a extraordinária bondade do sobrinho de
Scrooge, a quem vira uma vez e mal e que, ao encontrá-lo na rua
naquele dia e vendo que parecia um pouco abatido («só um pouco,
sabem?», disse Bob), lhe perguntou o que lhe tinha acontecido para o
desgostar.
— Pelo que, sendo ele o homem de mais agradável trato que eu
conheço, lhe contei tudo. «Lamento muito,senhor Cratchit», disse ele,

101

«e lamento muito, também, pela sua extremosa esposa.» E, a propósito,


como ele soube isso é que eu não sei.
— Soube o quê, querido?
— Que tu eras uma esposa extremosa — respondeu Bob.
— Toda a gente sabe isso! — disse Peter.
— Muito bem observado, meu rapaz! — exclamou Bob. — Espero que
saibam. «Lamento muito», disse ele, «pela sua extremosa esposa. Se
lhe puder ser útil de algum modo», disse ele, dando-me o seu cartão,
«aqui tem a minha morada. Peço-lhe que me procure.» Isto foi
maravilhoso — exclamou Bob —, não tanto por aquilo que poderia ter
feito por nós, mas mais pela sua gentileza. Parecia mesmo que tinha
conhecido o nosso pequeno Tim e que sofria connosco.
— Tenho a certeza de que é uma boa alma! — afirmou a senhora
Cratchit.
— Ainda estarias mais certa disso, querida — replicou Bob —, se o
visses e falasses com ele. Não ficaria nada surpreendido — nota! — se
arranjasse melhor colocação para o Peter.
— Estás a ouvir isto, Peter? — disse a senhora Cratchit.
— E depois — exclamou uma das raparigas — o Peter arranjará alguém e
irá viver a sua vida.
— Deixa-te disso! — resmungou Peter com uma careta.
— Muito provavelmente, qualquer dia — disse Bob —, se bem que para
isso ainda falte muito tempo. Mas, quando quer ou como quer que nos
separemos uns dos outros, estou certo que nenhum de nós esquecerá o
pequeno Tim, nem esta primeira separação que se deu entre nós, pois
não?
— Nunca, pai! — exclamaram todos.

102

— E eu sei — disse Bob —, eu sei, meus queridos, que quando


lembrarmos como ele era paciente e dócil, embora fosse apenas uma
criança muito pequena, não brigaremos uns com os outros, esquecendo
assim o pequeno Tim.
— Não, nunca, pai! — exclamaram novamente todos.
— Estou muito feliz! — disse o pequeno Bob —, estou muito feliz!
A senhor Cratchit beijou-o, as filhas beijaram-no, os dois Cratchit
mais novos beijaram-no e ele e Peter apertaram a mão. Oh, espírito do
pequeno Tim, a tua essência de criança provinha de Deus!
— Espectro — disse Scrooge —, algo me diz que é chegado o momento de
nos separarmos. Eu sei-o, mas não sei como. Diz-me quem era aquele
homem que ali jazia.
O Espírito do Natal Futuro conduziu-o, como antes fizera (ainda que
em momento diferente e ele pensou que, realmente, parecia não haver
qualquer ordem nestas últimas visões, salvo a de se situarem no
futuro), aos locais dos homens de negócios, mas não lhe mostrou a sua
pessoa. Em boa verdade, o espírito nem sequer se detinha em parte
alguma, continuando sempre direito ao fim agora pretendido, até que
Scrooge implorou que se detivessem por um instante.
— Este pátio — disse Scrooge — que agora atravessamos é onde se
situa e situou por muito tempo o meu local de trabalho. Estou a ver a
casa. Deixa-me ver o que serei no futuro!
O Espírito parou apontando com a mão para outro lado.
— A casa é acolá — disse Scrooge. — Porque apontas para além?
O inexorável dedo não se moveu. Scrooge precipitou-se para a janela
do escritório e olhou lá para dentro. Ainda era um escritório, mas
não o dele. A mobília não era a mesma e a pessoa sentada na cadeira

103

não era ele. O fantasma continuava a apontar.


Voltou para junto dele, pensando para consigo onde e porquê teria
ido a sua pessoa, e acompanhou-o até chegarem a um portão de ferro.
Parou para olhar em redor, antes de entrarem.
Um cemitério. Era então aqui que jazia debaixo do chão o infeliz
cujo nome ele iria agora saber. Era um local digno. Rodeado de casas,
coberto de relva e de ervas daninhas, o crescimento da vegetação da
morte, não da vida, saturada de demasiados enterrados, gorda e de
apetite saciado. Um local digno!
O espírito ficou de pé entre as campas e apontou uma. Ele avançou
para ela a tremer. O fantasma foi preciso como sempre, mas ele temeu
ver um novo significado na sua forma.
— Antes que me aproxime dessa pedra para que estás a apontar — disse
Scrooge —, responde-me a uma pergunta. Estas são as sombras do que
será ou apenas as sombras do que poderá vir a ser?
O fantasma continuou a apontar para a campa junto da qual estava.
— Os rumos dos homens fazem prever certos fins, aos quais, se neles
persistirem, serão levados — disse Scrooge. — Mas se se desviarem
desses rumos os fins mudarão. Assim é o que me mostras!
O espírito mantinha-se imóvel como sempre.
Tremente, Scrooge arrastou-se até lá e, seguindo o dedo, leu na
lousa da desprezada campa o seu próprio nome, Ebenezer Scrooge.
— Sou eu o homem que jaz naquela campa? — gritou de joelhos.
O dedo apontou da campa para ele e de novo para a campa.

104

— Não, espírito! Oh, não, não! O dedo lá continuava.


— Espírito! — gritou, agarrando-se com força à túnica dele. —
Escuta-me! Já não sou o homem que era. Não serei o homem que tive de
ser durante este lapso de tempo. Porque me mostras isto, se não há
para mim qualquer esperança?
Pela primeira vez a mão pareceu tremer.
— Bom espírito — prosseguiu enquanto caía a seus pés —, a tua
natureza intercede e apieda-se de mim. Diz-me que ainda posso alterar
estas sombras que me mostraste, mudando a minha vida!
A boa mão estremeceu.
— Honrarei o Natal de todo o meu coração e tentarei conservá-lo todo
o ano. Viverei no passado, no presente e no futuro. Os espíritos dos
três empenhar-se-ão no meu íntimo. Não desprezarei as lições que eles
me deram. Oh, diz-me que posso apagar o que está escrito nesta lousa!
No meio do seu sofrimento agarrou-se àquela mão espectral, que
tentou libertar-se, mas ele era forte na sua súplica e deteve-a.
Pondo as mãos numa última súplica, para que o seu destino fosse
desviado, viu operar-se uma modificação no capuz e na túnica do
fantasma. Ela encolheu, caiu e tombou pela coluna da cama.
Página em branco
ESTROFE V
O fim de tudo

Sim! E a coluna da cama era a sua. A cama era a sua, o quarto era o
seu. Melhor que tudo isso: o tempo que tinha à sua frente era seu,
para se emendar!
— Viverei no passado, no presente e no futuro! — repetia Scrooge,
enquanto rebolava para fora da cama. — Os espíritos dos três
empenhar-se-ão no meu íntimo. Oh, Jacob Marley! Que o Céu e o Natal
sejam por isto louvados! Digo isto de joelhos, velho Jacob, de
joelhos!
Estava tão excitado e tão entusiasmado com as suas boas intenções,
que a sua voz alquebrada mal correspondia ao seu apelo. Estivera a
soluçar violentamente durante o conflito com o espírito e o seu rosto
estava molhado de lágrimas.
— Não estão derrubadas — gritava Scrooge, abraçando uma das cortinas
da cama. — Não estão derrubadas, têm argolas e tudo. Estão aqui... eu
estou aqui... as sombras das coisas que podiam vir a ser podem ser
afastadas. E serão, sei que serão!
As suas mãos estiveram sempre ocupadas com a roupa, virando-a do
avesso, de cima para baixo, rasgando-a, pendurando-a e fazendo-a
participar em todas as extravagâncias.
— Não sei o que fazer! — exclamou Scrooge, rindo e chorando ao mesmo
tempo e parecendo qual Laoconte, enrolado nas peúgas (Nota da
tradutora: Personagem mitológico que foi devorado por serpentes). —
Sinto-me

107

leve que nem uma pena, feliz que nem um anjo, alegre que nem um
garoto e tonto que nem um ébrio. Feliz Natal para todos! Próspero Ano
Novo, para toda a gente! Eia, aí! Hoopi! Viva!
Tinha pulado até à sala e ali estava de pé, completamente ofegante.
— Cá está a caçarola onde estava a papa! — gritou Scrooge, pondo-se
novamente em movimento em volta da lareira. — Lá está a porta por
onde Jacob Marley e o espírito entraram! Lá está o canto onde se
sentou o Espírito do Natal Presente! Lá está a janela onde eu vi as
almas penadas! Tudo é certo, tudo é verdade, tudo aconteceu. Ah, ah,
ah!
Para um homem que tinha perdido o treino há tantos anos, era
realmente uma gargalhada maravilhosa, uma gargalhada esplendorosa. A
mãe de muitas e muitas outras gargalhadas cristalinas!
— Não sei que dia do mês é! — disse Scrooge. — Não sei quanto tempo
estive entre os espíritos. Não sei nada. Sou um verdadeiro bebé. Não
importa. É melhor ser um bebé. Eia! Hoopi! Viva!
Os seus transportes foram detidos pelos mais fortes repiques que
jamais ouvira. Choquem, retinam, martelem; ding, dong, piam. Piam,
dong, ding; martelem, choquem, retinam! Glória, glória!
Correu para a janela, abriu-a e deitou a cabeça de fora. Não havia
nevoeiro nem neblina. Que belo ar fresco! Que alegres sinos! Oh,
glória, glória!
— Que dia é hoje? — gritou Scrooge lá para baixo, para um rapaz de
fato domingueiro, que provavelmente se atrasou para olhar em volta.
— Hã? — respondeu o rapaz, com todo o assombro.

108
— Que dia é hoje, meu bonitão? — disse Scrooge.
— Hoje? — respondeu o rapaz. Eia! É DIA DE NATAL!
— É dia de Natal! — disse Scrooge para consigo. — Não o perdi. Os
espíritos fizeram tudo numa só noite. Conseguem fazer tudo quanto
querem. Claro que conseguem. Olá, amigalhaço!
— Olá! — respondeu o rapaz.
— Conheces o galinheiro, na segunda rua, à esquina? — inquiriu
Scrooge.
— Queira Deus que sim! — replicou o rapaz.
— És um rapaz inteligente! — disse Scrooge. — Um rapaz notável!
Sabes se venderam aquele peru premiado que lá tinham pendurado?.. Não
é o peru premiado pequeno, é o grande.
— O quê, aquele tão grande como eu? — respondeu o rapaz.
— Que estupendo rapaz! — disse Scrooge. — É um prazer falar com ele.
Sim, meu peralvilho!
— Está agora lá pendurado — respondeu o rapaz.
— Está? — tornou Scrooge. — Vai lá comprá-lo.
— Haaã! — exclamou o rapaz.
— Não, não — disse Scrooge. — Estou a falar a sério. Vai lá comprá-
-lo e diz-lhes que mo tragam cá e eu dar-lhes-ei a morada onde devem
levá-lo. Volta cá com o homem que te darei um xelim. Volta dentro de
cinco minutos e dou-te meia coroa!
O rapaz desapareceu que nem uma seta. Teria de ter um bom dedo para
o gatilho quem quisesse disparar com metade da velocidade.
— Vou mandá-lo ao Bob Cratchit! — murmurou Scrooge, esfregando as
mãos e desatando a rir. — Não deve saber quem lho manda. É duas vezes
maior que o pequeno Tim. Nunca houve uma piada batida tão boa como
esta de o mandar ao Bob!

109

A mão com que escreveu a morada não era das mais firmes, mas mesmo
assim escreveu e desceu para abrir a porta da rua, preparado para a
chegada do galinheiro. Enquanto ali esperava que ele chegasse, deram-
-lhe os olhos no batente.
— Amá-lo-ei enquanto viver! — exclamou Scrooge, dando-lhe umas
pancadinhas amigáveis. — Antes mal olhava para ele. Que expressão tão
honesta ele tem no rosto! É um batente maravilhoso!.. Aqui está o
peru. Olá Hoopi! Como está? Feliz Natal!
Era um peru! Uma ave daquelas nunca devia ter conseguido pôr-se em
cima das pernas. Devia parti-las logo, como se fossem paus de lacre.
— Ui, é impossível levar isso a Camdem Town — disse Scrooge. — Tem
de tomar um carro.
O riso com que disse isto, o riso com que pagou o peru, o riso com
que pagou o carro, o sorriso com que recompensou o rapaz, só foram
ultrapassados pelo riso com que se sentou na cadeira onde riu até
chorar.
Barbear-se não foi tarefa fácil, já que a mão continuava a tremer-
-lhe muito e o barbear requer atenção, mesmo que não estejamos a
dançar enquanto nos barbeamos; mas se ele tivesse cortado a ponta do
nariz, ter-lhe-ia posto um bocado de adesivo e teria ficado
satisfeito.
Vestiu-se «com o melhor» e saiu por fim para a rua. A essa hora as
ruas pululavam de gente, tal como ele as tinha visto com o Espírito
do Natal Presente; e, de mãos atrás das costas, Scrooge olhava todos
com um sorriso de prazer. Em resumo: parecia tão irresistivelmente
alegre que três ou quatro indivíduos bem humorados disseram: «Bom
dia, senhor! Feliz Natal para si!». E Scrooge disse depois muitas
vezes que, de todos os alegres sons que já ouvira, aqueles soaram aos
seus ouvidos como os mais alegres.

110

Não tinha ido longe quando viu, avançando para ele, o cavalheiro
imponente que na véspera entrara no seu escritório e lhe dissera:
« Scrooge e Marley, não é assim?». O coração deu-lhe um baque ao
pensar como é que aquele cavalheiro o iria olhar quando se
encontrassem; sabia o que o esperava e avançou.
— Meu caro senhor — disse Scrooge apressando o passo e apertando
ambas as mãos do cavalheiro. — Como está? Espero que tenha conseguido
ontem. Foi muito simpático da sua parte. Feliz Natal para si!
— Senhor Scrooge?
— Sim — disse Scrooge. — Sim, é esse o meu nome, e receio que não
lhe seja agradável. Permita-me que lhe peça desculpa. E terá a
bondade — aqui Scrooge segredou-lhe ao ouvido.
— Valha-me Deus! — gritou o cavalheiro, como se lhe tivesse faltado
o ar. — Meu caro senhor Scrooge, está a falar a sério?
— Por favor — acrescentou Scrooge —, nem um quarto de pény a menos.
Já aí incluo muitos pagamentos atrasados, pode estar certo. Far-me-á
esse favor?
— Meu caro senhor — disse o outro apertando-lhe a mão. — Não sei o
que dizer a tanta generosi...
— Não diga nada, por favor — retorquiu Scrooge. — Venha visitar-me.
Virá?
— Virei! — exclamou o cavalheiro. E não havia dúvida que estava
decidido a fazê-lo.
— Obrigado — disse Scrooge. — Estou-lhe muito agradecido. Agradeço-
-lhe cinquenta vezes. Deus o abençoe!
Foi à igreja e vagueou pelas ruas, observou as pessoas que se
afadigavam de cá para lá, deu palmadinhas na cabeça das crianças,
interrogou mendigos, espreitou para as cozinhas das casas e para as
janelas e descobriu que tudo lhe podia dar prazer. Nunca sonhara que

111

um passeio — ou qualquer outra coisa — lhe pudesse dar tamanha


felicidade. De tarde encaminhou-se para casa do sobrinho.
Passou uma dúzia de vezes pela porta antes que tivesse coragem de
subir e bater, mas arremeteu e fê-lo.
— O patrão está em casa? — disse Scrooge à rapariga. Rapariguinha
engraçada! Muito mesmo.
— Está sim, senhor.
— Onde está ele, amorzinho? — disse Scrooge.
— Está na sala de jantar com a senhora. Eu levo-o lá acima, se o
senhor quiser.
— Obrigada. Ele conhece-me -— disse Scrooge já com a mão no puxador
da porta da sala de jantar. — Eu entro, minha menina.
Girou lentamente o puxador e enfiou a cara pela frincha da porta.
Eles estavam a olhar para a mesa (que estava posta com muitos
atavios), porque estas jovens donas de casa ficam sempre um pouco
nervosas com estes pontos e gostam de verificar tudo bem.
— Fred! — disse Scrooge.
Como a sua sobrinha por afinidade se sobressaltou! Que coração
sensível! Scrooge esquecera por momentos que ela estava sentada a um
canto com o banquinho para os pés, senão não o teria feito de maneira
nenhuma.
— Valha-me Deus — exclamou Fred. — Quem é?
— Sou eu. O teu tio Scrooge. Vim jantar. Permites-me que entre,
Fred?
Permitir-lhe que entre?! Foi milagre ele não lhe arrancar o braço.
Em cinco minutos estava em sua casa. Nada poderia ser mais caloroso.
A sua sobrinha estava na mesma. Também o Topper, quando chegou. E a
irmã gorducha, quando chegou. E toda a gente quando chegou.
Maravilhosa festa, maravilhosos jogos, maravilhosa unanimidade, ma-
ra-vi-lho-sa felicidade!

112

Mas chegou cedo ao escritório na manhã seguinte. Chegou mesmo cedo.


Se ao menos conseguisse chegar primeiro e apanhar o Bob Cratchit a
chegar atrasado! Nisso se empenhou.
E assim fez; sim, assim fez! O relógio bateu as nove. E o Bob, nada.
Já passavam dezoito minutos e meio da sua hora. Scrooge estava
sentado com a sua porta escancarada, para o ver entrar no tanque.
Antes de entrar, já tinha tirado o chapéu e o cachecol. Num instante
se pôs no seu banco, dando à pena como se quisesse recuperar as nove
horas.
— Olá! — rosnou Scrooge na sua voz habitual, tão bem imitada quanto
podia. — Que é que pretendes entrando aqui a esta hora do dia?
— Peço muita desculpa, senhor — disse Bob. — Estou atrasado.
— Estás? — repetiu Scrooge. — Sim. Acho que estás. Vossa excelência
pode aqui chegar, se faz favor?
— É só uma vez no ano — implorou Bob, saindo do tanque. — Não se
repetirá. Ontem diverti-me muito.
— Agora vou dizer-te uma coisa, meu amigo — disse Scrooge. — Não vou
tolerar uma coisa destas por mais tempo e por isso — continuou,
descendo do seu banco e enfiando-lhe de tal modo o dedo no colete que
ele cambaleou de costas até ao seu tanque —, e por isso vou aumentar-
-te o ordenado!
Bob tremia e aproximou-se mais da régua. Teve por um momento a ideia
de agredir Scrooge com ela, enquanto o segurava e pedia socorro para
o pátio e um colete de forças.
— Feliz Natal, Bob! — disse Scrooge, com uma sinceridade que não
podia ser confundida, enquanto lhe dava palmadinhas nas costas. —
Desejo-te, meu bom amigo Bob, um Natal mais feliz do que aqueles que

113

te tenho dado de há muitos anos! Vou aumentar-te o salário e compro-


meter-me a ajudar a tua necessitada família e esta tarde discutiremos
acerca de negócios, em frente duma tigela de Natal com ponche
fumegante, Bob! Acende os fogões e vai comprar um balde de carvão
antes que o Diabo esfregue um olho, Bob Cratchit!

Scrooge excedeu as suas promessas. Fez tudo e infinitamente mais e


para o pequeno Tim, que NÃO morreu, foi um segundo pai. Tornou-se um
bom amigo, um bom patrão, um bom homem, como toda a boa cidade sabia
ou qualquer outra boa cidade, vila ou lugar do nosso bom mundo.
Alguns riam-se da sua modificação, mas ele deixava-os rir e pouca
atenção lhes prestava, porque era suficientemente sensato para saber
que nada de bem acontecia neste mundo sem que as pessoas troçassem, a
princípio; e sabendo que esses, de qualquer forma, seriam sempre
cegos, pensou igualmente que podiam fazer rugas de tanto rir ou
apanhar a doença com forma menos atraente. O seu coração ria e isso
era quanto lhe bastava.
Não voltou a ter contactos com os espíritos, mas viveu, a partir de
então, em voto total de abstinência e dele sempre se disse que sabia
como conservar o Natal, se é que alguém possuía essa sabedoria. Que
isso possa ser dito de nós, de todos nós! E, tal como dizia o pequeno
Tim: que Deus nos abençoe a todos!
OS SINOS DE ANO NOVO

Uma história de duendes sobre uns sinos, que repicavam pela saída do
ano velho e pela entrada do ano novo

Personagens

SIR JOSEPH BOWLEY, membro do Parlamento, um cavalheiro idoso e


altivo.
SENHOR BOWLEY, filho do anterior.
ALDERMAN LUTE, um homem que se orgulhava do seu carácter simples,
prático e sábio.
WiLL FERN; um homem pobre e honesto, a quem foi dada má reputação.
SENHOR FILER, um desconsolado cavalheiro de meia-idade.
SENHOR FISH, secretário particular do senhor Joseph Bowley.
RICHARD, um ferreiro bonito e jovem.
TUGBY, lacaio do senhor James Bowley.
TOBY VECK (TROTTY), moço de recados.
A SENHORA BOWLEY, esposa do senhor Joseph Bowley.
A SENHORA ANNE OHICKENSTALKER, lojista de um armazém.
LILIAN FERN, órfã, sobrinha de Will Fern.
MARGARET VECK, filha de Toby Veck.
Primeiro quarto

Não há muita gente (e como é desejável que o contador de histórias e


o leitor estabeleçam, tão depressa quanto possível, um entendimento
mútuo, peço que anotem que não restrinjo essa observação a jovens ou
a crianças, mas todo o tipo de gente: pequenos e grandes, jovens e
velhos, àqueles que estão a crescer e aos que já estão a diminuir),
não há, dizia eu, muita gente que se importasse de dormir numa
igreja. Não durante o sermão com tempo quente (quando isso já foi
feito por uma ou duas vezes), mas durante a noite, e só. Sei que
muitíssima gente ficará tremendamente admirada por esta atitude em
pleno dia. Mas esta aplica-se à noite. Deve decorrer de noite e eu
comprometo-me a conferir-lhe bom êxito numa qualquer noite
tempestuosa de Inverno, escolhida para o efeito, com um adversário
qualquer escolhido entre outros, que me encontrará a sós num velho
cemitério frente a um velho portal de igreja e que previamente me
concederá o poder de ali o fechar até de manhã, se isso indispensável
for para seu contentamento.
O vento nocturno tem a lúgubre mania de voltear e voltear em torno
dum edifício daquele género e de gemer enquanto volteia e de forçar,
com a sua mão invisível, janelas e portas, procurando fendas por onde
entrar. Uma vez lá dentro, e não encontrando o que procurava, seja lá
o que for, lamenta-se e uiva para escapar novamente e não contente

117

com espalhar-se pelas galerias e com enlaçar-se nos pilares,


experimentando o sonoro órgão, eleva-se até ao telhado e luta para
despedaçar as vigas. Lança-se então desesperadamente sobre as pedras
cá de baixo e passa murmurante pelas galerias. E já sobe furtivamente
e trepa pelas paredes, parecendo ler num murmúrio as inscrições
dedicadas aos mortos. Nalgumas destas manifesta-se estridentemente
como se risse e noutras lamenta-se e chora como se carpisse.
Atardando-se dentro do altar, produz também um som fantasmagórico,
onde parece salmodiar, no seu tom tempestuoso, sobre o mal e o crime
cometidos, sobre os falsos deuses adorados em desafio às Tábuas da
Lei que parecem claras e lisas, mas estão tão falhadas e partidas.
Uuu! Deus nos proteja, a nós que estamos comodamente sentados em
volta do lume! Aquele vento da meia-noite, cantando na igreja, tem
uma voz terrível!
E então lá em cima no campanário?! Ali, a tenebrosa rajada ruge e
assobia! Lá em cima, no campanário, é onde ele é livre de ir e vir,
passando através de muitos arcos abertos e de buracos, de rodopiar,
de se encaracolar pela vertiginosa escada, de rodar o catavento que
range e de fazer a própria torre abanar e estremecer! Lá em cima, no
campanário onde é a torre dos sinos, onde as correntes de ferro estão
despedaçadas pela ferrugem e onde as chapas e as folhas de cobre
estalam e ondulam arrepiadas com a mudança de tempo e sob uma
superfície diferente; onde os pássaros estofam os esfarrapados
ninhos, nos cantos das velhas traves e vigas de carvalho; onde o pó
se faz velho e cinzento; onde as aranhas pintadas, gordas e
indolentes pela já longa estabilidade, se balançam indolentemente de
cá para lá com a vibração dos sinos, nunca se desprendendo dos seus
castelos no ar, feitos de teia, nem trepando como o marinheiro
subitamente alarmadas,nem caindo ao chão e manejando uma quantidade
118

de pernas ágeis para salvar a vida! Lá em cima, no campanário duma


igreja, muito acima das luzes e dos murmúrios da cidade e muito
abaixo das esvoaçantes nuvens que o ensombram, ali é durante a noite
o local bravio e tenebroso — lá em cima, no campanário duma velha
igreja, vivem os sinos de que estou a falar.
Acreditem-me que eram velhos sinos. Há muitos séculos aqueles sinos
tinham sido baptizados por bispos. Há tantos, tantos séculos que o
registo do seu baptismo de há muito se perdeu, muito antes da memória
dos homens, e os seus nomes ninguém sabia. Tinham tido os seus
padrinhos e as suas madrinhas, aqueles sinos (que eu, pela minha
parte, também vos digo que preferiria assumir a responsabilidade de
ser padrinho dum sino que de um rapaz) e além disso as suas carrancas
de prata sem dúvida. Mas o tempo afastara os seus protectores,
Henrique VIII mandara fundir as suas carrancas e agora ali estavam
eles suspensos, sem nome e sem caras, na torre da igreja.
Mas não mudos. Longe disso. Estes sinos tinham, ai isso tinham,
vozes sonoras, vigorosas e fortes que podiam ser ouvidas bem longe,
levadas pelo vento. Além disso eram sinos demasiado vigorosos para
estarem dependentes da disposição do vento, pois que lutando
galhardamente contra ele, quando o seu capricho lhes era adverso,
instilariam no ouvido atento e muito soberanamente as suas alegres
notas e desviar-se-iam para serem ouvidos em noites tempestuosas, por
alguma infeliz mãe que seu filho velasse, ou por alguma esposa
solitária cujo marido andava no mar, pois elas já os tinham visto
vencer um violento vento de noroeste. Sempre «a calhar», como dizia o
Toby Veck — porque, embora tivessem optado por lhe chamar Trotty
Veck, o seu nome era Toby e ninguém lhe poderia chamar outra coisa

119

(excepto Tobias) sem uma lei especial, tendo ele sido tornado
oficialmente cristão no seu dia, como os sinos o tinham sido no
deles, ainda que sem tamanha solenidade ou júbilo público.
Pela minha parte, confesso-me partidário da opinião de Toby Veck,
pois tenho a certeza de que não lhe faltaram oportunidades de a
formular correctamente. E o que quer que o Toby Veck tenha afirmado —
eu afirmo-o. E tomo lugar a seu lado, se bem que o seu lugar fosse
permanecer todo o dia (e que trabalho cansativo, aquele!) à porta da
igreja. Ele era realmente moço de recados, esse Toby Veck, e ali
esperava pelas tarefas.
E que lugar aquele no Inverno para esperar: ventoso, arrepiante,
gélido, glacial e de fazer bater o dente. Toby Veck bem o sabia! O
vento vinha da esquina espadanando (sobretudo o vento leste), como se
tivesse brotado dos confins da Terra expressamente para soprar sobre
Toby. Muitas vezes parecia chocar com ele mais depressa do que
contava, porque, arremetendo da esquina e ultrapassando Toby,
rodopiava novamente para trás como se gritasse: «Olha, cá está ele!».
Incontidamente, levantava-se então o seu aventalinho como as roupas
de um menino mau, e via-se a sua débil bengalinha lutar e debater-se
em vão na sua mão, e as suas pernas sofriam uma tremenda agitação, e
o pobre Toby todo de esguelha, virando-se ora para um lado ora para
outro, era de tal modo sacudido, esbofeteado, descomposto,
perturbado, empurrado e erguido que dir-se-ia faltar um passo para
que se desse um autêntico milagre, o de ser erguido no ar em corpo
como o são por vezes uma colónia de rãs ou de caracóis ou de outros
seres portáteis e novamente despejado, para grande espanto dos
nativos, nalgum canto do mundo onde os moços de recados fossem coisa
desconhecida.
Mas o tempo ventoso, apesar de o cansar tanto, era no fim de contas,

120

para Toby, uma espécie de entretém. Isso é um facto. Parecia-lhe não


esperar tanto por uma moeda quando havia vento como noutras alturas.
O facto de ter de lutar contra um elemento turbulento absorvia-lhe a
atenção e reanimava-o bastante quando começava a sentir fome e
desânimo. Também uma forte geada ou um nevão constituíam um
acontecimento e de certa forma parecia fazer-lhe bem — ainda que
fosse difícil dizer porquê, Toby! Os dias de vento, de geada, de
neve, e até de uma forte tempestade de granizo, eram dias de festa
para Toby!
O tempo húmido era o pior: aquela humidade fria e viscosa que o
envolvia como um sobretudo húmido, o único sobretudo que Toby tinha,
ou que poderia aumentar o seu conforto desaparecendo. Dias húmidos,
quando a chuva caía lenta, pesada e obstinadamente, quando a garganta
da rua, tal como a dele, sufocava com a neblina, quando os guarda-
-chuvas fumegantes passavam e voltavam a passar, rodopiando como
outros tantos piões, e esbarravam uns com os outros na rua apinhada
de gente, lançando um remoinho de desagradáveis salpicos, quando as
sarjetas murmuravam e as goteiras estavam cheias e barulhentas,
quando a humidade das pedras mais salientes e dos beirais da igreja
caía, ping, ping, ping, sobre Toby, transformando em lama, em menos
de nada, o feixe de palha em cima do qual ele estava. Esses, sim,
eram os dias que o punham à prova. Nessa altura podia realmente ver-
-se Toby, de cara esticada e desconsolada, olhando ansiosamente do
seu abrigo, num canto da parede da igreja (um abrigo tão exíguo que
de Verão nunca projectava no pavimento sombra mais larga que a de um
bordão de tamanho normal). Saindo porém, um minuto depois, para se
aquecer com algum exercício, saltitando de um lado para o outro uma
dúzia de vezes, conseguia mesmo assim reanimar-se e voltar mais

121

animado para o seu abrigo.


Chamavam-lhe Trotty pelo seu passo, que pretendia ser veloz, ainda
que não o conseguisse. Talvez que caminhando pudesse ser mais rápido;
é provável; mas, se lhe tirassem o seu passo, Trotty teria caído à
cama e morrido. Em tempo sujo salpicava-o de lama, custava-lhe uma
infinidade de sarilhos, poderia caminhar com muito mais facilidade,
mas essa era uma das razões porque se agarrava a ele tão tenazmente.
Era um velhote fraco, pequeno e magro, mas nas suas boas intenções
este Toby era um Hércules. Adorava ganhar o seu dinheiro. Gostava de
acreditar (Toby era pobre e não podia dar-se ao luxo de alienar um
gosto) que valia o pão que comia. Com um recado que valia um xelim ou
um penny, ou com um pequeno embrulho na mão, a sua coragem, sempre
grande, aumentava ainda mais. Enquanto saltitava, gritava ao carteiro
que ia à sua frente que se afastasse, acreditando piamente que, como
ordem natural das coisas, ele tinha de ultrapassá-lo inevitavelmente
e vencê-lo e tinha absoluta crença — não muitas vezes posta à prova —
de que era de transportar fosse o que fosse que ser humano
conseguisse levantar.
Assim, mesmo quando saía do seu esconderijo para se aquecer em dia
húmido, mesmo então Toby saltitava. Desenhando no lodaçal, com os
seus sapatos mal vedados, uma linha torta de pegadas enlameadas, e
bafejando as mãos geladas e esfregando-as, defendendo-se assim
parcamente do penetrante frio que entrava pelos buracos das suas
luvas de lã cinzenta, que só tinham dedo para o polegar e para o
resto dos dedos um espaço comum, de joelhos curvados e de bengala
debaixo do braço, Trotty ainda saltitava. E trotava ainda, quando
saía para a estrada, para olhar o campanário, quando ressoavam os
sinos.

122

Fazia essa caminhada várias vezes por dia, porque eles eram para ele
uma companhia; e quando lhes ouvia as vozes queria olhar o seu
abrigo, pensando na forma como eram movidos e nos martelos que lhes
batiam. Talvez sentisse mais curiosidade por eles por haver pontos de
semelhança entre os sinos e ele. Ambos ali estavam, com qualquer
tempo, aguentando as arremetidas do vento e da chuva, vendo apenas a
parte exterior de todas aquelas casas, nunca se aproximando dos
brilhantes lumes que se viam das janelas ou cujo fumo saía pelas
chaminés e incapazes de participar de qualquer das coisas boas que
eram constantemente entregues a fantásticos cozinheiros às portas de
serviço ou às grades das propriedades. Em muitas janelas apareciam e
desapareciam caras, por vezes caras bonitas, jovens, agradáveis;
outras vezes o contrário; mas Toby sabia tanto como os sinos (embora
muitas vezes especulasse sobre esses nadas, enquanto permanecia
ocioso pelas ruas) donde vinham ou para onde iam ou, quando os lábios
deles se moviam, se iriam dizer durante todo o ano uma palavra amável
a seu respeito.
Toby não era um casuísta (pelo menos que o soubesse), nem eu quero
dizer que, quando se começou a afeiçoar aos sinos e a tecer a
primeira tosca relação com eles transformando-a em algo de mais
delicada trama, tivesse feito uma a uma tais considerações ou que as
tenha passado em revista na sua mente. Mas o que quero dizer, e digo,
é que tal como as funções orgânicas de Toby cumprem os seus
objectivos, as do seu aparelho digestivo, por exemplo, faziam por seu
próprio atributo uma quantidade de operações que ele ignorava em
absoluto e cujo conhecimento o espantaria grandemente, assim também
as suas faculdades mentais, sem a sua autorização ou contributo,
desencadeavam todos estes mecanismos e molas e milhares de outros,
quando trabalhavam no sentido de o fazerem gostar dos sinos. E ainda

123

que tivesse empregado a palavra amor, não a teria retirado, embora


ela exprimisse escassamente o seu complexo sentimento. Porquanto,
sendo um homem simples, lhes conferia um carácter solene e estranho.
Eram tão misteriosos, sempre ouvidos e nunca vistos! Estavam lá tão
em cima, tão longe, possuíam um som tão forte e profundo que ele os
olhava com uma espécie de respeito! E por vezes quando olhava lá para
cima, para as sombrias janelas em arco da torre, esperava ver acenar-
-lhe algo que não um sino, ainda que tivesse sido sempre um o que ele
ouviu no carrilhão. Por tudo isto, Toby opunha-se indignado a um
certo rumor que pairava de que os sinos estavam assombrados, como se
isso implicasse estarem ligados a algo de mal. Resumindo, eles
estavam frequentemente nos seus ouvidos e frequentemente nos seus
pensamentos, mas sempre no seu elevado conceito; e muitas vezes
arranjava uma tal cãibra no pescoço, por ficar a olhar de boca aberta
para o campanário onde eles estavam, que de bom grado dava depois
mais uma ou duas trotadelas para a curar.
Era isso mesmo que ele estava a fazer, num dia frio, quando soou no
campanário a última badalada sonolenta das doze, enérgica como uma
monstruosa abelha, não de maneira nenhuma como uma abelha diligente!
— Hora de jantar, hem? — disse Toby, trotando de lá para cá, frente
à igreja. —Ah!
Toby tinha o nariz vermelho e as pálpebras muito vermelhas e
pestanejava muito e os ombros estavam muito próximos das orelhas, as
pernas estavam muito rígidas e todo ele evidenciava caminhar há muito
sob a face gelada do frio.
— Hora de jantar, hem? — repetia Toby, usando a luva da direita como
uma luva de boxe de criança e castigando o peito por estar frio. —
Ah-h-h-h!

124

Depois e durante um ou dois minutos deu uma trotadela em silêncio.


— Não há nada — disse Toby, recomeçando novamente, mas nesse momento
estacou o seu trote e, com ar de grande interesse e de certa
preocupação, apalpou todo o seu nariz cuidadosamente. Tinha pouco que
apalpar (não era lá um grande nariz) e depressa acabou.
— Pensei que tinha desaparecido — disse Toby recomeçando o seu
trote. — Mas afinal está bem. Acho que não podia queixar-me dele, se
se fosse embora. O mau tempo dá-lhe bem que fazer e tem muitíssimo
pouco a esperar, pois que eu nem sequer cheiro rapé. Pobrezito, tem
passado o seu mau bocado, nas melhores épocas, pois que quando se
apodera dum agradável aroma (o que raramente acontece), ele provém
geralmente do jantar de outra pessoa, que o traz do forno do padeiro.
Aquela reflexão lembrou-lhe outra que deixara inacabada.
— Não há nada de mais certo, na sua aparição, que a hora de jantar e
nada de menos certo do que o jantar. Essa é a grande diferença entre
eles. Levei tempo a descobri-lo. Pergunto-me se valeria a pena a
qualquer cavalheiro levar agora esta observação aos jornais ou ao
Parlamento!
Toby estava apenas a brincar, pois que abanou a cabeça em sinal de
autodepreciação.
— Oh, meu Deus! — disse Toby. — Cheios como estão de observações, os
jornais e o Parlamento! Aqui está o jornal da semana passada — tirou
do bolso um muito sujo e esticou o braço a todo o comprimento —,
cheio de observações! Gosto de saber as notícias como qualquer outro
— disse Toby, lentamente, dobrando-o num tamanho mais pequeno e
metendo-o novamente ao bolso —, mas ler agora o jornal, faço-o de mau
grado. Quase me assusta. Não sei ao que chegaremos, nós, os pobres.

125

Senhor, faz com que algo de melhor nos possa vir com a aproximação do
Ano Novo!
— Oh, pai, pai! — disse uma voz agradável, ali próximo.
Mas Toby, não a ouvindo, continuou a trotar para trás e para diante,
meditando à medida que avançava e falando de si para si.
— É como se não achássemos o caminho certo, como se não
conseguíssemos agir acertadamente ou não nos fizessem justiça — disse
Toby. — Eu cá por mim não tive grande instrução, quando era novo; e
não consigo perceber se andamos a fazer alguma coisa ao cimo da Terra
ou se não. Por vezes penso que sim, pelo menos um pouco; outras vezes
acho que estamos a mais. Fico por vezes tão confuso que nem consigo
ajuizar se há em nós algo de bom, ou se nascemos maus. Parece que
somos coisas horríveis e que trazemos montes de complicações. Sempre
se queixam de nós e estão sempre na defensiva a nosso respeito. Duma
maneira ou de outra, enchemos os jornais. E por falar em Ano Novo! —
disse Toby, tristonho. — Consigo conservar a coragem, em certas
alturas, tanto como qualquer outro e por vezes melhor do que muitos,
porque sou forte que nem um leão e nem todos o são, mas supondo que
não temos realmente direitos a um Novo Ano, supondo que somos
realmente intrusos...
— Ó pai, pai! — disse novamente a voz agradável. Desta vez Toby
ouviu. Partiu. Parou. Encurtando o olhar, que tinha estado dirigido
para longe, como se procurasse ser esclarecido no coração do ano que
se aproximava, encontrou-se cara a cara com a sua própria filha e
olhou-a no fundo dos seus olhos.
E que olhos brilhantes eram aqueles! Olhos que suportavam um mundo
de olhares antes que as suas profundezas fossem exploradas. Olhos

126

escuros que reflectiam os que neles se embrenhavam; não cintilantes,


ou a capricho da dona, mas com um clarão transparente, calmo, honesto
e paciente, que reclamava afinidade com aquela luz que o Céu criou.
Olhos que eram belos e sinceros e onde brilhava a esperança.
Esperança tão jovem e fresca, esperança tão alegre, vigorosa e
jovial, apesar dos vinte anos de trabalho e pobreza a que tinham
assistido. Tinham-se tornado como que uma voz para Trotty Veck e
diziam: «Acho que temos aqui algo que fazer!».
Trotty beijou os lábios da dona daqueles olhos e apertou entre as
mãos aquele rosto em flor.
— Olá, querida — disse Trotty. — Que há? Não te esperava hoje, Meg.
— Nem eu esperava vir, pai — exclamou a rapariga, acenando com a
cabeça e sorrindo enquanto falava. — Mas eis-me aqui! E não estou só,
não estou só!
— O quê, não queres dizer-me — observou Trotty olhando com
curiosidade um cesto coberto que ela trazia na mão — que tu...
— Cheire, querido pai — disse Meg. — Cheire só! Trotty ia levantar
logo o pano, cheio de pressa, quando ela interpôs alegremente a mão.
— Não, não, não — disse Meg, com uma alegria infantil.
— Afasta-o só um bocadinho. Deixa-me só levantar uma pontinha, só
uma pontinha pequerruchinha, sim — disse Meg juntando a palavra à
acção com a maior delicadeza e falando muito baixinho, como se
temesse ser ouvida por algo que estava dentro do cesto. — Olhe. E
agora? Que é isto?
Toby aspirou tão perto quanto possível da borda do cesto e exclamou
num rompante:
— Oh! Está quente!

127
— Está em brasa! — exclamou Meg. — Ah, ah, ah! Está a escaldar!
— Ah! ah! ah! — gargalhou Toby, dando uma espécie de pontapé. — Está
em brasa!
— Mas o que é, pai? — disse Meg. — Vá lá. Ainda não adivinhou o que
é. Tem de adivinhar o que é. Nem pensar em tirá-lo antes de adivinhar
o que é. Não tenha tanta pressa! Mais um momento! Mais um bocadinho
da cobertura. Adivinhe lá!
Meg estava assustada, não fosse ele adivinhar cedo de mais;
encolhia-se, ao mesmo tempo que lhe estendia o cesto, encurvando os
seus lindos ombros, encaracolando a orelha com a mão, como se fazendo
isso conseguisse tirar da boca de Toby a palavra certa. E continuava
a rir de mansinho.
Toby, entretanto, pôs as mãos nos joelhos, inclinou o nariz até ao
cesto e inspirou profundamente a tampa; durante esse processo o
sorriso rasgou-se na sua face mirrada, como se ele estivesse a inalar
gás hilariante.
— Ah! É muito bom — disse Toby. — Acho que são salpicões, não são?
— Não, não, não! — exclamou Meg, encantada. — Nada que se pareça com
salpicões!
— Não — disse Toby, depois de nova cheiradela. — É mais macio do que
os salpicões. É muito bom. A cada momento se torna melhor. É
demasiado categórico dizer que são pezinhos de porco. Não é?
Meg estava exultante. Ele não poderia afastar-se mais da verdade do
que afirmando que eram pezinhos de porco (excepto dizendo que eram
salpicões).
— Fígado? — disse Toby falando para consigo. — Não. Há nisto uma
suavidade que não corresponde a fígado. Pezinhos? Não. Não é
suficientemente suave para serem pezinhos. Falta-lhe a viscosidade
das cabeças de galo e sei que não são salsichas. Já te digo o que é.

128

São tripas!
— Não, não são! — exclamou Meg, num ímpeto de prazer. — Não são!
— Oh, mas que estou eu a pensar? — disse Toby retomando bruscamente
uma posição tão próxima da perpendicular quanto lhe era possível. —
Depois disto, nem do meu nome me vou lembrar. É bucho!
E era mesmo bucho. Meg, na sua grande alegria, replicou que ele
teria de dizer, dentro de meio minuto, que se tratava do melhor bucho
que jamais fora guisado.
— E agora — disse Meg, atarefando-se exultante com o cesto —, vou já
pôr a toalha, pai; porque trouxe o bucho numa tijela e embrulhei-a
num lenço de algibeira e se por uma vez desejo ser orgulhosa e
estendê-lo como se fosse uma toalha, chamando-lhe toalha, não há lei
que mo proíba, pois não, pai?
— Que eu saiba, não, minha querida — disse Toby. — Mas estão sempre
a inventar novas leis.
— E segundo aquilo que no outro dia lhe li no jornal, pai, sabe que
o juiz diz que nós, os pobres, devemos sabê-las todas. Ah, ah! Que
disparate! Meu Deus, como eles nos julgam espertos!
— Sim, minha querida — disse Trotty—; e gostariam muito daquele que
realmente as soubesse todas. Esse homem havia de engordar com o
trabalho que arranjasse e seria muito querido por todos os senhores
da região. Era mesmo assim!
— Comeria o seu jantar com apetite, fosse ele quem fosse, se ele
cheirasse assim — disse Meg alegremente. — Despache-se, porque também
tem batata quente e meio quartilho de cerveja recém-tirada, numa
garrafa. Onde é que janta, pai? Na estação ou nos degraus? Querido
pai, como somos importantes. Temos dois lugares à escolha!
— Hoje é nos degraus, querida — disse Trotty. — Nos degraus com

129

tempo seco. Na estação quando está húmido. Nos degraus há sempre


grande conveniência, porque nos podemos sentar, mas com humidade
fazem reumático.
— Então, aqui — disse Meg batendo as palmas, depois de um momento de
alvoroço —, aqui está tudo prontinho! Que bom aspecto que tem! Venha
pai! Venha!
Desde que descobrira o conteúdo do cesto, Trotty ficara de pé a
olhá-la (e a falar também) numa atitude abstracta que significava
que, sendo ela embora o objectivo dos seus pensamentos e dos seus
olhares (excluindo até o bucho), ele não pensava nela nem a via como
ela ali estava naquele momento, mas tinha perante os seus olhos um
esboço imaginário da cena ou do drama da sua vida futura. Despertado,
naquele momento, pelas suas incitações joviais, repeliu um
melancólico aceno de cabeça que se aproximava e trotou para junto
dela. No momento em que se curvava para se sentar, o carrilhão soou.
— Amen! — disse Trotty, tirando o chapéu e olhando para ele.
— Amen, aos sinos, pai? — exclamou Meg.
— Eles surgem como uma graça, minha querida — disse Trotty,
sentando-se. — Diriam algo de bom, se pudessem, tenho a certeza.
Muita coisa agradável me têm eles dito.
— Os sinos, pai? — disse Meg a rir, enquanto colocava a bacia, o
garfo e a faca na frente dele. — Bem!
— A mim parece-me, pequerrucha — disse Trotty, começando a comer com
grande energia. — E onde é que está a diferença? Se eu os ouço, que
interessa que falem ou não? Olha, Deus te abençoe, minha querida —
disse Toby apontando para a torre com o garfo e tornando-se mais
animado sob a influência do jantar —, por quantas vezes tenho ouvido
os sinos dizerem: «Toby Veck, Toby Veck, mantém a coragem, Toby! Toby
Veck,Toby Veck, mantém a coragem». Um milhão de vezes? Mais!

130

— Bom, eu nunca ouvi! — exclamou Meg.


Ela tinha pensado no assunto vezes sem conta, porque era o tema
constante de Toby.
— Quando as coisas vão muito mal — disse Trotty —, mas mesmo muito
mal, sabes, quase o pior possível, então dizem: «Toby Veck, Toby
Veck, o trabalho não tarda, Toby!». Assim.
— E por fim vem, pai — disse Meg, com um toque de tristeza na sua
voz agradável.
— Sempre — respondeu o inconsciente Toby. — Nunca falha.
Enquanto durava esta conversa, Trotty nunca interrompera o seu
ataque à saborosa carne que tinha na frente, cortava e comia, cortava
e bebia, cortava e mastigava e debicava ora a batata quente ora de
novo o bucho, com um prazer untuoso e persistente. Aconteceu porém
que, olhando a rua em redor — não fosse alguém espreitar a uma porta
ou janela à procura dum moço de recados —, ao completar a volta o seu
olhar pousou em Meg, que estava sentada na sua frente de braços
cruzados e ocupada apenas a observar a azáfama dele, com um sorriso
de felicidade.
— Oh, meu Deus perdoai-me! — disse Trotty, largando o garfo e a
faca. — Meg! Minha pomba! Porque é que não me fizeste ver o estúpido
que eu sou?
— Pai!
— Para aqui sentado — disse Trotty, numa explicação de
arrependimento —, a fartar-me, a empanturrar-me e a saciar-me, e tu
aí na minha frente, sem teres quebrado o jejum, nem querendo,
quando...
— Mas eu quebrei-o, pai — retorquiu a filha, a rir —, e quebrei-o
bem quebrado. Já jantei.

131

— Que disparate — disse Trotty. — Dois jantares no mesmo dia! Não é


possível! Podias dizer-me também que haverá dois dias de Ano Novo ao
mesmo tempo, ou que tive toda a vida uma cabeça de ouro e nunca a
mudei.
— Pai, apesar de tudo eu já comi o meu jantar — disse Meg,
aproximando-se dele. — E se continuar a comer o seu, dir-lhe-ei como
e onde e como lhe chegou o seu jantar e... e outra coisa ainda.
Toby parecia ainda incrédulo, mas ela olhava para a cara dele com os
seus olhos transparentes, e pousando-lhe a mão no ombro, fez-lhe
sinal para que comesse enquanto a carne estava quente. Trotty retomou
então a faca e o garfo e deitou-se à tarefa, mas muito mais
lentamente do que antes e abanando a cabeça, como se não estivesse
nada satisfeito consigo.
— Eu jantei, pai — disse Meg, após uma certa hesitação —, com... com
o Richard. A hora de jantar dele foi cedo e como ele trouxe o jantar
dele quando foi ver-me, nós... nós comemos juntos, pai.
Trotty bebeu um pouco de cerveja e deu um estalo com os lábios.
Depois disse: «Oh!», porque ela estava à espera.
— E o Richard diz, pai... — resumiu Meg e parou.
— O que é que o Richard diz, Meg? — perguntou Toby.
— O Richard diz, pai... — outra pausa.
— O Richard já anda a dizer isso há muito tempo — disse Toby.
— Diz ele, então, pai — prosseguiu Meg, levantando por fim os olhos
e falando numa voz trémula mas perfeitamente clara —, que já lá vai
quase outro ano e que é que ganhamos em esperar de ano para ano,
quando é tão improvável que alguma vez estejamos melhor do que agora?
Ele diz que agora somos pobres, pai, mas somos jovens, e que os anos

132

farão de nós velhos antes que demos por isso. Ele diz que se nós,
gente da nossa condição, esperarmos até termos caminho aberto, o
caminho será bem estreito (será o caminho vulgar), será a campa, pai.
Para um homem mais ousado que Trotty Veck, teria sido necessário
castigar bem a sua ousadia, para negar isto. Trotty ficou quieto.
— E como é duro, pai, envelhecermos e morrermos a pensar que nos
poderíamos ter acarinhado e ajudado um ao outro! Como é difícil, com
vidas como as nossas, amarmo-nos e sofrermos separados, vendo-nos
mutuamente trabalhar, modificar-nos, tornar-nos velhos e grisalhos.
Ainda que conseguisse ultrapassar isto e esquecê-lo (o que nunca
faria), ó meu querido pai, como seria duro ter um coração tão cheio
como o meu está agora e viver para vê-lo ser drenado gota a gota, sem
a compensação de um momento feliz dos da vida de uma mulher, para me
amparar e confortar e fazer-me sentir melhor!
Trotty continuava sentado e em silêncio. Meg enxugou os olhos e
disse em tom mais alegre, ou seja, com um sorriso aqui, e um soluço
ali, e acolá um soluço e um sorriso ao mesmo tempo:
— O Richard diz então, pai, que como o trabalho dele ficou desde
ontem assegurado por algum tempo e visto que eu o amo e há três anos
que não deixo de o amar (oh!, há mais tempo! Se ele soubesse!...),
poderia casar com ele no dia de Ano Novo, o melhor e o mais feliz dos
dias de todo o ano, diz ele, e aquele que traz de certeza boa sorte.
É um prazo curto, não é, pai? Mas eu não tenho fortuna a assegurar,
ou fatos de casamento a fazer, como as grandes senhoras, não é, pai?
Ele disse tanta coisa e disse-as à sua maneira, em tom tão forte e
decidido, mas sempre tão amável e terno, que eu disse que vinha falar
consigo, pai. E como me pagaram esta manhã (sem eu esperar) aquele

133

trabalho que eu fiz e como o pai ganhou tão pouco esta semana, e como
eu não podia deixar de desejar que houvesse algo que fizesse deste
dia como que um dia de festa, pai, bem como um dia caro e feliz para
mim, fiz um pequeno festim e comprei-lhe isto para lhe fazer a
surpresa.
— E vê lá como ele a deixa ali a arrefecer no degrau — disse uma
outra voz.
Era a voz do próprio Richard que tinha chegado até junto deles sem
darem por isso e ali se erguia perante pai e filha, olhando para
eles, com um rosto tão brilhante como o ferro em que o seu enérgico
martelo de forja malhava todos os dias. Era um jovem bonito, bem
constituído e vigoroso, de olhos brilhantes como gotas chamejantes
duma fornalha, cabelo negro que se encaracolava disperso sobre a
fronte morena e um sorriso... um sorriso que confirmava o elogio de
Meg acerca do seu estilo de conversa.
— Vêem como ele o deixa arrefecer no degrau? — disse Richard. — A
Meg não sabe do que ele gosta. Não é ela que sabe!
Trotty, todo ele cheio de entusiasmo e dinamismo, estendeu
imediatamente a mão a Richard e ia a dirigir-se-lhe com grande pressa
quando uma porta se abriu inesperadamente e um lacaio quase meteu o
pé no bucho.
— Saiam do caminho, vocês! Têm de estar sempre sentados nos nossos
degraus! Nunca chega a vez dos vizinhos, pois não? Saem do caminho,
ou não saem?
Falando com propriedade, aquela última pergunta era irrelevante,
porque eles já o tinham feito.
— Que é que há, que é que há? — inquiriu o senhor para quem a porta
fora aberta, saindo de casa num passo leve (esse compromisso
esquisito entre o andar e o meio trote), naquele em que um cavalheiro
já no doce outono da vida, usando botas novas, relógio de corrente e

134

roupa branca lavada, pode sair de sua casa, não só sem qualquer
quebra da sua dignidade, mas com uma expressão de quem tem
importantes e rendosos negócios noutro lado.
— Que há? Que há?
— Estamos sempre a pedir-te e a rogar-te, pelas tuas pernas
curvadas, que deixes em paz os nossos degraus! — disse o lacaio a
Trotty Veck com grande ênfase. — Porque é que não os deixas em paz?
NÃO CONSEGUES deixá-los em paz?
— Pronto! Já chega! Já chega! — disse o cavalheiro. — Tu aí! Moço! —
apontou com a cabeça para Trotty Veck.
— Vem cá. Que é isso? É o teu jantar?
— Sim, senhor — disse Trotty, deixando-o lá atrás, a um canto.
— Não o deixes ali — exclamou o cavalheiro. — Trá-lo para aqui.
Então, é isto o teu jantar?
— É sim, senhor — repetiu Trotty, olhando, com olhar fixo e boca
aguada, para um último pedaço de bucho, que reservara para uma última
e deliciosa trincadela e que o cavalheiro virava e revirava, agora
com a ponta do garfo.
Dois outros senhores tinham saído com ele. Um era um cavalheiro
desanimado e de meia-idade, de trajo modesto e de cara desconsolada,
que mantinha permanentemente as mãos nos bolsos, das suas estreitas
calças sal e pimenta, bolsos muito largos e dobrados para fora do
fato. Não estava particularmente bem escovado e lavado. O outro era
um cavalheiro bem constituído, insinuante, bem arranjado, de casaco
azul, com botões brilhantes e de gravata branca. Este cavalheiro
tinha a cara muito vermelha, como se uma porção indevida do sangue do
seu corpo tivesse sido espremida para a cabeça, o que talvez
explicasse o facto de ele ter o coração bastante frio.

135

Aquele que tinha a carne de Toby na ponta do garfo tratou o primeiro


pelo nome de Filer e ambos se aproximaram. Como o senhor Filer era
muito míope, viu-se obrigado a aproximar-se tanto do resto do jantar
de Toby, para poder ver o que era, que o coração de Toby lhe veio à
boca. Mas o senhor Filer não o comeu.
— Isto corresponde à descrição de um alimento de origem animal,
Alderman — disse Filer, dando-lhe pequenas pancadas com uma lapiseira
—, vulgarmente conhecido entre a classe operária deste país como
bucho.
Alderman riu e pestanejou, porque Alderman Cute era um tipo alegre.
E um tipo manhoso, também! Um tipo conhecedor. Pronto para tudo! Não
era tipo que se deixasse enganar. Sabia ler nos corações! Cute
conhecia-os. Acredito!
— Mas quem é que come bucho? — disse Filer olhando em volta. — O
bucho é, sem excepção, o menos económico e o mais ruinoso artigo de
consumo que os mercadores deste país podem exibir. Descobriu-se que a
perda numa libra de tripas, ao cozer, era sete oitavos de um quinto
maior do que qualquer outra substância animal, fosse ela qual fosse.
O bucho é mais dispendioso do que ananás de estufa. Tendo em conta o
número de animais abatidos anualmente, apenas dentro das tabelas de
mortalidade; e fazendo uma estimativa, por baixo, da quantidade de
bucho que conteriam as carcaças desses animais, razoavelmente bem
abatidos, acho que o desperdício dessa quantidade de bucho, se
cozido, alimentaria uma guarnição de quinhentos homens durante cinco
meses de trinta e um dias e ainda mais Fevereiro. Que desperdício,
que desperdício!
Trotty estava espantado e as pernas tremiam-lhe sob o seu peso.
Parecia que tinha feito morrer de fome uma guarnição de quinhentos
homens apenas por sua culpa.

136

— Quem é que come bucho? — disse o senhor Filer, amigavelmente. —


Quem é que come bucho?
Trotty fez uma triste vénia.
— És tu, não és? — disse o senhor Filer. — Digo-te uma coisa. Tiras
o bucho da boca de viúvas e órfãos, meu amigo.
— Espero que não, senhor — disse Trotty, brandamente. — Antes queria
morrer à míngua!
— Divide a quantidade de bucho já mencionada, Alderman — disse Filer
—, pelo número calculado de viúvas e órfãos existentes e o resultado
será um penny de bucho a cada um. Nem uma migalha ficava para este
homem. Consequentemente, ele é um ladrão.
Trotty estava tão sentido que nem o preocupou ver Alderman acabar
com o bucho. De certo modo até era um alívio ver-se livre dele.
— E tu, que dizes? — perguntou Alderman jocosamente ao cavalheiro de
cara vermelha e casaco azul. — Ouviste o nosso amigo Filer. Que dizes
tu?
— Que é que há a dizer? — retorquiu o cavalheiro. — Que é que se
pode dizer? Quem é que pode interessar-se por um indivíduo como este
— referia-se a Trotty —, em tempos tão degenerados como estes? Olhem
para ele. Que espécime! Os bons velhos tempos, os grandes velhos
tempos, os formidáveis velhos tempos! — Aqueles, sim, eram tempos de
camponeses intrépidos, e de tudo o mais. Aqueles eram realmente
tempos para tudo. Hoje em dia, tudo acabou. Ah! — suspirou o senhor
de rosto vermelho. — Os bons velhos tempos, os bons velhos tempos!
O cavalheiro não especificou a que tempos se referia especialmente,
nem sequer disse que se opunha aos tempos presentes, por uma
desinteressada consciência de que, ao trazê-lo cá, nada de muito
importante tinham feito.

137

— Os bons velhos tempos, os bons velhos tempos — repetia o


cavalheiro. — Que tempos aqueles! Foram únicos. Não vale a pena falar
de outros, ou discutir o que as pessoas são hoje. Não se chama a isto
tempos, pois não? Eu cá não. Deitem uma olhadela aos trajos do Strutt
e vejam o que era um moço, nesses bons velhos reinados ingleses.
— Não tinha, nos seus melhores momentos, uma camisa para o cobrir
nem uma meia para calçar e em toda a Inglaterra mal achava um legume
para comer — disse o senhor Filer. — Posso prová-lo com gráficos.
Mas mesmo assim o cavalheiro de cara vermelha enaltecia os bons
velhos tempos, os grandes velhos tempos, os formidáveis velhos
tempos. Não importava o que outra pessoa dissesse, ele continuava a
repetir numa fórmula estabelecida as palavras que se lhe referiam,
qual infeliz esquilo girando e girando na sua gaiola rotativa,
tocando no mecanismo e tendo do seu segredo possivelmente a mesma
percepção que este senhor de cara vermelha tinha do milénio passado.
Pode ser que a fé do pobre Trotty naqueles velhos tempos muito vagos
não estivesse completamente destruída, porque também ele naquele
momento se sentia bastante vago. Uma coisa, porém, era para ele
clara, no meio da sua desgraça: por mais que aqueles cavalheiros
pudessem diferir nos seus pormenores, as suas dúvidas daquela manhã e
de tantas outras manhãs eram bem fundadas.
«Não, não. Não podemos andar bem nem agir bem», pensou Trotty
desesperado. «Não há em nós algum bem. Nascemos maus!»
Mas Trotty tinha um coração de pai dentro de si e, apesar da sua
decisão, tinha caído em si e não podia suportar que Meg, no rubor da
sua breve alegria, visse a sua sina lida por aqueles avisados
senhores. «Deus a ajude», pensou o pobre Trotty. «Em breve vai ficar

138

a sabê-lo.» Por isso, fez sinal ansiosamente ao jovem ferreiro para


que a levasse, mas ele estava tão entretido a falar com ela baixinho,
a curta distância, que só se apercebeu daquele desejo ao mesmo tempo
que Alderman Cute. O Alderman ainda não dissera o que tinha a dizer,
mas também ele era um filósofo, ainda que prático (muito prático
até), e, como não tinha a mínima intenção de perder qualquer porção
da assistência, gritou: «Alto!».
— Como vocês sabem — disse Alderman dirigindo-se aos seus dois
amigos, com um sorriso de autocomplacência no rosto, que já lhe era
habitual —, eu sou um homem simples e prático e deito-me ao trabalho
de maneira simples e prática. É essa a minha maneira. Não há qualquer
mistério ou dificuldade na minha maneira de lidar com esta gente, se
os compreendermos e formos capazes de lhes falar na sua própria
linguagem. Tu, moço! Não me digas, a mim, meu amigo, ou a qualquer
outro, que nem sempre tiveste comida suficiente e da melhor, porque
eu sei muito bem. Já provei do teu bucho, sabes, e de mim não podes
caçoar. Sabes o que quer dizer «caçoar», hem? É a palavra certa, não
é? Ah, ah, ah! Valha-vos Deus — disse Alderman, virando-se novamente
para os seus amigos —, é a coisa mais fácil do mundo lidar com este
tipo de gente, se os compreendermos.
Aquele Alderman Cute era famoso pelo trato com gente do povo! Nunca
perdia a paciência com eles! Um cavalheiro acessível, afável,
brincalhão e sábio!
— Sabes, meu amigo — continuou Alderman —, diz-se muito disparate
acerca da necessidade... de «estar em apuros», percebes, é essa a
frase não é? Ah, ah, ah! E eu tenciono desmascará-lo. Está em moda
uma certa hipocrisia em torno da fome e eu tenciono desmascará-la. Só
isso! Valha-vos Deus — disse Alderman, virando-se para os seus amigos

139

novamente —, entre este tipo de gente pode desmascarar-se tudo, se se


souber como fazê-lo.
Trotty pegou na mão de Meg e enfiou-a no seu braço. Não parecia,
porém, saber o que estava a fazer.
— É a tua filha, hem? — disse Alderman, acariciando-a familiarmente
debaixo do queixo.
Sempre afável com a classe trabalhadora, aquele Alderman Cute! Sabia
o que lhes agradava! Nada orgulhoso!
— Onde está a mãe dela? — perguntou o respeitável senhor.
— Morreu — disse Toby. — A mãe dela lavava e passava roupa e foi
chamada ao Céu quando ela nasceu.
— Não foi para lavar e passar lá, creio eu — respondeu Alderman
jovialmente.
Toby poderia ou não ter conseguido separar a situação da sua mulher
no Céu das suas antigas tarefas, mas pergunta-se: se a senhora
Alderman a representaria como possuindo lá qualquer cargo ou estado?
— E tu andas a fazer-lhe a corte, não é? — disse o senhor Cute para
o jovem ferreiro.
— Ando — respondeu rapidamente Richard, que se sentiu picado com a
pergunta. — E vamos casar no dia de Ano Novo.
— O quê!? — gritou Filer em tom agudo. — Casar!
— Sim, patrão, estamos a pensar nisso — disse Richard. — Estamos com
bastante pressa, sabe? Isto é já para o caso de estar a pensar em
destruí-lo.
— Ah! — exclamou Filer num rugido. — De facto isso é de destruir,
Alderman, e tu vais fazer alguma coisa. Casar! Casar! A ignorância
dos princípios básicos da economia política, por parte desta gente, a
sua imprevidência, a sua maldade, brada aos Céus! Basta... olhem só
para este casal, olhem!

140

E então? Valia a pena olhar para eles. E o casamento parecia uma


coisa tão natural e justa, como necessidade eles tinham de os
contemplar.
— Pode um homem viver tanto como Matusalém — disse o senhor Filler —
, e trabalhar toda a sua vida em benefício desta gente, pode amontoar
números e factos, números e factos, números e factos aos montes, mas
não pode ter esperança de os persuadir de que não têm direito nem
razão de se casarem, nem de que não têm direito nem razão de ter
nascido. E isso sabemos nós que não têm. De há muito que reduzimos
isso a uma certeza matemática!
Alderman Cute estava muitíssimo divertido e levou o indicador à aba
do nariz como se dissesse aos dois amigos: «Olhem para mim! Ponham os
olhos num homem prático!», e chamou Meg para junto dele.
— Vem cá, pequena! — disse Alderman Cute.
O sangue jovem do namorado tinha-lhe subido de raiva, nos minutos
anteriores e estava disposto a não a deixar ir; mas, dominando-se,
deu um passo em frente quando Meg se aproximou e ficou ao lado dela.
Trotty manteve a mão dela no seu braço, mas olhava de rosto para
rosto, tão desnorteado como um homem adormecido, em sonhos.
— Agora, minha pequena, vou dar-te um ou dois bons conselhos — disse
Alderman, no seu modo brando. — Está no meu papel dar conselhos,
sabes, porque sou um magistrado. Sabes que sou um magistrado, não
sabes?
Meg respondeu timidamente: «Sim». Mas toda a gente sabia que
Alderman Cute era magistrado! E que magistrado tão activo! Quem era
tido pela opinião pública por mais brilhante que Cute?!
— Dizes que vais casar-te — continuou Alderman. —

141

Coisa muito imprópria e grosseira para uma pessoa do teu sexo! Mas
deixemos isso. Depois de casada vais ter discussões com o teu marido
e transformar-te-ás numa esposa infeliz. Podes pensar que não, mas
assim vai ser, porque assim to digo. Agora faço-te um aviso justo:
decidi destruir as esposas infelizes. Portanto, que não venhas à
minha presença. Vais ter filhos... rapazes. Esses rapazes crescerão
maus, claro, e andarão à solta pelas ruas, sem meias nem sapatos.
Toma cuidado, minha jovem amiga! Condená-los-ei sumariamente, um a
um, porque estou decidido a destruir rapazes sem sapatos nem meias. O
teu marido morrerá provavelmente jovem e deixar-te-á com um bebé.
Serás expulsa da casa e vaguearás pelas ruas. Não passes junto de
mim, minha querida, porque estou decidido a destruir todas as mães
que vagueiam. Estou decidido a destruir todas as espécies e tipos de
mães jovens. Não penses alegar como desculpa a doença e as crianças.
Comigo não! Porque estou disposto a acabar com todos os doentes e
crianças (espero que conheças o serviço religioso, mas receio bem que
não)! E se tentares, ingrata, desesperada, impiedosa e
fraudulentamente afogar-te, ou enforcar-te não terei de ti qualquer
piedade, porque decidi destruir todos os suicidas! Se há alguma coisa
— disse Alderman com o seu sorriso de auto-satisfação — da qual possa
dizer que estou decidido mais do que a qualquer outra, essa é
destruir o suicídio. Por isso não o experimentes. É assim que se diz
não é? Ah, ah! Agora entendemo-nos.
Toby não sabia se devia estar angustiado ou contente, vendo Meg
ficar mortalmente pálida e largar a mão do namorado.
— Quanto a ti, meu néscio — disse Alderman, virando-se para o jovem
ferreiro ainda com mais jovialidade e lhaneza —, para que é que
pensas que te vais casar? Para que te queres casar, meu palerma? Se

142

eu fosse um tipo jovem e forte como tu, tinha vergonha de ser tão
maricas que me fosse coser às saias duma mulher! Ela vai fazer-se uma
velha, antes que tu sejas um homem de meia-idade! E que bonita figura
vais fazer então com uma mulher desmazelada e um rancho de filhos
escanzelados, atrás de ti, por onde quer que vás!
Oh, ele sabia bem como meter a ridículo a gente do povo, aquele
Alderman Cute!
— Pronto! Muda de opinião — disse Alderman — e arrepende-te. Não
faças o disparate de casar no dia de Ano Novo. Antes do próximo dia
de Ano Novo já deves pensar de maneira muito diferente. Um jovem
bonito como tu, com todas as raparigas atrás de ti. Pronto! Vai-te lá
embora!
Eles lá se foram. Não de braço dado, ou de mão na mão, ou trocando
olhares brilhantes, mas ela lacrimosa e ele triste e cabisbaixo. Eram
estes, então, os corações que tinham feito Toby recuperar da sua
fraqueza, ultimamente? Não, não. O Alderman (abençoado seja!) tinha-
-os deitado abaixo.
— Já que aqui estás — disse Alderman a Toby —, levas-me uma carta.
Consegues ser rápido? És velho.
Toby, que tinha estado muito estupidamente a seguir Meg com o olhar,
encontrou maneira de murmurar que era muito rápido e muito forte.
— Que idade tens? — indagou Alderman.
— Tenho quase sessenta, senhor — disse Toby.
— Oh, este homem já ultrapassou de longe a média da idade, sabem —
exclamou o senhor Filer, como se isto fosse de mais para o que a sua
paciência ainda podia suportar.
— Acho que estou a mais, senhor — disse Toby. — Esta manhã bem tive
dúvidas. Valha-me Deus!

143
Alderman atalhou, dando-lhe a carta que tinha no bolso. Toby devia
também receber um xelim; mas como o senhor Filer demonstrou
claramente que nesse caso ele roubaria um determinado número de
pessoas em nove pennies e meio cada, recebeu apenas seis pennies e
achou-se assim muito bem pago.
Alderman deu então o braço aos seus amigos e afastou-se leve que nem
uma pena; mas imediatamente voltou atrás, sozinho, como se se tivesse
esquecido de dizer alguma coisa.
— Moço de recados! — disse Alderman.
— Sim, senhor? — respondeu Toby.
— Toma cuidado com a tua filha. É demasiado bonita.
«Até a sua beleza é roubada a alguém, acho eu», pensou Toby, olhando
para os seis pennies que tinha na mão e pensando no bucho. «Ela deve
ter roubado quinhentas senhoras, um sopro de beleza a cada uma, não
me admira. É horrível!»
— Ela é demasiado bonita, meu velho — repetiu Alderman. — O mais
certo é acabar mal, estou mesmo a ver. Toma nota no que eu digo. Olha
por ela! — E dizendo aquilo afastou-se novamente.
— De toda a maneira está mal. Está sempre mal! — disse Trotty
torcendo as mãos. — Nascemos maus. Não há aqui nada a fazer!
Os sinos começaram a badalar sobre ele, quando acabou de proferir
estas palavras. Plenos, fortes e sonoros... mas sem encorajamento.
Nem pitada.
— O som mudou — exclamou o velho, ao ouvi-los. — Não há nele uma
palavra sequer de tudo aquilo que imaginei. E porque é que haveria?
Nada tenho a ver com o Ano Novo, nem com o velho. Quero é morrer!
Mesmo assim os sinos, repicando as suas variações, faziam o próprio

144

ar girar. Destruam-nos, destruam-nos! Os bons velhos tempos! Os


factos e os números, os factos e os números! Destruam-nos, destruam-
-nos! Se alguma coisa eles diziam era isto, e disseram-no até fazer
titubear o juízo de Toby.
Apertou a cabeça tonta entre as mãos, como para impedir que
estourasse. Essa foi uma atitude oportuna, porque numa delas deu com
a carta e, lembrando-se assim da sua tarefa, começou mecanicamente no
seu trote habitual e afastou-se a trotar.
Página em branco
Segundo quarto

A carta que Toby recebera de Alderman Cute era dirigida a um homem


importante, na zona importante da cidade. Na zona mais importante da
cidade. Devia ser a parte mais importante da cidade, pois que era
frequentemente chamada «o mundo» pelos seus habitantes.
A carta parecia realmente mais pesada, na mão de Toby, do que
qualquer outra carta. Não porque Alderman a tivesse selado com um
grande brasão e sem lacre, mas pelo pesado nome no sobrescrito e pelo
peso de ouro e prata que a ele estava ligado.
«Como é diferente de nós!», pensou Toby com toda a simplicidade e
sinceridade, ao olhar o endereço. «Se nas listas de óbitos dividirem
as tartarugas vivas pelo número de senhores que podem comprá-las, ele
não rouba o quinhão dele a ninguém! E quanto a tirar o bucho da boca
de alguém... nem pensar!»
E, com a reverência devida a tão excelsa personagem, Toby interpôs a
ponta do seu avental entre os seus dedos e a carta.
— Os filhos dele — e ao dizer isto uma névoa subiu-lhe aos olhos —,
as suas filhas... poderão ser conquistadas e desposar cavalheiros,
podem ser mães e esposas felizes, podem ser lindas como a minha
querida M... e...
Não conseguiu acabar o nome. A última letra ficou-lhe na garganta
como se fosse do tamanho do alfabeto.

147

«Não faz mal», pensou Trotty. «Eu sei o que quero dizer e isso
basta-me.» E, ruminando estas palavras de conformação, continuou a
trotar.
Havia naquele dia uma forte geada. O ar estava revigorante, fresco e
transparente. O Sol de Inverno, ainda que sem força para aquecer,
espreitava radiosamente o gelo, que não conseguia derreter, fazendo-o
resplandecer. Noutra altura Trotty poderia ter extraído do Sol de
Inverno uma lição sobre o homem pobre, mas já ultrapassara essa fase.
Aquele dia ainda era de ano velho. O ano paciente suportara as
censuras e os desmandos dos seus caluniadores e cumprira fielmente a
sua missão. Primavera, Verão, Outono e Inverno. Trabalhara durante
toda a sua vida e pousava agora a cabeça para morrer. Ele próprio já
fora de qualquer esperança, de qualquer impulso forte, de qualquer
felicidade activa, mas ainda activo mensageiro de muitas alegrias
para outros, apelava no seu declínio para que lembrassem os seus dias
de labuta e as suas horas de paciência e para morrer em paz. Trotty
podia ter lido no ano que morria a alegoria do homem pobre, mas já
ultrapassara essa fase.
E seria só ele? Ou teria o mesmo apelo sido feito em vão, durante
setenta anos, aos trabalhadores ingleses?!
As ruas estavam cheias de movimento e as lojas estavam alegremente
decoradas. O novo ano era esperado como um novo herdeiro para o
mundo, com presentes, boas-vindas e alegria. Havia livros e
brinquedos para o Ano Novo, brilhantes adornos para o Ano Novo,
vestidos para o Ano Novo, projectos de sorte para o Ano Novo e novas
invenções para passar o tempo. A sua vida estava parcelada em
almanaques e agendas, já naquele momento se sabia com antecedência
das suas luas, das estrelas e das marés, todo o funcionamento das
estações,dos dias e das noites, estava calculado com a mesma precisão
148

com que o senhor Filer fazia contas com homens é mulheres.


O Ano Novo, o Ano Novo. Ano Novo por toda a parte! Já se olhava o
ano velho como se morto estivesse e os seus resultados vendiam-se
baratos, como os haveres de um marinheiro afogado, que ficassem a
bordo. As suas modas eram as do ano passado e eram sacrificadas já
antes dele expirar. Os seus tesouros eram mero lixo comparados com as
riquezas do seu sucessor que agora ia nascer!
Trotty não tinha, pensava ele, qualquer quinhão, no velho ou no novo
ano.
«Destruam-nos, destruam-nos! Factos e números, factos e números!
Bons velhos tempos, bons velhos tempos! Destruam-nos, destruam-nos!»
Aquela era a medida do seu trote e a mais nenhuma se adaptaria.
Mas mesmo aquela, melancólica como era, o conduziu a seu tempo ao
fim da caminhada: a mansão de Sir Joseph Bowley, membro do
Parlamento.
A porta foi aberta por um lacaio. E que lacaio! Não do tipo de Toby.
Aquilo era outra coisa! A sua função era levar recados, porém não era
a mesma de Toby.
Este lacaio sofreu fortes palpitações antes de poder falar, porque
se cansara saindo despreocupadamente da sua cadeira, sem ter tido
tempo de pôr primeiro as ideias em ordem. Quando conseguiu encontrar
a voz — o que lhe levou certo tempo, devido ao caminho que ela tinha
de percorrer, escondida sob uma carga de carne —, disse num grosso
murmúrio:
— De quem é?
Toby respondeu-lhe.
— Vais lá levá-lo tu — disse o lacaio, apontando para uma sala ao
fundo dum longo corredor, que se estendia a partir dum átrio. — Neste
dia do ano, entra tudo. Vens mesmo a tempo, porque a carruagem está

149

já à porta e eles só vêm à cidade por umas horas e de propósito.


Toby limpou os pés (que estavam já completamente secos) com grande
cuidado e tomou o caminho que lhe fora indicado, observando, à medida
que caminhava, que era uma enorme casa, mas silenciosa e com os
móveis cobertos como se a família estivesse para o campo. Bateu à
porta e lá de dentro responderam-lhe que entrasse; assim fez e
encontrou-se numa espaçosa biblioteca, onde a uma mesa coberta de
dossiers e de papéis estavam uma imponente senhora de touca e um
senhor não muito imponente vestido de preto, que escrevia o que ela
ditava, enquanto outro senhor mais velho e muito mais altivo, cujo
chapéu e bengala estavam pousados sobre a mesa, passeava de um lado
para o outro, com uma mão no peito, olhando complacentemente de vez
em quando para o seu retrato, em tamanho natural, em tamanho mesmo
natural, que estava suspenso sobre o fogão de sala.
— Que é isso? — disse este último senhor. — Senhor Fish, pode ter a
bondade de atender?
O senhor Fish pediu desculpa e, tirando a carta a Toby, entregou-a
com grande deferência.
— É do senhor Alderman Cute, Sir Joseph.
— É tudo? Não trazes mais nada, moço? — indagou Sir Joseph.
Toby respondeu que não.
— Não trazes nenhuma conta, nem nenhum pedido de qualquer tipo
dirigido a mim (o meu nome é Sir Joseph Bowley) e da parte seja de
quem for? — disse Sir Joseph. — Se o tens apresenta-mo. Está ali um
livro de cheques ao lado do senhor Fish. Não quero deixar nada para o
Ano Novo. Qualquer espécie de conta é paga nesta casa no fim do ano
velho, para que se a morte viesse, vie... —
— Cortar — sugeriu o senhor Fish.

150

— Desfazer, senhor — replicou Sir Joseph, com grande aspereza —, a


corda da existência, os meus negócios seriam encontrados, assim o
espero, em boa ordem.
— Meu caro Sir Joseph! — disse a senhora, que era muito mais nova do
que o cavalheiro. — Mas que horror!
— Minha cara Lady Bowley — respondeu Sir Joseph, estendendo-se de
vez em quando na profundidade das suas observações —, nesta altura do
ano devemos pensar em... em nós. Devemos olhar para as nossas... as
nossas contas. Devíamos sentir que cada volver de um período tão
recheado de acontecimentos no capítulo das transacções humanas
envolve um tema de profunda gravidade entre o homem e o seu... e o
seu banqueiro.
Sir Joseph pronunciou estas palavras como se sentisse a profunda
moralidade do que estava a dizer e como se desejasse que até mesmo
Trotty pudesse ter a oportunidade de se valorizar com aquela
prelecção. Possivelmente já tinha esse fim em vista quando se absteve
de quebrar o selo da carta e ao dizer a Trotty que esperasse um
momento.
— Minha senhora, desejáveis que o senhor Fish mandasse dizer que...
— notou Sir Joseph.
— Creio que o senhor Fish já disse — respondeu a senhora, deitando
uma olhadela à carta. — Mas, por minha fé, Sir Joseph, parece-me que
não posso deixá-la seguir. É-me tão querida.
— O quê? — inquiriu Sir Joseph.
— A caridade, meu amor. Só concedem dois votos por uma contribuição
de cinco libras. Verdadeiramente monstruoso!
— Minha querida Lady Bowley — retorquiu Sir Joseph —, surpreendeis-
-me. Será o prazer do sentimento em proporção ao número de votos, ou
será para um espírito bem formado proporcional ao número de candida-

151

tos e o estado de espírito geral a que o facto de angariar votos os


reduz? Será que não há qualquer entusiasmo e do melhor no facto de se
dispor apenas de dois votos num conjunto de cinquenta pessoas?
— Para mim não, confesso — respondeu a senhora. — É enfadonho e além
disso uma pessoa pode fazer bem aos seus conhecidos, mas vós sois o
Amigo dos Pobres, sabeis, Sir Joseph. Vós pensais de maneira
diferente.
— Eu sou o Amigo dos Pobres — observou Sir Joseph, deitando um olhar
ao pobre ali presente. —Assim posso ser chamado sarcasticamente.
Assim sou chamado sarcasticamente. Mas outro título não peço.
«Deus o abençoe, nobre homem!», pensou Trotty.
— Por exemplo, eu não concordo com este Cute — disse Sir Joseph,
mostrando a carta. — Não concordo com o partido do Filer. Não
concordo com nenhum partido. O homem pobre, meu amigo, não tem nada a
ver com coisas dessas. O homem pobre, meu amigo, dentro da minha
zona, é assunto que me diz respeito. Nenhum homem ou grupo de homens
tem o direito de interferir entre mim e o meu amigo. Esta é a posição
que eu assumo. E assumo uma... uma atitude paternal para com o meu
amigo. Eu digo: «Meu bom amigo, tratar-te-ei paternalmente».
Toby escutava com grande seriedade e começou a sentir-se mais à
vontade.
— Só tens a ver, meu amigo — prosseguiu Sir Joseph, olhando
abstractamente para Toby —, na vida só tens que ver comigo. Não tens
de te preocupar a pensar seja no que for. Eu pensarei por ti, eu sei
o que é o teu bem. Eu sou o teu eterno pai. Assim é a vontade da
Providência omnisciente! O desígnio da tua criação é assim, não que
te embriagues, que comas e bebas excessivamente e que associes
brutalmente a comida a todas as tuas alegrias — Toby pensou com

152

remorso no bucho —, mas que sintas a dignidade do trabalho. Caminha


direito ao ar alegre da manhã e... e espera aí. Vive na dificuldade e
na temperança, sê respeitador, exercita a tua autoanulação, cria a
tua família com pouco mais que nada, paga a tua renda tão
regularmente como batem as badaladas do relógio, sê pontual nos teus
negócios (e dou-te um bom exemplo: poderás ver o meu secretário
particular, sempre com um cofre na sua frente), e podes confiar em
mim como teu amigo e pai.
— Belos filhos, na verdade, Sir Joseph! — disse a senhora, com um
estremecimento. — Reumatismos e febres, pernas aleijadas e asmas e
todo o género de horrores!
— Minha senhora — replicou Sir Joseph, solenemente —, não só eu sou
o amigo e pai dos pobres, não só de mim é que têm de receber o
incentivo, mas no dia do pagamento do trimestre ele pôr-se-á em
contacto com o senhor Fish. Todos os dias de Ano Novo, eu e os meus
amigos beberemos à sua saúde. Uma vez em cada ano eu e os meus amigos
a ele nos dirigiremos com a maior ternura. Talvez até uma vez na vida
ele receba (em público, na presença da alta sociedade inglesa) uma
bagatela de um amigo. E quando, já abandonado por estes estímulos e
pela dignidade do trabalho, baixe à sua confortável campa, então,
minha senhora — aqui Sir Joseph assoou-se —, serei, da mesma forma,
um amigo e um pai para os seus filhos.
Toby estava muitíssimo comovido.
— Oh, Sir Joseph, tendes uma família agradecida! — exclamou a
esposa.
— Minha senhora — disse Sir Joseph em tom majestático —, a
ingratidão é o notório pecado desta classe. Não espero outra paga.

153

«Ah, nascemos maus!», pensou Toby. «Nada há que nos abrande.»


— O que é humano fazer-se, eu faço-o — prosseguiu Sir Joseph. —
Cumpro o meu dever como amigo e pai dos pobres e empenho-me em educá-
-los, inculcando-lhes em todas as ocasiões a grande lição de moral de
que essa classe precisa e que é a completa dependência da minha
pessoa. Nada tem a ver com... com eles próprios. Se pessoas más e
insidiosas lhes disserem o contrário e se tornarem impacientes e
insatisfeitos e culpados de insubordinação e de negra ingratidão (o
que certamente é o caso), mesmo assim sou seu amigo e pai. Assim está
designado. É esta a natureza das coisas.
Com este espírito, abriu a carta de Alderman e leu.
— Muito delicada e atenciosa, com certeza! — exclamou Sir Joseph. —
Minha senhora, o Alderman tem a bondade de me lembrar que teve «a
subida honra» (ele é muito bom) de me encontrar em casa do nosso
amigo comum, o banqueiro; e faz-me o favor de me perguntar se me
agradaria destruir o Will Fern.
— Agradaria muito — respondeu Lady Bowley. — Esse é o pior de todos
eles! Deve ter cometido um roubo, não foi?
— Oh, não — disse Sir Joseph referindo-se à carta. — Não foi bem.
Foi quase. Não foi bem. Veio para Londres, segundo parece, procurar
emprego (tentando melhorar a vida, segundo ele diz) e, ao ser
encontrado de noite a dormir num alpendre, foi preso preventivamente
e levado no dia seguinte à presença de Alderman. O Alderman observa,
e muito bem, que está decidido a pôr fim a este estado de coisas e
que se for do meu agrado aniquilaremos o Will Fern. Pela parte dele
agrada-lhe.
— Que ele sirva de exemplo, sem dúvida — respondeu a senhora. — No
Inverno passado, quando ensinei recorte e furos de ilhó aos homens e

154

rapazes da aldeia, como um belo entretém para o serão, e pus em


música no novo sistema os seguintes versos:

O let us love our occupations


Bless the squire and his relations
Live upon our daily rations
And always know our proper stations
(Nota da tradutora: Amemos as nossas tarefas / Bendigamos o morgado e
os seus parentes / Vivamos com o nosso quinhão diário / E conheçamos
sempre o nosso lugar).

para eles cantarem, esse mesmo Fern (agora me lembro dele) levou a
mão ao chapéu e disse: «Peço-lhe humildemente perdão, minha senhora,
mas não serei eu diferente duma mocetona?». Já esperava aquilo,
claro. Quem é que pode esperar outra coisa senão insolência e
ingratidão daquele tipo de gente? Mas isso não vem agora ao caso. Sir
Joseph! Que ele sirva de exemplo!
— Hum! — tossiu Sir Joseph. — Senhor Fish, quer ter a bondade de
tomar nota...
Imediatamente o senhor Fish pegou na caneta e escreveu o que Sir
Joseph ditou.
— Particular. Meu caro senhor. Agradeço-lhe profundamente a sua
gentileza, acerca do assunto dum tal William Fern, do qual, lamento
acrescentar, nada de favorável tenho a dizer. Sempre me considerei
uniformemente como seu pai e amigo, mas retribuiu-me (é um caso
comum, lamento dizê-lo) com ingratidão e uma oposição constante aos
meus planos.É um espírito rebelde e turbulento. O seu carácter não
suportará uma investigação. Nada o convencerá a ser feliz quando
podia sê-lo. Nestas circunstâncias, parece-me, tenho para mim que,
quando ele voltar à sua presença (como me informou que fará amanhã,
durante o seu inquérito e creio que nesse ponto se pode confiar
nele),
155

a sua condenação, por um pequeno período, por vagabundagem, seria um


serviço prestado à sociedade e seria um bom exemplo para o país onde
(por aqueles que, segundo bons e maus relatórios, sabemos serem os
amigos e os pais dos pobres, bem como e em vista disso duma maneira
geral pela própria classe transviada) os exemplos são tão
necessários. E sou de vossa excelência, etc, etc.
»Parece — notou Sir Joseph depois de assinar a carta e quando o
senhor Fish estava a selá-la — realmente que assim estava prescrito.
Ao terminar o ano, saldo as minhas contas e fecho o balanço, até com
William Fern!
Trotty, que de há muito era reincidente, e estava muito abatido, deu
um passo em frente com uma cara lastimável, para aceitar a carta.
— Com os meus cumprimentos e agradecimentos — disse Sir Joseph. —
Ponto final!
— Ponto final! — repetiu o senhor Fish.
— Talvez tenhas ouvido — disse Sir Joseph profeticamente —, algumas
observações que fui levado a fazer atendendo ao solene período em que
estamos e ao dever que nos é imposto de resolvermos os nossos
assuntos e de estarmos preparados. Já viste que eu não me escudo por
detrás da minha elevada posição social, mas que o senhor Fish, aquele
senhor, tem à mão um livro de cheques e está aqui para me
possibilitar recomeçar do princípio e entrar com as contas em dia na
nova época que temos na nossa frente. E tu, meu amigo, podes jurar
sobre o teu coração que também fizeste os teus preparativos para o
novo ano?
— Receio bem, senhor — gaguejou Trotty, olhando para ele
humildemente —, receio estar um pou... pouco atrasado em relação ao
mundo.
— Atrasado em relação ao mundo?! — repetiu Sir Joseph Bowley, num
tom terrivelmente distinto.

156

— Receio, senhor — titubeou Trotty —, que haja aí uns dez ou doze


xelins em atraso à senhora Chickens-talker.
— À senhora Chickenstalker! — repetiu Sir Joseph no mesmo tom que
anteriormente.
— Numa loja, senhor — exclamou Toby —, de comércio geral. E também
ai... algum dinheiro de rendas. Muito pouco. Não devíamos estar a
dever, eu sei, mas temos sido realmente obrigados a isso pelas
dificuldades!
Sir Joseph olhou para a sua esposa e para o senhor Fish e para
Trotty, uns após outros, por duas vezes. Fez depois um gesto
desesperançado com as duas mãos ao mesmo tempo, como se desistisse de
tudo ao mesmo tempo.
— Como pode um homem, mesmo entre esta raça de imprevidentes e de
impossíveis, um velho, um homem já grisalho, olhar o ano novo de
frente com os seus assuntos neste estado. Como pode ele deitar-se à
noite na sua cama e levantar-se de manhã e... Pronto! — disse,
virando as costas a Trotty. — Leva a carta. Leva a carta!
— Eu desejava ardentemente que as coisas se passassem doutra maneira
— disse Trotty, ansioso por se desculpar. — Temos tentado duramente.
Com Sir Joseph sempre a repetir «Leva a carta, leva a carta!», o
senhor Fish não só a repetir a mesma coisa mas reforçando o pedido
empurrando o portador para a porta, nada mais lhe restava que fazer
uma vénia e sair daquela casa. Na rua puxou o velho chapéu para a
frente para esconder o desgosto que sentia de não ter nada a que se
agarrar fosse onde fosse, no ano novo.
Nem sequer levantou o chapéu para olhar para o campanário quando, de
regresso, chegou junto da velha igreja. Por hábito, parou ali por um
momento e apercebeu-se de que estava a escurecer e de que acima dele
se erguia o campanário no meio do ar fusco. Sabia também que os sinos

157

iriam repicar imediatamente e que na sua imaginação eles lhe soavam


como vozes nas nuvens. Mas ainda mais se apressou para entregar a
carta a Alderman e sair dali antes que eles começassem, porque temia
ouvi-los acrescentar: «Amigos e pais, amigos e pais», à lengalenga
que já tinham tocado antes.
Por isso Trotty despachou-se o mais depressa possível da sua tarefa
e desatou a trotar para casa. Mas com o seu passo, do qual o mínimo
que se poderia dizer é que era desajeitado, e com o chapéu que não
ajudava nada, esbarrou com alguém em menos de um ai e foi atirado a
cambalear para a estrada.
— Peço-lhe desculpa! — disse Trotty, tirando o chapéu muito
perturbado e enfiando a cabeça numa espécie de favo entre o chapéu e
a aba rasgada. — Espero não o ter magoado.
Quanto a magoar alguém... Toby não era precisamente um Sansão. Era
mais provável que alguém o magoasse e realmente ele tinha voado para
a estrada como um volante. Porém ele tinha uma tal opinião da sua
própria força que estava realmente preocupado com a outra parte e
disse novamente:
— Espero não o ter magoado.
O homem com quem ele tinha chocado, um homem tisnado do sol,
vigoroso, com aspecto de camponês, de cabelo grisalho e queixo duro,
fixou-o por um momento, como se desconfiasse que ele estava a
brincar. Mas, tendo-se certificado da sua boa-fé, respondeu:
— Não, amigo. Não me magoou.
— Espero que à criança também não — disse Trotty.
— Nem à criança — retorquiu o homem. — Agradeço-lhe muito.
Ao dizer isto deitou um olhar à menina que levava a dormir, nos

158

braços; e, fazendo-lhe sombra à cara com a ponta do pobre lenço que


levava ao pescoço, prosseguiu lentamente o seu caminho.
O tom em que ele disse «Agradeço-lhe muito» tocou profundamente o
coração de Trotty. Estava tão exausto e com tantas dores nos pés, tão
sujo da caminhada e olhava em volta tão desamparado e estranho, que
para ele era um consolo alguém poder agradecer-lhe ainda que por
muito pouco. Toby ali ficou a olhá-lo, enquanto ele se afastava
cansado e a custo, com o braço da criança agarrando-lhe o pescoço.
Trotty ficou a olhar, sem nada mais ver da rua, para aquela figura
de sapatos gastos (agora para a própria sombra, fantasma dos
sapatos), para as polainas de couro rústico, para a blusa ordinária
de operário, para o chapéu largo e descaído e para o braço da criança
agarrando-lhe o pescoço.
Antes de se embrenhar na escuridão o caminhante parou. Olhou em
volta e, vendo Trotty ainda ali parado, pareceu indeciso se havia de
continuar ou de voltar para trás. Depois de ter avançado e depois
voltado atrás, decidiu-se por esta última e Trotty andou meio caminho
ao seu encontro.
— Talvez me saiba dizer — disse o homem com um pálido sorriso —, e
se souber com certeza que mo diz e eu antes quero perguntar-lhe a si
do que a outro, onde mora Alderman Cute.
— É aqui perto — respondeu Toby. — Eu mostro-lhe onde é a casa, com
todo o prazer.
— Eu era para ir ter com ele a outro lado, amanhã — disse o homem,
acompanhando Toby —, mas sinto-me mal sob suspeita e quero ilibar-me
e ficar livre para ir procurar o meu pão... nem sei onde. Por isso
talvez ele me perdoe ir a casa dele esta noite.

159

— Não é possível — exclamou Toby com um sobressalto — que o seu nome


seja Fern!
— Hã?! — exclamou o outro, virando-se para ele, atónito.
— Fern! Will Fern! — disse Trotty.
— É esse o meu nome — respondeu o outro.
— Olhe, então — disse Trotty, agarrando-lhe no braço e olhando
cautelosamente em redor —, por amor de Deus, não vá a casa dele! Ele
destrói-o, tão certo como você ter nascido! Venha por este beco e eu
dir-lhe-ei o que quero dizer. Não vá ter com ele.
O seu novo conhecido olhava-o como se ele fosse doido, mas mesmo
assim acompanhava-o. Quando estavam ao abrigo de olhares, Trotty
contou-lhe o que sabia, a reputação que lhe tinham atribuído e tudo
sobre o assunto.
O sujeito da história ouviu-a com uma calma surpreendente. Não
contradisse nem interrompeu uma vez sequer. De vez em quando assentia
com a cabeça, mais como se corroborasse uma velha história gasta do
que se a refutasse, e por uma ou duas vezes atirou o seu chapéu para
trás e passou a mão sardenta pela testa, onde parecia estarem
gravados em miniatura todos os sulcos que ele já lavrara. Mas nada
mais.
— No fundo é verdade — disse ele —, senhor, eu podia peneirar aqui e
além, mas deixem estar. Que mal é que tem? Fui contra os planos
deles, para meu azar. Paciência, devia fazer-lhes o gosto amanhã.
Quanto à reputação, essa gente de bem há-de buscar e rebuscar,
indagar e reindagar e livrar-nos-á de mancha ou nódoa e ajudar-nos-á
em frente rumo a um mundo limpo e bom! Bem, espero que não percam a
boa reputação tão depressa como nós, ou a vida deles é difícil e não
vale a pena ser vivida. Cá por mim, patrão, nunca tirei com esta mão
— e ergueu-a na frente dele — o que não fosse meu, nem nunca a

160

subtraí ao trabalho, por mais duro ou mais mal pago que fosse. E quem
puder negá-lo que ma corte! Mas quando o trabalho já não me sustenta
como a um ser humano, quando a minha condição de vida é tão má que
tenho fome dentro e fora de casa, quando vejo toda uma vida de
trabalho começar assim, prosseguir assim e terminar assim, sem uma
oportunidade ou uma alteração, então digo à gente de bem: «Afastem-se
de mim! Deixem em paz a minha cabana. A minha porta já é
suficientemente escura, sem que vocês a ensombrem mais. Não esperem
ver-me no parque para ajudar à festa quando houver um aniversário ou
um belo discurso, ou sei lá que mais outras representações e jogos,
que vocês fazem sem mim, e que lhes faça muito bom proveito e se
divirtam muito. Não temos nada que ver uns com os outros. Estou muito
melhor sozinho!».
Ao ver que a criança que tinha ao colo abrira os olhos e olhava em
redor espantada, deteve-se para lhe dizer uma ou duas palavras ao
ouvido, numa tagarelice pateta, e para a pôr em pé no chão, ao lado
dele. Então, enrolando e tornando a enrolar lentamente uma das suas
longas tranças em volta do indicador grosseiro, como se fosse um
anel, enquanto ela se pendurava na perna poeirenta dele, disse a
Trotty:
— Acho que não sou um homem mal-humorado por natureza e tenho a
certeza de que facilmente me satisfaço. Não guardo qualquer rancor
contra nenhum deles. Só quero viver como uma criatura de Deus. Não
posso, não vivo e aí está cavado o fosso entre mim e eles, que podem
e vivem. Outros há como eu. E contam-se mais depressa por centenas e
por milhares do que por unidades.
Trotty sabia que neste ponto ele dizia a verdade e abanou a cabeça
para concordar.
— Assim tenho eu uma má reputação — disse Fern

161

— e receio que não seja provável melhorá-la. Não é lícito estar-se


aborrecido, mas EU ESTOU aborrecido; porém Deus sabe bem que, se
pudesse, mais depressa estaria de boa disposição. Bom, não sei se
esse Alderman me poderia fazer mal a ponto de me mandar para a
prisão, mas sem um amigo que acuda por mim, era capaz de fazê-lo e
está a ver...! — apontou com o dedo para baixo, para a criança.
— Tem uma linda carinha — disse Trotty.
— Ah, tem! — respondeu o outro em voz baixa, enquanto lha virava
docemente para ele com as duas mãos e a olhava fixamente. — Já pensei
nisso, muitas vezes. Já pensei nisso quando o meu coração estava
muito frio e o aparador muito vazio. Pensei nisso a noite passada,
quando fomos apanhados como dois ladrões. Mas eles... eles não deviam
atormentar tanto esta carinha, pois não, Lilian? Já com um homem não
é justo...!
Baixou tanto a voz e fixou-a com um ar tão austero e estranho que
Toby, para distrair a corrente dos seus pensamentos, lhe perguntou se
a sua mulher ainda era viva.
— Nunca tive mulher — respondeu, abanando a cabeça. — Ela é filha do
meu irmão. É órfã. Tem nove anos, embora não pareça, mas está cansada
e alquebrada. Tomavam conta dela, no asilo (a vinte oito milhas da
nossa casa), entre quatro paredes, como tomaram conta do meu pai
quando já não podia trabalhar, embora já não lhes desse trabalho, mas
eu preferi ficar com ela e tem estado comigo desde sempre. A mãe dela
tinha uma amiga aqui em Londres. Temos andado a tentar encontrá-la e
encontrar também trabalho, mas isto é muito grande. Não faz mal, mais
espaço temos para andar, não é, Lilly?
Ao dar com os olhos da criança, onde havia um sorriso que comoveu
mais Toby do que as lágrimas, ele apertou a mão do homem.

162
— Eu nada mais sei que o seu nome — disse ele — mas já lhe abri o
meu coração, porque lhe estou grato e com razão. Aceito o seu
conselho e afasto-me desse tal...
— Magistrado — adiantou Toby.
— Ah! — disse ele. — Se é esse o nome que lhe dão, a esse
magistrado. Amanhã vou ver se tenho mais sorte, por aí próximo de
Londres. Boa noite e feliz ano novo!
— Espere! — disse Toby agarrando-se à mão dele quando ele já soltava
a sua. — Fique! O ano novo não poderá ser feliz para mim se nos
separarmos assim. Nunca o ano novo poderá ser feliz para mim se vir
você e a criança afastarem-se para aí ao deus-dará, sem saberem para
onde e sem refúgio onde se abrigarem. Venham para casa comigo! Vá, eu
levo-a! — declarou Toby pegando na criança. — Tão bonitinha! Era
capaz de transportar vinte vezes o peso dela, sem dar por isso. Diga-
-me se vou depressa de mais para si. Eu sou muito rápido. Sempre fui!
— Ao dizer isto Trotty deu seis dos seus passitos de trote, com as
suas pernitas trementes sob o peso que transportava, enquanto o seu
parceiro exausto dava uma passada.
— Ah, ela é tão leve — disse Trotty, trotando tanto na fala como na
maneira de andar, porque não suportava agradecimentos e temia por
isso calar-se —, tão leve como uma pena. Mais leve que uma pena de
pavão, muito mais leve. Aqui estamos nós e cá vamos! Depois desta
curva à direita, tio Will, depois da bomba e de nos esgueirarmos pelo
corredor, mesmo em frente da hospedaria. Cá estamos e cá vamos nós!
Passe, tio Will, e cuidado com o homem das empadas de rim que está à
esquina! Aqui estamos e aqui vamos nós! Por baixo da cavalariça, tio
Will, e pare na porta preta, que tem escrito na madeira «T. Veck,
moço de recados», aqui estamos e aqui vamos nós, já cá estamos mesmo,
minha querida Meg, aqui tens uma surpresa!
Com estas palavras Trotty, sem fôlego, depôs a criança no meio do

163

chão, em frente da filha. A pequena visitante, não duvidando daquele


rosto, confiando em tudo quanto ali via, lançou-se nos braços dela.
— Pronto, cá estamos! — exclamou Trotty, correndo à volta da casa,
resfolegando sonoramente. — Aqui, tio Will, aqui temos o lume! Porque
é que não vem para junto do lume? Cá estamos nós! Meg, minha
queridinha, onde é que está a chaleira? Ela aqui está e cá vai ela
ferver em menos de nada!
Trotty pegara realmente na chaleira enquanto calcorreava e pusera-a
agora ao lume, enquanto Meg, sentando a criança a um canto quente, se
ajoelhara em frente dela, lhe descalçara os sapatos e com uma toalha
lhe limpava os pés molhados. E ela ria-se também para Trotty, tão
satisfeita e jovial que Trotty gostaria de abençoá-la ali mesmo
ajoelhada, pois reparara, ao entrarem, que estava sentada junto ao
lume a chorar.
— Oh, pai! — disse Meg. — Parece-me que hoje está louco. Não sei o
que é que os sinos diriam a isto. Pobres pezinhos! Tão frios!
— Ah, agora já estão mais quentes! — exclamou a criança. — Agora
estão muito quentes!
— Não, não, não — disse Meg. —Ainda não os friccionámos metade do
que devíamos. Temos que fazer. Muito que fazer! E quando eles
estiverem despachados, escovaremos o cabelo húmido; e quando isso
estiver feito, daremos um pouco de cor a esta carinha pálida, com
água fresca; e quando isso estiver feito ficaremos alegres, activos e
felizes...!
A criança, num acesso de soluços, agarrou-se ao pescoço dela,
acariciou-lhe o belo rosto com a mão e disse:
— Oh Meg! Oh querida Meg!
A bênção de Toby não podia ser melhor do que aquilo. Que poderia ser
melhor?

164

— Oh, pai! — exclamou Meg depois de um silêncio.


— Cá estou eu e cá vou eu, minha querida! — disse Trotty.
— Valha-me a Divina Providência! — exclamou Meg. — Ele está doido!
Pôs a touca da criancinha sobre a chaleira e pendurou o abafador
atrás da porta!
— Não digo que não o fiz, minha querida — disse Trotty,
apressadamente, reparando o erro. — Meg, minha querida...?
Meg olhou para ele e reparou que se colocara pomposamente atrás da
cadeira do visitante masculino, onde, com muitos gestos misteriosos,
esticava a mão com os seis pennies que tinha ganho.
— Ao entrar, minha querida — disse Trotty —, vi meia onça de chá ali
na escada em qualquer sítio e tenho a certeza de que também lá estava
um bocado de toucinho. Como não me lembro bem onde estava, vou lá eu
mesmo procurá-lo.
Com este impenetrável artifício, Toby retirou-se para ir comprar, a
pronto, à senhora Chickenstalker, as vitualhas de que tinha falado e
regressou fingindo não ter conseguido encontrá-las às primeiras, no
escuro.
— Mas elas aqui estão, finalmente — disse Trotty, preparando as
coisas para o chá. — Tudo em ordem! Eu cá tinha a certeza de que era
chá e toucinho fumado. E é mesmo. Meg, meu amorzinho, se fizesses o
chá enquanto o teu inútil pai grelha o toucinho, despachávamo-nos já.
É um facto curioso — disse Trotty, continuando no seu cozinhado com a
ajuda dum garfo de grelhar —, curioso, mas bem conhecido dos meus
amigos, é que nunca me interessei por toucinho fumado e por chá.
Gosto de ver outras pessoas apreciarem-nos — disse Trotty falando
muito alto para marcar bem o facto no espírito do seu hóspede —, mas
para mim, como alimento, são desagradáveis.

165

No entanto, Trotty aspirava o cheiro do toucinho a chiar, aah!, como


se gostasse; e, quando deitou a água a ferver no bule, olhou
deliciadamente para o fundo do aconchegado recipiente e suportou o
fragrante vapor que se encaracolava em torno do seu nariz, enrolando-
-se à sua cabeça e à sua cara numa espessa nuvem. Contudo, por tudo
isso, não comeu nem bebeu, senão ao princípio, um pequeno pedaço, por
cerimónia, que pareceu comer com infinito prazer, mas que declarou
ser-lhe perfeitamente indiferente.
Não. A ocupação de Trotty, bem como a de Meg, era ver Will Fern e
Lilian comerem e beberem. E nunca espectador algum, num jantar da
cidade ou num banquete da corte, sentiu tanto prazer em ver o festim
de outrem, nem que fosse dum monarca ou dum papa, como estes dois
sentiram naquela noite. Meg sorria para Trotty, Trotty ria-se para
Meg. Meg abanava a cabeça e fingia bater as palmas aplaudindo Trotty.
Trotty explicava a Meg, através duma pantomina de ininteligíveis
narrativas, como, quando e onde tinha encontrado os seus visitantes;
e estavam felizes. Muito felizes.
«Se bem que», pensava Trotty, tristemente, ao olhar o rosto de Meg,
«eu veja que aquela união está desfeita!»
— E agora já lhes digo — afirmou Trotty depois do chá — a pequenina
dorme com a Meg, já sei.
— Com a minha Meg! — exclamou a criança acariciando-a. — Com a Meg.
— Sim, senhora — afirmou Trotty. — E não me admirava nada se ela
desse um beijo ao pai de Meg. O pai de Meg sou eu.
Muito feliz ficou Trotty quando a criança se dirigiu a ele
timidamente e, tendo-o beijado, se atirou novamente para cima de Meg.
— E mais sensível que Salomão — disse Trotty. — Aqui estamos nós e

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aqui... não, não é isso, não é isso que eu quero dizer. Eu... que é
que eu ia dizer, Meg, minha querida?
Meg olhou para o seu hóspede, que estava inclinado na cadeira, com o
rosto desviado do dela, e acariciou a cabeça da criança, semi-
-escondida no seu regaço.
— Para dizer a verdade — disse Toby —, para dizer a verdade, não sei
o que é que estou para aqui a divagar, esta noite. O meu juízo está
enovelado, quer parecer-me. Will Fern, venha comigo. Você está
exausto e alquebrado por falta de descanso. Venha comigo.
O homem ainda acariciava os caracóis da criança, ainda estava
inclinado para a cadeira de Meg, ainda tinha a cara voltada. Não
falava, mas nos seus dedos rudes e grosseiros, que se abriam e
fechavam no cabelo louro da criança, havia uma eloquência que dizia
muito.
— Sim, sim — disse Trotty, respondendo inconscientemente àquilo que
via escrito no rosto da filha. — Leva-a contigo, Meg. Mete-a na cama.
Vá! Agora Will, vou mostrar-lhe onde você dorme. Não é lá grande
coisa, é apenas um palheiro, mas ter um palheiro, é o que eu digo
sempre, é uma das grandes conveniências de viver num estábulo; e até
esta cocheira e este estábulo terem melhor inquilino, aqui vivemos
por preço em conta. Lá em cima há muito feno fofo, que pertence a um
vizinho e está muito limpinho. A Meg pode compô-lo. Alegre-se! Não
desista. Sempre um coração novo, para um novo ano!
A mão soltou-se do cabelo da criança e caiu tremente na mão de
Trotty. Trotty, falando então sem parar, conduziu-o tão terna e
facilmente como se ele próprio fosse uma criança.
Regressando antes de Meg, escutou durante um momento à porta do
quartinho dela, o compartimento ao lado. A criança balbuciava uma
simples oração antes de se deitar para dormir e quando se lembrou do

167

nome de Meg, «Querida, Querida», assim dizia ela, Trotty ouviu-a


parar e perguntar o dele.
Ainda decorreu um momento antes que o tolo velhote se recompusesse,
para poder atear o lume e arrastar a cadeira para junto da lareira
quente. Depois, porém, de o ter feito e de ter arranjado a luz, tirou
do bolso o jornal e começou a ler. A princípio descuidadamente,
percorrendo as colunas de alto a baixo, mas em breve com uma atenção
mais intensa e triste.
Este mesmo terrível jornal reconduzia os pensamentos de Trotty para
o caminho que tinham tomado durante todo o dia e que os
acontecimentos tinham marcado e moldado. O interesse pelos dois
forasteiros desviara-lhe o curso dos pensamentos, por um tempo; mas,
encontrando-se de novo sozinho e ao ler as notícias sobre crimes e
violências das pessoas, voltou a cair na primitiva sequência de
pensamentos.
Com esta disposição, chegou ao relato (e não era o primeiro que lia)
duma mulher que desesperada pôs termo não só à sua vida, mas também à
do seu filhinho. Era um crime tão terrível e tão revoltante para o
seu coração, avolumado ainda pelo amor de Meg, que deixou cair o
jornal e se encostou à cadeira, horrorizado!
— Antinatural e cruel! — exclamou Toby. — Antinatural e cruel! Só
gente de mau coração, gente que nasceu má e que não tem lugar no
mundo, poderia cometer tal acção. É bem verdade o que ouvi hoje, bem
certo e bem provado. Nós somos maus!
Os sinos pegaram-lhe tão rapidamente na palavra (soaram tão alto,
claro e sonoramente) que as badaladas pareciam bater-lhe na carne.
E que diziam eles?
«Toby Veck, Toby Veck, estamos à tua espera, Toby!

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Toby Veck, Toby Veck, estamos à tua espera, Toby! Vem ver-nos, vem
ver-nos, trá-lo até nós, trá-lo até nós, assombra-o e persegue-o,
assombra-o e persegue-o, interrompe o seu sono interrompe o seu sono!
Toby Veck, Toby Veck, Toby Veck, abre toda a porta, Toby...»,
voltando depois furiosamente à sua impetuosa canção, ressoando dentro
dos próprios tijolos e do gesso das paredes. Toby escutava.
Imaginava, imaginava! Os remorsos que tinha por ter fugido deles
naquela tarde! Não, não. Nada disso. Repetiu uma, duas, uma dúzia de
vezes: «Assombra-o e persegue-o, assombra-o e persegue-o. Trá-lo até
nós, trá-lo até nós!». Ensurdeciam toda a cidade!
— Meg — disse Trotty baixinho, dando pancadinhas na porta dela. —
Ouves alguma coisa?
— Oiço os sinos, pai. Esta noite soam realmente muito alto.
— Ela está a dormir? — disse Toby, desculpando-se por espreitar.
— Tão feliz e tranquilamente! No entanto, ainda não a posso deixar,
pai. Olhe como ela me segura na mão!
— Meg — murmurou Trotty. — Escuta os sinos! Ela escutou, sempre de
cara virada para ele, mas nada nela se alterou. Ela não os entendia.
Trotty retirou-se, retomou o seu lugar junto do lume e mais uma vez
escutou, sozinho. Ali ficou durante algum tempo.
Era impossível suportá-los; a sua energia era terrível.
— Se a porta da torre estiver aberta — disse Toby, pondo
apressadamente de lado o avental, sem nunca pensar no chapéu —, que é
que me impede de ir ao campanário e fazer o gosto? Se estiver
fechada, pronto, chega.
Quando se esgueirou silenciosamente para a rua, ia absolutamente
seguro de que iria encontrá-la fechada e trancada, porque conhecia
bem a porta e raramente a vira aberta, que nem três vezes ao todo,

169

poderia contar. Era um portal baixo, fora da igreja, num recanto


escuro por trás duma coluna; e tinha umas dobradiças de ferro tão
grandes e uma fechadura tão monstruosa que havia mais dobradiça e
fechadura do que porta.
Mas qual não foi o seu espanto quando, ao chegar à igreja, sem
chapéu e ao meter a mão no recanto escuro com um certo receio de que
ela fosse subitamente agarrada e tremendo com vontade de a retirar,
viu que a porta que abria para fora estava realmente aberta de par em
par!
Com o impacte da surpresa pensou voltar para trás ou arranjar uma
luz ou um parceiro, mas a coragem acudiu-lhe de imediato e decidiu
subir sozinho.
— Que é que tenho a temer? — disse Trotty. — É uma igreja. Além
disso, os sineiros podem lá estar e terem-se esquecido de fechar a
porta.
Então entrou, tacteando o caminho à medida que avançava, como um
cego, porque estava escuro. E em silêncio, porque os sinos estavam
calados.
O pó da rua entrara para o nicho; e, permanecendo ali amontoado,
tornava-o tão fofo para os pés como veludo, e até nisso havia algo de
surpreendente. A estreita escada estava tão junta à porta que ele
tropeçou logo no primeiro degrau; e batendo com o pé na porta fechou-
-a atrás de si, fazendo-a ressoar pesadamente, não mais conseguindo
abri-la.
Esta foi, porém, mais uma razão para prosseguir. Trotty continuou
tacteando o caminho. Para cima, para cima, uma volta, outra volta e
para cima, para cima, mais acima, mais, mais!
Era uma escada desagradável por ter de se andar às apalpadelas, tão
baixa e estreita que a sua mão que tacteava estava sempre a tocar
nalguma coisa; e por vezes tanto lhe parecia ver um homem ou uma
figura fantasmagórica, erguendo-se erecta e dando-lhe espaço para ele

170

passar sem a descobrir, que esfregava a parede acima procurando-lhe o


rosto e abaixo procurando-lhe os pés, enquanto um formigueiro
arrepiante o percorria todo. Por duas ou três vezes uma porta ou um
nicho quebraram a monótona superfície e esse espaço vazio parecia tão
grande como toda a igreja e ele sentia-se à beira de um abismo, quase
a cair de cabeça para baixo, até que de novo encontrava a parede.
Mais para cima ainda, mais, mais; e volta, volta; e para cima, mais
e mais, mais, mais para cima!
Por fim a atmosfera pesada e sufocante começou a refrescar e a ficar
ventosa. Agora soprava já tão forte que ele mal se aguentava nas
pernas. Chegou porém a uma janela em arco que lhe dava pelo peito e,
agarrando-se bem, olhou lá para baixo para os telhados das casas,
para as enfarruscadas chaminés, para as manchas e borrões das luzes
(na direcção do local onde Meg estava talvez a perguntar-se onde
estaria ele e a chamá-lo) todas amassadas num fermento de neblina e
escuridão.
Era este o campanário, onde os sineiros vinham. Deitara a mão a uma
das puídas cordas que pendiam pelas aberturas do tecto de carvalho.
Primeiro pensou que era cabelo, depois estremeceu só de pensar poder
acordar o sonoro sino. Os sinos propriamente ditos estavam lá mais em
cima. Mais em cima. Trotty, fascinado, ou concretizando o feitiço que
lhe tinha sido lançado, tacteou o caminho. Agora por escadas de mão e
laboriosamente, porque era íngreme e inseguro para os pés.
Upa, upa, upa; trepa e amarinha; upa, upa, upa; mais para cima, mais
para cima!
Até que emergindo do soalho e parando com a cabeça exactamente ao
nível das traves, ficou junto dos sinos. Era impossível, na
escuridão, aperceber-se da sua enorme forma; mas eles ali estavam.

171

Sombrios, escuros e mudos.


Sobre ele caiu nesse instante uma sensação de pavor e de solidão, ao
trepar para o seu arejado ninho de pedra e metal. A cabeça rodopiava-
-lhe. Escutou e depois lançou um «Ôoôoh!» selvagem.
O «Oôooh!» foi tristemente repetido pelo eco.
Atordoado, confuso, sem fôlego e assustado, Toby olhou em redor
vagamente e mergulhou num desmaio.

Terceiro quarto

Negros são os rebanhos de nuvens e agitadas as profundas águas,


quando o mar do pensamento, erguendo-se de uma calmaria, desiste de
estar morto. Estranhos e selvagens monstros se erguem em prematura e
imperfeita ressurreição. As diversas partes e formas das coisas reú-
nem-se e misturam-se ao acaso e nenhum homem sabe dizer quando e como
e porque maravilhosas fases cada um se separa de cada um e cada
sentido e cada objecto do espírito reúne a sua forma habitual e
renasce, embora cada homem seja todos os dias o cofre deste tipo de
grande mistério.
Assim, não há também dados ou meios para dizer quando e como a
escuridão da noite no campanário se transformou em brilhante luz;
quando e como a solitária torre se viu povoada duma miríade de
figuras; quando e como o murmúrio «Assombra-o e persegue-o», em
monótono arfar, no seu sonho ou desmaio, se transformou numa voz
exclamando aos ouvidos despertos de Trotty: «Quebra-lhe o sono»;
quando e como deixou de ter o seu pensamento moroso e confuso onde
tais coisas confusas e morosas coexistiam com outras que o não eram.
Mas, acordado e de pé sobre as tábuas onde anteriormente jazia, teve
aquela visão de gnomo.
Viu a torre, onde os seus encantados degraus o tinham conduzido,
enxameada de gnomozinhos dos sinos. Via-os saltando, voando, caindo,

173

chovendo dos sinos, sem parar. Via-os em volta dele, no chão; por
cima dele, no ar; a fugir dele, trepando pelas cordas; olhando para
ele lá de cima, das maciças vigas cintadas de ferro; espreitando-o
pelas gretas e buracos das paredes; espalhando-se mais e mais em
torno dele, em círculos que se alargavam, tal como a ondulação da
água dando lugar a uma grande pedra que nela caía de repente. Viu-os
de todos os ângulos e formas. Viu-os feios, bonitos, aleijados e de
formas caprichosas. Viu-os novos e velhos, viu-os bons e cruéis, viu-
-os alegres e carrancudos; viu-os dançar e ouviu-os cantar; viu-os
puxarem-se os cabelos, e ouviu-os uivar. Viu o ar cheio deles. Viu-os
irem e virem incessantemente. Viu-os flutuar para baixo, elevarem-se
muito alto, vogarem para longe e empoleirarem-se ali mesmo à mão,
todos incansáveis e violentamente activos. A pedra, o tijolo, a
ardósia e a telha tornaram-se tão transparentes para si como para
eles. Viu-os dentro das casas, de volta das camas dos que dormiam.
Viu-os a sugar pessoas que sonhavam; viu-os bater-lhes com chicotes
de nós; viu-os gritarem-lhes aos ouvidos; viu-os tocarem a mais suave
música sobre as suas almofadas; viu-os acarinharem alguns com cantos
de pássaros e aromas de flores; viu-os fazer horríveis caras no sono
perturbado de outros, em frente de espelhos encantados que traziam na
mão.
Viu estes seres, não só entre os que dormiam, como entre os que
estavam despertos, ocupados com perseguições, irreconciliáveis uns
com os outros e possuindo ou fingindo maneiras de ser completamente
opostas. Viu um afivelando a si numerosas asas para aumentar a sua
velocidade e outro carregando-se de correntes e de pesos para a
diminuir. Viu uns adiantando os ponteiros do relógio e outros
atrasando-os, e outros ainda tentando parar completamente o relógio.
Viu-os representando aqui uma cerimónia de casamento, ali uma de

174

funeral; neste quarto uma eleição, naquele um baile; por todo o lado
viu irrequieto e incansável movimento.
Confuso pela multidão de figuras extraordinárias e em movimento, bem
como pelo troar dos sinos, que durante todo este tempo continuavam a
tocar, Trotty agarrou-se a um pilar de madeira como que procurando
apoio, e virava a pálida cara para cá e para lá, num espanto mudo e
aturdido.
Enquanto assim olhava, os sinos pararam. Deu-se uma modificação
instantânea. Toda a multidão esmoreceu! As suas formas desvaneceram-
-se, a velocidade abandonou-os; tentaram voar, mas no momento de
caírem morriam e dissolviam-se no ar. Nenhum novo grupo vinha
substituir aquele. Um deles isolado saltou muito rapidamente da
superfície do sino grande e pousou aos pés dele, mas antes que
tivesse tempo de se virar já ele se sumira. Alguns do último grupo,
que tinham dado cambalhotas na torre, lá permaneceram um pouco mais,
girando e rodopiando; mas a cada volta se tornavam menos nítidos,
menos numerosos, mais débeis, e em breve tiveram o mesmo destino dos
outros. O último de todos era um pequeno corcunda, que se tinha
metido num recanto que ecoava, onde flutuou e girou e rodopiou
durante muito tempo, sozinho; mostrava muita perseverança, até que
por fim ficou reduzido a uma perna e até a um pé apenas, antes de
desaparecer finalmente. Sumiu-se por fim e a torre ficou em silêncio.
Só então Trotty viu em cada sino uma figura barbuda do volume e da
estatura dos sinos. Era incompreensivelmente uma figura e o próprio
sino. Pregado ao chão, ali estava ela, gigantesca, ameaçadora e
observando-o sombriamente.
Figuras misteriosas e terríveis! Apoiadas no nada;

175

pousadas no ar nocturno da torre, com as cabeças envolvidas e


encapuçadas fundindo-se no obscuro telhado; sombriamente e imóveis.
Sombrias e escuras, ainda que ele as visse devido a alguma luz que
delas partia (não havia ali outra), todas com a mão enluvada sobre a
boca de duende.
Ele não conseguia atirar-se cá para baixo precipitadamente, pela
abertura que havia no chão, porque toda a capacidade de movimento o
tinha abandonado. Se assim não fosse, tê-lo-ia feito, ai tinha mesmo,
ter-se-ia atirado do cimo do campanário, para não os ver olharem-no
com olhos que acordavam e viam embora as pupilas lhes tivessem sido
tiradas.
Mais uma e outra vez, o medo e o pavor daquele local solitário, e da
noite bravia e tenebrosa que ali reinava, o tocaram como mão
espectral. A distância a que estava de qualquer auxílio; o caminho
escuro, longo, sinuoso e assombrado que o separava do mundo dos
homens; o facto de estar lá muito, muito, muito em cima, onde lhe
causara tonturas ver os pássaros voar durante o dia; o ver-se
afastado de toda a boa gente, que àquela hora estaria a dormir em
segurança na sua cama — tudo isto o percorria geladamente, não como
um pensamento mas como uma verdadeira sensação física. Entretanto os
seus olhos, os seus pensamentos e temores estavam concentrados nas
figuras que o olhavam e que se apresentavam como nenhuma figura deste
mundo; na profunda escuridão e sombra que as envolvia e embrulhava,
bem como nos seus aspectos e formas e estatura descomunal pairando
acima do chão e que contudo se viam tão distintamente como as
robustas cercaduras de carvalho, as travessas e as traves que
suportavam os sinos e que os guarneciam como uma verdadeira floresta
de madeira cortada e dentro de cujos emaranhados, labirintos e

176

profundezas, como das ramagens duma velha floresta seca para seu
fantasmagórico uso, mantinham o seu olhar tenebroso e fixo.
Uma corrente de ar (que fria e arrepiante!) atravessou a torre,
gemendo. Quando já desaparecia, o sino grande, ou o gnomo do sino
grande, falou.
— Quem é este visitante? — disse. A voz era baixa e profunda e
Trotty imaginou que ela ressoava também nas outras figuras.
— Pensei que os sinos chamavam pelo meu nome! — disse Trotty,
erguendo as mãos numa atitude de súplica. — Mal sei porque aqui
estou, ou como vim. Há todos estes anos que ouço os sinos. Muitas
vezes eles me encorajaram.
— E tu agradeceste-lhes? — disse o sino.
— Mil vezes! — respondeu Trotty.
- Como?
— Sou um homem pobre — gaguejou Trotty — e só podia agradecer-lhes
com palavras.
— E sempre assim fizeste? — inquiriu o duende do sino. — Nunca nos
feriste com palavras?
Trotty ia a responder «Nunca!», mas parou e ficou perturbado.
— A voz do tempo — disse o fantasma — grita ao homem «Avança!». O
tempo serve para avançar e melhorar; para sua maior utilidade, sua
maior felicidade, sua melhor vida; para o seu progresso em direcção
àquele objectivo ao alcance do seu conhecimento e da sua visão e que
foi ali estabelecido, no período em que o tempo e ele foram criados.
Épocas de trevas, de maldade e de violência vieram e foram, milhões
incontáveis sofreram, viveram e morreram, para lhe apontar o caminho.
Quem procura fazê-lo retroceder ou impedir o seu curso, faz parar uma
poderosa máquina, que destruirá o intrometido; e ele tornar-se-á,

177

depois desta momentânea pausa repentina, mais feroz e mais


implacável!
— Que eu saiba, nunca fiz isso, senhor — disse Trotty.
— E se o fiz, foi absolutamente por acaso. Não teria intenção de o
fazer, tenho a certeza.
— Quem põe na boca do tempo, ou dos seus servos — disse o duende do
sino —, um grito de lamentação pelos dias que já foram julgados e que
já tiveram os seus fracassos e dele deixam traços tão profundos que
até os cegos podem ver; um grito que só serve o tempo presente, por
mostrar aos homens como ele precisa da sua ajuda, quando há ouvidos
que possam ouvir um tal passado; quem assim procede, procede mal. E
tu causaste-nos esse mal, a nós, sinos.
O primeiro acesso de medo de Trotty passara-lhe. Como viram, ele
sentira-se terno e grato para com os sinos; e quando ouviu acusarem-
-no de tão duramente os ter ofendido, o seu coração foi assaltado por
um sentimento de penitência e remorso.
— Se soubessem — disse Trotty enclavinhando as mãos desesperadamente
— (ou talvez saibam), se soubessem quantas vezes me têm feito
companhia, quantas vezes me deram ânimo quando eu me encontrava
desanimado, como vocês eram o brinquedo da minha filha Meg
(praticamente o único que ela teve) logo que a mãe morreu e ficámos
os dois sozinhos, não veriam maldade numa palavra impensada!
— Quem ouve em nós, sinos, uma nota que indique desinteresse, ou
austero respeito, por qualquer esperança, alegria, dor ou tristeza,
da multidão de muitas tristezas; quem nos ouve responder a qualquer
crença que dá a medida das paixões e dos afectos humanos, como da
quantidade da miserável alimentação com a qual a humanidade definha e
estiola; quem isso ouve, faz-nos mal. Foi esse o mal que tu nos

178

fizeste! — disse o sino.


— Fiz? — disse Trotty. — Oh, perdoem-me!
— Quem nos ouve como se fôssemos o eco dos vermes da terra: daqueles
que destroem as almas esmagadas e destroçadas, criadas para serem
elevadas mais alto do que essas larvas do tempo alguma vez rastejarão
ou poderão imaginar — prosseguiu o duende do sino —, quem assim
procede, faz-nos mal. E assim tu nos fizeste mal!
— Não foi por querer — disse Trotty. — Foi por ignorância. Sem
querer!
— Finalmente e acima de tudo — continuou o sino —, quem volta as
costas aos desprezados e aos marcados da sua espécie; quem os
abandona como vis e não contempla com olhos piedosos o precipício
aberto, donde eles caíram do bem, agarrando-se na queda a alguns
tufos e pedaços desse solo perdido e a eles ainda se agarram quando
feridos e moribundos jazem lá em baixo no abismo; quem assim age, faz
mal ao Céu, ao homem, ao tempo e à eternidade. E tu fizeste esse mal!
— Poupa-me — exclamou Trotty, caindo de joelhos e implorando
misericórdia.
— Escuta! — disse a sombra.
— Escuta! — exclamaram as outras sombras.
— Escuta! — disse uma voz infantil e clara que Trotty julgou
reconhecer por já ter ouvido.
Lá em baixo, na igreja, o órgão soou debilmente. Aumentando
gradualmente, a melodia chegou ao telhado e encheu a nave e o coro.
Aumentando cada vez mais, elevou-se mais e mais, cada vez mais e mais
alto, despertando almas agitadas que estavam dentro das robustas
estacas de carvalho, dos sinos ocos, das portas ferradas e dos
degraus de pedra sólida, até as paredes da torre serem insuficientes
para a conter e se elevar ao céu.
Não admira que o peito dum velho não pudesse conter um som tão

179

grande e poderoso. Saía dessa fraca prisão uma torrente de lágrimas;


e Trotty cobriu o rosto com as mãos.
— Escuta! — disse a sombra.
— Escuta! — disseram as outras sombras.
— Escuta! — disse a voz infantil.
Subiu até à torre um fluxo de vozes misturadas.
Era um fluxo muito baixo e lamentoso, um hino fúnebre; e, ao escutá-
-lo, Trotty ouviu a sua filha entre os cantores.
— Ela morreu! — gritou o velho. — Meg morreu! O espírito dela chama-
-me. Estou a ouvi-lo!
— O espírito da tua filha chora os mortos e mistura-se com os
mortos... esperanças mortas, sonhos mortos, mortas ilusões da
juventude — respondeu-lhe o sino —, mas ela está viva. Da vida dela
colhe uma verdade viva. Aprende, com o ser que te é mais querido,
quão maus nascem os maus. Vê cada botão e cada folha serem arrancados
um a um do mais belo tronco, e vê quão nu e desolado ele ficará.
Segue-a, até ao desespero!
Cada uma das sombrias figuras estendeu o braço e apontou para baixo.
— O espírito dos sinos está na tua companhia — disse a figura. — Vai!
Ele irá atrás de ti, apagando-te as pegadas!
Trotty virou-se e viu... a criança! Era a criança que Will Fern
transportava na rua, a criança que Meg velara e que agora dormia!
— Eu próprio a levei ao colo esta noite — disse Trotty. — Com estes
braços!
— Mostrem-lhe o que ele é agora — disseram as negras figuras à uma.
A torre abriu-se sob os seus pés. Ele olhou para baixo e contemplou
a sua própria forma, jazendo lá no fundo, do lado de fora, esmagado e
imóvel.

180

— Já não estou vivo! — exclamou Trotty. - Morto!


— Morto! — disseram as figuras em coro.
— Deus seja louvado! E o ano novo.
— Passado — disseram as figuras.
— O quê?! — exclamou ele a tremer. — Enganei-me no caminho e às
escuras, ao sair desta torre, caí... há um ano?
— Há nove anos! — responderam as figuras.
Ao darem a resposta, recolheram os braços esticados; e, onde as suas
figuras tinham estado, estavam agora os sinos.
E tocavam, tendo chegado de novo a sua altura. E uma vez mais vastas
multidões de fantasmas saltaram para a vida; mais uma vez tinham
ocupações incoerentes, como tinham tido antes; mais uma vez
esmoreciam à paragem dos sinos e diminuíam até ao nada.
— Quem são estes? — perguntou ao seu guia. — Se não estou louco,
quem são estes?
— São os espíritos dos sinos. O som deles no ar — retorquiu a
criança. — Eles tomam as formas e ocupações das esperanças e
pensamentos dos mortais e dão-lhes as recordações que guardaram.
— E tu? — disse Trotty buscamente. — Quem és tu?
— Vá, vá! — respondeu a criança. — Olha para ali! Num compartimento
pobre e humilde, trabalhando no mesmo género de bordado que tantas e
tantas vezes ele vira na frente dela, foi-lhe apresentada Meg, a sua
querida filha. Não fez qualquer esforço para lhe depor beijos na
face, não tentou apertá-la ao peito que a amava, pois sabia que esses
carinhos tinham terminado para ele. Susteve porém a respiração e
limpou as lágrimas que o cegavam, para que pudesse olhá-la, para que
pudesse apenas vê-la.
Ah! Estava mudada. Mudada. A luz clara dos seus olhos estava
escurecida. Como estava desmaiado o rosado das faces! Bela estava,

181

como sempre fora, mas a esperança, a esperança, a esperança, oh, onde


estava a viva esperança que como uma voz lhe falava?
Ela ergueu os olhos do trabalho, para uma companheira. Seguindo-lhe
o olhar, o velho recuou.
Na mulher já feita, ele reconheceu-a imediatamente. No sedoso cabelo
comprido, reconheceu os mesmos caracóis e em volta dos lábios ainda
pairava a mesma expressão infantil. Olha! Nos olhos que agora se
voltavam inquiridores para Meg brilhava o mesmo olhar que examinava
aqueles traços quando ele a trouxera para casa!
E que era então aquilo que estava a seu lado?!
Olhando com temor para aquele rosto, viu que nele pairava algo, algo
de sublime, de indefinido e indistinto, que fazia dele pouco mais que
a recordação daquela criança (tal como a figura além podia sê-lo),
sendo embora a mesma. A mesma e usava o mesmo vestido.
Escutem! Estão a falar!
— Meg — disse Lilian hesitante. — Quantas vezes levantas a cabeça do
trabalho para olhares para mim!
— Será que o meu olhar está tão alterado que te assusta? — perguntou
Meg.
— Não, querida! Mas até para isso tu te ris! Porque não te ris
quando olhas para mim, Meg?
— Mas eu rio. Não rio? — perguntou Meg, sorrindo para ela.
— Agora, sim — disse Lilian —, mas habitualmente não. Quando pensas
que eu estou ocupada e que não te vejo, tens um ar tão ansioso e
duvidoso que eu mal ouso levantar os olhos. Nesta vida dura e
trabalhosa há pouca razão para sorrir, mas tu já foste alegre.
— E agora não sou! — exclamou Meg num tom de estranha exaltação. —
Torno ainda mais dura a tua vida já dura, Lilian?

182

— Tu tens sido a única pessoa que fizeste disto vida — disse Lilian,
beijando-a ardentemente —; por vezes foste a única coisa que me fez
querer viver mesmo assim, Meg. Tanto, tanto trabalho! Tantas horas,
tantos dias, tantas e tão longas noites de trabalho sem esperança,
sem alegria e sem fim e não para amontoar riquezas, não para viver
bem e alegremente, nem sequer para viver remediadamente, ainda que de
maneira rudimentar, mas para ganhar pão seco. Economizar apenas o
suficiente para nos permitir continuar a mourejar, a necessitar, a
manter viva em nós a consciência do nosso duro destino! Oh, Meg, Meg!
— Ela levantou a voz e cruzou os braços em volta do corpo, enquanto
falava como se sofresse. — Como pode este mundo cruel continuar a
girar e suportar ver tais vidas?!
— Lilly! — disse Meg acarinhando-a e afastando-lhe o cabelo do rosto
molhado. — Oh, Lilly! Tu! Tão bonita e tão jovem!
— Oh, Meg! — interrompeu-a ela, agarrando-lhe nos braços e olhando-a
no rosto, suplicante. — O pior de tudo, o pior de tudo! Que Deus me
envelheça, Meg! Que me faça definhar e enrugar e me liberte dos
terríveis pensamentos que tentam a minha juventude!
Trotty virou-se para o seu guia, mas o espírito da criança tinha
voado. Desaparecera.
Também ele não ficara no mesmo sítio. Sir Joseph Bowley, amigo e pai
dos pobres, dava uma grande festa em Bowley Hall, em honra do
aniversário natalício de Lady Bowley. E como Lady Bowley nascera no
dia de Ano Novo (o que os jornais locais consideravam uma designação
especial de primeiro lugar, dada pela Providência à predestinada
figura de Lady Bowley, na criação), era no dia de Ano Novo que esta
festa se realizava.
A mansão Bowley estava cheia de convidados. Lá estava o senhor de

183

cara vermelha, o senhor Filer, o grande Alderman Cute (Alderman Cute


mantinha cordiais relações com muita gente e tinha melhorado a sua
relação com Sir Joseph Bowley, com base naquela carta tão atenciosa.
Na verdade e desde aí tornara-se um grande amigo da família) e muitos
convidados lá estavam. O fantasma de Trotty por ali andava, vagueando
tristemente. Pobre fantasma, procurando o seu guia!
Ia haver um grande jantar no Great Hall, durante o qual Sir Joseph
Bowley, na sua reconhecida qualidade de amigo e pai dos pobres, ia
fazer o seu grande discurso. Noutro salão, alguns pudins de ameixa
iam ser comidos pelos seus amigos e filhos, primeiro e, a um dado
sinal, os amigos e filhos entrariam em rebanho misturando-se com os
seus amigos e pais, para formarem uma reunião de família em que não
haveria ser humano que resistisse à emoção.
Mas mais do que isto estava para acontecer. Ainda mais do que isso.
Sir Joseph Bowley, baronete e membro do Parlamento, ia disputar um
jogo de boliche — de boliche mesmo — com os seus inquilinos!
— Isto lembra-me — dizia Alderman Cute — os dias do velho rei Hal,
do bravo rei Hal, o franco rei Hal (Nota da tradutora: Abreviatura de
Henry). Ah, que belo carácter!
— Muito — disse secamente o senhor Filer. — Por casar com mulheres e
assassiná-las. E diga-se de passagem que teve um número de esposas
maior do que a média.
— Tu hás-de casar com as senhoras bonitas e não hás-de assassiná-
-las, hã? — disse Alderman Cute ao herdeiro dos Bowley, que tinha
doze anos. — És um belo rapaz! Antes de darmos por isso, já teremos
este cavalheiro no Parlamento — disse Alderman, tomando-o pelos

184

ombros e olhando-o tão seriamente quanto podia. — Ouviremos falar do


seu êxito nas eleições, dos seus discursos na Câmara, das propostas
que os governos lhe fazem, dos seus brilhantes feitos de todo o
género; ah!, antes que o Diabo esfregue um olho, tenho a certeza de
que sobre ele se farão discursos na Câmara Municipal!
«Oh, que diferença nos sapatos e nas meias!», pensou Trotty. O seu
coração, porém, sentia-se atraído para a criança, por amor daqueles
rapazes sem sapatos e sem meias, predestinados (por Alderman) a
tornarem-se maus e que podiam ter sido filhos da pobre Meg.
— Richard — gemeu Trotty, deambulando entre os presentes, de um lado
para o outro —, onde está ele? Não encontro o Richard! Onde está o
Richard?
Parecia não estar ali, se é que ainda era vivo! Mas a solidão e o
desgosto perturbavam Trotty e continuou ainda a vaguear entre tão
elegante assistência, procurando o seu guia e repetindo: «Onde está
Richard? Mostrem-me onde está Richard!».
Assim andava vagueando quando deparou com o senhor Fish, o
secretário particular, em grande agitação.
— Valha-me Deus! — exclamava o senhor Fish. — Onde é que está
Alderman Cute? Alguém viu Alderman?
Se viram Alderman? Ora essa! Quem é que podia deixar de ver
Alderman? Ele que era tão atencioso, tão afável, ele que tinha sempre
em mente o desejo de o ver que todos tinham, se algum defeito ele
tinha era o de estar sempre visível. E, onde estivesse a gente
importante, de certeza que, atraído pela afinidade entre os grandes
espíritos, aí estava o Cute.
Várias vozes gritaram que ele estava no círculo em torno de Sir
Joseph. O senhor Fish abriu caminho até lá e levou-o discretamente
até uma janela que havia ali perto. Trotty juntou-se a eles, não por
sua iniciativa, mas porque sentia que os seus passos eram conduzidos

185

naquela direcção.
— Meu caro Alderman Cute — disse o senhor Fish. — Chegue-se um pouco
mais para aqui. Aconteceu uma coisa horrível. Recebi neste momento o
recado. Acho que é melhor não se dar conhecimento a Sir Joseph antes
de o dia findar. O senhor conhece Sir Joseph e dar-me-á a sua
opinião. Foi um acontecimento terrível e deplorável!
— Fish! — retorquiu Alderman. — Fish, meu bom amigo, que há? Espero
que não seja nada de revolucionário! Nenhuma tentativa de interferir
com os magistrados!
— Deedles, o banqueiro — sussurrou o secretário. — Deedles Brothers
(que era para cá ter estado hoje), o mais importante nos escritórios
da companhia Goldsmith...
— Não me diga que foi suspenso! — exclamou Alderman. — Não pode ser!
— Suicidou-se.
— Meu Deus!
— Pôs uma pistola de dois canos à boca, no seu próprio escritório —
disse o senhor Fish —, e estourou com os miolos. Sem motivo. Altas
razões!
— Razões? — exclamou Alderman. — Um homem de nobre fortuna. Um dos
homens mais respeitáveis. Suicidar-se, senhor Fish! Por sua própria
mão!
— Esta manhã mesmo — replicou o senhor Fish.
— Oh, o cérebro, o cérebro! — exclamou o piedoso Alderman erguendo
as mãos. — Ah, os nervos, os nervos! Os mistérios desta máquina
chamada Homem! Tão pouco basta para a desengonçar. Que pobres seres
nós somos! Talvez por um jantar, senhor Fish. Talvez pela conduta de
seu filho, que segundo ouvi dizer era muito descontrolada e que tinha
o hábito de fazer contas em seu nome sem a mínima autoridade! Um
homem muito respeitável. Um dos homens mais respeitáveis que alguma
186

vez conheci! Um incidente lamentável, senhor Fish. Uma calamidade


pública! Farei questão de trazer luto carregado. Um homem muito
respeitável! Mas lá em cima há Alguém. Temos de nos submeter, senhor
Fish. Temos de nos submeter!
O quê, Alderman? Nem falaste em deitar abaixo? Lembra-te,
magistrado, do teu falatório sobre o orgulho e elevada moral. Vá lá,
Alderman. Põe os pratos da balança a funcionar! Atira-me para este o
vazio, sem jantar, e um exemplar da natureza, numa pobre mulher, seca
pela fome e amadurecida às súplicas às quais o seu filho tem direito
pela santa mãe Eva. Pesa os dois, meu Daniel, que irás a julgamento
quando o teu dia soar! Pesa-os à vista de milhares que sofrem, essa
audiência (não desinteressada) da farsa que representas. Ou supondo
que te tivesses afastado dos teus cinco sentidos (não vamos tão
longe, mas poderia ser) e deitasses a mão à tua garganta, avisando os
teus amigos (se é que tens amigos) como grasnam a sua maldade às
cabeças em desvario e dos corações aflitos. E então?
As palavras subiram no peito de Trotty, como se tivessem sido ditas
por outra voz dentro dele. Alderman Cute ofereceu-se ao senhor Fish
para o ajudar a dar a notícia da triste desgraça a Sir Joseph quando
o dia acabou. Então, antes de partirem, torcendo a mão do senhor Fish
com grande amargura de alma, disse: «Era o mais respeitável dos
homens!», e acrescentou que não sabia (e não era só ele) porque é que
no mundo são permitidas tais desgraças.
— Quase basta para nos fazer pensar, se já não soubéssemos — disse
Alderman Cute —, que naqueles tempos estava em curso algum movimento
de natureza sediciosa, que afectava a economia geral do sistema
social. Deedles Brothers!

187

O jogo de boliche decorreu com imenso sucesso. Sir Joseph derrubou


as marcas com bastante destreza e o menino Bowley fez uma boa jogada
também, a uma distância mais curta. Toda a gente dizia que agora,
quando um baronete e o filho dum baronete jogavam ao boliche, o país
estava a recuperar novamente e a recuperar depressa.
Na devida altura foi servido o banquete. Involuntariamente Trotty
dirigiu-se para o salão com os outros, pois sentia-se ali levado mais
por um estranho impulso do que por sua livre vontade. O espectáculo
era lindo: as senhoras estavam muito elegantes e os visitantes
encantados, alegres e bem humorados. Quando se abriram as portas mais
baixas e o povo entrou em rebanho, com os seus fatos rústicos, a
beleza do espectáculo atingiu o auge, mas Trotty murmurava cada vez
mais: «Onde é que está Richard? Ele podia ajudá-la a confortá-la! Não
vejo o Richard!»
Fizeram-se alguns discursos e pediu-se saúde para Lady Bowley e Sir
Joseph Bowley agradeceu e fez o seu grande discurso, mostrando por
factos que ele nasceu para amigo e pai, etc, etc, e brindou aos seus
amigos e filhos e à dignidade do trabalho. Nisto um pequeno incidente
ao fundo do salão atraiu a atenção de Toby. Depois de alguma
confusão, barulho e oposição, um homem abriu caminho entre os outros
e adiantou-se sozinho.
Não era Richard. Não. Mas um em quem ele tinha pensado e por quem
tinha procurado muitas vezes. Com menos luz, teria duvidado da
identidade daquele homem gasto, tão velho, tão grisalho, tão curvado;
mas, com um clarão de luz sobre a cabeça curtida pelo tempo e
emaranhada, reconheceu Will Fern no momento em que ele avançou.
— Que é isto? — exclamou Sir Joseph, erguendo-se. — Quem é que
deixou entrar este homem? É um criminoso vindo da prisão! Senhor
Fish, quer ter a bondade...

188

— Um momento! — disse Will Fern. — Um momento! Minha senhora, a


senhora nasceu neste dia com o Ano Novo. Dê-me autorização de falar
um momento.
Ela intercedeu por ele. Sir Joseph voltou a sentar-se, com a sua
primitiva dignidade.
O esfarrapado visitante (porque estava miseravelmente vestido) olhou
em volta para a assistência e prestou-lhe homenagem com uma humilde
vénia.
— Meus senhores! — disse ele. — Beberam ao trabalhador. Olhem para
mim!
— Acabou de sair da prisão — disse o senhor Fish.
— Acabei de sair da prisão — disse Will. — E já não é a primeira
vez, nem a segunda, nem a terceira, nem sequer a quarta.
Ouviu-se o senhor Filer notar de mau humor que quatro vezes era
acima da média e que ele devia ter vergonha.
— Meus senhores! — repetiu Will Fern. — Olhem para mim! Já viram que
estou no pior estado possível. Nada me pode ferir ou magoar. Não me
podeis ajudar, pois o tempo em que as vossas boas palavras e as
vossas boas acções me poderiam ter feito bem — bateu com a mão no
peito e abanou a cabeça — já lá vai, com o cheiro dos feijões do ano
passado ou do trevo. Deixem-me que lhes diga uma palavra para estes —
apontou para os trabalhadores que estavam no salão — e que enquanto
estão juntos ouçam a verdade dita pelo menos uma vez.
— Não há aqui um homem — disse o anfitrião — que o quisesse para
orador.
— É possível, Sir Joseph. Acredito, mas nem por isso é menos verdade
o que vou dizer. Talvez seja até uma prova disso. Meus senhores, vivi
aqui muito tempo. Podem ver dalém a cabana, dali da vedação quebrada.
Vi muitas vezes as senhoras a desenhar nos seus livros. Ouvi dizer
que ficam muito bem num quadro, mas nos quadros não há tempo e talvez

189

este lugar seja melhor para quadros do que para se viver. Bom, ali
vivi! Quão duramente, quão amarga e duramente ali vivi, nem posso
dizer. Qualquer dia do ano, e todos os dias, podem julgar por vós
próprios.
Falou como falara na noite em que Trotty o encontrara na rua. A sua
voz era mais profunda e mais rouca e havia nele de vez em quando uma
certa tremura, mas nunca a elevou com paixão e raramente ela soou
mais acima do nível duro e firme dos próprios factos domésticos que
ele relatava.
— É mais duro do que vocês pensam, meus senhores, crescer
decentemente, com um mínimo de decência, num tal lugar. Ter crescido
como um homem, e não como um selvagem, já diz algo de mim... do que
eu era, então. Por aquele que eu sou agora, nada pode ser dito nem
feito. Já ultrapassei essa fase.
— Estou contente por este homem ter entrado — observou Sir Joseph,
olhando em volta, com serenidade. — Não o interrompam. Parece que foi
o destino. Ele é um exemplo, um exemplo vivo. Tenho esperança, confio
e espero confiantemente que ele não se perca entre os meus amigos
aqui presentes.
— Continuei a arrastar-me — disse Fern após um momento de silêncio —
, de qualquer maneira. Nem eu nem qualquer homem sabe como, mas tão
pesadamente que não podia mostrar boa cara ou fingir aquilo que não
era. Olhem, cavalheiros, vocês cavalheiros, que vão ao Parlamento,
quando vêem um homem com expressão de descontentamento no rosto dizem
uns para os outros: «É suspeito. Tenho as minhas dúvidas sobre o Will
Fern», dizem, «vigiem esse indivíduo!». Não digo, meus senhores, que
não seja muito natural, mas assim é e, desse momento em diante, tudo
o que Will Fern fizer, ou deixar de fazer, mas tudo, será contra ele.

190

Alderman Cute meteu os polegares nos bolsos do colete e recostando-


-se na cadeira, a sorrir, piscou os olhos para o candelabro que tinha
ao lado, para dizer apenas:
— Claro! Bem vos digo. É a lamentação usual! Valha-te Deus, estamos
sujeitos a este tipo de coisas... eu e a natureza humana.
— Olhem, meus senhores — disse Will Fern, estendendo as mãos
enquanto o seu rosto macilento se ruborizava —, vejam como as vossas
leis são feitas para nos encurralarem e nos perseguirem, quando
chegamos a este estado. Tentei viver noutro lado. E sou um vagabundo.
Cadeia com ele! Volto novamente, para cá. Vou apanhar nozes e quebro
(quem não faz o mesmo?) um ou dois ramos flexíveis. Cadeia com ele!
Um dos vossos guardas vê-me em pleno dia, junto do meu pedaço de
jardim, com uma arma. Cadeia com ele! Tenho, muito naturalmente, uma
palavra azeda com esse homem quando saio em liberdade. Cadeia com
ele! Corto um pau. Cadeia com ele! Como um nabo ou uma maçã podre.
Cadeia com ele! São vinte milhas de distância e no caminho peço uma
bagatela. Cadeia com ele! Por fim, o oficial da polícia, o guarda,
seja quem for, vê-me em qualquer lado sem fazer nada. Cadeia com ele,
porque é um vadio, um pássaro de gaiola; e a cadeia é a única casa
que tenho.
Alderman fez um sinal de entendimento com a cabeça, como se
dissesse: «E é uma bela casa!»
— Acham que digo isto para servir a MINHA causa?! — exclamou Fern. —
Quem é que pode devolver-me a minha liberdade, quem pode devolver-me
o meu bom nome, quem pode devolver-me a minha inocente sobrinha? Nem
todos os lordes e ladies de toda a Inglaterra. Mas, senhores,
senhores que lidais com outros homens como eu, começai pelo
princípio. Dêem-nos, por piedade, melhores casas, quando ainda

191

estamos no berço; dêem-nos melhor alimentação, quando trabalhamos


para viver; dêem-nos melhores leis, para nos trazer ao bom caminho
quando erramos; e não coloquem na nossa frente sempre a cadeia, a
cadeia, a cadeia, para onde quer que nos viremos. Não haverá então
concessão feita ao trabalhador que ele não aceite tão pronta e
agradecidamente como nenhum homem, porque o seu coração é paciente,
pacífico e condescendente. Mas têm primeiro de pôr nele o espírito
recto; pois quer ele seja um destroço e uma ruína como eu, ou seja
como um destes que aqui estão neste momento, o seu espírito está
separado de vós. Recuperem-no, meus senhores, recuperem-no!
Recuperem-no antes que chegue o dia em que até no seu espírito
alterado a sua Bíblia apareça modificada e lhes pareça que as
palavras dizem, como já a meus olhos pareceram dizer... na cadeia:
«Por onde tu fores eu não irei, onde habitares eu não habitarei, o
teu povo não é o meu povo, nem o teu Deus é o meu Deus!».
Gerou-se um súbito movimento e uma súbita agitação no salão. Trotty
pensou a princípio que vários se tinham levantado para expulsar o
homem e daí a modificação do seu aspecto. Mas no momento seguinte viu
que a sala e todos os convidados tinham desaparecido da sua frente e
que tinha ali de novo a sua filha sentada a trabalhar, mas num sótão
ainda mais pobre e humilde e sem Lilian junto dela.
O bastidor a que estivera a trabalhar estava posto numa prateleira e
coberto. A cadeira onde estivera sentada estava virada para a parede.
Nestas pequenas coisas e no rosto de Meg consumido pelo desgosto
estava escrita uma história. Oh! Quem não a lia!
Meg esforçava os olhos no trabalho antes que fosse escuro de mais
para ver as linhas; e quando a noite caiu,acendeu a débil vela e

192

continuou a trabalhar. O seu velho pai ali estava invisível junto


dela, amando-a (e como a amava!), falando com ela em voz terna sobre
os velhos tempos e sobre os sinos, embora ele soubesse, pobre Trotty,
que ela não podia ouvi-lo.
Já grande parte do serão tinha passado quando se ouviu uma pancada
na porta. Abriu-a. Estava um homem na soleira. Um bêbado desmazelado,
curvado, taciturno, gasto pelos excessos e pelo vício e com o cabelo
emaranhado e a barba crescida em terrível desordem; mas mantendo
ainda sinais de ter sido na sua juventude um homem de boa figura e
bem parecido.
Deteve-se até ter licença de entrar; e ela, desviando-se um ou dois
passos da porta aberta, olhou-o silenciosa e tristemente. A vontade
de Trotty fizera-se. Já vira Richard.
— Posso entrar, Margaret?
— Sim! Entra, entra!
Ainda bem que Trotty o conhecera antes de ele ter falado; porque, se
alguma dúvida persistisse no seu espírito, aquela voz áspera e
dissonante tê-lo-ia persuadido de que aquele não era Richard, mas
qualquer outro homem.
Só havia duas cadeiras na sala. Deu-lhe a dela e ficou de pé a pouca
distância, esperando o que ele tinha para dizer.
Ele, porém, sentou-se olhando abstractamente o chão, com um sorriso
estúpido e sem brilho. Era uma visão de tão profunda degradação, de
desesperança tão abjecta, de tão infeliz descalabro que ela pôs as
mãos no rosto e virou-se, para que ele não visse quanto ela se
emocionava.
Despertado pelo roçagar do vestido dela, ou por qualquer som
insignificante, ergueu a cabeça e começou a falar como se não tivesse
havido qualquer interrupção desde que entrara.

193

— Ainda estás a trabalhar, Margaret? Trabalhas até tarde?


— Geralmente trabalho.
— E de manhã cedo?
— De manha cedo.
— Ela bem dizia. Dizia que nunca te cansavas ou que nunca dava por
tu te cansares, enquanto viveram juntas. Nem quando desmaiaste devido
ao trabalho e ao jejum. Eu disse-te isso da última vez que cá estive.
— Disseste — respondeu ela. — E eu supliquei-te que não me contasses
mais nada; e tu prometeste-me solenemente, Richard, que não mais
dirias.
— Foi uma promessa solene — repetiu ele com voz fátua e um olhar
vazio. — Foi uma promessa solene. Foi mesmo uma promessa solene! —
Estando como já estivera e sendo despertado como antes, disse com
súbita animação: — Como posso evitar, Margaret? Que hei-de fazer? Ela
voltou a ir ter comigo!
— Outra vez? — exclamou Meg pondo as mãos. — Oh, ela pensa assim
tanto em mim? Esteve lá outra vez?
— Voltou lá vinte vezes — disse Richard. — Margaret, ela persegue-
-me. Vem atrás de mim na rua e enfia-mo na mão à força. Ouço-lhe o pé
sobre as cinzas quando trabalho (ah, ah!, isso não é muitas vezes) e,
antes que eu possa virar a cabeça, a voz dela diz-me ao ouvido:
«Richard, não te vires. Por amor de Deus, dá-lhe isto!». Ela manda-mo
a casa, manda-o por carta, bate-me à janela e pousa-o no parapeito. —
Que é que tu posso fazer? Olha!
Estendeu a mão com uma pequena bolsa e chocalhou o dinheiro que lá
havia dentro.
— Esconde isso — disse Meg. — Esconde isso! Quando ela voltar, diz-
-lhe, Richard, quando ela voltar, que a amo de todo o coração. Que
nunca me deito para dormir que não a abençoe e reze por ela. Que no
meu trabalho solitário nunca deixo de a ter no pensamento. Que ela

194

está comigo dia e noite. Que se eu morresse amanhã, no meu último


momento lembrá-la-ia, mas que não posso olhar para isso!
Lentamente ele voltou a encolher a mão e a esmagar a bolsa e disse
numa espécie de reflexão sonolenta:
— Eu já lhe tinha dito isso. Disse-lho tão claramente quanto é
possível. Desde aí já peguei nesta oferta e voltei a pô-la à porta
uma dúzia de vezes. Mas quando por fim ela veio e se pôs na minha
frente, cara a cara, que é que eu podia fazer?
— Viste-a! — exclamou Meg. — Viste-a! Oh, Lilian, minha pequenina!
Oh, Lilian, Lilian!
— Vi-a — continuou ele, não em resposta, mas embrenhado na mesma
toada lenta dos seus pensamentos.
— Ela ali estava: a tremer! «Como está ela, Richard? Ela fala alguma
vez em mim? Está mais magra? No meu antigo lugar, à mesa, que é que
está? E o bastidor em que me ensinou o nosso velho trabalho, já o
queimou, Richard?» Ela ali estava e foi o que eu a ouvi dizer.
Meg conteve os soluços e com as lágrimas a correr curvou-se para ele
para ouvir. Não queria perder nem um suspiro.
Prosseguia com os braços pousados nos joelhos e inclinando-se para a
frente na cadeira, como se o que dizia estivesse escrito no chão em
caracteres dificilmente legíveis, que a ele competia decifrar e
coordenar.
— «Richard, eu desci muito baixo e deves calcular quanto sofri para
devolver isto, quando tenho de to trazer em mão. Mas tu amaste-a
muito, mesmo em minha memória. Outras coisas se interpuseram entre
vós; medos, ciúmes, dúvidas e vaidades afastaram-te dela, mas tu
amáva-la mesmo em minha memória!» Acho que amava — disse ele
interrompendo-se por um momento. — Amava! E isso todos sabem. «Oh,

195

Richard, se a amaste alguma vez, se te resta alguma lembrança do que


já lá vai e já se perdeu, leva-lhe isto mais uma vez. Mais uma vez!
Diz-lhe como deitei a minha cabeça no teu ombro, onde a poderia ter
repousado e como fui humilde contigo, Richard. Diz-lhe que olhaste
para o meu rosto e viste que a beleza, que ela costumava elogiar,
desaparecera por completo, por completo, e que em seu lugar viste uma
face infeliz, pálida, encovada, que a faria chorar se ela a visse.
Diz-lhe tudo e leva-lho de novo, que ela não há-de recusá-lo outra
vez. Não terá coragem!»
Ele ficou ali sentado, assim, repetindo as últimas palavras até
despertar de novo e levantar-se.
— Não aceitas, Margaret?
Ela abanou a cabeça e fez-lhe sinal de que a deixasse.
— Boa noite, Margaret.
— Boa noite!
Ele virou-se para a olhar, tocado pelo seu desgosto e talvez pela
pena que por ele sentia e que se reflectia na sua voz tremente. Foi
um movimento rápido; e por um momento brilhou na sua silhueta um
lampejo do seu antigo porte. Logo voltou como tinha vindo. Mas nem
esta centelha de fogo apagado pareceu acender nele uma mais subtil
percepção da sua degradação.
Com qualquer disposição, qualquer desgosto, qualquer tortura de
espírito ou de corpo, o trabalho de Meg tem de ser feito. Ela sentou-
-se ao trabalho e trabalhou com afinco. Noite, meia-noite e ainda ela
trabalhava.
A noite estava muito fria e ela só tinha um lume muito pobre.
Levantava-se de vez em quando para o espevitar. Estava assim ocupada
quando os sinos bateram a meia-noite e meia; e, quando se calaram,
ouviu uma leve pancada na porta. Antes que pudesse perguntar-se quem
seria, a uma hora tão imprópria, ela abriu-se.

196

Ó juventude e beleza, felizes como vós deveis ser, olhai para isto.
Ó juventude e beleza, abençoada e abençoando tudo o que está ao teu
alcance e cumprindo os fins do teu benévolo Criador, olha para isto!
Ela viu a figura que entrava, gritou o seu nome, exclamou:
— Lilian!
Ela precipitou-se e caiu-lhe de joelhos aos pés, agarrando-se-lhe ao
vestido.
— Upa, Lilian! De pé! Minha queridinha!
— Nunca mais, Meg, nunca mais! Aqui, aqui! Próximo de ti, abraçando-
-te, sentindo o teu hálito no meu rosto!
— Querida Lilian! Adorada Lilian! Filha do meu coração, deita a tua
cabeça no meu peito. Não há amor de mãe mais terno do que este.
— Nunca mais, Meg. Nunca mais! Quando te vi pela primeira vez, Meg,
ajoelhaste diante de mim. Agora ajoelho-me eu, antes que morra.
Deixa-me aqui estar!
— Voltaste, meu tesouro! Viveremos juntas, trabalharemos juntas,
juntas teremos esperança e juntas morreremos!
— Ah, beija-me, Meg, envolve-me com os teus braços, aperta-me ao teu
peito, olha-me com doçura, mas não me ergas. Deixa-me estar. Deixa-me
ver pela última vez o teu rosto, de joelhos!
Ó juventude e beleza, felizes como deveis ser, olhai para isto! Ó
juventude e beleza, cumprindo os fins designados pelo vosso benévolo
Criador, olhai para isto!
— Perdoa-me, Meg! Querida, querida! Perdoa-me! Sei que me perdoas,
vejo-o, mas diz-mo, Meg!
Ela disse-o com os lábios na face de Lilian e com os braços em torno
do que ela sabia agora ser um coração despedaçado.

197

— Que a Sua benção desça sobre ti, minha querida. Beija-me uma vez
mais! Ele deixou que ela se sentasse a Seus pés e lhos secasse com o
seu cabelo. Ó Meg, que piedade e que compaixão!
Mal ela morreu, o espírito da criança regressou inocente e radiante,
tocou o velho com a mão e acenou-lhe que se afastasse.

Quarto quarto

Uma nova lembrança das fantasmagóricas figuras dos sinos; uma ténue
impressão do som dos sinos; uma confusa consciência de ter visto a
multidão de fantasmas reproduzidos e reproduzidos até a reminiscência
deles se perder na confusão do seu número; um conhecimento apressado,
que ele não sabia como lhe tinha chegado, de que mais anos tinham
passado; e Trotty, com o espírito da criança acompanhando-o,
continuava a observar o mundo dos mortais.
Gente gorda, corada, bem instalada. Só havia dois, mas eram corados
por dez. Estavam sentados em frente dum lume brilhante, com uma
mesinha baixa entre eles; e a menos que a fragrância do chá quente e
dos bolinhos se misturasse por mais tempo naquela salinha do que em
muitas outras, a mesinha tinha sido utilizada muito recentemente.
Todas as chávenas e pires, porém, estavam limpas e no seu lugar na
cantoneira; e o garfo de grelhados, de cobre, estava no seu recanto
habitual, com os seus quatro dentes ociosos bem abertos como se
quisesse parecer-se com uma luva; não havia outros indícios visíveis
da refeição que tinha terminado, a não ser no ronronar e no lamber
dos bigodes do gato e o brilho nas faces afáveis, para não dizer
gordas, dos seus donos.
Este confortável casal (casado, evidentemente) dividira entre si
muito justamente o lume e estavam sentados olhando as brilhantes

199

centelhas que caíam na grelha, ora escabeceando sonolentos, ora


acordando quando algum fragmento quente, maior do que os outros, caía
ressoando como se o lume viesse atrás dele.
Não havia, porém, perigo de se apagar rapidamente, porque brilhava
não só na salinha, como nas bandeiras da porta e na cortina
semicorrida sobre elas, mas também na pequena loja que ficava para lá
da porta. Era uma lojazinha completamente atafulhada e atravancada
com a abundância das suas provisões, uma lojazinha perfeitamente
voraz, com um ventre tão acomodatício e tão cheio como o de um
tubarão. Queijo, manteiga, lenha, sabão, pickles, fósforos, toucinho
fumado, cerveja, pitorras, frutas cristalizadas, papagaios para os
garotos, sementes para pássaros, presunto frio, vassouras de
vidoeiro, pedras de lareira, sal, vinagre, graxa, arenques, artigos
de escritório, toucinho, molho picante de cogumelos, rendas para cor-
petes, pães, pélas, ovos e penas de ardósia; nesta loja ávida, tudo
que vinha à rede era peixe e na sua rede havia todos os artigos.
Seria difícil dizer quantas outras qualidades de miudezas lá havia,
mas do tecto pendiam em molhos como frutos exóticos: novelos de fio
para coser fardos, fiadas de cebolas, libras de velas, redes de
couves e escovas, enquanto várias canastras esquisitas, donde se
desprendiam odores aromáticos, confirmavam a veracidade da inscrição
na porta da frente, a qual informava o público de que o dono desta
lojazinha era um acreditado comerciante de chá, café, tabaco, pimenta
e rapé.
Deitando uma olhadela a tais artigos, visíveis ao brilho da lareira
e à luz menos radiante de dois candeeiros enfarruscados que ardiam
obscuramente na loja propriamente dita, como se a sua abundância lhe
pesasse nos pulmões; olhando, então, para um desses rostos junto da
lareira da sala, Trotty teve pouca dificuldade em reconhecer na velha

200

e imponente senhora a senhora Chickenstalker, sempre com tendência


para a obesidade, mesmo já nos tempos em que ele a conhecera no
comércio geral e tendo uma dívida dele nos seus livros.
Os traços do seu companheiro eram-lhe menos distintos. O queixo
grande e profundo, com grandes pregas onde caberia um dedo; os olhos
espantados, que pareciam contender entre si para se afundarem cada
vez mais na gorda cara; o nariz perturbado com a desordenada acção
das suas funções, normalmente denominada de catarro nasal; a garganta
curta e grossa e o peito arfante; e outras belezas de descrição
semelhantes que, ainda que calculadas para impressionar a memória,
Trotty não conseguia atribuir a ninguém que tivesse conhecido, mas
das quais tinha no entanto ideia. Por fim, a traços gerais e seguindo
uma linha da vida torta e defeituosa, ele reconheceu no companheiro
da senhora Chickenstalker o antigo lacaio de Sir Joseph Bowley, um
inocente apoplético que na mente de Trotty se ligara à senhora
Chickenstalker anos antes, por lhe ter dado entrada na mansão onde
ele confessara as suas dívidas para com essa senhora e atraíra sobre
a sua infeliz pessoa graves censuras.
Trotty tinha pouco interesse em tal modificação, depois das
modificações a que tinha assistido; mas a associação é por vezes
muito forte e ele olhou involuntariamente para trás da porta da sala,
onde costumavam estar anotadas a giz as contas dos clientes que
deviam. Não havia qualquer registo do seu nome. Estavam lá alguns
nomes, mas que ele não conhecia e que eram muitíssimo menos do que os
antigos; do que ele depreendeu que o lacaio advogava as transacções a
pronto e ao entrar no negócio tinha passado a olhar com severidade os
devedores da senhora Chickenstalker.
Trotty estava tão desolado, tão choroso pela juventude e pelo futuro

201

da sua menina estiolada, que para ele fora uma tristeza até o facto
de não constar no livro razão da senhora Chickenstalker.
— Que tempo faz esta noite, Anne? — inquiriu o antigo lacaio de Sir
Joseph Bowley, estendendo as pernas em frente do lume, esfregando-as
tanto quanto os seus braços curtos permitiam, com um ar que dizia:
«Se está mau, aqui estou; e se está bom, não quero sair».
— Faz vento e está a cair granizo — respondeu-lhe a mulher — e
ameaça nevar. Está escuro e muito frio.
— Estou contente por pensar que temos bolinhos — disse o ex-lacaio,
no tom de alguém que tivesse posto a consciência em descanso: — É
mesmo o género de noite talhada para os bolinhos, bem como para bolos
finos e para bolinhos de chá.
O ex-lacaio mencionava sucessivamente cada tipo de comestível, como
se enumerasse contemplativamente as suas boas acções. Depois disso
voltou a esfregar as pernas gordas, como anteriormente fizera,
puxando-as pelos joelhos para que o fogo desse nas partes ainda não
assadas, rindo-se como se alguém lhe estivesse a fazer cócegas.
— Estás contente, meu querido Tugby — observou a mulher.
A firma era Tugby, ex-Chickenstalker.
— Não — disse Tugby. — Não, nem por isso. Estou um bocado excitado.
Os bolinhos caíram-me mesmo bem!
Ao dizer isto riu-se até ficar negro e custou-lhe tanto a mudar de
cor que as suas pernas gordas fizeram as mais estranhas evoluções no
ar. Só adquiriram um certo decoro quando a senhora Tugby lhe deu
violenta palmada nas costas e o abanou como se ele fosse uma grande
garrafa.

202

— Valha-me Deus, Deus seja louvado, o senhor nos acuda! — exclamou a


senhora Tugby muito assustada. — Que é que ele está a fazer?
O senhor Tugby esfregou os olhos e repetiu debilmente que estava um
pouco excitado.
— Então não voltes a estar, por amor de Deus — disse a senhora Tugby
—, se não queres matar-me de susto, com esse lutar e esbracejar!
O senhor Tugby disse que não, mas toda a sua existência era uma
luta, da qual, a julgar pela brevidade sempre aumentada da sua
respiração e da cor púrpura escura do seu rosto, ele estava sempre a
sair vencido.
— Está então a fazer vento, a cair granizo e a ameaçar neve; e está
escuro e muito frio, minha querida? — disse o senhor Tugby, olhando
para o lume, regressando ao âmago e à essência da sua meditação
temporária.
— Está mesmo mau tempo — respondeu-lhe a mulher abanando a cabeça.
— Hum, hum! Os anos são, nesse aspecto, como os cristãos — disse o
senhor Tugby. — Uns morrem facilmente, outros morrem dificilmente.
Este já não tem muitos dias para viver e está a lutar pelos que lhe
restam. Assim ainda gosta mais dele. Olha, minha querida, está ali um
cliente!
Atenta à porta que tilintava, a senhora Tugby já se tinha levantado.
— Já lá vai! — disse a senhora, passando para a loja. — Que deseja?
Oh, desculpe, senhor. Não pensei que fosse o senhor.
Ela pediu estas desculpas a um senhor de preto que, de punhos
arregaçados, com o chapéu descuidadamente posto de lado e de mãos nos
bolsos, estava sentado escarranchado no barril da cerveja e lhe
acenou com a cabeça em resposta.

203
— Lá em cima a coisa vai mal, senhora Tugby — disse o cavalheiro. —
O homem não resiste.
— Nem o sótão das traseiras resiste! — gritou Tugby, aparecendo na
loja para se juntar à reunião.
— O sótão das traseiras, senhor Tugby — disse o cavalheiro —, vai
desabar em breve, e muito em breve ficará abaixo da cave.
Olhando ora para Tugby, ora para a mulher, fez ressoar com os nós
dos dedos as profundezas do barril, procurando o fundo à cerveja e,
tendo-o encontrado, tocou uma melodia na parte vazia.
— O sótão das traseiras, senhor Tugby — disse o cavalheiro, enquanto
aquele permanecia numa consternação silenciosa, durante uns momentos
—, está a ir-se.
— Então — disse Tugby, virando-se para a mulher —, ele tem de ir
antes que se acabe, já sabes.
— Acho que não conseguem movê-lo — disse o cavalheiro, abanando a
cabeça. — Eu próprio não tomaria a responsabilidade de dizer que ele
podia ser mudado. Faziam melhor deixá-lo onde está. Pode viver mais
tempo.
— É o único assunto sobre o qual discutimos, ele e eu; e veja o que
deu! — disse Tugby, fazendo baixar sobre o balcão com estrondo a
balança da manteiga, sob o peso do seu pulso. — No fim de contas, ele
vai morrer aqui. Vai morrer aqui! Vai morrer em nossa casa!
— E onde é que ele havia de morrer? — gritou-lhe a mulher.
— No asilo — respondeu-lhe ele. — Para que é que servem os asilos?
— Para aquele, não! — disse a senhora Tugby com grande energia. —
Para aquele não! Nem foi para isso que eu casei contigo. Não penses
nisso, Tugby. Não tolero. Não permito. Antes queria separar-me de ti
e nunca mais te ver. Quando o meu nome de viúva estava naquela porta,

204

como esteve durante muitos anos, esta casa era conhecida por toda a
gente como a da senhora Chickenstalker e só pelo seu crédito honesto
e pelas suas boas referências. Quando o meu nome de viúva estava
sobre aquela porta, Tugby, eu conheci-o como um jovem bem parecido,
vigoroso, másculo e independente, e conheci-a a ela, a rapariga mais
doce que jamais conheci. Conheci o pai dela (pobre velhote, caiu do
campanário durante o sono e morreu) como o homem mais simples, mais
trabalhador, de coração mais puro que jamais existiu. E quando eu os
expulsar da minha casa e do meu lar, que os anjos me expulsem do Céu.
Que assim faça e é bem feito!
A cara dela, que antes de se darem estas modificações era balofa e
com covinhas, parecia superá-la, ao dizer estas palavras; e quando
ela secou os olhos e abanou a cabeça e o lenço para Tugby, com uma
expressão de determinação a que era evidente não se poder facilmente
resistir, Trotty disse: «Abençoada seja! Abençoada seja!».
Escutou depois, com o coração ofegante, o que se seguiria. Sabendo
apenas naquela altura que falavam de Meg.
Se Tugby tivesse sido mais nobre na sala, talvez tivesse ajustado
aquelas contas, sem ficar um pouco deprimido na loja, onde estava
agora olhando fixamente para a sua mulher, sem tentar sequer dar
resposta; levando porém em segredo (ou por acesso de abstracção ou
por medida de precaução), nos bolsos, o dinheiro da caixa
registadora, enquanto a fitava. O cavalheiro que estava em cima da
pipa de cerveja, que parecia ser médico autorizado, com tabuleta,
estava evidentemente habituado a pequenas diferenças de opinião entre
marido e mulher, para fazer naquele momento qualquer observação.
Permanecia sentado, assobiando calmamente e deixando cair no chão
pequenas gotas de cerveja, até se restabelecer a completa calma. Foi

205

então que levantou a cabeça e disse à senhora Tugbv, ex-


Chickenstalker:
— Mesmo agora há algo de interessante na mulher. Como é que ela
casou com ele?
—Ah, essa — disse a senhora Tugby, sentando-se junto dele —, essa
não é a parte menos cruel da sua história. Sabe, eles andaram juntos
há muitos anos. Quando eram um casal jovem e belo, tudo estava
destinado e eram para se casar num dia de Ano Novo. Richard, porém,
meteu na cabeça, por conselho do senhor, que faria melhor e que
depressa se arrependeria e que ela não era suficientemente boa para
ele e que um jovem alegre não devia casar-se. O senhor assustou-a e
despertou nela a melancolia e o receio de que ele a deixasse, de que
os seus filhos fossem para as galés e de que fossem maus para marido
e mulher e sei lá quantas coisas mais. Resumindo: foram adiando,
adiando e quebrou-se a confiança mútua e por fim desfez-se o
compromisso. Mas a culpa foi dele. Ela teria casado com ele de bom
grado. Vi-a muitas vezes, depois disso, engolir em seco quando ele
passava por ela de maneira desinteressada e orgulhosa e nunca uma
mulher sofreu mais sinceramente por um homem do que ela por Richard,
quando ele começou a andar mal.
— Oh, ele procedeu mal, não procedeu? — disse o cavalheiro tirando a
rolha do barril e tentando espreitar lá para dentro pelo buraco.
— Bem, eu não sei se ele estava em si, sabe. Acho que ele tinha a
mente perturbada, por terem rompido e além disso por ter sido
envergonhado perante os senhores e também talvez pela incerteza de
como ela aceitaria. Ele deve ter sofrido e passado por uma certa
provação, tendo quebrado o compromisso com Meg e tendo voltado a pe-
dir-lhe a mão. Isto é o que eu penso. Que ele nunca o disse e ainda
mais é de lastimar! Entregou-se à bebida, à ociosidade, às más

206

companhias, todas as tais coisas que seriam melhores para ele do que
um lar. Perdeu o seu bom aspecto, a sua personalidade, a sua saúde,
as suas forças, os seus amigos, o seu trabalho, tudo!
— Não perdeu tudo, senhora Tugby — replicou o cavalheiro —, porque
ganhou uma esposa, e quero saber como é que ele a ganhou.
—Já lá vou, dentro de momentos. Isto continuou durante anos e anos.
Ele cada vez mais se afundava. Ela, pobrezinha, sofria miséria que
chegava para lhe tirar a vida. Por fim, estava tão abatido e era tão
repudiado que já ninguém lhe dava trabalho nem lhe ligava; fosse onde
fosse, todas as portas se lhe fechavam. Pedindo aqui e ali e de porta
em porta e indo pela centésima vez ter com um senhor que já muitas
vezes lhe dera oportunidades (ele foi até ao fim sempre um bom
trabalhador), esse senhor, que conhecia a sua história, disse-lhe:
«Acho que és incorrigível, só há uma pessoa no mundo que pode
emendar-te. Até ela o tentar, não me peças que confie mais em ti».
Disse-lhe uma coisa assim deste género, para sua cólera e vexame.
— Ah! — disse o cavalheiro. — E então?
— Então, ele foi ter com ela, ajoelhou-se, disse-lhe que era assim e
que sempre fora assim e implorou-lhe que o salvasse.
— E ela?... Não se aflija, senhora Tugby.
— Ela veio ter comigo naquela noite, pedir-me para viver aqui. «O
que ele um dia foi para mim», disse ela, «está enterrado numa
sepultura, lado a lado com o que eu fui para ele. Mas pensei nisto e
tomei a decisão. Na esperança de o salvar, pelo amor daquela
jovenzinha feliz (lembra-se dela?) que se ia casar no dia de Ano Novo
e por amor de Richard.» E disse que ele tinha vindo ter com ela, da
parte de Lilian e que Lilian confiava nele e ela não podia esquecer

207

isso. Assim se casaram; e quando vieram para aqui morar e eu os vi,


tive esperança que as tais profecias que os apartaram em novos não se
cumpririam, frequentemente, como neste caso se cumpriram, ou não
queria ser eu a fazê-las nem por uma montanha de ouro. O cavalheiro
saltou do barril e espreguiçou-se, observando:
— Ele começou logo que casaram a fazê-la sofrer, não?
— Acho que nunca o fez — disse a senhora Tugby, abanando a cabeça e
limpando os olhos. — Ele melhorou durante algum tempo, mas os seus
hábitos eram demasiado velhos e fortes para se livrar deles. Em breve
decaiu um pouco, estava já a voltar atrás intensamente, quando foi
assaltado pela doença. Acho que ele sempre gostou dela. Tenho a
certeza. Vi-o, nos seus acessos de tremores e de gritos, tentar
beijar-lhe a mão e ouvi-o chamar «Meg» e dizer que era o dia em que
ela fazia dezanove anos. Agora ali está na cama há semanas ou meses.
Entre ele e o bebé, ela não tem tido tempo de fazer o seu antigo
trabalho; e, não podendo ser regular, perdeu-o, e mesmo que pudesse
perdê-lo-ia. Como têm sobrevivido, não sei!
— Sei eu — resmungou o senhor Tugby, olhando para a caixa
registadora, para toda a loja e para a mulher e rodando a cabeça
significativamente. — Comem e bebem do melhor!
Foi interrompido por um grito (em tom de lamentação) proveniente do
andar superior. O cavalheiro dirigiu-se apressadamente para a porta.
— Meu amigo — disse ele olhando para trás —, já não precisa de
discutir se ele deve ser mudado, se não. Creio que já lhe poupou esse
trabalho.
Dizendo isto, correu escada acima, seguido pela senhora Tugby,
enquanto o senhor Tugby resfolegava e resmungava, seguindo-os com
todo o vagar, com a respiração mais curta do que habitualmente, pelo

208

peso da caixa que continha uma quantidade despropositada de moedas.


Trotty, com a criança ao lado, flutuou pela escada como o ar.
— Segue-a, segue-a, segue-a! — ouviu as fantasmagóricas vozes dos
sinos repetirem as palavras enquanto subia. — Aprende com a criatura
que te é mais querida!
Tudo estava acabado. Tudo estava acabado. E era ela, a alegria e o
orgulho do seu pai! Aquela mulher macilenta e desprezível, que
chorava junto à cama, se é que aquilo assim se podia chamar,
apertando ao peito e inclinando a cabeça sobre uma criança. Sabe Deus
como aquela criança era magra, enfermiça e infeliz. E sabe Deus quão
amada!
— Graças a Deus! — exclamou Trotty, erguendo as mãos postas. — Oh,
Deus seja louvado! Ela ama o filho!
O cavalheiro, embora não indiferente ou endurecido perante tais
cenas, tanto mais que as via todos os dias, sabia que elas eram
números de qualquer momento nos registos do Criador — meros riscos na
trama daqueles cálculos —, pousou a mão no coração que já não batia,
escutou a respiração e disse: «O seu sofrimento já acabou. Foi melhor
assim!». A senhora Tugby tentou confortá-la ternamente. O senhor
Tugby optou pela filosofia.
— Pronto, pronto! — dizia ele de mãos nos bolsos. — Não deve
desesperar. Isso não resolve nada. Deve lutar. O que teria sido de
mim se eu tivesse desistido quando era lacaio, chegámos a ter seis
carruagens à porta para fugirmos! Mas recorri à minha força de
espírito e não as abri!
Trotty ouviu novamente as vozes dizerem: «Segue-a!». Virou-se para o
seu guia e viu-o erguer-se e atravessar o ar. «Segue-a!», disse ele e
desapareceu!
Ele pairou em torno dela e sentou-se a seus pés. Olhou-lhe o rosto,
procurando nele o seu antigo eu e escutou uma nota da sua agradável

209

voz. Esvoaçou em volta da criança, tão gasta, tão envelhecida


prematuramente, tão terrível na sua seriedade, tão queixosa no seu
choro dócil, lamentoso e triste. Quase que venerava. Agarrou-se a ela
como uma tábua de salvação, como o último elo inquebrável que a
ligasse à capacidade de sofrer. Punha na frágil criança as esperanças
e a confiança do seu pai, observava cada olhar dela para o bebé,
quando o tinha nos braços, e exclamava milhares de vezes: «Ela ama-o!
Deus seja louvado, ela ama-o!».
Ele via a mulher fazer-lhe companhia à noite, voltar para junto
dela, quando o marido rabugento já estava a dormir e tudo estava em
silêncio, encorajá-la e chorar com ela e pôr-lhe comida. Ele via
nascer o dia e a noite, passar o tempo, a casa mortuária liberta da
morte, o compartimento entregue a ela e à criança que lamuriava e
chorava. Viu-o cansá-la, esgotá-la e quando ela caía de exaustão,
fazê-la recuperar consciência e agarrar-se a ela com as suas mãozitas
no bastidor, mas ela era solitária, terna e paciente com ele.
Paciente! Era a sua querida mãe no mais fundo do seu coração e da sua
alma e tinha o seu ser tão ligado ao dela como quando ainda não tinha
nascido e ela o trazia dentro de si.
Durante todo este tempo ela passava necessidades, definhando em
horrível e miserável necessidade. Com a criança nos braços batia a
todas as portas procurando trabalho; com a carita magra deitada no
colo e olhando a sua, ela fazia qualquer trabalho por uma quantia
miserável. Um dia e uma noite de trabalho por tantos farthing quantos
os números do mostrador do relógio. Podia por um momento aborrecer-se
com ela, descurá-la, olhá-la com uma ira de momento, ou bater-lhe na
irritação dum instante! Não. Ela era o seu conforto, amava-a sempre.
Não falava a ninguém da sua miséria e vagueava por longe durante o

210

dia para não ser interpelada pela sua única amiga, porque algum
auxílio que recebia dela ocasionara recentes discussões entre a boa
mulher e o marido e para ela era mais um desgosto ser a causa diária
de contendas e discussões, numa casa onde tanto devia.
Mesmo assim amava a criança. Amava-a cada vez mais. Mas operou-se
uma modificação na forma do seu amor. Uma noite.
Cantava levemente para a adormecer e passeava de cá para lá,
embalando-a, quando a porta se abriu suavemente e um homem espreitou
para dentro.
— Pela última vez — disse ele.
— William Fern!
— Pela última vez!
Pôs-se à escuta como um homem que é perseguido e falou em surdina.
— Margaret, a minha corrida está quase a chegar ao fim. Não podia
acabá-la sem uma palavra de despedida para ti. Sem uma palavra de
gratidão.
— Que é que fizeste? — perguntou, olhando-o aterrorizada.
Ele olhou-a, mas não lhe deu resposta.
Depois de um curto silêncio, fez um gesto com a mão, como se
quisesse afastar a pergunta dela, como se a varresse; e disse:
— Já lá vai muito tempo, Margaret, mas essa noite está tão fresca na
minha memória como sempre esteve. Mal sabíamos nós, então — completou
o que dizia olhando em volta —, que nos viríamos a encontrar assim. É
o teu filho, Margaret? Deixa-me pegar-lhe. Deixa-me pegar no teu
filho.
Pôs o chapéu na mão e pegou-lhe. E tremia ao olhá-lo da cabeça aos
pés.
— É uma menina?

211

— É.
Ele pôs a mão em frente da carinha do bebé.
— Estás a ver como estou fraco, Margaret, preciso até de arranjar
coragem para olhar para ela! Deixa-a estar por um momento. Não lhe
faço mal. Já lá vai muito tempo, mas... Como se chama?
— Margaret! — respondeu ela rapidamente.
— Ainda bem — disse ele. — Ainda bem!
Parecia respirar mais à vontade; e depois de se calar por um
momento, retirou a mão e olhou para a cara da criança, mas voltou a
cobri-la imediatamente.
— Margaret! — disse ele, devolvendo-lhe a criança. — É a Lilian.
— A Lilian!
— Tive o mesmo rosto nos meus braços quando a mãe de Lilian morreu e
a deixou!
— Quando a mãe de Lilian morreu e a deixou! — repetiu ela
asperamente.
— Falas tão asperamente! Porque é que me fixas assim? Margaret!
Ela afundou-se na cadeira e apertou a criança ao peito, chorando
sobre ela. Às vezes aliviava o abraço, para olhar ansiosamente a sua
carita, apertando-a depois contra o peito, novamente. Nessas alturas,
quando a fitava, havia algo de terrível e cruel que começava a
místurar-se ao seu amor. Foi então que o seu velho pai desanimou.
«Segue-a!», ouviu-se na casa. «Aprende com a pessoa a quem mais
amas!»
— Margaret — disse Fern, inclinando-se sobre ela e beijando-a na
testa —, agradeço-te pela última vez. Boa noite. Adeus! Põe a tua mão
na minha e diz-me que a partir deste momento me esquecerás e tenta
pensar que eu acabei aqui.
— Que é que fizeste? — perguntou ela novamente.

212

— Esta noite vai haver um fogo — disse ele, afastando-se dela. —


Neste Inverno vai haver fogos para iluminar a noite escura, no Norte,
no Sul, no Leste e no Oeste. Quando vires o céu ardente ao longe, já
sabes que há um fogo. Quando vires o céu vermelho, não penses mais em
mim; ou, se pensares, lembra-te do inferno que eu tenho aceso em mim
e pensa que vês as suas chamas reflectidas nas nuvens. Boa noite.
Adeus!
Ela chamou-o, mas ele já se fora. Sentou-se estupidificada, até que
o seu filho a despertou para uma sensação de frio, fome e escuridão.
Passeou-o toda a noite pelo quarto, embalando-o e mimando-o. De vez
em quando dizia: «Como Lilian, quando a mãe morreu e a deixou!».
Porque seria o seu passo tão rápido, o seu olhar tão duro, o seu amor
tão áspero e terrível sempre que repetia aquelas palavras?
— Mas é amor — dizia Trotty. — É amor. Ela nunca deixará de amá-la.
Minha pobre Meg!
No dia seguinte vestiu a criança com o mesmo cuidado (trabalho vão
em tão pobres vestes) e mais uma vez tentou encontrar meios de
sobrevivência. Era o último dia no ano velho. Tentou até à noite, sem
nunca ter quebrado o jejum. Tentou em vão.
Misturou-se com uma multidão abjecta que esperava na neve até que
aprouvesse a um funcionário, designado para praticar a caridade
pública (a caridade institucionalizada, não aquela que foi pregada no
Monte), chamá-los e dizer a este: «Vai para tal sítio», e ao outro:
«Volta cá para a semana», fazendo bola de um outro desgraçado, pas-
sando-o daqui para ali, de mão para mão, de casa para casa, até que
esgotado se estenda para morrer, ou, despertado, roube, tornando-se
assim um criminoso da pior espécie, cujas reivindicações não merecem
adiamento. Aqui também nada conseguiu.

213

Amava o seu filho e desejava tê-lo deitado no seu regaço e isso


bastava-lhe.
Era noite, uma noite gelada, escura e cortante, quando, apertando ao
peito a criança para a aquecer, chegou junto da casa a que chamava
lar. Estava tão fraca e atordoada que não viu ninguém na soleira da
porta senão quando já estava muito perto e ia a entrar. Reconheceu
então o dono da casa que se tinha colocado (e com a sua figura não
era difícil) por forma a tapar toda a entrada.
— Oh! — disse ele baixinho. —Já voltaste? Ela olhou para a criança e
abanou a cabeça.
— Não achas que já aqui viveste tempo suficiente, sem pagares renda?
Não achas que, sem dinheiro, tens sido uma cliente muito regular
nesta loja? — disse o senhor Tugby.
Ela repetiu o mesmo apelo mudo.
— E se tentasses a sorte por outro lado? — disse ele. — E se
arranjasses outro alojamento? Vá lá! Achas que não conseguias?
Ela disse em voz baixa que já era muito tarde. Amanhã.
— Ah, já sei o que queres e o que pensas — disse Tugby. — Sabes que
nesta casa há duas posições a teu respeito e gostas de as ver em
conflito. Não quero discussões. Estou a falar baixo para evitar
discussões; mas, se não te vais embora, falarei alto e vais provocar
palavras em tom suficientemente alto para te satisfazer. Mas entrar,
não entras. A isso estou decidido.
Ela atirou o cabelo para trás com a mão e olhou de certa forma para
o céu e para o escuro que descia.
— Esta é a última noite do ano velho e não quero levar para o ano
novo animosidade, questões e preocupações. Esse gosto não te faço nem
a ti, nem a ninguém — disse Tugby, que era um verdadeiro amigo e pai
de pacotilha.

214

— Admira-me que não te envergonhes de entrar o ano com acções


dessas. Se não tens no mundo outra função senão cederes sempre e
estares sempre a provocar aborrecimentos entre marido e mulher, então
melhor seria desapareceres. Vai-te embora.
«Segue-a! Segue-a no desespero!»
Novamente o velho ouviu as vozes. Olhando para cima viu as figuras
pairando no ar e apontando para onde ela ia, descendo a rua escura.
— Ela ama-o! — exclamou, numa súplica agonizante por ela. — Sinos!
Ela ainda o ama!
— Segue-a! — A sombra espalhou-se sobre o caminho que ela tomara
como se fosse uma nuvem.
Ele juntou-se à perseguição, mantendo-se junto dela e olhando-lhe
para a cara. Viu-lhe a mesma expressão terrível e dura misturada com
o amor e abrasando-lhe o olhar. Ouviu-a dizer: «Como Lilian! Há-de
mudar como a Lilian!», e redobrava de velocidade.
Oh, se houvesse alguma coisa que a despertasse! Alguma visão, algum
som ou cheiro que lhe trouxesse ternas recordações à mente em fogo!
Alguma imagem do passado que surgisse perante ela!
— Eu fui o seu pai! Eu fui o seu pai! — gritou o velho, estendendo
as mãos para as figuras negras que pairavam lá em cima. — Tende
piedade dela e de mim! Onde vai ela? Façam-na voltar atrás! Eu fui o
seu pai!
Mas elas só a apontavam enquanto caminhava e disseram:
— Até ao desespero! Aprende com a criatura que mais amaste!
Cem vezes ecoavam a frase. O ar era constituído pelo hálito que era
expelido ao serem pronunciadas estas palavras. Parecia que as
absorvia a cada inspiração ofegante. Estavam em toda a parte e não se
podia escapar-lhes.

215

Mesmo assim, ele continuava a estugar o passo, levando a luz no olhar


e as mesmas palavras na boca: «Como a Lilian! Há-de vir a ser como a
Lilian!».
De repente parou.
— Olhem, façam-na voltar para trás! — exclamou o velho, arrepelando
os cabelos brancos. — Minha filhinha! Meg! Façam-na voltar atrás! Ó
Deus, fazei-a voltar para trás!
Embrulhava a criança no seu próprio xaile estreito, para a aquecer.
Com as mãos febris acariciava-lhe os membros, compunha-lhe a carinha,
arranjava-lhe as pobres roupinhas. Envolvia-a com os braços como se
nunca a ela fosse renunciar e com os seus lábios secos beijava-a numa
última ânsia e numa prolongada agonia de amor.
Levantando-lhe a pequenina mão até ao seu pescoço e mantendo-a aí
dentro do vestido, próximo do seu coração ausente, encostou a carinha
sonolenta à sua, encostou-a muito e encostou-a fortemente, e
apressou-se em direcção ao rio.
O rio corria, rápido e turvo, e ali a noite invernosa sentava-se a
meditar com os últimos pensamentos negros dos muitos que já ali
tinham procurado refúgio antes dela. Ali as luzes espalhadas sobre os
bancos brilhavam lugubremente, vermelhas e tristes, como se fossem
tochas ali acesas para mostrarem o caminho da morte. Ali nem vivalma
projectava a sua sombra no abismo, ele mesmo sombra impenetrável e
melancólica.
Para o rio! Para esse portão da eternidade se encaminhavam os seus
passos desesperados com a rapidez das rápidas águas correndo para o
mar. Tentou tocar-lhe quando ela passou por ele, descendo ao nível de
trevas, mas aquela silhueta agressiva, o duro e terrível amor, o
desespero que tinha deixado atrás de si qualquer vestígio ou vínculo,
passaram por ele como o vento.

216

Seguiu-a. Ela parou um momento na margem, antes do terrível


mergulho. Ele caiu de joelhos e num grito dirigiu-se às figuras dos
sinos que pairavam sobre eles.
— Já aprendi! — gritou o velho. — Pela criatura que mais amei! Oh,
salvem-na, salvem-na!
Ele podia enrolar os dedos no vestido dela. Podia detê-la! Quando as
palavras lhe saíam dos lábios, sentiu que lhe voltava o sentido do
tacto e soube que podia detê-la.
As figuras olhavam lá de cima para ele, com firmeza.
— Já aprendi! — gritava o velho. — Oh, tende piedade de mim nesta
hora se, no meu amor por ela, tão jovem e bondosa, caluniei a
natureza, através dos peitos das mães desesperadas! Apiedai-vos da
minha presunção, fraqueza e ignorância e salvai-a!
Ele sentiu a pressão da sua mão diminuir. Eles continuavam em
silêncio.
— Tende piedade dela — exclamou —, como de alguém cujo crime lhe
proveio dum amor pervertido, do amor mais forte e mais profundo que
nós, seres caídos, conhecemos! Pensai qual deve ter sido a sua
miséria, para que tais sementes dêem tais frutos! O Céu fê-la boa.
Não há no mundo mãe extremosa que não chegasse a isto, se tivesse
tido atrás de si uma tal vida. Oh, tende piedade da minha filha que,
mesmo neste transe, tem em vista a piedade por aquilo que é seu e
morre, ela arrisca a sua alma imortal para salvar a criança!
Agora ela estava nos seus braços. Ele segurava-a! A sua força era
gigantesca.
— Vejo que o espírito dos sinos está entre vós! — exclamou o velho
desembrulhando a criança e falando como inspirado, de tal forma que
os olhares convergiram para ele. — Sei que a nossa herança nos está
reservada pelo tempo. Sei que há um mar do tempo que se erguerá um
dia, perante quantos nos oprimem e nos maltratam, os quais serão

217

varridos como folhas. Vejo isso, na corrente! Sei que devemos confiar
e ter esperança e não duvidarmos de nós, nem duvidarmos da bondade
dos outros. Aprendi isso com o ser que mais amo neste mundo. Aperto-a
de novo nos meus braços. Ó piedosos e bons espíritos, com ela aperto
ao peito a vossa lição! Ó espíritos piedosos e bons, eu vos agradeço!
Podia ter dito mais, mas os sinos, os velhos sinos amigos, começaram
a repicar pelo Ano Novo, tão forte, tão feliz e tão alegremente que
pulou sobre os seus pés e quebrou o feitiço.
— E faça o que fizer, pai — disse Meg —, não volte a comer bucho,
sem perguntar a um doutor qualquer se está de acordo com a forma como
se tem portado. Valha-me Deus!
Ela estava a coser na mesinha pequena, junto do lume. Vestia o seu
modesto vestido de casamento, com fitas, tão silenciosamente feliz,
tão florescente e tão jovem, tão cheia de belas promessas, que ele
soltou um grito enorme, como se houvesse em sua casa um anjo; e
correu a estreitá-la nos braços.
Mas enredou os pés no jornal que tinha caído ao chão e alguém veio a
correr interpor-se entre os dois.
— Não — gritou a voz desse mesmo alguém, uma voz generosa e jovial.
— Nem o senhor. Nem o senhor. O primeiro beijo da Meg no ano novo é
meu. Meu! Tenho estado lá fora à espera deste momento, para ouvir os
sinos e vir reclamá-lo. Meg, minha valiosa recompensa, feliz ano
novo! Uma vida de felizes anos, minha querida esposa!
E Richard sufocou-a com beijos.
Nunca viram em toda a vossa vida coisa parecida com Trotty, depois
de ter presenciado isto. Não importa onde viveram ou o que viram, não
viram foi nada que se assemelhasse a ele! Sentou-se na cadeira

218

batendo os joelhos e chorando; sentou-se na cadeira batendo os


joelhos e rindo; sentou-se na cadeira batendo os joelhos e chorando e
rindo ao mesmo tempo. Levantou-se da cadeira e abraçou Meg; levantou-
-se da cadeira e abraçou Richard; levantou-se da cadeira e abraçou os
dois ao mesmo tempo; continuou a correr para Meg, apertando entre as
mãos o seu rosto fresco e beijando-o, afastava-se de novo para a ver
voltando a aproximar-se como uma figura de lanterna mágica; e,
fizesse o que fizesse, estava constantemente a sentar-se na cadeira,
não parando nela um momento. Estava (e a verdade é essa) fora de si
de alegria.
— Amanhã é o teu casamento, minha queridinha! — exclamou Trotty. — O
teu verdadeiro dia do casamento!
— Hoje! — disse Richard, apertando-lhe a mão. — Hoje! Os sinos estão
a repicar pelo ano novo. Ouça-os!
ESTAVAM a tocar! Benditos os seus robustos corações, ESTAVAM a
tocar! Grandes sinos eram aqueles, melodiosos, graves e nobres sinos!
Não eram moldados em metal vulgar, nem fundidos por vulgar fundidor.
Nunca assim tinham repicado!
— Mas hoje, minha querida? — disse Trotty. — Tu e o Richard
discutiram hoje.
— Porque ele é mau, pai — disse Meg. — Não és, Richard? É um homem
tão cabeçudo e bruto! Importava-se tanto de dizer o que pensava
àquele importante do Alderman e de deitá-lo abaixo, como de...
— ... de beijar a Meg — sugeriu Richard. Passando à acção!
— Não. Nem mais um bocadinho — disse Meg. — Mas eu não o deixei,
pai. De que é que servia?
— Richard, meu rapaz! — exclamou Trotty. — Desde o princípio que te
mostraste melhor do que se esperava, e assim hás-de morrer! Mas tu,
minha queridinha, estavas a chorar junto à lareira, quando eu vim
219

para casa! Porque é que estavas a chorar ao pé do lume?


— Estava a pensar nos anos que passámos juntos, pai. Só isso.
Pensava que iria sentir a minha falta e sentir-se só.
Trotty estava de novo naquela extraordinária cadeira, quando a
criança, que fora acordada pelo barulho, entrou a correr, seminua.
— Olha, cá está ela! — exclamou Trotty, erguendo-a. — Cá está a
nossa pequena Lilian! Ah, ah, ah! Cá estamos e cá vamos nós! E o tio
Will, também! — E parou o seu trote para o cumprimentar
calorosamente. — Oh, tio Will, a visão que eu tive esta noite depois
de o instalar! Oh, tio Will, os trabalhos em que me meteu com a sua
vinda, meu bom amigo!
Antes que Will Fern pudesse esboçar a mais pequena resposta, uma
banda de música irrompeu pela sala, acompanhada por uma quantidade de
vizinhos que gritavam: «Feliz Ano Novo, Meg! Feliz boda! Muitas
felicidades!» e outros votos soltos, desse género. O tambor, que era
amigo íntimo de Trotty, avançou e disse:
— Trotty Veck, meu rapaz! A tua filha está prestes a casar, amanhã!
Não há vivalma que te conheça que não te deseje bem, ou que a conheça
e bem não lhe deseje, ou que vos conheça a ambos e a ambos não deseje
todas as felicidades que o novo ano possa trazer. E para isso aqui
estamos, para tocá-lo e dançá-lo, como convém.
Isto foi recebido com um grito geral. A propósito, diga-se que o
tambor estava bastante embriagado, mas isso não importa.
— Estou certo de que é uma grande felicidade ser assim estimado! —
disse Trotty. — Quão amigos e bons vizinhos vocês são! Do principio
ao fim, tudo é mérito da minha filha. Ela merece-o!
Num minuto todos ficaram prontos para a dança (Meg e Richard

220

encabeçavam-nos) e o tambor estava mesmo à beira de atacar com toda a


força, quando se ouviu lá fora um misto de sons extraordinários e uma
mulher bem humorada e simpática, dos seus cinquenta anos, entrou
apressada, seguida por um homem que transportava um cântaro de pedra
de tamanho descomunal e logo atrás os ossos de tutano, a faca de
carniceiro e os sinos; não os sinos, mas uma colecção portátil numa
moldura.
Trotty disse: «É a senhora Chickenstalker!», e sentou-se e voltou a
bater nos joelhos.
— Casar e não me dizer! — exclamou a boa mulher. — Nunca! Não podia
descansar na última noite do ano sem vir desejar-te felicidades. Não
podia deixar de o fazer, Meg. Nem que estivesse de cama. Por isso
aqui estou, é véspera do ano novo e véspera também do teu casamento,
minha querida, tinha um bocado de flip feito e trouxe-o comigo (Nota
da tradutora: Bebida feita de cerveja, aguardente e açúcar).
O conceito de um bocado de flip, da senhora Chickenstalker, fazia
jus ao seu carácter. O cântaro lançava vapor e fumegava como um
vulcão e o homem que o transportara estava fraco.
— Senhora Tugby! — disse Trotty, que tinha andado em volta dela em
êxtase. — Direi antes Chickenstalker... Deus a abençoe! Um feliz ano
novo e que conte muitos! Senhora Tugby — disse Trotty depois de a
cumprimentar —, digo, senhora Chickenstalker... Estes são Will Fern e
Lilian.
A digna senhora, para sua surpresa, fez-se muito pálida e depois
muito vermelha.
— Não é a Lilian Fern, cuja mãe morreu em Dorsetshire?! — disse ela.
O tio respondeu «Sim», e, apresentando-se apressadamente, trocaram

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algumas palavras rápidas, cujo resultado foi a senhora Chickenstalker


apertar-lhe ambas as mãos, cumprimentar Trotty beijando-o na face de
livre vontade e erguer a criança ao seu peito largo.
— Will Fern! — disse Trotty, calçando a luva da mão direita. — É a
amiga que esperavas encontrar?
— Humm! — respondeu Will, pondo uma mão em cada um dos ombros de
Trotty. — E gostava de ver uma amiga melhor do que esta que acabo de
encontrar!
— Oh! — disse Trotty. — Vamos tocar. Tenham a bondade!
A música da banda, os sinos, os ossos de tutano e a faca de
carniceiro começaram ao mesmo tempo, enquanto os sinos estavam também
em alegre actividade lá fora. Trotty, fazendo de Meg e de Richard o
segundo par, conduziu a senhora Chickenstalker na dança e dançou num
passo nunca visto, baseado no seu trote peculiar.
Trotty sonhara? Serão um sonho as suas alegrias e tristezas e
aqueles que nelas participaram? Será o contador desta história um
sonhador, que só agora acordou? Se assim é, ouvinte, que lhe és
querido em todas as suas visões, tenta conservar em mente a dura
realidade da qual saíram estas sombras; e na tua esfera (nenhuma é
demasiado pequena ou demasiado grande para tal fim), tenta corrigi-
-la, melhorá-la e suavizá-la. Assim, que o ano novo seja feliz para
ti, feliz para muitos cuja felicidade de ti depende! Que cada ano
seja mais feliz do que o anterior e que nem o pior dos nossos irmãos
se veja privado do seu justo quinhão, com direito ao qual o Senhor os
criou.

FIM

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