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Título: O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo

Autor: Charles Dickens


Digitalização e correcção: Gaia Inclusiva – Serviço de Leitura
Especial da Biblioteca Pública Municipal de Vila Nova de Gaia

Página de rosto

CHARLES DICKENS
O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo
Tradução de Lucília Filipe
COLECÇÃO MIL FOLHAS

Ficha técnica
Colecção Mil Folhas
PÚBLICO
O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo
Charles Dickens
Título original: A Christmas Carol e The Chimes
Tradução: Lucília Filipe
© PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. 2001
© 2002 M.E.D.I.A.S.A.T. / Promoway Portugal Comércio de
Produtos Multimédia, Ltda. para esta edição.
Impressão Printer, Industria Gráfica, S.A.
Barcelona
Data de impressão Dezembro de 2002
ISBN 84-96075-69-9
Depósito Legal B. 45 430-2002
PÚBLICO COMUNICAÇÃO SOCIAL SA
Rua João de Barros 265
4150-414 Porto

Este livro é vendido exclusivamente com o jornal PÚBLICO.


Todos os direitos reservados.

Índice

O Natal do senhor Scrooge 5


Estrofe I - O fantasma de Marley 11
Estrofe II - O primeiro dos três espíritos 35
Estrofe III- O segundo dos três espíritos 57
Estrofe IV - O último dos espíritos 87
Estrofe V - O fim de tudo 107

Os Sinos de Ano Novo 115


Primeiro quarto 117
Segundo quarto 147
Terceiro quarto 173
Quarto quarto 199

O NATAL DO SENHOR SCROOGE


A história de um Natal assombrado

Personagens

BOB CRATCHIT, empregado de Ebenezer Scrooge.


PETER CRATCHIT, filho do anterior.
TIM CRATCHIT (o pequeno Tim), um aleijado, filho mais novo de
Bob Cratchit.
Mr. FEZZIWIG, um velho comerciante, bondoso e jovial.
FRED, sobrinho de Scrooge.
ESPÍRITO DO NATAL PASSADO Natal, um fantasma que mostra
os factos passados.
ESPÍRITO DE NATAL PRESENTE, um espírito de temperamento
amável, generoso e bom.
ESPÍRITO DE NATAL FUTURO, uma aparição que mostra as
sombras dos factos que poderão vir a acontecer.
O FANTASMA DE JACOB MARLEY, o espectro do ex-sócio de
Scrooge.
JOE, um negociante, com uma loja de artigos náuticos e
receptor de mercadoria roubada.
EBENEZER SCROOGE, um velho avarento e ambicioso, o sócio
sobrevivente da firma Scrooge e Marley.
Mr. TOPPER, um bacharel.
DlCK WILKINS, um aprendiz de Scrooge.
BELLE, uma alegre matrona, antiga namorada de Scrooge.
CAROLINE, mulher de um dos devedores de Scrooge.
MRS. CRATCHIT, mulher de Bob Cratchit.
BELINDA E MARTHA CRATCHIT, filhas da anterior.
MRS. DILBER, uma lavadeira.
FAN, irmã de Scrooge
MRS FEZZING,uma companheira digna do senhor Fezziwig

Prefácio

Embrenhei-me neste assombrado livrinho para acordar o


espírito de uma ideia. Que ele não ponha o leitor de mal
consigo, com os outros, com o tempo ou comigo. Que ele
invada agradavelmente a sua casa e que ninguém sinta o desejo
de o pôr de lado.
O vosso amigo e servo fiel
C. D.
Dezembro de 1843.

ESTROFE I
O fantasma de Marley
Para começar, Marley tinha morrido. Disso não restam
dúvidas. O registo do seu enterramento estava assinado pelo
pastor, pelo oficial do cartório, pelo cangalheiro e pelo principal
enlutado. Scrooge assinara-o. E o nome de Scrooge valia ouro,
quando ele se resolvia a pôr a mão em qualquer coisa.
O velho Marley estava mais morto do que um prego de porta.
Note-se que isto não significa que eu saiba claramente o que
há de especialmente morto num prego de porta. Cá por mim,
até talvez me sentisse mais inclinado a olhar um prego de
caixão como a coisa mais morta no reino da ferragem. Mas na
comparação reside a sabedoria dos nossos antepassados e não
serão as minhas mãos profanas que deverão perturbá-la, ou
então o País está perdido. Permitir-me-ão, portanto, que repita
enfaticamente que Marley estava morto como um prego de
porta!
Scrooge sabia que ele estava morto? Claro que sabia. E como
não havia de sabê-lo? Scrooge e ele foram sócios durante não
sei quantos anos. Scrooge era o seu único testamenteiro, o seu
único administrador, o seu único cessionário, o seu único
herdeiro universal, o seu único amigo e o único que por ele pôs
luto. E mesmo assim, Scrooge não ficou tão terrivelmente
deprimido pelo triste acontecimento que não tivesse ainda
feito um excelente negócio no

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próprio dia do funeral, celebrando-o com uma pechincha.


O facto de mencionar o funeral de Marley fez-me voltar ao
ponto de partida. Não há dúvida de que Marley estava morto.
Isto deve ficar perfeitamente entendido, pois de contrário nada
de maravilhoso ressaltará da história que vou contar. Se não
estivéssemos plenamente convencidos de que o pai de Hamlet
morrera antes de começar a peça, não haveria no facto de ele
passear à noite pelas muralhas, envolvido pelo vento leste,
nada de mais extraordinário do que no de qualquer outro
cavalheiro de meia-idade aparecer intempestivamente depois
de escurecer, num lugar ventoso — o cemitério de St. Paul, por
exemplo —apenas para perturbar o espírito fraco de seu filho.
Scrooge nunca apagara o nome do velho Marley. Ali
permanecera ano após ano, sobre a porta do armazém: Scrooge
e Marley. A firma era conhecida por Scrooge e Marley. Umas
vezes os novos no negócio chamavam Scrooge a Scrooge e
outras chamavam-lhe Marley, mas ele dava por qualquer dos
nomes. Tanto lhe fazia!
Ah!, mas, para obrigar a trabalhar, ele era um punho de ferro.
Scrooge! Um velho pecador, extorsionário, sovina, avarento,
mesquinho. Uma ave de rapina! Duro e afiado como uma
pederneira da qual nenhum aço conseguira fazer saltar uma
centelha de generosidade; secreto, reservado e solitário como
uma ostra. O frio que havia dentro dele gelava-lhe os traços,
enregelava-lhe o nariz pontiagudo, enrugava-lhe as faces,
endurecia-lhe o porte, avermelhava-lhe os olhos, azulava-lhe os
finos lábios e transparecia no rabugento tom da sua voz
desagradável. Tinha a cabeça, as sobrancelhas e o magro
queixo cobertos de geada. Levava sempre consigo a sua baixa
temperatura que gelava o seu escritório nos dias de canícula e
não aumentava nem um grau no Natal.

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O frio e o calor exteriores pouca influência exerciam sobre


Scrooge. Não havia calor que o aquecesse nem frio que o
enregelasse. Não soprava nenhum vento mais agreste do que
ele, nem a neve que caía era mais obstinada no seu propósito,
nem a bátega de chuva mais impenetrável. O mau tempo não
sabia como ultrapassá-lo. A chuva, a neve, o granizo e a geada
mais fortes podiam num único ponto gabar-se de lhe levar a
palma. É que «caíam» muitas vezes docemente e Scrooge
nunca.
Nunca ninguém o fez parar na rua para lhe dizer, com ar
prazenteiro: «Como vai, meu caro Scrooge? Quando é que me
faz uma visita?». Nenhum pedinte lhe implorava que lhe desse
alguma coisinha, nenhuma criança lhe perguntava as horas,
nunca homem ou mulher perguntou na sua vida a Scrooge qual
o caminho para tal ou tal lugar. Até os cães de cego pareciam
conhecê-lo e quando o viam aproximar-se puxavam os donos
para um portal ou para dentro dum pátio, abanando depois a
cauda como se dissessem: «Não há olhar superior ao olhar do
mal, meu dono cego!».
E Scrooge que se importava! Era mesmo do que ele gostava.
Abrir caminho pelas veredas da vida, apinhadas de gente,
avisando todo o calor humano para que se afastasse à sua
passagem. Por isso os ajuizados chamavam doido a Scrooge.
Certa vez — de todos os santos dias do ano, este era a véspera
de Natal — estava o velho Scrooge sentado a trabalhar no seu
escritório. Fazia um tempo frio, glacial e agreste e além disso
enevoado. Ouvia lá fora no pátio as pessoas que iam e vinham
buliçosamente, batendo com as mãos no peito e com os pés
nas pedras da calçada, para os aquecerem. Os relógios da
cidade tinham acabado de bater as três, mas já estava bastante
escuro — durante todo o dia não tinha havido muita luz — e as
velas tremeluziam nas janelas dos escritórios vizinhos,

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como manchas rosadas de encontro ao ar acastanhado. O
nevoeiro começou a penetrar em cada fenda e em cada
fechadura e era tão denso lá fora que, embora o pátio fosse dos
mais estreitos, as casas fronteiriças não passavam de espectros.
Ao ver a nuvem escura descer, escurecendo tudo, poderia
julgar-se que a natureza mal existia e que estava a preparar
uma tempestade em larga escala.
A porta do escritório de Scrooge estava aberta, para que
pudesse ir vigiando o seu empregado, que copiava cartas num
exíguo cubículo em frente, uma espécie de tanque. Scrooge
tinha um fogo pequeníssimo, mas o do empregado era tão mais
pequeno que parecia ser apenas um carvão e não podia
reabastecê-lo porque Scrooge guardava a caixa do carvão no
seu escritório e, claro, quando o empregado apareceu com uma
pá, o patrão avisou-o de que tinham de repartir. Por
conseguinte o empregado pôs o seu cachecol e tentou aquecer-
se na vela, no que falhou por ser um homem de fraca
imaginação.
— Feliz Natal, tio! Deus o salve! — gritou uma voz alegre. Era a
voz do sobrinho de Scrooge, o qual se dirigiu a ele tão
rapidamente que aquilo foi o primeiro sinal da sua
aproximação.
— Bah! — disse Scrooge —, aldrabices!
Este sobrinho de Scrooge aquecera de tal maneira com a
caminhada apressada pelo nevoeiro e geada que todo ele
irradiava calor. O rosto era rosado e bonito, os olhos brilhavam
e o seu hálito fumegava.
— O Natal é uma aldrabice, tio?! — disse o sobrinho de
Scrooge. — Tenho a certeza de que não fala a sério.
— Falo — disse Scrooge. — Feliz Natal! Que direito tens tu de
te sentires feliz? Que razão tens para ser feliz? És muito pobre.
— Deixe-se disso — retorquiu o sobrinho jovialmente. — Que
direito

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tem o tio de estar triste? Que razão tem para estar taciturno? É
muito rico.
Scrooge, não tendo melhor resposta pronta de repente, disse
«Bah!» outra vez e repetiu:
— Aldrabices!
— Não esteja zangado, tio! — disse-lhe o sobrinho.
— Que mais posso eu estar — objectou o tio —, vivendo num
mundo destes? Feliz Natal! Deixa-te de Feliz Natal! O que é
para ti o Natal além da época de pagar as contas sem dinheiro,
altura de dares contigo mais velho um ano, mas nem uma hora
mais rico, altura de fazeres o balanço das tuas contas e teres
cada parcela delas, em todos os doze meses do ano, com um
saldo negativo? Se eu pudesse agir à minha vontade — disse
Scrooge, indignado —, todo o idiota que anda para aí com essa
de «Feliz Natal» na boca devia ser cozinhado com o seu pudim
e enterrado com uma estaca de azevinho espetada no coração.
Isso é que devia!
— Tio! — suplicou o sobrinho.
— Sobrinho! — respondeu o tio asperamente. — Vive o Natal à
tua maneira que eu vivo-o à minha.
— Vive-o! — repetiu o sobrinho de Scrooge. — Mas o senhor
não o vive.
— Então deixa-me não o viver — disse Scrooge. — Vale de
muito! Sempre te valeu de muito!
— Eu diria que há muitas coisas das quais talvez tenha tirado
algo de bom e de que não tirei nenhum lucro — retorquiu o
sobrinho. — Entre elas o Natal. Mas sei que sempre pensei no
Natal — não falando na veneração devida ao seu sagrado nome
e origem, se é que algo a ele ligado pode estar afastado dela —,
pensei nele sempre como uma época boa; uma época de
perdão, de caridade e de alegria; a única época de todo o ano,
que eu saiba, durante a qual homens e mulheres parecem
abrir,de comum acordo e livremente, os seus corações fechados
e

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pensar nos que estão abaixo deles como se de facto fossem


seus companheiros de viagem para a sepultura e não uma outra
raça de seres destinados a outras viagens. E por isso, meu tio,
ainda que ele não me tenha metido ao bolso uma só migalha de
ouro ou de prata, acredito que me tem feito bem e me fará...
bem e digo: bendito seja!
O empregado que estava no cubículo aplaudiu
involuntariamente. Apercebendo-se imediatamente da
inconveniência, atiçou o lume e apagou definitivamente a
última e ténue centelha.
— Que eu oiça outro som teu — disse Scrooge — e vais viver o
teu Natal sem emprego! Vossa excelência é um grande orador
— acrescentou virando-se para o sobrinho —, até admira não
estar no Parlamento!
— Vá lá tio, não se zangue. Olhe, venha jantar connosco
amanhã.
Scrooge despediu-se dele — foi o que fez. E utilizou toda a
extensão da expressão dizendo que o queria ver à distância.
— Mas porquê? — gritou o sobrinho de Scrooge. — Porquê?
— Porque é que te casaste? — disse Scrooge.
— Porque estava apaixonado.
— Porque estavas apaixonado! — rosnou Scrooge, como se
aquilo fosse no mundo a única coisa mais ridícula do que um
feliz Natal. — Boa tarde!
— Não, tio, mas antes de isso ter acontecido o senhor nunca
me foi visitar. Porque apresenta agora isso como razão para
não ir?
— Boa tarde — disse Scrooge.
— Não lhe peço nada. Nada quero de si. Porque é que não
havemos de ser amigos?

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— Boa tarde — disse Scrooge.


— Lamento de todo o coração vê-lo tão irredutível. Nunca
houve entre nós qualquer discussão, na qual eu tivesse sido
participante. Mas em homenagem ao Natal fiz a minha
tentativa e manterei a minha boa disposição de Natal até ao
fim, por isso, tio: Feliz Natal!
— Boa tarde! — disse Scrooge.
— E Feliz Ano Novo!
— Boa tarde! — disse Scrooge.
O sobrinho deixou a sala sem uma palavra exaltada e sem
oposição. Parou na porta exterior para apresentar ao
empregado as saudações da época e aquele, embora frio como
estava, conseguiu ser mais caloroso que Scrooge, porque lhas
retribuiu cordialmente.
— Ali está outro — murmurou Scrooge que o tresouviu: — O
meu empregado com quinze xelins por semana, mulher e
família e a falar de feliz Natal. Vou é para Bedlam.
Aquele lunático, ao acompanhar o sobrinho de Scrooge à
porta, deixara entrar duas pessoas. Eram cavalheiros
imponentes, agradáveis à vista, e estavam agora de pé no
escritório de Scrooge, tendo tirado os chapéus. Tinham na mão
livros e papéis e faziam-lhe vénias.
— Scrooge e Marley, segundo creio — disse um dos cavalheiros
reportando-se à sua lista. — A quem tenho o prazer de me
dirigir, ao senhor Scrooge ou ao senhor Marley?
— O senhor Marley morreu há sete anos — respondeu
Scrooge. — Faz exactamente sete anos esta noite.
— Não temos a mínima dúvida de que a sua liberalidade está
condignamente representada pelo seu sócio sobrevivente —
disse o cavalheiro, apresentando as suas credenciais.
E é que estava mesmo, porquanto ambos tinham sido espíritos
da mesma

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têmpera. Ao ouvir a agourenta palavra «liberalidade», Scrooge
franziu o sobrolho e abanou a cabeça, devolvendo as
credenciais.
— Senhor Scrooge, nesta festiva época do ano — disse o
cavalheiro pegando numa caneta — é mais do que habitual e
desejável que façamos uma pequena provisão para os pobres e
desprotegidos, que nesta altura tanto sofrem. Muitos milhares
estão à míngua do necessário e centenas de milhares sentem a
falta das comodidades básicas.
— Não há asilos? — indagou Scrooge.
— Há imensos asilos — disse o cavalheiro, voltando a pousar a
caneta.
— E os albergues do Estado? — perguntou Scrooge.
— Ainda estão em actividade?
— Estão sim. Ainda que — continuou o cavalheiro — me fosse
grato dizer que não.
— O Treadmill e a Poor Law ainda estão em vigor? — inquiriu
Scrooge (Nota da tradutora: Treadmill – A roda; Poor Law - Lei
de assistência aos pobres).
— E ambos em grande actividade.
— Ah, é que, pelo que disse a princípio, temi que algo tivesse
surgido a impedir a sua útil acção — disse Scrooge. — Fico
contente por sabê-lo.
— Perante a sensação de que eles prodigalizam escasso apoio
moral e auxílio material à população — continuou o cavalheiro
—, alguns de nós estamos empenhados em angariar um fundo
que nos permita comprar alguma carne, bebida e agasalhos
para os pobres. Escolhemos esta época porque é aquela de
entre todas em que a necessidade é mais agudamente sentida e
a abundância festejada. De quanto será a sua comparticipação
que devo anotar?

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— De nada! — respondeu Scrooge.


— Deseja conservar o anonimato?
— Desejo que me deixem em paz — disse Scrooge. — Já que
me perguntam o que desejo, meus senhores, eis a minha
resposta. Eu não me divirto no Natal e não posso dar-me ao
luxo de fazer felizes os preguiçosos. Ajudo a manter os
estabelecimentos a que me referi e que custam bastante. Os
que estão em más condições que lá se dirijam.
— Muitos não podem lá ir e outros prefeririam morrer a fazê-
lo.
— Se prefeririam morrer — acrecentou Scrooge —, seria
melhor fazerem-no e diminuírem assim o excesso de
população. Além disso, desculpem-me, mas não sei nada disso.
— Mas podia saber — observou o cavalheiro.
— Não é da minha conta — respondeu Scrooge. — Já basta um
homem ter de saber dos seus negócios e não interferir nos dos
outros. Os meus ocupam-me permanentemente. Bom dia,
meus senhores!
Vendo perfeitamente que era inútil continuarem a insistir, os
dois cavalheiros retiraram-se. Scrooge retomou as suas tarefas
com melhor opinião da sua pessoa e com uma disposição mais
jovial do que lhe era habitual.
Entretanto, o nevoeiro e a escuridão tornaram-se tão densos
que as pessoas andavam de cá para lá com archotes brilhantes,
oferecendo os seus préstimos para precederem os cavalos de
carruagem e guiá-los no seu caminho. A velha torre duma
igreja, cujo velho e mal-humorado sino estava sempre a espiar
dissimuladamente Scrooge, pela janela gótica, tornou-se
invisível e batia as horas e os quartos entre nuvens, com
trémulas vibrações depois, como se lá em cima batesse os
dentes na sua cabeça gelada. O frio tornou-se intenso. Na rua
principal, à esquina do pátio, alguns trabalhadores reparavam
os

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canos do gás e tinham acendido um belo lume numa braseira, à


volta da qual estava reunido um grupo de rapazes e homens
esfarrapados que aqueciam as mãos e piscavam os olhos,
extasiados, em frente do fogo. A boca de incêndio abandonada
exibia o seu fluxo extravasante tristemente congelado e
transformado em misantrópico gelo. O brilho das lojas, onde
ramos de azevinho e bagas estalavam ao calor dos candeeiros
das montras, tornava rosadas as caras pálidas quando por elas
passavam. O negócio dos galinheiros e merceeiros
transformava-se numa esplêndida brincadeira: um espectáculo
glorioso perante o qual era difícil imaginar que houvesse ali
algo de semelhante a coisas tão prosaicas como a oferta e a
procura. O Lorde Maior, na fortaleza da sua poderosa casa
senhorial, dava ordens aos seus cinquenta cozinheiros e
mordomos para que mantivessem o Natal à altura duma casa
de Lorde Maior e até o alfaiatezito a quem tinha multado na
segunda-feira anterior, por andar pelas ruas bêbado e
desvairado, batia agora nas suas águas-furtadas o pudim para
amanhã, enquanto a sua escanzelada mulher e o bebé tinham
saído para comprar a carne.
O nevoeiro era ainda mais cerrado e fazia mais frio. Um frio
penetrante, insidioso e cortante. Se o bom S. Dunstan tivesse
tentado beliscar levemente o nariz do Demónio com um toque
de semelhante frio, em vez de ter utilizado as suas armas
tradicionais, teria alcançado tão ambicioso intento. O senhor
dum pequeno e jovem nariz, roído e mastigado pelo frio, tal
como os ossos são roídos pelos cães, deteve-se à porta de
Scrooge para o brindar com um hino de Natal, mas ao ouvir-se
Deus o abençoe, feliz cavalheiro!
Que nada o aflija!

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Scrooge pegou na régua com uma tal decisão de agir que o


cantor desapareceu aterrorizado, deixando aquela porta ainda
mais envolvida pelo nevoeiro e por uma geada que lhe era mais
congenial. Por fim chegou a hora de fechar o seu escritório.
Scrooge desceu do banco, de má vontade, e tacitamente deu
consentimento ao empregado que esperava no seu cubículo e
que instantaneamente apagou a vela e pôs o chapéu.
— Suponho que queres ter todo o dia, amanhã? — disse
Scrooge.
— Se lhe convém, senhor Scrooge.
— Não me convém — disse Scrooge — e não é justo. Se te
descontasse meia coroa, achar-te-ias explorado, creio?
O empregado sorriu timidamente.
— E afinal — acrescentou Scrooge — não me consideras
explorado, quando te pago o salário de um dia sem trabalhares.
O empregado objectou que isso acontecia apenas uma vez no
ano.
— Isso é uma fraca desculpa para se pilhar a bolsa dum homem
todos os anos no dia vinte e cinco de Dezembro! — disse
Scrooge, abotoando o sobretudo até ao pescoço. — Bom, mas
afinal de contas acho que deves ter o dia todo. Faz por cá
estares bem cedo na manhã seguinte.
O empregado prometeu que estaria e Scrooge saiu com um
resmungo. O escritório foi fechado num instante e o
empregado, com as pontas do cachecol a balouçarem-lhe sobre
o peito (porque sobretudo era coisa que não tinha), escorregou
vinte vezes até Cornhill, atrás duma fila de rapazes, em honra
da Véspera de Natal, e correu depois até casa, em Candem
Town, tão depressa quanto podia, para jogar à cabra-cega.
Scrooge comeu o seu jantar melancólico, na habitual e
melancólica

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taberna, e, tendo lido todos os jornais e passado o resto do


serão com os seus livros de contas, foi para casa deitar-se. Vivia
numas dependências que outrora tinham pertencido ao seu
falecido sócio. Era um soturno conjunto de divisões, num
sombrio bloco de edifícios que formavam um pátio e onde
estava tão deslocado que dificilmente se poderia deixar de
imaginar que ela, quando ainda era uma jovem casa, para ali
correra a jogar às escondidas e esquecera onde era a saída. Era
agora suficientemente velha e suficientemente triste para que
ninguém, a não ser Scrooge, a habitasse, estando toda alugada
para escritórios. O pátio era tão escuro que até Scrooge, que
lhe conhecia cada pedra, se resignava a caminhar às
apalpadelas. O nevoeiro e a geada pairavam de tal modo em
torno do velho portão que era como se o Génio do Tempo
estivesse sentado na soleira, em tristonha meditação.
O facto é que nada havia de especial no que respeita ao
batente da porta, a não ser o facto de ser muito grande.
Também é um facto que Scrooge o vira noite e dia, durante
todo o tempo de residência naquela casa, e também que
Scrooge tinha tão pouco daquilo a que se chama imaginação
como qualquer outro homem de Londres, incluindo mesmo — e
isto é arriscado de dizer — os sócios do grémio, os vereadores e
os membros da Livery Company (Nota da tradutora:
Corporação inglesa). Tenhamos também em mente que
Scrooge não dedicara um único pensamento a Marley, desde
que, naquela tarde, mencionara o sétimo aniversário da morte
do seu sócio. Expliquem-me agora, se puderem, como é que, ao
meter a chave na fechadura, Scrooge viu no batente, sem
passar por qualquer processo de transformação, não um
batente, mas a cara de Marley.

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O rosto de Marley! Não estava mergulhado na mesma sombra


impenetrável que envolvia os outros objectos do pátio, antes
havia à sua volta uma funesta luz, como se fosse uma lagosta
estragada numa cave escura. Não estava zangado, nem
colérico, antes parecia a Scrooge o Marley que sempre fora:
com os óculos fantasmagóricos erguidos sobre a
fantasmagórica testa. O cabelo, curiosamente, estava como que
revolto por um sopro ou pelo ar quente e os olhos, ainda que
abertos, estavam absolutamente imóveis. Esse facto e a sua cor
lívida tornavam-na horrível, mas esse horror parecia existir
mais para além do rosto e ultrapassando o seu controlo do que
fazer parte da sua expressão.
Enquanto Scrooge olhava fixamente este prodígio, o batente
voltou a ser batente.
Dizer que ele não estava aterrado, ou que lhe não invadia o
sangue uma sensação que já não experimentava desde a
infância, seria faltar à verdade. No entanto, pôs a mão na chave
que tinha largado, girou-a firmemente, entrou e acendeu a
vela.
Parou de facto, num momento de hesitação, antes de fechar a
porta e espreitou realmente primeiro, cautelosamente, por trás
dela, como se esperasse ser aterrorizado com a visão do
rabicho de Marley apontando para o corredor. Mas nada havia
atrás da porta, além dos parafusos e porcas que prendiam o
batente, e exclamou então: «Bah! Bah!», e fechou-a de
rompante.
O som ecoou pela casa como um trovão. Era como se cada
divisão no andar superior, e cada casco lá em baixo na adega,
tivesse o seu eco próprio. Scrooge não era homem que se
assustasse com ecos. Aferrolhou a porta, atravessou o corredor
e subiu as escadas, mas vagarosamente, equilibrando a vela à
medida que caminhava.
Pode referir-se como abstracção ao facto de se conduzir um
carro de

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três parelhas por uma escadaria ou de abrir caminho por uma
lei recém-criada e errada; mas o que eu quero realmente dizer
é que se poderia fazer subir por aquela escada um carro
funerário transversalmente, com a barra de tracção virada para
a parede e a porta para a balaustrada e fá-lo-íamos com toda a
facilidade. Talvez por esta razão, Scrooge pensou ver um carro
funerário avançando à sua frente na escuridão. Meia dúzia de
candeeiros a gás não chegariam para iluminar suficientemente
a entrada, por isso já se pode imaginar quão escuro estava só
com a vela de sebo que Scrooge levava.
Scrooge subiu, sem se importar com isso. A escuridão não lhe
custava dinheiro, e isso era o que agradava a Scrooge. Antes,
porém, de fechar a pesada porta, deambulou pelas
dependências, para se certificar de que tudo estava bem. Tinha
ainda bem presente a recordação daquele rosto, para sentir
vontade de agir assim.
Sala de estar, quarto de dormir, quarto de arrumações.
Ninguém debaixo da mesa, ninguém debaixo do sofá; um lume
fraco na grelha, a colher e a malga prontas e a caçarola com o
caldo de aveia na estufa do fogão (Scrooge estava com coriza).
Ninguém debaixo da cama, ninguém no armário, ninguém no
seu roupão que pendia da parede com ar suspeito. O quarto de
arrumação estava como de costume. Um velho guarda-fogo,
sapatos velhos, dois cestos para peixe, um lavatório de três
pernas e um atiçador.
Satisfeito, fechou a porta e trancou-se por dentro; deu duas
voltas à chave, o que não era seu costume. Seguro assim contra
qualquer surpresa, tirou a gravata, vestiu o roupão, calçou as
chinelas, pôs o barrete de dormir e sentou-se em frente do
lume para comer o caldo de aveia.
O lume estava realmente bastante fraco; em semelhante noite
era como se não existisse. Viu-se obrigado a sentar-se muito
perto e a

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aninhar-se sobre ele, antes que pudesse extrair algum calor


daquele punhado de combustível. O fogão de sala, velho, teria
sido há muito construído por algum comerciante holandês e era
todo ele forrado com estranhos azulejos holandeses, cujos
desenhos ilustravam as Escrituras. Havia Cains e Abeis, filhas de
faraó, rainhas do Sabá, angélicos mensageiros descendo do ar,
das nuvens semelhantes a colchões de penas, Abraões,
Baltazares, Apóstolos largando para o mar em molheiras,
centenas de figuras que lhe atraíam os pensamentos, no
entanto aquele rosto de Marley, morto havia sete anos,
aparecia-lhe como o bordão do antigo profeta e envolvia tudo.
Se cada azulejo liso estivesse inicialmente em branco e
possuísse o dom de dar forma na sua superfície a qualquer
figura, em cada um deles haveria uma cópia do rosto de
Marley, proveniente dos fragmentos dispersos dos seus
pensamentos.
— Tretas! — disse Scrooge e atravessou o quarto. Depois de
várias voltas, tornou a sentar-se. Ao encostar a cabeça na
cadeira, aconteceu os seus olhos pousarem numa campainha,
uma campainha sem utilidade que estava pendurada na sala e
que, para algum fim esquecido, comunicava com um quarto no
andar superior do edifício. Foi com grande espanto e
inexplicável temor que viu a campainha começar a balouçar. A
princípio balouçava tão levemente que mal se ouvia o som, mas
subitamente soou alto, o mesmo sucedendo a todas as
campainhas da casa.
Isto deve ter durado meio minuto, ou um minuto, mas pareceu
durar uma hora. As campainhas calaram-se, tal como tinham
começado a soar, simultaneamente. Sucedeu-lhes um ruído de
tinir, lá no fundo, como se alguém estivesse a arrastar uma
pesada corrente sobre os cascos, lá em baixo na adega do
taberneiro. Scrooge lembrou-se, então, de ter

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ouvido dizer que os fantasmas arrastavam correntes, nas casas


assombradas.
A porta da adega abriu-se com estrondo e ele pôde ouvir o som
muito mais alto, lá em baixo no pavimento, e depois subindo as
escadas e avançando para a sua porta.
— Mesmo assim é treta! — disse Scrooge. — Não acredito!
Contudo, mudou de cor quando, sem paragem, aquilo
atravessou a pesada porta e penetrou na sala, perante o seu
olhar. Após a sua entrada, o lume semiapagado reacendeu-se
como se gritasse: «Conheço-
-o. É o fantasma de Marley!», e voltou a esmorecer.
Era o mesmo rosto, o mesmíssimo. Era Marley com o seu
rabicho, o seu habitual colete, as suas calças justas e as botas,
as borlas destas de pêlos eriçados, tal como o seu rabicho, a
orla do seu casaco e todo o seu cabelo. A corrente que ele
arrastava estava-lhe cravada no meio do corpo, era comprida e
serpenteava em volta dele como se fosse uma cauda e era feita
(Scrooge observou-a de perto) de caixas de dinheiro, chaves,
cadeados, livros Razão, contratos e pesadas bolsas de aço
lavrado. O corpo era transparente e assim, observando-o e
olhando através do seu colete, Scrooge podia ver os dois botões
de trás, do casaco.
Scrooge ouvira dizer muitas vezes que Marley não tinha
entranhas, mas até àquele momento nunca acreditara.
Não, nem mesmo naquele momento. Ainda que mirasse e
remirasse o fantasma e o visse ali na sua frente, ainda que
sentisse o gelado poder do seu olhar mortalmente gélido, e
observasse a própria textura da faixa que lhe envolvia a cabeça
e o queixo, faixa essa em que ainda não tinha reparado,
continuava incrédulo e lutava contra os seus sentidos.

26

— Então? — disse Scrooge, cáustico e frio como sempre. —


Que queres de mim?
— Muito! — Era a voz de Marley, não havia dúvida.
— Quem és tu?
— Pergunta-me quem fui.
— Quem foste, então? — disse Scrooge, elevando a voz. —
Para um espectro és demasiado minucioso. — Ia a dizer «como
espectro» mas substituiu a expressão por achar a outra mais
própria.
— Fui em vida o teu sócio, Jacob Marley.
— Podes...podes sentar-te? — indagou Scrooge, olhando-o
desconfiado.
— Posso.
— Então, senta-te.
Scrooge formulou a pergunta porque não sabia se um
fantasma tão transparente conseguiria arranjar maneira de se
sentar e sentia que, no caso de ser impossível, isso poderia
implicar a necessidade duma explicação embaraçosa, mas o
fantasma sentou-se do outro lado da lareira como se a isso
estivesse absolutamente habituado.
— Não acreditas em mim — observou o espírito.
— Não — disse Scrooge.
— Que outra prova quererias da minha realidade, além da dos
teus sentidos?
— Não sei — disse Scrooge.
— Porque duvidas dos teus sentidos?
— Porque — disse Scrooge — há um pequeno nada a afectá-
los. Uma pequena indisposição de estômago está a falseá-los.
Tu podes ser o resultado dum pedaço de carne mal digerido,
dum pingo de mostarda, duma migalha de queijo ou dum
bocado de batata mal cozida. Sejas lá tu quem fores, és mais
funcional do que sepulcral!
Scrooge não tinha por hábito dizer piadas, nem sequer sentia
naquele

27

momento qualquer sinal de gracejo, no fundo do seu coração. A


verdade é que tentava ironizar de forma a distrair a sua própria
atenção e diminuir o seu terror, porque a voz do espectro lhe
arrepiava a própria medula.
Scrooge sentia que estar ali sentado, olhando aqueles olhos
vítreos seria como que emparceirar ao jogo com ele. Havia algo
de terrível no facto de o espectro possuir uma atmosfera
infernal muito própria. Scrooge não conseguia senti-la, mas era
o que acontecia, porquanto, se bem que o fantasma estivesse
sentado, perfeitamente imóvel, o seu cabelo, as abas e as
borlas eram agitadas como que pelo ar quente dum forno.
— Estás a ver este palito? — disse Scrooge, voltando à carga,
pela razão já apresentada e ansiando, ainda que por um
segundo, desviar de si o olhar insensível do fantasma.
— Vejo — respondeu o espírito.
— Não estás a olhar — disse Scrooge.
— Contudo, vejo-o — disse o fantasma.
— Bem! — disse Scrooge. — Só tenho de engolir isto, para
passar o resto dos meus dias a ser perseguido por uma legião
de duendes todos eles produto da minha criação. Tretas, digo-
to eu! Tretas!
Nesse momento o espírito soltou um grito aterrador e sacudiu
a corrente com um barulho tão assustador e lúgubre que
Scrooge se agarrou com força à cadeira, para evitar desmaiar.
Mas muito maior foi o seu pavor ao ver o fantasma tirar a
ligadura que lhe envolvia a cabeça, como se estivesse
demasiado calor para a usar dentro de casa, e o maxilar inferior
cair-lhe sobre o peito.
Scrooge caiu de joelhos e enclavinhou as mãos sobre o rosto.
— Piedade! — disse. — O terrível aparição, porque me
atormentas?

28
— Ó homem profano! — respondeu o espírito. — Acreditas em
mim ou não?
— Acredito — disse Scrooge. — Tenho de acreditar. Mas
porque vêm os espíritos à terra e porque me procuram?
O espírito respondeu:
— Espera-se que o espírito que habita em cada homem saia
dele e vagueie entre os outros homens e viaje por toda a parte;
se esse espírito não emana em vida, está condenado a fazê-lo
depois da morte. Fica condenado a vaguear pelo mundo — oh!,
ai de mim! — e a ser testemunha daquilo de que não pôde
compartilhar, mas poderia ter compartilhado em vida e
transformado em felicidade!
O espectro soltou novamente um grito, sacudiu a corrente e
torceu as transparentes mãos.
— Estás preso com cadeias — disse Scrooge a tremer. — Diz-
me porquê.
— Trago comigo a corrente que forjei em vida — respondeu o
fantasma.
— Construí-a elo a elo e jarda a jarda; cingi-a de minha única e
livre vontade, e de minha única e livre vontade a trago. O
material de que é feita, não te é familiar?
Scrooge tremia cada vez mais.
— Saberás tu — prosseguiu o espírito — o peso e o
comprimento da forte corrente que tu próprio trazes? Era tão
pesada e comprida como esta há sete Natais. Desde aí tens
continuado a trabalhar nela. É uma pesada corrente!
Scrooge deitou um olhar para o chão à sua volta, esperando
ver-se rodeado de umas cinquenta ou sessenta toesas de cabo
de ferro, mas nada viu (Nota da tradutora: Antiga medida de
comprimento, de seis pés).
— Jacob — disse em tom suplicante. — Velho Jacob

29

Marley, conta-me mais. Diz-me palavras de conforto, Jacob!


— Não tenho nem uma para te dizer — replicou o fantasma. —
Essas vêm de outras paragens, Ebenezer Scrooge, e são
transmitidas por outros ministros, a outro tipo de homens.
Nem te posso dizer o que queria. Já só me é permitido muito
pouco mais. Não posso descansar, não posso ficar, não posso
fixar-me seja onde for. O meu espírito nunca saiu do nosso
escritório — nota bem! —, e em vida nunca o meu espírito
ultrapassou os estreitos limites do nosso antro de cambista e
fatigantes viagens me esperam.
Scrooge tinha por hábito, sempre que ficava pensativo, meter
as mãos nos bolsos das calças. Assim fizera enquanto meditava
no que o espírito tinha dito, mas sem levantar os olhos ou
abandonar a posição de ajoelhado.
— Deves ter sido muito lento, Jacob — disse Scrooge.
— Lento?! — repetiu o fantasma.
— Morto há sete anos — ruminou Scrooge — e sempre a
caminhar!
— Sempre — disse o fantasma. — Sem descanso nem paz. A
incessante tortura do remorso.
— Viajas depressa? — perguntou Scrooge.
— Nas asas do vento — respondeu o fantasma.
— Em sete anos podias ter dominado uma quantidade de
terreno — replicou Scrooge.
Ao ouvir isto o fantasma soltou outro grito e sacudiu a corrente
tão aterradoramente, no silêncio mortal da noite, que a guarda
teria razão para o acusar de infracção.
— Ó prisioneiro, submetido e duplamente agrilhoado — gritou
o fantasma. — Não saberes que se esvairão na eternidade,
séculos de incessante labor, praticado por criaturas imortais
para este mundo, antes que todo o bem de que ele é
susceptível seja totalmente praticado. Não saberes que cada
alma cristã trabalhando caridosamente

30

no seu limitado ambiente, seja ele qual for, achará a sua vida
mortal demasiado curta para as suas vastas possibilidades de
utilidade. Não saberes que nenhum arrependimento ilimitado
poderá compensar uma oportunidade desperdiçada na vida! E
assim eu fiz! Oh! Assim eu fiz!
— Mas sempre foste um bom homem de negócios, Jacob —
gaguejou Scrooge, que começava agora a aplicar a si próprio
aquelas palavras.
— Negócios! — gritou o espírito, torcendo novamente as mãos.
— A humanidade é que era o meu negócio. O bem comum é
que era o meu negócio: a caridade, a misericórdia, a tolerância
e a benevolência, esses sim eram os meus negócios. A forma de
negociar, no meu comércio, era apenas uma gota de água no
oceano que compreendia o meu negócio!
Ergueu os braços a toda a altura e com eles a corrente, como se
nela estivesse toda a causa do seu inútil pesar, e de novo a
arremessou pesadamente ao chão.
— Nesta altura do ano que decorre — disse o espectro —,
sofro ainda mais. Porque haveria eu de ter caminhado por
entre a multidão dos meus semelhantes de olhos postos no
chão e nunca os hei-de ter erguido para essa abençoada estrela
que conduziu os Reis Magos a uma pobre morada! Será que não
havia casas pobres onde a sua luz me tivesse conduzido?
Scrooge estava imensamente aterrado ouvindo o espectro
prosseguir neste tom e começou a tremer muitíssimo.
— Escuta-me! — gritou o fantasma. — O meu tempo está
quase a findar.
— Escuto-te — disse Scrooge —, mas não sejas difícil comigo!
Não sejas poético, Jacob! Diz!
— Não te sei dizer como é que te apareço sob uma forma que
consegues

31

ver. Por muitos e muitos dias estive sentado a teu lado, em


forma invisível.
Não era uma ideia agradável. Scrooge tremia e limpou o suor
da testa.
— Esta não é uma parte leve da minha pena — prosseguiu o
fantasma. — Estou aqui esta noite para te avisar de que ainda
tens uma oportunidade e uma esperança de escapares ao meu
destino. Uma oportunidade e uma esperança por minha
intervenção, Ebenezer.
— Sempre foste um bom amigo — disse Scrooge. — Obrigado!
— Vais ser perseguido por três espíritos — resumiu o
fantasma.
A expressão de Scrooge esmoreceu quase tanto como a do
fantasma.
— É essa a oportunidade e a esperança que mencionaste,
Jacob? — perguntou em voz titubeante.
— É.
— Acho que era melhor que não fosse — disse Scrooge-
— Sem as visitas deles — disse o fantasma —, não poderás ter
esperança de evitar o caminho que eu trilho. Espera o primeiro
amanhã, quando o sino bater a uma.
— Não poderia recebê-los logo todos ao mesmo tempo e
acabarmos com isto, Jacob? — sugeriu Scrooge.
— Espera o segundo na noite seguinte, à mesma hora. O
terceiro na noite seguinte, quando tiver deixado de vibrar a
última badalada da meia-noite. Não esperes voltar a ver-me e
tenta para teu próprio bem lembrar-te do que se passou entre
nós!
Ao terminar estas palavras, o fantasma pegou na ligadura que
estava em cima da mesa e enrolou-a à cabeça, como estava
antes. Scrooge soube-o, pelo som esquisito que os dentes
produziram, quando a ligadura uniu os dois maxilares. Ousou
erguer novamente os olhos e

32
deparou-se-lhe o seu visitante sobrenatural, na sua frente,
numa postura erecta, com a corrente completamente enrolada
ao braço.
A visão afastou-se dele e a cada passo que dava a janela
levantava-
-se um pouco mais, de modo que, quando o espectro a
alcançou, já estava completamente aberta.
Fez sinal a Scrooge para que se aproximasse, e ele assim fez.
Quando estavam a dois passos um do outro, o fantasma de
Marley ergueu a mão, fazendo-lhe sinal para que não se
aproximasse. Scrooge deteve-se.
Não tanto por obediência como por surpresa e medo, pois que,
no momento em que ele levantou a mão, Scrooge apercebeu-se
de sons confusos no ar, sons incoerentes de lamentação e
remorso, prantos inexplicavelmente dolorosos e de auto-
acusação. Depois de escutar por um momento, o espectro
juntou-se ao lamentoso canto fúnebre e lançou-
-se na noite escura e fria.
Scrooge avançou para a janela e, desesperado de curiosidade,
olhou para fora.
O ar estava cheio de fantasmas, que vagueavam de cá para lá e
de lá para cá, numa pressa inquieta e lamentando-se enquanto
se deslocavam. Cada um deles usava correntes como o
fantasma de Marley, alguns (deviam ser governantes venais)
estavam acorrentados uns aos outros. Nenhum deles estava
solto. Muitos tinha-os Scrooge conhecido pessoalmente em
vida. Dum velho fantasma tinha sido muito íntimo, daquele que
usava um colete branco e trazia um monstruoso cofre de ferro
acorrentado ao tornozelo e que gritava lastimosamente ao ver-
se impossibilitado de ajudar uma mulher miserável com uma
criança, que via lá em baixo, na soleira duma porta. A desdita
de todos eles via-
-se que era claramente devida a tentarem interferir
positivamente nos assuntos dos humanos e terem para sempre
perdido a capacidade de o

33

fazer. Não saberia dizer se aquelas criaturas se esvaíram no


nevoeiro ou se o nevoeiro as envolveu. Mas eles e as suas
fantasmagóricas vozes desapareceram simultaneamente e a
noite voltou a ser como era quando Scrooge regressara a casa.
Fechou a janela e observou a porta por onde o fantasma tinha
entrado. Estava fechada à chave, tal como ele a fechara com as
suas próprias mãos, e os ferrolhos estavam impecáveis. Tentou
dizer «tretas!», mas deteve-se na primeira sílaba. E, ou fosse da
emoção por que tinha passado, ou das fadigas do dia, ou de ter
espreitado o mundo invisível, ou da fastidiosa conversa do
fantasma, ou do avançado da hora, estando muito necessitado
de repouso foi direito à cama e, sem se despir, caiu a dormir
instantaneamente.

ESTROFE II
O primeiro dos três espíritos

Estava tão escuro quando Scrooge acordou que, olhando da


cama, mal conseguia distinguir a janela transparente da
opacidade das paredes do quarto. Estava ele a tentar penetrar
a escuridão com o seu olhar agudo quando os sinos duma igreja
vizinha bateram os quatro quartos. Ficou à escuta esperando
ouvir a hora.
Para sua grande surpresa, o pesado carrilhão passou das seis
para as sete, das sete para as oito e assim por diante até às
doze; então, parou. Doze! Já passara das duas quando se
deitara. O relógio não estava certo. Um pingente de gelo devia
ter penetrado no mecanismo. Doze.
Tocou no botão do relógio de repetição, para emendar aquele
carrilhão idiota, mas o seu pulsar rápido bateu as doze e parou.
— Ah!, não é possível — disse Scrooge — que eu tenha
dormido um dia inteiro e continuado a dormir outra noite. Não
é possível que tenha acontecido alguma coisa ao Sol e que seja
meio-dia!
Como esta ideia era assustadora, rebolou para fora da cama e
caminhou às apalpadelas até à janela. Teve de limpar a geada
com a manga da camisa de noite para conseguir ver alguma
coisa, e mesmo assim conseguiu ver muito pouco. A única coisa
que conseguiu distinguir foi que ainda estava nevoeiro e fazia
um frio intenso e que não havia barulho de pessoas a correr de
cá para lá, nem o grande

35

rebuliço que sem dúvida haveria se a noite tivesse expulsado o


dia claro e se tivesse apoderado do mundo.
Isso era um grande alívio, quando não aquilo de «a três dias de
vista desta letra de câmbio, pague-se ao senhor Ebenezer
Scrooge ou à sua ordem», e assim por diante, ter-se-ia
transformado numa mera acção dos Estados Unidos se não
houvesse dias para contar.
Scrooge voltou para a cama, pensou, pensou e tornou a pensar
e nada conseguia concluir daquilo. Quanto mais pensava, mais
espantado ficava — e quanto mais tentava não pensar, mais
pensava. O fantasma de Marley perturbara-o muitíssimo.
Sempre que decidia para consigo, depois de pensar
maduramente, que tudo aquilo fora um sonho, o seu espírito
recuava, como se fosse uma mola forte que se soltasse e
voltasse à posição inicial e apresentava o mesmo problema
para resolução: «Foi ou não um sonho?».
Scrooge ficou nesse estado até o carrilhão voltar a bater mais
três quartos de hora, quando de repente se lembrou de que o
fantasma o prevenira de que teria uma visita quando soasse a
uma. Decidiu permanecer acordado até passar a hora e isto era
talvez o melhor que tinha a fazer, já que adormecer lhe era tão
impossível como entrar no Céu.
O quarto de hora tardava tanto que por mais de uma vez se
convenceu que devia ter cochilado inconscientemente e ter
perdido o toque do relógio. Finalmente soou ao seu ouvido
atento.
— Ding, dong!
— Um quarto — disse Scrooge, contando.
— Ding, dong!
— Meia! — disse Scrooge.
— Ding, dong!
— Falta um quarto — disse Scrooge.
— Ding,dong!
36

— A hora certa — disse Scrooge triunfantemente — e nada


mais!
Falara antes de bater a hora, o que aconteceu naquele
momento, com uma badalada profunda, triste, oca e
melancólica. Fez-se luz instantaneamente no quarto e as
cortinas da cama ergueram-se.
É como disse: as cortinas da cama foram erguidas, por uma
mão. Não as cortinas dos pés da cama, nem as que ficavam por
detrás dele, mas aquelas para onde tinha a cara virada. As
cortinas foram afastadas para o lado e Scrooge, erguendo-se
precipitadamente e passando a uma posição de semi-
recostado, encontrou-se cara a cara com o sobrenatural
visitante que as erguera, tão perto dele como eu estou agora de
si — e estou em espírito a seu lado.
Era uma estranha figura — como que uma criança e, no
entanto, mais parecida com um velho do que com uma criança,
observado através de um instrumento sobrenatural que lhe
dava o aspecto de se ter afastado da vista, tendo sido reduzido
à dimensão duma criança. O cabelo que pendia em volta do
pescoço e pelas costas era branco como que pela idade, mas no
entanto a cara não tinha uma só ruga e mostrava na pele a mais
doce frescura. Os braços eram muito compridos e musculados,
o mesmo acontecendo com as mãos, como se o seu abraço
fosse de enorme força; os pés e as pernas, de forma delicada,
estavam tal como os braços, despidos. Vestia uma túnica da
maior alvura e a cintura era cingida por um cinto brilhante,
dum brilho maravilhoso. Trazia na mão um ramo de fresco
azevinho verde e, em estranha contradição com este símbolo
de Inverno, tinha o vestido guarnecido com flores estivais. Mas
o mais estranho de tudo isto era o facto de do alto da sua
cabeça brotar um brilhante feixe de luz, que permitia que tudo
isto fosse visível e que, sem dúvida, por ocasião dos seus
momentos mais tristes, fazia com que ele usasse um grande
extintor como barrete,

37

que nesse momento trazia debaixo do braço.


Ao olhá-lo com crescente fixidez, Scrooge viu que, no entanto,
não era este o seu mais estranho atributo, pois quando o cinto
cintilava e brilhava, ora num sítio, ora noutro, o que era num
momento luz era no outro momento escuridão e assim a
própria figura flutuava na sua claridade, sendo agora uma coisa
com um braço, agora uma só perna, agora vinte pernas, agora
um par de pernas sem cabeça, agora uma cabeça sem corpo, de
cujas partes que desapareciam não era visível nem um traço na
profunda escuridão em que se fundia. E, no mesmo momento
desse prodígio, voltava a ser o mesmo, tão claro e distinto
como fora.
— Vossa excelência é o espírito cuja vinda me foi anunciada?
— perguntou Scrooge.
— Sou!
A voz era baixa e amável. Era singularmente baixa, como se,
em vez de estar tão perto dele, estivesse afastado.
— Quem é e o que é você? — inquiriu Scrooge.
— Eu sou o Espírito do Natal Passado.
— Dum passado remoto? — perguntou Scrooge, observando a
sua estatura de anão.
— Não, do teu passado.
Talvez que, se alguém lhe tivesse perguntado, Scrooge não
soubesse dizer porquê, mas tinha o especial desejo de ver o
espírito com o barrete posto e pediu-lhe que o pusesse.
— O quê?! — exclamou o fantasma. — Quererias apagar tão
depressa, com mãos terrenas, a luz que eu irradio? Não te basta
seres um daqueles que teceram este barrete com as suas
paixões e que me obrigam a trazê-lo enfiado até aos olhos
durante anos e anos?!
Reverentemente Scrooge negou qualquer intenção de ofender
ou

38

qualquer conhecimento de ter deliberadamente «enfiado o


barrete» no espírito, em qualquer época da sua vida. Arriscou-
se depois a inquirir o que ali o tinha trazido.
— O teu bem-estar! — disse o fantasma.
Scrooge declarou-se muito obrigado, mas não pôde deixar de
pensar que uma noite de descanso ininterrupto teria levado
mais a esse fim. O espírito deve tê-lo ouvido pensar, porque
respondeu imediatamente:
— É essa a tua reclamação, então. Toma atenção!
Enquanto falava estendeu a mão forte e agarrou-o
cuidadosamente pelo braço.
— Levanta-te e vem comigo!
Teria sido inútil a Scrooge protestar, dizendo que o tempo e a
hora não eram próprios para caminhadas, que a cama estava
quente e o termómetro muito abaixo de zero, que estava
precariamente vestido com chinelos, camisa de noite e barrete
de dormir e que naquele momento estava cheio de frio. A
pressão que exercia, embora fosse leve como a de uma mão de
mulher, não era de molde a que se lhe resistisse. Ergueu-se,
mas, percebendo que o espírito se dirigia para a janela,
agarrou-se à sua túnica numa súplica.
— Eu sou um mortal — objectou Scrooge — e por isso
susceptível de cair.
— Recebe apenas um toque da minha mão aí— disse o espírito
pousando-
-a no coração de Scrooge — e serás apoiado em muito mais do
que isto!
Mal pronunciou estas palavras, atravessaram a parede e
ficaram suspensos sobre uma estrada campestre, com campos
de um lado e do outro. A cidade desaparecera por completo.
Dela não se via nem sinal. Com ela tinham desaparecido a
escuridão e a neblina e estava-se num dia de Inverno, frio e
claro, com neve cobrindo o chão.

39

— Meu Deus! — disse Scrooge pondo as mãos enquanto


olhava à sua volta. — Eu fui criado aqui. Aqui fui rapaz!
O espírito olhou-o docemente. O seu toque, embora leve e
momentâneo, ainda parecia presente na sensibilidade do
velho. Tinha a noção de milhares de odores que pairavam no
ar, cada um deles ligado a milhares de pensamentos,
esperanças, alegrias e preocupações há muito, muito tempo
esquecidas!
— Tens o lábio a tremer — disse o espírito. — E que é isso no
queixo?
Scrooge murmurou, com um calor na voz que não lhe era
habitual, que se tratava duma borbulha e pediu ao espírito que
o conduzisse onde tencionava.
— Recordas-te do caminho? — indagou o Espírito.
— Lembro-me! — gritou Scrooge com fervor. — Seria capaz de
o percorrer de olhos vendados.
— É estranho que o tenhas esquecido durante tantos anos! —
observou o espírito. — Prossigamos.
Caminharam pela estrada, reconhecendo cada portão, poste,
cada árvore, até que surgiu à distância uma pequena vila, com a
sua ponte, a sua igreja e o seu rio serpenteante. Viam-se agora
alguns póneis felpudos trotando em direcção a eles e trazendo
montados garotos que chamavam outros que iam em cabriolés
rústicos e em carroças conduzidas por lavradores. Todos estes
rapazes estavam muito alegres e gritavam uns para os outros,
até que os largos campos se encheram de tal modo de alegre
música que o ar encrespado se alegrava ao ouvi-
-la.
— Estes são apenas sombras daquilo que foram — disse o
fantasma. — Não se apercebem da nossa presença.
Os alegres viajantes aproximaram-se e, à medida que se
aproximavam, Scrooge conhecia e nomeava cada um deles.
Porque estaria tão exultante de os ver? Porque brilhavam os
seus olhos frios e o seu
40

coração palpitava quando eles passavam? Porque se sentia tão


contente ao ouvi-los desejar uns aos outros feliz Natal, quando
se separavam em encruzilhadas e atalhos, dirigindo-se às suas
casas? Que era feliz Natal para Scrooge? Maldito feliz Natal!
Que bem é que ele já lhe fizera?
— A escola não está completamente deserta — disse o
fantasma. — Ainda lá ficou um garoto solitário, abandonado
pelos seus colegas.
Scrooge disse que o conhecia. E soluçava.
Deixaram a estrada principal e tomaram por um atalho, de que
bem se lembrava, aproximando-se em breve duma grande casa
de tristonho tijolo vermelho, com um catavento no cimo do
telhado, do qual pendia uma campainha. Era uma casa grande
mas de má sina, pois que os seus vastos compartimentos eram
pouco utilizados, as paredes estavam húmidas e musguentas,
as janelas partidas e os portões arruinados. As galinhas
cacarejavam e pavoneavam-se nos estábulos e as cocheiras e os
telheiros estavam cheios de erva. O interior também não
evocava o seu antigo estado porque, ao entrarem no
assustador átrio e deitando um olhar pelas portas abertas às
muitas salas, acharam-nas pobremente mobiladas, frias e
enormes. Havia no ar um cheiro a coisas terrenas, uma
arrepiante desolação naquele lugar que, de certo modo, se
coadunava com o levantar ainda de noite e o pouco que comer.
O fantasma e Scrooge atravessaram o átrio e dirigiram-se a
uma porta que havia nas traseiras. Abriu-se na sua frente e
deixou ver um compartimento comprido, nu e triste, que
parecia ainda mais nu pelas filas de vulgares bancos corridos e
secretárias. A uma destas estava sentado um rapaz solitário
que lia junto dum débil lume. Scrooge sentou-se num banco e
chorou ao ver o seu pobre e esquecido eu, tal como costumava
estar.

41

Não havia nem um eco latente na casa, nem o chiar e o


tumulto dos ratos no forro, nem o pingar da goteira
semiderretida, lá atrás no pátio, nem um suspiro entre os
ramos sem folhas dum tristonho choupo, nem o balançar
indolente duma porta de armazém, nada, nem um estalido no
lume, mas o coração de Scrooge foi tocado por uma branda
influência e deu livre curso às lágrimas.
O espírito tocou-lhe no braço e apontou-lhe para o seu eu mais
novo, debruçado na leitura. Subitamente apareceu lá fora, na
janela, um homem com traje de estrangeiro, maravilhosamente
real e distintamente visível, com um machado preso no cinto e
trazia à rédea um burro carregado de lenha.
— Olha, é o Ali Babá! — exclamou Scrooge extasiado. — É o
meu querido e honesto, o meu velho Ali Babá! Sim, sim, já sei!
Foi num Natal, quando aquela criança solitária aqui foi deixada
completamente só, que ele apareceu, pela primeira vez, tal
qual assim. Pobre rapaz! E Valentine — disse Scrooge —, e o
seu irmão selvagem, o Orson, lá vão eles! E como se chama
aquele, o que foi posto em ceroulas, a dormir às portas de
Damasco, não vê? E o Lacaio do Sultão, posto de pernas para o
ar pelo Génio. Lá está ele de cabeça para baixo! E bem feito.
Ainda bem. Que é que ele tinha de casar com a Princesa?
Teria sido, sem dúvida, uma grande surpresa para os seus
companheiros de negócios, da cidade, ver Scrooge despender
toda a energia da sua natureza em coisas daquelas e com uma
voz invulgar, entre o riso e as lágrimas, bem como o seu rosto
extasiado e excitado.
— Lá esta o Papagaio! — gritou Scrooge. — De corpo verde e
cauda amarela e com uma coisa semelhante a uma alface no
cimo da cabeça. Lá está ele! Pobre Robinson Crusoé, chamava-
lhe ele, quando voltou para casa depois de ter navegado em
torno da ilha. «Pobre Robinson Crusoé,

42

onde é que estiveste, Robinson Crusoé?». O homem pensava


que estava a sonhar, mas não estava, era mesmo o papagaio,
sabe? Lá vai o Sexta-
-Feira a correr em direcção à pequena baía para salvar a vida.
Hooh! Eia! Hooh!
Com uma rápida transição, muito estranha ao seu feitio
habitual, disse então, apiedado do seu ex-eu: «Pobre rapaz!». E
chorou de novo.
— Quem me dera — murmurou Scrooge, levando a mão ao
bolso e olhando em volta, depois de ter limpo os olhos ao lenço
—, mas agora é tarde de mais.
— Que é? — perguntou o espírito.
— Nada — disse Scrooge. — Nada. Ontem à noite houve um
rapaz que foi cantar uma balada de Natal, à minha porta.
Gostaria de lhe ter dado alguma coisa. É isso.
O fantasma sorriu pensativamente e acenou com a mão
enquanto dizia:
— Ora vejamos outro Natal!
A estas palavras, o ex-eu de Scrooge cresceu e a sala tornou-se
um pouco mais escura e mais suja. O forro da casa abateu, as
janelas estalaram, caíram do tecto fragmentos de caliça e
ficaram à vista os simples barrotes, mas como tudo isso
aconteceu era coisa que Scrooge, tal como você, não sabia.
Sabia apenas que tudo estava certo, que assim acontecera e
que ali estava ele, novamente só, quando todos os rapazes
tinham ido para casa passar umas alegres férias.
Agora não estava a ler, mas a caminhar desesperadamente
dum lado para o outro. Scrooge olhou para o fantasma e,
acenando lamentosamente a cabeça, deitou o olhar
ansiosamente para a porta.
A porta abriu-se e uma rapariguinha, muito mais nova do que o
rapaz, lançando-se a ele e abraçando-lhe o pescoço, beijando-o
repetidamente, dirigiu-se-lhe como «Meu querido irmão».

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— Vim buscar-te para te levar para casa, meu querido irmão!


— disse a criança, batendo as mãozitas e curvando-se a rir. —
Levar-te para casa, para casa, para casa!
— Para casa, minha pequena Fan? — respondeu o rapaz.
— Sim! — disse a criança, transbordante de alegria. — Para
casa e para sempre e tudo. Para casa e para sempre, sempre. O
pai está muito mais carinhoso do que era e aquela casa é um
céu! Ele falou-me tão ternamente numa doce noite, quando eu
me ia deitar, que não tive medo de lhe pedir mais uma vez que
te deixasse vir para casa e ele disse que sim, que virias e
mandou-me vir buscar-te de carruagem. E vais fazer-te um
homem! — disse a criança abrindo os olhos. — E nunca mais
voltarás para aqui, mas primeiro vamos passar juntos toda a
época do Natal e vamos divertir-nos como ninguém.
— És uma verdadeira mulher, querida Fan! — exclamou o
rapaz. Ela bateu as palmas e riu e tentou tocar-lhe na cabeça;
mas, como era muito pequenina, riu-se e ficou em bicos de pés
para o abraçar. Depois começou a puxá-lo para a porta, na sua
ansiedade infantil; nada contrariado de ir, acompanhou-a.
Uma voz terrível gritou no átrio: «Tragam para baixo a mala do
menino Scrooge!», e no átrio apareceu o próprio professor, que
olhou para o menino Scrooge com uma feroz condescendência
e o lançou num estado de espírito terrível, só de lhe apertar a
mão. Confiou-o depois à irmã, numa sala de visitas horrível,
que era o mais velho poço que jamais se vira, no qual os mapas
suspensos da parede e os globos terrestre e celeste que
estavam nas vitrinas luziam com o frio. Aqui fazia ele aparecer
uma decantação de vinho fraco e um bloco de pesado bolo e
oferecia pedaços daquelas guloseimas aos jovens, mandando
ao mesmo tempo um criado escanzelado oferecer um

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cálice de «qualquer coisa» ao estafeta, que respondia que


agradecia ao senhor, mas que se era o mesmo líquido que
provara no ano anterior, preferia não aceitar. Como o baú do
menino Scrooge já estava atado ao tejadilho da carruagem, as
crianças fizeram uma vénia de despedida ao professor, de
muito boa vontade, e entrando para ela dirigiram-se
alegremente pela extensão do jardim enquanto as rodas
rápidas, faziam, como pulverizadas, saltar a branca geada e a
neve que havia por sobre as folhas escuras dos ramos de
sempre-vivas.
— Sempre uma criatura delicada que um sopro podia fazer
murchar — disse o espírito. — Mas tinha um grande coração!
— Isso tinha — disse Scrooge a chorar. — Tem razão. Não digo
o contrário, espírito. Deus me livre!
— Morreu já mulher — disse o espírito — e segundo me parece
deixou filhos.
— Um filho — retorquiu Scrooge.
— É verdade — disse o fantasma. — O teu sobrinho! Scrooge
parecia pouco à vontade com a sua consciência e respondeu
laconicamente:
— Sim.
Embora tivessem acabado de deixar atrás de si a escola,
estavam agora na movimentada via pública duma cidade onde
os peões sombrios passavam e repassavam, onde sombrias
carruagens abriam caminho a custo e onde existiam todo o
tumulto e azáfama duma verdadeira cidade. Pela
ornamentação das lojas era muito evidente que também
novamente aqui era Natal, mas era noite e as ruas estavam
iluminadas.
O fantasma parou à porta de certo armazém e perguntou a
Scrooge se ele o conhecia.
— Se o conheço! — disse Scrooge. — Fui ali aprendiz!
Entraram. Ao ver um velho de peruca galesa, sentado por trás
duma secretária tão
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alta que, se fosse duas polegadas mais alta, o faria bater com a
cabeça no tecto, Scrooge gritou muito excitado:
— É o velho Fezziwig! Abençoado seja. E o Fezziwig novamente
vivo!
O velho Fezziwig pousou a caneta e levantou os olhos para o
relógio que marcava as sete. Esfregou as mãos, apertou o
colete largo, abriu-
-se num sorriso que lhe ia dos sapatos até ao órgão da bondade
e chamou numa voz fluente, rica, forte e jovial:
— Ei, vocês aí! Ebenezer! Dick!
O ex-eu de Scrooge, agora já um jovem, entrou subitamente
acompanhado pelo aprendiz seu colega.
— É o Dick Wilkins, com certeza! — disse Scrooge ao espírito.
— Valha-me Deus, é mesmo. Ali está ele. Era muito meu amigo,
aquele Dick. Pobre Dick! Caro, caro Dick!
— Ei, rapazes! — disse Fezziwig. — Por hoje acabou-se o
trabalho. É a véspera de Natal, Dick. Natal, Ebenezer! Vamos
pendurar os taipais — gritou Fezziwig com uma sonora batidela
de palmas —, antes que o Diabo esfregue um olho!
Nem imaginam como aqueles dois se atiraram a isso!
Avançaram para a rua com os taipais — um, dois, três —, já os
tinham colocado — quatro, cinco, seis —, trancaram-nos e
aparafusaram-nos — sete, oito, nove — e regressaram antes de
contar até doze, arquejantes como cavalos de corrida.
— Eia! — gritou o velho Fezziwig, escorregando da sua alta
secretária com uma estupenda agilidade. — Sumam-se,
rapazes, e deixemos o campo livre! Viva, Dick! Ânimo,
Ebenezer!
Desaparecer! Não houve nada que não fizessem desaparecer
ou que pudessem não ter feito desaparecer, com o velho
Fezziwig a vigiar.

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Ficou pronto num minuto. Tudo o que era móvel foi


arrecadado, como se fosse para desaparecer da circulação para
sempre. O chão foi varrido e regado, prepararam-se os
candeeiros, foi lançado combustível na lareira e o armazém
ficou tão agradável, tão quente, tão seco e tão brilhante como
uma sala de baile, tal como se desejaria vê-la numa noite de
Inverno.
Entrou um violinista com uma pauta, subiu para a cadeira alta
da secretária e formou uma orquestra que soava como
cinquenta dores de estômago. Entrou a senhora Fezziwig, com
um enorme sorriso. Entraram três meninas Fezziwig,
resplandecentes e adoráveis. Entraram os seis jovens
acompanhantes, cujos corações elas despedaçaram. Entraram
todos os homens e mulheres que trabalhavam no negócio.
Entrou a criada com o seu primo padeiro. Entrou a cozinheira
com o amigo íntimo de seu irmão, o leiteiro. Entrou o rapaz que
era de mais longe e que se suspeitava não ser
convenientemente bem alimentado pelo patrão e que tentava
esconder-se atrás da rapariga da segunda porta depois da nossa
e a quem sabíamos ter a patroa puxado as orelhas. Todos
entravam uns após outros. Uns timidamente, outros
atrevidamente, outros graciosamente, outros
desajeitadamente, uns empurrando, outros puxando. Todos
eles entravam de qualquer maneira e por todo o lado. De novo
todos desapareciam, vinte pares ao mesmo tempo. As mãos em
semiarco e de novo voltando à mesma posição. Ao meio e para
cima, rodando, rodando em várias poses de amistosos grupos.
O velho casal da frente, virando sempre no sítio errado, o novo
casal da frente recomeçando, mal lá chegavam, por fim todos
os casais à frente sem nenhum na retaguarda a ajudá-los!
Quando se atingiu este resultado, o velho Fezziwig gritou,
batendo as palmas para que a dança parasse: «Muito bem!», e
o violinista mergulhou o rosto quente num púcaro de cerveja
preta, especialmente arranjada

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para a ocasião. Mas no momento de recomeçar, e esquecendo


o cansaço, atacava de novo, embora não houvesse ainda
dançarinos, como se outro violinista tivesse sido levado em
braços, exausto, e ele fosse um homem novinho em folha e
decidido a vencê-lo ali ou a morrer.
Houve mais danças e houve jogos de prendas e mais danças e
houve um bolo e houve sangria e houve um grande pedaço de
assado frio e houve um grande pedaço de cozido frio e houve
pastéis de carne e cerveja a rodos. Mas a sensação da noite
veio depois do assado e do cozido, quando o tocador (um bicho
habilidoso, note-se! O tipo de homem que sabia mais do seu
ofício do que vocês ou eu lhe poderíamos ensinar) atacou com
a Sir Roger de Coverley. O velho Fezziwig levantou-se para
dançar com a senhora Fezziwig e para serem o par da frente
também, com uma boa dose de trabalho às costas: três ou
quatro pares e vinte pares, gente que não era para
menosprezar. Pessoas que iam dançar e nem caminhar sabiam.
Mas se eles fossem o dobro — até quatro vezes mais —, o
velho Fezziwig chegaria para todos eles e também a senhora
Fezziwig. Quanto a ela, era digna de emparceirar com ele em
toda a acepção do termo. E se isto não é um grande louvor,
sugiram-me outro e eu utilizá-lo-ei. Uma luz verdadeira parecia
irradiar das barrigas das pernas de Fezziwig, porque elas
brilhavam em todos os pontos da dança, como luas. Não se
poderia predizer, a dado momento, o que é que elas fariam no
momento seguinte, nem quando o senhor e a senhora Fezziwig
tinham executado a dança; avançar e recuar, dar as mãos ao
par, reverência e vénia, pirueta, «o enfiar da agulha» e de novo
ao seu lugar; o corte de Fezziwig cortava tão destramente que
parecia pestanejar com as pernas e voltar a ser apoiado pelos
pés sem cambalear.

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Quando o relógio bateu as onze, este baile doméstico cessou.


O senhor e a senhora Fezziwig postaram-se um em cada lado da
porta e, apertando a mão a cada pessoa individualmente, à
medida que ele ou ela saía, desejavam a cada um feliz Natal.
Quando todos se tinham retirado excepto os dois aprendizes,
fizeram a estes o mesmo e assim as vozes alegres se afastaram
e os rapazes ficaram para se deitar. As suas camas ficavam
debaixo dum balcão, nas traseiras da loja.
Durante todo aquele tempo Scrooge actuara como se fosse um
homem fora dos seus sentidos. O seu coração e a sua alma
estavam metidos na cena com o seu ex-eu. Ele tudo
corroborava, de tudo se lembrava, de tudo gostava e passou
pela mais estranha agitação. Só naquele momento, quando os
rostos de Dick e do seu ex-eu se voltaram, é que se lembrou do
fantasma e tomou consciência de que ele o olhava em cheio,
enquanto a luz que tinha sobre a cabeça brilhava muito
claramente.
— Uma coisa tão pouca — disse o fantasma —, deixar assim
aqueles palermas tão gratos.
— Pouca?! — repetiu Scrooge.
O espírito fez-lhe sinal para que ouvissem. Os dois aprendizes
elevavam os corações em louvor a Fezziwig; e, depois de o
terem feito disse:
— Ah, não é? Ele não fez mais do que gastar algumas libras do
vosso dinheiro terreno. Talvez umas três ou quatro. É caso para
merecer tamanho louvor?
— Não é isso? — disse Scrooge, espicaçado pelo remoque e
falando inconscientemente como o seu ex-eu, não como o seu
eu actual. — Não é isso, espírito. Ele tem o poder de nos fazer
felizes ou infelizes, de nos tornar o serviço leve ou um fardo,
um prazer ou uma fadiga. Digamos que o seu poder reside nas
palavras e nos olhares. Em coisas tão insignificantes e ligeiras
que é impossível somá-las ou contá-las

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e depois? A alegria que ele nos dá é quase tão grande como se


tivesse custado uma fortuna.
Sentiu o olhar do espírito e deteve-se.
— Que há? — insistiu o fantasma.
— Nada de especial — disse Scrooge.
— Acho que há algo — insistiu o fantasma.
— Não — disse Scrooge. — Não. Gostaria de poder dizer uma
palavra ao meu empregado, neste momento. Só isso.
O seu ex-eu apagou as luzes enquanto ele exprimia o seu
desejo e Scrooge e o espírito voltaram a estar novamente lado
a lado, ao ar livre.
— Já tenho pouco tempo — avisou o espírito. — Depressa!
Isto não se dirigia a Scrooge ou a quem quer que estivesse à
vista, mas provocou um efeito imediato, porque de novo
Scrooge se viu a si próprio. Era agora mais velho. Um homem
na flor da vida. O rosto não possuía as linhas duras e rígidas dos
anos posteriores, mas já começava a dar sinais de preocupação
e avareza. Havia no olhar um movimento ávido, ambicioso e
inquieto que denotava a paixão que se enraizara e o local onde
a árvore que crescia iria tombar.
Não estava só, pelo contrário, estava sentado ao lado duma
bela jovem vestida de luto e em cujos olhos havia lágrimas que
brilhavam à luz que irradiava do Espírito do Natal Passado.
— Pouco importa — dizia ela baixinho. — Para ti, muito pouco.
Outro ídolo roubou o meu lugar; e se eu puder dar-te alegria e
conforto num futuro, como eu tentaria fazer, não tenho razão
para estar triste.
— Que ídolo é que te roubou o lugar? — retorquiu ele.
— Um de ouro.

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— Essa é a conduta imparcial do mundo! — disse ele. — Não
há nada com que seja mais duro do que com a pobreza e não há
nada que declare condenar tão severamente como a procura de
riqueza!
— Temes demasiado o mundo — respondeu-lhe ela
docemente. — Todas as tuas esperanças se fundiram na
esperança de te manteres fora do alcance da sua mesquinha
censura. Vi as tuas aspirações mais nobres desabarem uma a
uma, até a paixão-mestra chamada Lucro te monopolizar. Não
foi?
— E depois? — respondeu. — Ainda que eu me tenha tornado
mais sensato, que é que tem? Não mudei para contigo.
Ela abanou a cabeça.
— E eu?
— O nosso compromisso é antigo. Foi celebrado quando ambos
éramos ainda pobres e contentes de o ser, até em devido
tempo podermos aumentar a nossa parca fortuna através do
nosso paciente trabalho. Tu estás diferente. Quando o
compromisso foi celebrado, eras outro homem.
— Era um rapaz — disse impacientemente.
— Os teus próprios sentimentos dizem-te que já não és aquele
que eras — respondeu-lhe ela. — Eu sou a mesma. Aquela a
quem prometeste felicidade, quando éramos um só coração,
está cheia de pesar agora que somos dois. Nem direi quantas
vezes e quão vivamente pensei nisto. Basta que tenha pensado
e que te liberte.
— Alguma vez pedi que me libertasses?
— Por palavras, não. Nunca.
— Então como?
— Pela modificação da tua maneira de ser, pelo teu espírito
diferente, por outra forma de vida, por outra esperança e seu
grande objectivo. Por tudo o que tornou o meu amor sem
qualquer valor ou

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merecimento a teus olhos. Se nada disto tivesse existido entre


nós — disse a rapariga, olhando-o doce mas firmemente —, diz-
me, procurar-
-me-ias agora e tentarias conquistar-me? Ah, não!
Ele parecia concordar com a justeza desta suposição, embora a
contragosto. Mas disse, lutando consigo:
— Achas que não?
— De boa vontade pensaria de outro modo, se pudesse —
respondeu ela. — Deus sabe! Se me apercebi de semelhante
verdade, também sei quão forte e irresistível deve ser. Mas, se
fosse livre, hoje, ontem, amanhã, poderei imaginar que
escolherias uma rapariga sem dote — tu que, na própria
intimidade com ela, medias tudo pelo Lucro; ou que a
escolherias, se por um momento fosses suficientemente falso
ao teu princípio-mestre para assim agires, pensas que não sei
que o teu arrependimento e remorso se seguiriam por certo?
Sei. E liberto-te. Com o coração cheio, pois que um dia foste o
seu amor.
Ele ia falar, mas virando-lhe a cara ela concluiu:
— Podes sentir desgosto com isto; a recordação do que se
passou faz-
-me semiesperar que o sintas. Por muito, muito pouco tempo, e
apagarás a lembrança disto, de boa vontade, como a de um
sonho inútil, de que foi bom teres acordado. Que sejas feliz na
vida que escolheste!
Ela deixou-o e separaram-se.
— Espírito — disse Scrooge —, não me mostres mais! Leva-me
a casa. Porque te comprazes em torturar-me?
— Só mais uma sombra! — exclamou o fantasma.
— Mais não! — gritou Scrooge. — Mais não! Não quero ver.
Não me mostres mais.
Mas o implacável fantasma agarrou-o pelos dois braços e
obrigou-o a olhar o que se seguiu.
Estavam num outro local. Uma sala não muito grande, nem
bonita, mas

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muito confortável. Perto da lareira estava sentada uma linda


jovem, tão parecida com a última que Scrooge julgou ser a
mesma, até que a viu a ela, agora uma simpática matrona,
sentada em frente da sua filha. O barulho na sala era
absolutamente tumultuoso, porque havia ali mais crianças do
que Scrooge, com o seu espírito agitado, poderia contar; e,
longe do rebanho cantado no poema, não eram quarenta
crianças a portarem-se como se fossem uma, mas cada uma a
portar-se como se fosse quarenta. A consequência era um
barulho incalculável, mas ninguém parecia importar-se; pelo
contrário, mãe e filha riam com gosto e estavam a gostar muito
e a última depressa se misturou aos jogos e foi assaltada pelos
pequenos bandidos de forma implacável. O que eu não daria
para ser um deles! Ainda que nunca tivesse conseguido ser tão
agressivo, não! Nem por todo o ouro do mundo teria apertado
e desmanchado aquele cabelo entrançado. E quanto ao
precioso sapatinho não lho teria arrancado nem para me salvar
a vida. Deus me livre! Também medir-lhe a cintura na
brincadeira, como eles fizeram (rapaziada atrevida), era coisa
que eu não faria. Ficaria à espera que o meu braço se
encurvasse para castigo e que nunca mais se endireitasse. E, no
entanto, muito me teria agradado ter eu próprio tocado os seus
lábios, tê-la interrogado para que os entreabrisse; ter olhado os
seus olhos descaídos sem nunca ter provocado um rubor; ter
soltado ondas de cabelo, uma polegada dos quais seria uma
relíquia inestimável; resumindo: teria gostado, confesso, de ter
a mais leve das licenciosidades duma criança e ser no entanto
suficientemente homem para me aperceber do valor dela.
Porém fez-se ouvir uma pancada na porta e seguiu-se uma tal
correria que ela foi levada, de rosto sorridente e vestido
desmanchado, no centro do excitado e turbulento grupo, a
tempo de cumprimentar o pai

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que regressava a casa acompanhado por um homem carregado


de brinquedos de Natal e presentes. E os gritos, a luta e o
ataque que foram lançados contra o indefeso carregador! O
que eles treparam por ele com cadeiras a servir de escada, para
mergulharem nos seus bolsos, para o despojarem dos
embrulhos de papel pardo, pendurarem-se na sua gravata,
cingi-lo pelo pescoço, bater-lhe nas costas e ponta-pear-lhe as
pernas com incontido afecto! Os gritos de espanto com que era
recebido o desfazer de cada embrulho! A declaração de que o
bebé tinha sido surpreendido a meter uma frigideira das
bonecas na boca e que havia quase a certeza de que engolira
um peru fictício que estava colado a uma travessa de madeira!
E que alegria ao descobrir-se que era falso alarme! A alegria, a
gratidão, o êxtase! Como se assemelham todos! Basta dizer-se
que gradualmente as crianças e as suas emoções abandonaram
a sala e degrau a degrau dirigiram-se ao cimo da casa, onde se
deitaram e assim acalmaram.
Scrooge olhava agora mais atentamente que nunca, quando o
dono da casa, tendo a filha ternamente inclinada para ele, se
sentou com ela e a mãe junto da lareira e quando pensou que
outra criatura como aquela, tão graciosa e prometedora, lhe
poderia ter chamado pai e ter sido um sopro de Primavera no
pálido Inverno da sua vida, a sua vista turvou-se.
— Belle — disse o marido, virando-se para a mulher com um
sorriso —, vi um velho amigo teu, esta tarde.
— Quem era?
— Adivinha!
— Como posso adivinhar? Tate, já sei — disse ela dum fôlego,
rindo com ele. — O senhor Scrooge.
— E foi mesmo o senhor Scrooge. Passei pela janela do
escritório dele e, como não estava fechada e havia luz lá
dentro, não podia

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evitar vê-lo. Dizem que o sócio dele está a morrer e ele ali está
sentado sozinho. Só no mundo, creio eu.
— Espírito! — disse Scrooge em voz alquebrada. — Leva-me
deste lugar.
— Já te disse que isto são sombras de coisas passadas — disse
o fantasma. — Se elas são o que são, não me tornes as culpas!
— Leva-me daqui! — exclamou Scrooge. — Não suporto isto!
Virou-se para o fantasma e vendo que ele o olhava com uma
cara na qual, por qualquer estranha razão, havia pedaços de
todas as caras que lhe mostrara, lutou com ele.
— Deixa-me! Leva-me de volta. Não me persigas mais!
Durante a luta, se é que àquilo se poderia chamar luta,
enquanto o fantasma, sem qualquer aparente resistência da
sua parte, se mostrava imperturbado por qualquer esforço
exercido pelo adversário, Scrooge observou que a sua luz
brilhava clara e forte e, fazendo uma obscura ligação entre isto
e a sua influência sobre ele, agarrou no barrete e com um
movimento rápido enfiou-lho na cabeça.
O espírito caiu debaixo dele e assim o barrete cobriu toda a sua
forma; mas, embora Scrooge enterrasse o barrete com toda a
força, não conseguia esconder a luz que se escapava por baixo
em jorro ininterrupto, espalhando-se pelo chão.
Tinha a consciência de que estava exausto e avassalado por
uma irresistível sonolência e além disso de que estava no seu
quarto. Apertou o barrete como numa despedida, depois do
que relaxou a mão e mal teve tempo de cambalear para a cama
antes de mergulhar num pesado sono.

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Página em branco

ESTROFE III
O segundo dos três espíritos

Tendo acordado no meio dum formidável ronco e sentando-se


na cama para pôr os pensamentos em ordem, Scrooge não teve
tempo de se aperceber de que o sino estava novamente a bater
a uma. Sentiu que tinha recuperado consciência no momento
certo, com o objectivo preciso de ter uma conversa com o
segundo mensageiro enviado até ele por intercessão de Jacob
Marley. Mas, apercebendo-se de que arrefecia
desconfortavelmente quando começava a pensar qual das
cortinas este novo fantasma levantaria, afastou as duas com as
próprias mãos e, deitando-se novamente, montou uma cerrada
vigilância à volta da cama, porque queria enfrentar o fantasma
no momento da sua aparição e não queria ser apanhado de
surpresa e enervado.
Os cavalheiros de tipo descuidado que se gabam de serem
espertos e iguais à hora do dia, exprimem o largo alcance da
sua capacidade de aventura dizendo que servem para tudo,
desde jogar cara ou coroa até matar um homem. Entre estes
termos opostos existe uma gama de temas amplamente vastos.
Sem querer fazer para Scrooge uma previsão tão ousada como
essa, não me repugna chamar-vos a atenção para que
acreditem que ele estava preparado para um largo leque de
estranhas aparições e que nada lhe causaria grande espanto,
desde um bebé até um rinoceronte.
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Estando assim preparado para quase tudo, não estava de


maneira nenhuma preparado para nada e, consequentemente,
quando o sino bateu a uma e nenhuma figura apareceu, foi
assaltado por um violento acesso de tremuras. Cinco minutos,
dez minutos e um quarto de hora passaram e nada aconteceu.
Todo este tempo permanecera sobre a cama o âmago e o
próprio centro dum clarão de luz rubra, que caiu sobre ele
quando o relógio bateu a hora e que, por ser só luz, era mais
assustador do que uma dúzia de fantasmas, porque se sentia
impotente para discernir o que aquilo queria dizer ou o que
pretenderia; e sentiu-se por vezes apreensivo, pensando que
pudesse ser um caso interessante de combustão espontânea,
sem ter, no entanto, a consolação de o saber. Contudo, por fim,
começou a pensar — tal como você ou eu teríamos pensado de
princípio, pois que é sempre aquele que não está na situação
que sabe o que deveria ter sido feito e o teria sem dúvida
executado —, dizia eu que por fim começou a pensar que a
fonte e o segredo desta fantasmagórica luz poderia estar no
quarto ao lado, donde, depois de a seguir com os olhos, parecia
provir. Tendo-se apoderado dele esta ideia, levantou-se
cuidadosamente e, arrastando os pés metidos nos chinelos,
caminhou para a porta.
No momento em que a mão de Scrooge pousou no fecho, uma
estranha voz chamou-o pelo nome e convidou-o a entrar.
Obedeceu.
Estava no seu próprio quarto, não havia dúvida. Mas o quarto
tinha sofrido uma surpreendente modificação: das paredes e do
tecto pendia tanta verdura que parecia um autêntico bosque,
onde brilhavam por toda a parte luzidias bagas. As folhas
encaracoladas do azevinho, do visco e da hera reflectiam a luz
como se muitos espelhinhos tivessem por ali sido espalhados; e
pela chaminé subia rugindo uma tão potente

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chama como essa lareira estupidamente petrificada jamais


conhecera no tempo de Scrooge, de Marley e de há muitas e
muitas estações. Empilhados no chão, a formarem uma espécie
de trono, havia perus, gansos, caça, criação, brawn, grandes
peças de carne, leitões, grandes fieiras de salsichas, pastelões,
pudins de ameixas, barricas de ostras, castanhas em brasa,
maçãs vermelhas, tigelas de ponche fervente que enevoavam o
quarto com o seu vapor delicioso (Nota da tradutora: Brawn -
preparado em que entra cabeça de porco, língua e chispe, tudo
picado, cozido e temperado). Sobre este trono estava sentado
um gigante de aspecto glorioso, que tinha na mão um facho
brilhante de forma não muito diferente da cornucópia e o
levantava muito alto, para derramar sobre Scrooge a sua luz,
quando ele apareceu a espreitar à porta.
— Entra! — exclamou o fantasma. — Entra, homem, e vem
conhecer-me melhor!
Scrooge entrou timidamente e em frente do espírito pendeu a
cabeça. Já não era o obstinado Scrooge que tinha sido; e, ainda
que o espírito tivesse um olhar límpido e bom, não queria fixá-
lo.
— Eu sou o Espírito do Natal Presente — disse o espírito. —
Olha para mim!
Reverentemente, Scrooge assim fez. Vestia uma simples túnica
verde debruada de pele branca. Este trajo pendia tão solto da
silhueta que o seu largo peito estava destapado, como se
desdenhasse ser protegido ou limitado por qualquer
ornamento. Os pés, que eram visíveis por baixo das pregas da
túnica, estavam também descalços e na cabeça não usava outra
coisa senão uma grinalda de azevinho, presa aqui e ali por
brilhantes pingentes de gelo. Os seus caracóis castanho-escuro
eram compridos e estavam soltos, livres com o seu rosto genial,

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o olhar cintilante, a mão aberta, a voz jovial, o porte


descontraído e o ar prazenteiro. Em volta do peito tinha uma
bainha, mas não havia nela espada e o velho estojo estava
roído pela ferrugem.
— Nunca viste nada parecido comigo?! — exclamou o espírito.
— Não, nunca — respondeu Scrooge.
— Nunca caminhaste com os membros mais novos da minha
família; refiro-me (porque sou muito novo) aos meus irmãos
mais velhos nascidos nestes últimos anos? — prosseguiu o
fantasma.
— Acho que não — retorquiu Scrooge. — Receio bem que não.
Tens muitos irmãos, espírito?
— Mais de mil e oitocentos — disse o fantasma.
— É uma grande família para sustentar! — murmurou Scrooge.
O Espírito do Natal Presente levantou-se.
— Espírito — disse Scrooge obedientemente — leva-me onde
quiseres. Ontem saí compulsivamente e aprendi uma lição que
está agora a frutificar. Se esta noite tens algo a ensinar-me, que
eu o aproveite.
— Toca na minha túnica!
Scrooge assim fez e agarrou-se rapidamente a ela.
Azevinho, visco, bagas vermelhas, hera, perus, gansos, caça,
criação, brawn, carne, porcos, salsichas, ostras, empadas,
pudins, frutos e ponche — tudo desapareceu
instantaneamente, o mesmo acontecendo ao quarto, à lareira,
à chama vermelha, à hora da noite, e eles surgiram nas ruas da
cidade em plena manhã de Natal, onde (porque o tempo estava
mau) as pessoas produziam uma espécie de música tosca, mas
rápida e não desagradável, ao varrerem a neve do pavimento
em frente de suas casas e dos telhados, donde era um prazer
para os rapazes vê-la cair e estatelar-se cá em baixo, na rua,

60

explodindo em pequenas tempestades de neve.


As frontarias dos prédios pareciam bastante escuras e as
janelas ainda mais escuras, contrastando com o macio lençol
branco de neve sobre os telhados e com a neve ainda mais suja
do chão, cuja última camada tinha sido escavada em profundos
sulcos pelas rodas dos trens e das carroças; sulcos que se
cruzavam e recruzavam centenas de vezes nos sítios em que as
ruas se ramificavam e formavam intrincados canais, difíceis de
localizar na espessa lama amarelada e na água gelada. O céu
estava tristonho e as ruas mais curtas estavam obstruídas por
uma neblina escura, semiderretida semigelada, cujas partículas
mais pesadas desciam em chuveiro de átomos fuliginosos,
como se todas as chaminés da Grã-Bretanha tivessem
começado a arder todas à uma e estivessem crepitando a bom
crepitar. Nada havia de muito alegre na atmosfera da cidade —
e no entanto havia em todas as direcções uma alegria que o
mais claro ar de Verão e o mais brilhante Sol poderiam tentar
em vão penetrar.
Porque as pessoas que escavavam no cimo dos telhados
estavam alegres e cheias de jovialidade, chamando-se umas às
outras dos parapeitos e trocando agora e logo uma atrevida
bola de neve — um míssil mais bem humorado do que muitas
piadas verbais —, rindo com gosto se acertavam e não com
menos gosto se falhavam. Os galinheiros ainda estavam
semiabertos e os fruteiros estavam radiantes de alegria. Havia
grandes cestos redondos atafulhados de castanhas e em forma
de coletes de alegres velhotes, encostados às portas e
tombando para a rua em toda a sua apopléctica opulência.
Havia cebolas espanholas, rubras de cara castanha, com uma
tosca cinta, que brilhavam na obesidade do seu crescimento
como frades espanhóis e das suas prateleiras piscavam o olho
às raparigas com dissimulada malícia,

61

quando elas passavam e olhavam modestamente o azevinho


pendurado.
Havia peras e maçãs empilhadas em florescentes pirâmides;
havia cachos de uvas que pela benevolência do lojista eram
pendurados a balouçar em enormes ganchos e que as bocas dos
que passavam podiam provar; havia montes de avelãs,
musgosas e castanhas, fazendo lembrar pela sua fragância,
caminhadas passadas pelos bosques onde os tornozelos se
enredavam nas folhas caídas; havia maçãs de Norfolk,
rechonchudas e tisnadas, espreitando entre o amarelo das
laranjas e limões, suplicando e rogando ansiosamente, no
fundo compacto das suas sumarentas pessoas, que as levassem
para casa em cartucho de papel e as comessem depois de
jantar. O próprio peixe dourado e prateado espreitava por
entre estes frutos de eleição, numa terrina, e ainda que sendo
membros duma raça enfadonha e de sangue frio, pareciam
saber que algo estava a passar-se e, como peixes que eram,
continuavam arfando e volteando no seu pequeno mundo, com
uma excitação desapaixonada.
E as mercearias! Oh, as mercearias! Quase fechadas, com um
ou até dois taipais corridos; mas, por entre aquelas frinchas,
que espectáculo!
Não era só pelos pratos da balança que ao baixarem sobre o
balcão produziam um alegre som, ou a guita e a bobina
separando-se bruscamente, ou pelas caixas que eram
chocalhadas como em prestidigitação, ou até pelos aromas do
chá e do café tão gratos ao nariz, ou mesmo por as uvas serem
tão abundantes e raras, as amêndoas tão extraordinariamente
brancas, os paus de canela tão longos e direitos, as outras
especiarias tão deliciosas, as frutas cristalizadas tão
solidificadas e salpicadas de calda de açúcar que fariam o mais
frio dos mirones sentir-se tonto e depois bilioso. Nem sequer
era pelos figos húmidos e carnudos, ou porque as ameixas

62

francesas coravam com ligeira acidez nas suas caixas finamente


decoradas ou porque tudo era bom de comer na sua cobertura
de Natal, mas o certo é que os clientes iam tão apressados e tão
ansiosos pela promessa do dia, chocando violentamente os
seus cestos de vime, deixando as compras sobre o balcão e
voltando atrás a correr para as virem buscar e cometiam
centenas de erros semelhantes, sempre com o melhor humor
possível, enquanto o merceeiro e os seus eram tão francos e
joviais que os polidos corações com que prendiam à frente os
aventais poderiam ser muito bem os seus próprios corações,
usados de fora para que todos os vissem e para que as gralhas
de Natal os debicassem se quisessem.
Em breve, porém, o campanário chamava toda a boa gente
para a igreja e a capela e aí vinham eles em bando pelas ruas,
nos seus melhores trajes e com o seu rosto mais alegre, e ao
mesmo tempo emergiam das inúmeras ruas vizinhas, becos e
inqualificáveis esquinas inumeráveis pessoas que traziam o seu
jantar para o forno do padeiro. A visão destes pobres foliões
pareceu interessar muitíssimo o espírito, porque estava com
Scrooge no portal dum padeiro e, destapando os tabuleiros à
medida que os portadores passavam por ele, espargia incenso
da sua tocha por sobre o jantar deles. E tratava-se dum tipo de
tocha muito pouco vulgar, porque quando por uma ou duas
vezes houve entre eles uma troca de palavras azedas, por
algum dos que levavam o jantar se terem empurrado, ela
verteu sobre eles umas gotas de água e imediatamente lhes
voltou o bom humor, porque diziam eles que era uma vergonha
discutirem no dia de Natal. E assim era! Assim era, na graça de
Deus!
A certa altura calaram-se os sinos e fecharam os padeiros e
havia, no entanto, um genial jogo de luz e sombra proveniente
de todos estes
63

jantares e do andamento da sua cozedura, na mancha de


humidade dissolvida por sobre cada forno de padeiro, cujo
pavimento fumegava como se as próprias pedras estivessem
também a cozer.
— Há algum aroma especial no que é espargido da tua tocha?
— perguntou Scrooge.
— Há. O meu próprio aroma.
— E aplica-se a qualquer espécie de jantar no dia de hoje? —
indagou Scrooge.
— A qualquer que seja dado caridosamente. Especialmente a
um de pobre.
— Porquê especialmente a um de pobre? — volveu Scrooge.
— Porque é quem mais precisa dele.
— Espírito — disse Scrooge, depois de reflectir uns momentos
—, admiro-me que tu, de entre todas as criaturas dos diversos
mundos que nos rodeiam, tenhas sido a que desejas restringir
as oportunidades desta pobre gente se divertir inocentemente.
— Eu! — gritou o espírito.
— Tu privá-los-ias dos meios para que jantassem ao sétimo dia,
de que se diz frequentemente ser o único em que jantam —
disse Scrooge. — Não é?
— Eu! — respondeu o espírito.
— Tu procuras fechar os locais ao sétimo dia — disse Scrooge
—, o que vem a dar no mesmo.
— Eu procuro? — exclamou o espírito.
— Perdoa-me se me engano. E em teu nome que tem sido
feito, ou pelo menos no da tua família — disse Scrooge.
— Há neste vosso mundo — retorquiu o espírito — aqueles
que reclamam conhecer-nos e que praticam em nosso nome os
seus actos de paixão, orgulho, má vontade, ódio, inveja,
intolerância e egoísmo, e que são

64

tão estranhos a nós e aos nossos amigos e parentes como se


nunca tivessem existido. Lembra-te disso e acusa-os a eles dos
seus actos, não a nós.
Scrooge assim prometeu e continuaram, invisíveis como até aí,
para os subúrbios da cidade. Era uma qualidade do espírito
(Scrooge observara-a quando estavam no padeiro): apesar da
sua gigantesca estatura, conseguia acomodar-se facilmente em
qualquer parte e ficava em pé debaixo dum telhado baixo, tão
graciosamente e com ar de criatura sobrenatural, como ficaria
em qualquer salão altíssimo.
E, ou fosse pelo prazer que o bom espírito tinha em
demonstrar o seu poder, ou pela sua maneira de ser, bondosa e
piedosa para com todos os pobres, o certo é que se dirigiu
direitinho a casa do empregado de Scrooge, lá foi ele com
Scrooge agarrado à sua túnica e à entrada da porta o espírito
sorriu e parou para abençoar a morada de Bob Cratchit com a
sua tocha pulverizante. Imaginem! O Bob, que só recebia
quinze bobs por semana, que só metia ao bolso, todos os
sábados, quinze cópias do seu nome de baptismo e a quem,
mesmo assim, o Espírito do Natal Presente abençoava a casa de
quatro divisões! (Nota da tradutora: Bobs - Denominação
coloquial da moeda inglesa xelim).
Ergueram-se então a senhora Cratchit, a mulher de Cratchit,
pronta mas pobremente vestida, com um vestido que já tinha
sido virado duas vezes, mas a que ficavam muito bem as fitas,
que são baratas e fazem boa figura por tuta e meia, e pôs a
toalha ajudada pela sua segunda filha, Belinda Cratchit,
também ela cheia de fitas, enquanto o menino Peter Cratchit
metia um garfo na panela das batatas e, metendo na boca os
bicos do seu descomunal colarinho(propriedade privada de
Bob,

65

oferecido a seu filho e herdeiro em honra do dia), alegrava-se


de se ver tão elegantemente ataviado e ansiava por exibir a sua
camisa nos Parques elegantes. Agora entraram os dois Cratchits
mais pequenos de rompante, gritando que à porta do padeiro
lhes tinha cheirado a ganso e que o tinham identificado como
seu; e, aquecidos por exuberantes pensamentos sobre salva e
cebola, estes jovens Cratchits dançaram em torno da mesa e
exaltaram ao máximo o menino Peter Cratchit enquanto ele
(sem orgulho, embora os colarinhos quase o sufocassem)
assoprava o lume até que as batatas, que demoravam,
começaram a fervilhar e bateram sonoramente na tampa da
caçarola, para que as tirassem e pelassem.
— Que é que terá acontecido ao bom do vosso pai? — disse a
senhora Cratchit. — E ao teu irmão, pequeno Tim? E a Marta,
será que vem como no Natal passado, meia hora atrasada?
— Aqui está a Marta, mãe! — disse a rapariga, aparecendo
imediatamente.
— Aqui está a Marta, mãe — gritaram os dois Cratchits mais
pequenos.
— Viva! Marta, temos cá um destes gansos!
— Viva! Deus te abençoe, minha querida, como vens atrasada!
— disse a senhora Cratchit, beijando-a uma dúzia de vezes e
tirando-lhe o xaile e o gorro e pegando-lhes com um solícito
cuidado.
— Tivemos ontem à noite uma quantidade de trabalho a
acabar — disse a rapariga — e tivemos de arrumar tudo hoje,
mãe!
— Bom, não importa, o que interessa é que vieste — disse a
senhora Cratchit. — Senta-te aqui em frente do lume, aquece-
te e que Deus te abençoe!
— Não, não! Vem lá o pai — gritaram os dois Cratchits mais
pequenos,

66

que estavam em toda a parte ao mesmo tempo. — Esconde-te,


Marta, esconde-te!
Marta escondeu-se e entrou então o pequeno Bob, o pai, que
trazia pelo menos três pés do cachecol, sem franja, pendurados
à frente e as roupas poídas estavam passadas e escovadas de
forma a parecerem apresentáveis e trazia aos ombros o
pequeno Tim. Infelizmente para ele, o pequeno Tim usava uma
pequena muleta e os seus membros eram amparados por uma
moldura de ferro!
— Olá, onde está a nossa Marta? — exclamou Bob Cratchit
olhando em redor.
— Não vem — disse a senhora Cratchit.
— Não vem?! — disse Bob, com um súbito declínio no seu bom
humor, porque tinha sido a montada de Tim desde a igreja e
chegara a casa exuberante. — Não vem, no dia de Natal?!
Marta não gostava de vê-lo decepcionado ainda que só por
uma brincadeira, por isso saiu prematuramente de trás da
porta do armário e correu para os braços dele, enquanto os
dois Cratchits mais pequenos empurravam o pequeno Tim e o
amparavam até ao lavadouro, para que ouvisse o pudim a chiar
na caldeira de cobre.
— E como é que se portou o pequeno Tim? — perguntou a
senhora Cratchit, depois de Bob se ter refeito da sua
credulidade e de ter abraçado a filha tanto quanto lhe
apeteceu.
— Foi ouro sobre azul — disse Bob — ou melhor ainda. Estando
muito tempo entregue a si próprio, ele torna-se de certa forma
pensativo, e pensa as coisas mais estranhas de que já ouviram
falar. Ao regressar a casa, disse-me que esperava que as
pessoas o tivessem visto na igreja, porque era um aleijado e
talvez lhes fosse agradável lembrarem-se, naquele dia de Natal,
de Quem fez com que os mendigos coxos andassem e os cegos
vissem.

67

A voz de Bob tremia ao dizer-lhes isto e mais tremia quando


disse que o pequeno Tim ia crescendo forte e alegre.
A sua muletazinha diligente ouviu-se a bater no chão e, antes
que dissessem outra palavra, aí vinha o pequeno Tim, escoltado
pelo irmão e pela irmã, dirigindo-se ao seu banquinho junto da
lareira, enquanto Bob, arregaçando os punhos — pobre diabo,
como se fossem susceptíveis de se gastar mais —, preparava
num jarro uma mistura quente com gim e limão, mexia e
remexia e punha-a na chapa do fogão para ferver a fogo lento.
O menino Peter e os dois irmãos, com o dom da ubiquidade,
foram buscar o ganso e em breve regressaram com ele em
procissão.
Seguiu-se um tal alvoroço que se poderia pensar que um ganso
era o mais raro dos animais, um fenómeno emplumado à vista
do qual um cisne negro era coisa vulgar — e assim era
realmente naquela casa. A senhora Cratchit fazia o molho
(pronto antecipadamente, numa pequena caçarola) chiar de
quente; o menino Peter esmagava as batatas com um incrível
vigor, a menina Belinda adoçava o molho de maçã, Marta
limpava os pratos quentes, Bob levou o pequeno Tim para o pé
dele, a um cantinho da mesa, os dois pequenos Cratchits
puseram as cadeiras para todos, não esquecendo as suas e
montando guarda aos seus lugares, de colheres cheias na boca
para que não gritassem a pedir ganso antes de chegar a vez de
serem servidos. Por fim os pratos foram postos e foram dadas
graças. Sucedeu-se um silêncio em que nem se respirava,
quando a senhora Cratchit, olhando lentamente ao longo da
faca de trinchar, se preparou para a espetar no peito; mas
quando assim fez e quando brotou o jorro de recheio, ergueu-
se um murmúrio de prazer em volta da mesa, e até o pequeno
Tim, incitado pelos dois

68
jovens Cratchits, batia com o cabo da faca na mesa e gritava de-
bilmente: «Viva!».
Nunca houvera ganso semelhante. Bob afirmou que não
acreditava que jamais se tivesse cozinhado um ganso assim. A
sua macieza e sabor, tamanho e barateza, foram pontos de
universal admiração. Aumentado com o molho de maçã e com
o puré de batata, era um jantar suficiente para toda a família e
de facto tal como a senhora Cratchit disse com grande prazer
(observando cada átomo de osso ainda no prato), acabaram
por nem o comer todo! No entanto, cada um comera o
suficiente e especialmente os jovens Cratchits estavam
atafulhados de salva e cebolas até ao nariz! Agora, e enquanto
os pratos eram mudados pela menina Belinda, a senhora
Cratchit saiu da sala sozinha — demasiado nervosa para
suportar testemunhas —, para desenformar e trazer o pudim.
E se não estivesse bem cozido? E se se partisse ao
desenformar? E se alguém tivesse saltado o muro do quintal e o
tivesse roubado enquanto eles se regozijavam com o ganso —
hipótese que deixava lívidos os dois pequenos Cratchits! Toda a
espécie de horrores foi imaginada.
Eia! Muito vapor! O pudim saíra da caldeira. Cheirava como em
dia de barrela! Era do pano. Um cheiro parecido com o de uma
casa de comidas e de uma pastelaria ao lado uma da outra e
com uma lavandaria ao lado das duas! Assim era o pudim!
Passado meio minuto, a senhora Cratchit entrou, ruborizada
mas sorrindo orgulhosamente, trazendo o pudim como uma
bala de canhão malhada, tão duro e firme, ardendo em metade
de meio quartilho de brande chamejante e ornado com
azevinho de Natal espetado no cimo.
Oh, que maravilhoso pudim! Bob Cratchit afirmou,
calmamente, que encarava aquele como o maior sucesso
conseguido pela senhora Cratchit desde o seu casamento,ao
que ela respondeu, agora que o peso já

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estava passado, que confessava ter tido as suas dúvidas sobre a


quantidade de farinha. Todos tiveram algo a dizer sobre ele,
mas ninguém disse ou pensou que fosse um pudim pequeno
para tão grande família. Teria sido uma rematada heresia dizê-
lo. Qualquer Cratchit teria corado só de aludir a tal facto.
Por fim o jantar estava acabado, a toalha foi limpa, a lareira
varrida e o lume aceso. Foi provada a mistura do jarro e
considerada perfeita, puseram-se na mesa laranjas e maçãs e
no lume uma pazada de castanhas. Então toda a família
Cratchit se reuniu em volta da lareira, naquilo a que Bob
Cratchit chamava de um círculo, sendo embora um semicírculo;
e ao lado de Bob Cratchit ficava o serviço de vidros da família.
Dois copos e uma chávena almoçadeira sem uma asa.
Contudo todos eles tiravam o conteúdo do jarro como se
usassem taças de ouro e Bob servia-o com olhares brilhantes,
enquanto as castanhas estalavam barulhentamente e saltavam
no fogo. Então Bob propôs:
— Um feliz Natal para todos nós, meus queridos. Deus vos
abençoe!
Toda a família o repetiu.
— Deus abençoe cada um de nós! — disse o pequeno Tim, o
último de todos.
Estava sentado no seu banquinho, muito perto do pai. Bob
segurava nas suas aquela mãozinha mirrada como se amando a
criança desejasse conservá-la a seu lado e temesse que
pudessem afastá-la dele.
— Espírito — disse Scrooge com um interesse que nunca antes
sentira —, diz-me se o pequeno Tim viverá.
— Vejo um lugar vago — respondeu o espírito — no canto da
pobre chaminé e uma muleta sem dono, cuidadosamente
conservada. Se estas sombras não forem alteradas pelo futuro,
a criança morrerá.

70

— Não, não — disse Scrooge. — Não, bom espírito! Diz que ele
será poupado.
— Se estas sombras permanecerem inalteradas pelo futuro,
nenhum outro da minha raça o encontrará aqui — respondeu o
espírito. — E depois? Se tiver de morrer que morra. Assim
diminuirá o excesso populacional.
Scrooge deixou pender a cabeça ao ouvir as suas próprias
palavras repetidas pelo espírito e foi assaltado pelo remorso e
pelo desgosto.
— Homem — disse o espírito —, se é que humano e não de
rocha é o teu coração, abstém-te dessa maldosa hipocrisia até
teres descoberto o que é o excesso populacional e onde existe.
Decidirás tu quem deve viver e quem deve morrer? Pode ser
que, aos olhos do Altíssimo, sejas tu menos valioso e apto a
viver do que milhões como o filho daquele pobre homem. Oh,
céus! Ouvir o insecto da folha pronunciar-se sobre o excesso de
vida existente entre os seus esfomeados irmãos do pó!
Scrooge curvou-se perante a censura do fantasma e, a tremer,
pôs os olhos no chão, mas ao ouvir o seu próprio nome
levantou-os rapidamente.
— O senhor Scrooge! — disse Bob. — Ofereço-te o senhor
Scrooge como o patrono da festa.
— Claro, o patrono da festa! — gritou a senhora Cratchit,
corando. — Quem me dera tê-lo aqui. Dar-lhe-ia um pedaço do
meu pensamento, para com ele festejar, e desejava-lhe bom
apetite.
— Querida, olha as crianças! — disse Bob. — É dia de Natal!
— Deve ser mesmo no dia de Natal tenho a certeza — disse ela
—, que se deve beber à saúde de tão odioso, avarento, duro e
insensível homem como o senhor Scrooge. E tu sabes que é,
Robert! Ninguém melhor do que tu, ó infeliz, sabe isso!

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— Querida — respondeu Bob brandamente —, é dia de Natal!


— Bebo à sua saúde por ti e pelo dia que é, não por ele. Que
viva por muitos e muitos anos! Feliz Natal e próspero Ano
Novo! Ele deve estar feliz e próspero, não duvido!
As crianças beberam depois dela. Foi a primeira das suas
atitudes a que faltou sinceridade. O pequeno Tim foi o último a
beber, mas sem ligar nenhuma. Scrooge era o ogre da família.
Só de mencionar o seu nome, desceu sobre a festa uma sombra
que não se dissipou durante cinco minutos.
Depois que ela se dissipou, ficaram dez vezes mais alegres do
que antes, pelo simples facto de Scrooge, o Maligno, ter sido
tolerado. Bob Cratchit disse-lhes que trazia debaixo de olho
uma colocação para o menino Peter, que no caso de ser
conseguida renderia cinco ou seis pennies por semana. Os dois
Cratchits mais novos riram-se imenso com a ideia de verem
Peter transformado em homem de negócios e o próprio Peter
olhava pensativamente o fogo, por entre os seus colarinhos,
como se estivesse a decidir quais os investimentos especiais
que deveria favorecer quando estivesse de posse dessa
espantosa quantia. Marta, que era uma pobre aprendiza de
modista de chapéus, contou-lhes então o género de trabalho
que tinha de efectuar e quantas horas trabalhava com a forma
e como desejava ficar na cama no dia seguinte de manhã, para
um belo e longo repouso, visto que era um feriado, que passava
em casa. E também contou como vira uma condessa e um lorde
que «era quase tão alto como o Peter», ao que Peter
correspondeu puxando os colarinhos tão para cima que se você
lá estivesse não conseguiria ver-lhe a cabeça. Durante todo este
tempo as castanhas e o jarro andavam de mão em mão e por
acaso tiveram uma canção,

72

que falava duma criança perdida na neve, cantada pelo


pequeno Tim, que tinha uma voz arrastada e cantou realmente
muito bem.
Nada havia de especial. Não eram uma família elegante, não
estavam bem vestidos, os seus sapatos estavam bem longe de
serem à prova de água, as roupas eram escassas e Peter devia
conhecer, e provavelmente conhecia, por dentro, a casa de
penhores. Mas estavam felizes, gratos e satisfeitos uns com os
outros e contentes com a época; e ao desvanecerem-se,
parecendo ainda mais felizes envolvidos nos brilhantes salpicos
da tocha do espírito que se afastava, Scrooge manteve o olhar
pousado neles até ao fim, especialmente no pequeno Tim.
Nesta altura estava a escurecer muito e a nevar fortemente e,
à medida que Scrooge e o espírito avançavam pelas ruas, era
maravilhoso o brilho das lareiras bramindo nas cozinhas, nas
salas e em todas as divisões. Aqui o tremular da chama
denunciava os preparativos para um aconchegado jantar, com
tabuleiros quentes a assar no lume e com as cortinas vermelhas
prontas a serem cerradas, isolando do frio e da escuridão
exteriores. Ali corriam as crianças da casa pela neve, ao
encontro das suas irmãs casadas, dos irmãos, dos primos, das
tias, para serem os primeiros a saudá-los. Aqui, de novo, havia
nas venezianas das janelas sombras de convidados reunidos; e
ali ia um grupo de belas raparigas de capuz e calçadas de pele,
falando todas ao mesmo tempo e saltando ligeira e levemente
dirigiam-se a alguma casa das vizinhanças e aí, mal do simples
humano que as visse entrar resplandecentes — artificiosas
feiticeiras, elas bem o sabiam!
Mas, se tivessem visto as pessoas que havia no seu caminho
em amigáveis grupos, poderiam ter pensado que não havia
ninguém em casa para as acolher quando lá chegassem, em vez
de em todas as casas se

73

estava a aguardar companhia e a encher de lenha a lareira.


Lançando-
-lhes bênçãos, o espírito exultava! Como ele descobria toda a
superfície do peito e abria a sua enorme palma da mão e
continuava a flutuar, espalhando com a mão generosa o mirto
brilhante e inofensivo sobre tudo o que estava ao seu alcance!
O próprio homem que acende os candeeiros e que ia à frente,
dotando as ruas escuras com manchas de luz, e que estava
vestido como que para passar a noite onde calhasse, riu
sonoramente quando o espírito passou, embora poucos
reconhecessem o homem que acendia os candeeiros e
soubessem que tinha por companheiro apenas o Natal!
E agora, sem uma palavra de advertência do espírito, pairavam
sobre um ermo e deserto baldio onde estavam espalhados
moles imensas de pedra bruta, como se se tratasse dum
cemitério de gigantes; e a água espalhava-se por onde havia
inclinação, ou ter-se-ia espalhado se não fosse o gelo mantê-la
prisioneira, e nada ali crescia a não ser o musgo e o tojo e a
erva vulgar e espessa. Lá em baixo, para oeste, o Sol poente
deixara uma tira de vermelho-rubro, que por momentos brilhou
sobre aquela desolação, como um olho escuro e, franzindo o
sobrolho mais, mais e mais ainda, perdeu-se na espessa
negrura da mais escura noite.
— Que lugar é este? — inquiriu Scrooge.
— É o lugar onde vivem os mineiros, cujo trabalho é feito nas
entranhas da terra — respondeu-lhe o espírito. — Mas eles
conhecem-
-me. Olha!
Da janela duma cabana partia uma luz e para lá avançaram
rapidamente. Atravessando a parede de lama e pedra
encontraram um alegre grupo reunido em torno da lareira. Um
velho muito velho e uma mulher, com os seus filhos e os filhos
dos seus filhos, e outra geração posterior, todos enfeitados com
os seus atavios de Natal.

74

O velho cantava-lhes uma canção de Natal, numa voz que


raramente se sobrepunha ao uivo do vento no ermo baldio
(aquela era já uma velha canção ainda ele era criança) e de vez
em quando todos se lhe juntavam em coro. Era certo que,
quando eles elevavam as vozes, o velho se tornava jovial e
ruidoso e certo era que, quando eles paravam, o seu vigor
decaía novamente.
O espírito não se demorou ali, mas pediu a Scrooge que se
agarrasse à sua túnica e, sobrevoando o baldio, apressou-se...
para onde? Para o mar, não?! Sim, para o mar! Para pavor de
Scrooge, viu, ao olhar para trás, o último pedaço de terra, uma
assustadora fileira de rochedos atrás deles e ensurdecia-o o
barulho da água que rolava e bramia por entre as terríveis
cavernas que cavara, tentando ousadamente minar a terra.
Construído sobre um pequeno recife de rochas submersas,
aproximadamente a uma légua da costa, onde as águas batiam
e chocavam todo o agreste ano, ali estava um farol. Grandes
montes de algas estavam agarrados à sua base e procelárias
(poderia julgar-se que nascidas do vento como as algas da água)
elevavam-se e baixavam em torno dele como as vagas que
roçavam.
Até mesmo aqui, dois homens que vigiavam o farol tinham
acendido uma fogueira que, através do buraco existente na
espessa parede de pedra, espalhava um raio de luz por sobre o
terrível mar. Apertando as mãos calejadas sobre a tosca mesa a
que estavam sentados, desejaram-se mutuamente feliz Natal,
com a sua caneca de grogue; e o mais velho dos dois, de rosto
estragado e marcado pelo mau tempo, tal como a figura de
proa dum navio, começou a tocar uma vigorosa canção que era
ela própria como um temporal.
Novamente o espírito voou por sobre o negro e agitado mar,
voou, voou, até que, estando, como ele disse a Scrooge,
afastado de

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qualquer costa, focaram um navio. Ficaram ao lado do


timoneiro que estava ao leme, de atenção fixa na proa. Os
oficiais que estavam de vigia eram silhuetas escuras e
fantasmagóricas nos seus vários postos. Todos, porém,
entoavam uma melodia de Natal ou tinham um pensamento de
Natal, ou falavam em surdina ao companheiro dum dia de Natal
já passado, a que estavam ligadas lembranças de casa. E a
bordo cada homem, acordado ou a dormir, bom ou mau, tivera
para outro uma palavra mais amável do que em qualquer outro
dia do ano e de certo modo partilhara a sua festa e lembrara-se
dos que lá longe o amavam e tivera a certeza de que eles o
recordavam.
Foi para Scrooge uma grande surpresa, enquanto ouvia o
lamento do vento e pensava como era solene deslocar-se pela
solitária escuridão sobre o abismo desconhecido cujas
profundas eram segredos tão grandes como a morte, foi uma
surpresa para Scrooge, enquanto assim absorto, ouvir uma
franca gargalhada. Maior foi a surpresa ao reconhecê-la como
sendo do seu sobrinho e ao encontrar-se numa sala iluminada,
seca, esplendorosa, com o espírito sorrindo a seu lado e
olhando para o seu sobrinho com aprovadora afabilidade:
— Ah, Ah! — ria-se o sobrinho de Scrooge. — Ah, ah, ah!
Se porventura lhes acontecesse conhecerem homem mais feliz,
com uma gargalhada, do que o sobrinho de Scrooge, a única
coisa que posso dizer é que gostaria também de o conhecer.
Apresentem-mo e cultivarei essa relação.
É o justo, imparcial e nobre ajustamento das coisas que faz
com que, enquanto a doença e a tristeza são contagiosas, nada
haja no mundo de tão irresistivelmente contagioso como o riso
e o bom humor. Quando o sobrinho de Scrooge se ria assim:
agarrando-se às ilhargas, rodando a

76

cabeça e torcendo o rosto nas mais extravagantes contorsões, a


sobrinha de Scrooge, por afinidade, ria-se tão francamente
como ele, e os seus amigos reunidos, sem lhes ficarem atrás,
riam-se estrondosamente.
— Ah, ah! Ah, ah, ah!
— Ele disse que o Natal era uma treta, da maneira como eu o
vivia! — gritou o sobrinho de Scrooge. — E acreditava nisso!
— Pior para ele, Fred! — disse a sobrinha de Scrooge,
indignadamente. Abençoadas essas mulheres que não deixam
nada a meio. Vão até ao fim.
Ela era muito bonita; extremamente bonita. Com um rosto
belo, de covinhas na face e expressão de surpresa, uma
boquinha madura que parecia feita para ser beijada — o que
sem dúvida era. O seu queixo era um conjunto de belos
pontinhos que se fundiam quando ela ria e possuía o mais
brilhante par de olhos que já se viram em qualquer carita. No
conjunto era aquilo a que se chama provocante, mas também
satisfatória. Oh, absolutamente satisfatória.
— Ele é um velhote cómico — disse o sobrinho de Scrooge —,
essa é que é a verdade; e não é tão agradável como deveria.
Contudo, os seus pecados arrastam o seu próprio castigo e
nada tenho a dizer contra ele.
— Tenho a certeza de que é riquíssimo, Fred — alvitrou a
sobrinha de Scrooge. — Pelo menos foi o que sempre me
disseste.
— E depois, querida? — disse o sobrinho. — A sua riqueza não
lhe serve de nada. Nada faz de bem com ela, nem se serve dela
para viver confortavelmente. Nem tem a satisfação de pensar
— ah, ah, ah! — que nos irá algum dia beneficiar com ela.
— Não tenho paciência para ele — objectou a sobrinha. A irmã
da

77

sobrinha e todas as outras senhoras exprimiram a mesma


opinião.
— Oh, eu tenho! — disse o sobrinho de Scrooge. — Tenho pena
dele e ainda que quisesse não conseguiria zangar-me com ele.
Quem sofre com os seus caprichos? Sempre ele. Por exemplo,
meteu na cabeça que não gosta de nós e que não há-de vir
jantar connosco. Qual o resultado? Não perde lá grande jantar!
— Acho que perde realmente um bom jantar — interveio a
sobrinha de Scrooge. Todos corroboraram e tinham direito a ser
considerados juízes competentes, porque tinham acabado de
jantar; e, com a sobremesa em cima da mesa, estavam agora
reunidos em volta do lume, à luz do candeeiro.
— Bom, fico contente por ouvir isso! — disse o sobrinho de
Scrooge —, porque não tenho lá grande fé nestas jovens donas
de casa. Que dizes, Topper?
Era claro que Topper estava de olho fisgado numa das irmãs da
sobrinha de Scrooge, pois respondeu que um homem solteiro
era um desditoso marginalizado que não tinha direito a
expressar a sua opinião sobre o assunto. Nesse momento corou
a irmã da sobrinha de Scrooge (a gorducha, de lenço de renda,
não a das rosas).
— Continua Fred — disse a sobrinha, batendo as palmas. — Ele
nunca acaba o que vai dizer! É um tipo mais ridículo!
O sobrinho de Scrooge soltou outra gargalhada e, como era
impossível manter afastado o contágio (embora a irmã
gorducha o tivesse tentado com vinagre aromático), foi
unanimemente imitado.
— Eu ia a dizer — continuou o sobrinho — que a consequência
de ele não gostar de nós e de não se divertir connosco é, penso
eu, perder uns momentos agradáveis que não lhe fariam mal
nenhum. Tenho a certeza de que ele perde companheiros mais
agradáveis do que aqueles

78

que pode encontrar nos seus próprios pensamentos, no seu


velho e bolorento escritório ou na sua casa poeirenta. Tenciono
dar-lhe todos os anos a mesma oportunidade, quer ele goste,
quer não, porque tenho pena dele. Ele pode injuriar o Natal até
morrer, mas desafio-o a não pensar melhor dele se me vir lá, de
bom humor, ano após ano e dizendo: «Como está, tio
Scrooge?»; e, se isso ao menos bastar para que ele se disponha
a dar quinze libras ao seu empregado, já é alguma coisa; e acho
que ontem o abalei.
Agora foi a vez deles se rirem com a ideia de ele ter abalado
Scrooge. Sendo, porém, profundamente bem humorado e não
se importando da razão porque riam de qualquer modo,
encorajou-os na sua alegria e passou-lhes alegremente a
garrafa.
Depois do chá tiveram um pouco de música, porque eram uma
família musical e garanto-vos que sabiam o que faziam quando
cantavam um cânone ou uma copla, sobretudo o Topper, que
era capaz de troar como um baixo dos bons, sem nunca lhe
incharem as veias da testa ou sem ficar corado. A sobrinha de
Scrooge tocava bem a harpa e entre outras melodias tocava
uma simples ariazinha (uma coisinha de nada, que se poderia
aprender a assobiar em dois minutos) que seria conhecida
daquela criança que foi buscar Scrooge ao internato, como lhe
lembrara o Espírito do Natal Passado. Quando soou este fio de
música, todas as coisas que o espírito lhe mostrara lhe
acudiram à mente; comoveu-se cada vez mais e pensou que, se
pudesse tê-la ouvido muitas vezes, há anos, talvez tivesse
cultivado as coisas ternas da vida, por suas mãos e para sua
própria felicidade, sem utilizar a pá de coveiro que enterrara
Jacob Marley.
Mas não dedicaram todo o serão à música. Daí a pouco
jogaram às prendas, porque é bom às vezes ser-se criança e
para isso não há
79

melhor época do que o Natal, quando o seu próprio Fundador


foi também uma criança. Alto! Houve primeiro um jogo de
cabra-cega. Claro que houve. E acredito tanto que o Topper
estivesse mesmo cego como que tivesse olhos nas botas. A
minha opinião é de que havia coisa combinada entre ele e o
sobrinho de Scrooge e que o Espírito do Natal Presente estava a
par. A forma como ele perseguiu a irmã gorducha de lenço de
renda era uma afronta à credulidade humana. Derrubando os
atiçadores do lume, tropeçando nas cadeiras, esbarrando no
piano, embrulhando-se nos cortinados, onde quer que ela
fosse, ele ia! Sabia sempre onde estava a irmã gorducha. Não
apanhava mais ninguém. Se se lhe metesse à frente de
propósito (como alguns deles fizeram), fingia uma tentativa de
o apanhar, que seria uma afronta à sua compreensão e
imediatamente se esgueirava em direcção à irmã gorducha. Às
vezes ela gritava que não era justo; e não era mesmo. Mas
quando por fim ele a agarrou; quando, apesar de todo o frufru
da seda das suas rápidas passagens por ele, conseguiu apanhá-
la num canto donde não havia saída; então a sua conduta foi do
mais execrável. Fingindo não a conhecer e fingindo ser
necessário tocar-lhe o toucado, e além disso para se assegurar
da sua identidade ter de apalpar um certo anel que ela tinha no
dedo e uma certa corrente que tinha ao pescoço, foi
simplesmente vil e monstruoso! Sem dúvida que ela lhe
exprimiu a sua opinião sobre o facto quando, estando já de
serviço outro homem vendado, ficaram muito juntos
confidenciando, por trás das cortinas.
A sobrinha de Scrooge não estava metida na brincadeira da
cabra-cega, mas sim instalada numa ampla cadeira com um
banquinho para os pés num aconchegado canto, onde por trás
dela estavam Scrooge e o fantasma. Mas juntou-se-lhes no jogo
das prendas e encantou o seu

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amado até à admiração, no jogo das letras do alfabeto. Do


mesmo modo, no jogo do Como Quando e Onde, ela foi óptima
e, para secreta satisfação do sobrinho de Scrooge, venceu as
suas irmãs, se bem que elas também fossem raparigas espertas,
como diria Topper. Haveria lá umas vinte pessoas, velhos e
novos, mas todos jogaram e Scrooge também, porque,
esquecendo por completo, dado o interesse que tinha no que
estava a passar-se, que a sua voz não era audível por eles, saía-
se por vezes com a sua resposta em voz alta e muitas vezes
dava respostas muito acertadas; porque a mais afiada agulha, a
melhor Whitechapel, com garantia de não quebrar pelo fundo,
não era mais fina do que Scrooge, parecendo embora
embotado.
O fantasma estava muito contente por vê-lo naquela
disposição e olhava-o com tanto obséquio que ele lhe pediu,
como uma criança, que ficassem até os convidados se irem
embora, mas o espírito respondeu-
-lhe que não podia ser.
— Aí está outro jogo — disse Scrooge. — Só mais meia hora,
espírito, só uma!
Era um jogo chamado Sim e Não, no qual o sobrinho de
Scrooge tinha de pensar em qualquer coisa e os outros tinham
de adivinhar o quê, respondendo ele às suas perguntas apenas
com sim ou não, conforme o caso. O súbito bombardeamento
de perguntas a que foi sujeito sugeriu que ele estava a pensar
num animal, um ser vivo, um animal muito desagradável, um
animal selvagem, um animal que rugia e por vezes rosnava e
por vezes, ainda, falava. Vivia em Londres e andava pelas ruas,
não se exibia nem se deixava levar por ninguém, não vivia em
nenhuma colecção de animais, nunca era morto em mercado e
não era um cavalo, nem um burro, nem uma vaca, nem um
touro, nem um tigre, nem um cão, nem um porco, nem um
gato, nem um urso. A cada nova pergunta

81

que lhe era feita, o sobrinho soltava uma nova gargalhada e era
tão inexplicavelmente atacado de riso que era obrigado a
levantar-se do sofá e a bater o pé. Por fim a irmã gorducha, que
caíra num estado semelhante, gritou:
— Já descobri! Já sei o que é, Fred! Sei o que é!
— Que é? — gritou Fred.
— É o tio Scro-o-o-o-oge!
E era mesmo. A admiração foi geral, embora alguns tivessem
objectado que a resposta a «E um urso?» deveria ter sido
«Sim!», visto que uma resposta negativa era suficiente para
lhes ter afastado o pensamento do senhor Scrooge, se é que se
tinham chegado a inclinar para que fosse ele.
— Ele tem-nos feito divertir muito — disse Fred —, e seria
ingratidão não bebermos à sua saúde. Temos neste momento
aqui à mão um copo de vinho quente e eu digo: «Ao tio
Scrooge!».
— Sim! Ao tio Scrooge! — gritaram.
— Feliz Natal e próspero Ano Novo para o velhote, seja lá ele o
que for! — disse o sobrinho de Scrooge. — De mim não o
aceitaria, mas mesmo assim desejo-lho. Ao tio Scrooge!
Imperceptivelmente, o tio Scrooge tornara-se tão alegre e de
coração tão leve que, se o fantasma lhe tivesse dado tempo,
teria brindado em troca, à despreocupada companhia, e ter-
lhes-ia agradecido em discurso inaudível. Mas toda a cena
desapareceu com o sopro da última palavra dita pelo sobrinho
e ele e o espírito em breve viajavam de novo.
Muito viram e muito viajaram e muitos lares visitaram, mas
todos com um final feliz. O espírito esteve à cabeceira de
doentes e eles estavam alegres; em terras estrangeiras e todos
estavam próximo de casa; junto de homens que lutavam e eles
eram pacientes na sua maior

82

esperança; junto dos pobres e eles sentiam-se ricos. No asilo,


no hospital e na cadeia, em todos os refúgios da miséria, onde
o homem fútil, com a sua fugaz autoridade, não tivesse
trancado a porta e impedido o espírito de entrar, ele deixou a
sua bênção e ensinou a Scrooge os seus preceitos.
Era uma longa noite, se é que era uma só noite, porque as
férias de Natal pareciam estar condensadas no espaço de
tempo que passavam juntos. Também era estranho que,
enquanto Scrooge permanecia inalterável na sua forma
exterior, o espírito envelhecia cada vez mais. Scrooge observara
esta mudança, mas nada dissera até que, ao saírem duma festa
infantil na Véspera de Reis e olhando o espírito, quando já se
encontravam cá fora, reparou que ele tinha o cabelo cinzento.
— Os espíritos vivem assim tão pouco tempo? — indagou
Scrooge.
— A minha vida neste mundo é muito breve — respondeu o
fantasma. — Termina esta noite!
— Esta noite? — exclamou Scrooge.
— Esta noite à meia-noite. Escuta! Aproxima-se a hora.
Naquele momento, os sinos batiam as onze e três quartos.
— Desculpa-me se a minha pergunta não é justificada — disse
Scrooge, olhando atentamente para a túnica do espírito —, mas
vejo algo de estranho e que não te pertence a sair das tuas
abas.É um pé ou uma garra?
— Poderia ser uma garra, pela carne que traz agarrada — foi a
lamentosa resposta do espírito. — Olha.
Das pregas da túnica tirou duas crianças, desprezíveis,
abjectas, assustadoras, horrendas, miseráveis. Ajoelharam-se a
seus pés e prenderam-se à parte exterior das suas vestes.

83

— Oh, homem! Olha! Olha aqui para baixo! — exclamou o


fantasma.
Eram um rapaz e uma rapariga. Amarelos, magros, andrajosos,
carrancudos, famintos, mas também prostrados na sua
humildade. Onde estava a graciosa juventude que deveria
percorrer-lhes os traços e tocá-los com as suas mais frescas
tintas? Uma mão envelhecida e enrugada como a do Tempo
tinha-os beliscado e torcido e reduzido a farrapos. Onde
deveriam reinar os anjos espreitavam os demónios e olhavam
ameaçadores. Nenhuma mutação, degradação ou perversão da
humanidade, em qualquer dos graus de todos os mistérios da
maravilhosa criação, tem monstros que se assemelhem em
metade ao horror e pavor daqueles.
Scrooge recuou assustado. Vendo-os assim, tentou dizer que
eram belas crianças, mas as palavras preferiram silenciar-se a
participar numa mentira de tal monta.
— Espírito! São teus? — Scrooge nada mais conseguiu dizer.
— São do homem — disse o espírito olhando para eles. — E
agarram-se a mim, rogando pelos seus pais. Este rapaz chama-
se Ignorância e esta rapariga Miséria. Afasta-te deles e de todos
os seus graus, mas sobretudo afasta-te deste rapaz, porque na
sua fronte vejo escrita Condenação, a não ser que a palavra seja
apagada. Nega-o! - gritou o espírito estendendo as mãos na
direcção da cidade. — Maldiz aqueles que o tratam por
«senhor»! Os que o aceitam para os seus facciosos fins e o
tornam pior! E espera o fim!
— Esses não têm fuga ou recurso? — gritou Scrooge.
— Não há asilos? — disse o espírito, virando-se para ele pela
última vez, com estas palavras. — Não há albergues?
O sino bateu as doze.
Scrooge olhou à sua volta mas não mais viu o fantasma.
Quando a

84

última badalada deixou de vibrar, lembrou-se da profecia do


velho Jacob Marley e, erguendo os olhos, viu um solene
fantasma envolto em pano e encapuçado, vindo em direcção a
ele como neblina.
Página em branco

ESTROFE IV
O último dos espíritos

O fantasma aproximou-se lenta, grave e silenciosamente.


Quando chegou junto dele, Scrooge ajoelhou-se, porque este
espírito parecia espalhar uma aura de mistério no próprio ar
por onde se deslocava.
Estava envolto numa veste completamente preta, que lhe
cobria a cabeça, a cara, a forma, e dele nada deixava visível,
excepto uma mão estendida. Por isso teria sido difícil distinguir
da noite a sua silhueta e separá-la da escuridão que a envolvia.
Quando chegou a seu lado, sentiu que era alto e majestoso e
que a sua presença o enchia dum solene terror. Nada mais
sabia, porque o espírito não falava nem se mexia.
— Estou na presença do Espírito do Natal Futuro? — perguntou
Scrooge.
O Espírito não respondeu, mas apontou com a mão para a
frente.
— Estás prestes a mostar-me as sombras das coisas que não se
passaram, mas que virão a passar-se daqui para o futuro —
continuou Scrooge. — Não é assim, espírito?
A porção superior das vestes contraiu-se por momentos nas
suas pregas, como se o espírito tivesse inclinado a cabeça. Esta
foi toda a resposta que recebeu.
Embora por esta altura já estivesse muito habituado a
companhias

87

fantasmagóricas, Scrooge temia tanto aquela silhueta silenciosa


que as pernas lhe tremiam e, quando se preparou para o seguir,
descobriu que mal se sustinha de pé. O espírito parou por um
momento, como que notando o seu estado e dando-lhe tempo
para se recompor.
Mas Scrooge estava péssimo para este fantasma. Ele arrepiava-
o, provocando-lhe um horror vago e indefinido o facto de saber
que, por detrás daquela mortalha escura, havia olhos
fantasmagóricos fixos nele, enquanto ele, embora esforçando
os seus ao máximo, nada mais conseguia ver além duma mão
espectral e uma enorme massa negra.
— Espírito do futuro! — exclamou. — Temo-te mais do que a
qualquer outro dos espectros que já vi. Mas, visto que sei que a
tua intenção é fazer-me bem e como espero viver para vir a ser
um outro homem diferente daquele que fui, estou preparado
para suportar a tua companhia e a fazê-lo de coração
reconhecido. Não falarás comigo?
Não lhe deu resposta. A mão apontava exactamente em
frente.
— Continua! — disse Scrooge. — Continua! A noite escoa-se
rapidamente e sei que o tempo me é precioso! Continua,
espírito!
O fantasma afastou-se tal como dele se aproximara. Scrooge
seguiu-
-lhe a sombra da túnica, o que lhe dava coragem, pensou, e o
arrastava.
Pareciam mal ter entrado na cidade, porque a cidade mais
parecia brotar em torno deles e com esse próprio acto
circundá-lo. Mas ali estavam eles no coração dela, na Bolsa,
entre comerciantes que se apressavam para lá e para cá,
chocalhando o dinheiro nos bolsos, conversando em grupos,
olhando para os seus relógios e brincando

88

pensativamente com os seus grandes sinetes de ouro, tal como


Scrooge os vira tantas vezes.
O espírito parou junto dum pequeno grupo de negociantes.
Vendo que a mão apontava para eles, Scrooge avançou para
ouvir a sua conversa.
— Não — dizia um homem enorme e gordo, com um queixo
monstruoso. — Não sei grande coisa sobre o assunto, só sei que
morreu.
— Quando é que morreu? — inquiriu outro.
— Acho que foi a noite passada.
— Porquê? Que é que ele tinha? — perguntou um terceiro,
tirando uma grande quantidade de tabaco de cheirar duma
grande caixa de rapé. — Julguei que nunca mais morria.
— Sabe Deus! — disse o primeiro com um suspiro.
— Que é que ele fez ao dinheiro? — indagou o cavalheiro
rubicundo com uma excrescência pendular na ponta do nariz,
que balouçava como a papada dum peru.
— Não soube nada — disse o homem com o queixo grande,
suspirando de novo. — Talvez o tenha deixado à sua empresa.
A mim não mo deixou. Isso sei eu.
Esta piada foi recebida com uma risada geral.
— Parece que vai ser um funeral muito reles — disse o mesmo
interlocutor —, pois que em toda a minha vida não conheci
ninguém que lá vá. E se nós nos reuníssemos e nos
oferecêssemos como voluntários?
— Eu não me importo de ir, se me derem almoço — observou o
cavalheiro da verruga no nariz. — Mas para ir têm de me dar de
comer.
Outra risada.
— Bem, afinal de contas, de entre todos vós eu sou o mais
desinteressado — disse o primeiro interveniente —, porque
nunca uso luvas pretas e nunca almoço, mas ofereço-me para ir
se alguém mais o

89

fizer. Quando penso no assunto, pergunto-me se não seria eu o


seu amigo mais íntimo, porque costumávamos parar e falar
quando nos encontrávamos. Adeuzinho!
Falantes e ouvintes afastaram-se e misturaram-se com os
outros grupos. Scrooge conhecia os homens e olhou para o
espírito à espera duma explicação.
O fantasma deslizou para uma rua, de dedo apontado para
duas pessoas que se tinham encontrado. Scrooge ouviu mais
uma vez, pensando que talvez ali estivesse a explicação.
Conhecia esses homens. Eram homens de negócios, muito ricos
e importantes. Tinha decidido manter-se sempre nas suas boas
graças, do ponto de vista de negócios, apenas do ponto de vista
de negócios.
— Como estás? — disse um.
— Como estás? — respondeu o outro.
— Bem! — disse o primeiro. — O velho Scratch lá teve
finalmente a sua conta, hem?
— Já me disseram — respondeu o segundo. — Está frio, não
está?
— Próprio da época de Natal. Não és patinador, pois não?
— Não, não. Tenho mais em que pensar. Bom dia! Nem mais
uma palavra. Assim fora o seu encontro, a sua conversa e a sua
despedida.
A princípio Scrooge começou por ficar espantado por o espírito
dar tanta importância a conversas aparentemente tão triviais;
mas, pressentindo que elas escondiam qualquer finalidade,
pôs-se a pensar qual seria. Não podia minimamente pensar-se
que elas estavam relacionadas com a morte de Jacob, o seu
velho sócio, porque isso pertencia ao passado e o foro deste
fantasma era o futuro. Nem conseguia lembrar-se de alguém
ligado intimamente a si a quem elas se

90

pudessem aplicar. Mas, não duvidando de que, a quem quer


que elas se referissem, continham em si qualquer moralidade
latente e que serviria para a sua melhoria, resolveu entesourar
cada palavra que ouvia e tudo quanto via; e sobretudo observar
a sua própria sombra quando ela aparecesse, porque guardava
a esperança de que a conduta do seu eu futuro lhe daria a pista
que lhe faltava e facilmente lhe daria também a resposta a
estes enigmas.
Olhou em volta, naquele mesmo lugar, à procura da sua
própria imagem; mas havia outro homem no seu canto habitual
e, embora o relógio marcasse a hora habitual do dia em que ele
ali estava, não viu nem sombras de si entre a multidão que
afluía pelo pórtico. Isso, no entanto, não lhe causou grande
surpresa, pois que tinha estado a meditar numa mudança de
vida e esperou ver naquela as suas recém-
-tomadas resoluções.
O fantasma permanecia a seu lado, silencioso e negro, de mão
estendida. Quando acordou da sua pensativa investigação,
imaginou, pela posição da mão e pela sua posição em relação a
ele, que os Olhos Ocultos o olhavam penetrantemente, o que o
fez estremecer e gelar.
Deixaram aquela cena movimentada e dirigiram-se a uma
parte escura da cidade, onde Scrooge nunca penetrara, se bem
que conhecesse a sua localização e a sua má reputação. Os
caminhos eram imundos e estreitos, as lojas e casas arruinadas,
as pessoas seminuas, embriagadas, desmazeladas e feias. Becos
e travessas, como se fossem fossas, vomitavam sobre as ruas
vizinhas o cheiro, o lixo e a vida; e todo o quarteirão cheirava a
crime, a sujidade e a miséria.
No fundo deste antro de infame frequência havia uma loja
baixa e saliente, por baixo dum alpendre onde se comprava
ferro, farrapos, garrafas, ossos e sebo de reses. Lá dentro, no
chão, estavam
91

empilhadas montes de chaves enferrujadas, pregos, correntes,


gonzos, arames, pratos de balança, pesos e todo o género de
sucata de ferro. Segredos que poucos gostariam de desvendar
ocultavam-se e alimentavam-se sob montanhas de farrapos
incríveis, pilhas de gordura apodrecida e sepulcros de ossos.
Sentado entre as velharias que negociava, junto do fogão de
carvão de lenha feito de velhos tijolos, estava um malandrim de
cabelo grisalho e com uns setenta anos, que se tinha protegido
do ar frio com uma desmazelada cortina feita de farrapos
diversos pendurados em fila. Fumava o seu cachimbo com toda
a delícia dum pacato descanso.
Scrooge e o fantasma chegaram junto do homem exactamente
quando uma mulher com uma grande trouxa irrompeu pela
loja. Mas, mal esta tinha entrado, já outra igualmente
carregada entrara também e de perto a seguiu um homem
vestido de preto ruço e que não ficou menos espantado ao vê-
las do que elas tinham ficado ao verem-se uma à outra.
Após um breve instante de silencioso espanto, durante o qual
o velho veio ter com eles, desataram os três às gargalhadas.
— Que a jornaleira seja a primeira! — disse esta que chegara
primeiro. — Que a lavadeira seja a segunda e o cangalheiro o
terceiro. Olha lá, velho Joe, tiveste sorte! E se nós não nos
tivéssemos aqui encontrado por acaso?
— Não podiam ter-se encontrado em melhor lugar —
respondeu o velho Joe tirando o cachimbo da boca. — Venham
para a sala. Contigo já não faço cerimónia e os outros dois não
são estranhos. Esperem aí, dei-xem-me fechar a porta da loja.
Ah!, como ela range! Parece-me que não há por aqui outro
pedaço de metal tão enferrujado como estes gonzos,

92

nem ossos mais velhos do que os meus. Ah, ah! Estamos bem
uns para os outros, fazemos um lindo par! Venham para a sala.
Venham para a sala!
A sala era um espaço por detrás da cortina de farrapos. O velho
espevitou o lume com um velho varão de passadeira e, tendo
regulado o enfarruscado candeeiro com a haste do cachimbo,
voltou a pô-lo na boca.
Enquanto fazia isto, a mulher que já tinha falado pôs a trouxa
no chão e sentou-se num banco em atitude importante,
cruzando os braços em volta dos joelhos e olhando os outros
dois com ar de desafio.
— Que é que há de mal nisto? Que é que há de mal, senhora
Dilber? — disse a mulher. — Todos têm o direito de olhar por
si. Foi isso que ele sempre fez.
— Lá isso é verdade! — disse a lavadeira. — Ninguém mais do
que ele o fez.
— Então, mulher, não fiques para aí a olhar como se tivesses
medo. Quem é o mais esperto? Acho que não vamos pôr-nos a
cortar na casaca uns dos outros!
— Claro que não! — disseram ao mesmo tempo a senhora
Dilber e o homem. — Esperamos bem que não!
— Pois muito bem! — gritou a mulher. — Já chega. A quem é
que prejudica a perda dumas coisitas como estas? Ao morto
não é com certeza, acho eu.
— Claro que não — disse a senhora Dilber a rir.
— Se queria conservá-las depois da sua morte, aquele velho
patifório — prosseguiu a mulher —, porque é que não foi bom
em vida? Se o tivesse sido, teria tido quem olhasse por ele
quando estava a morrer, em lugar de ficar ali sozinho a dar as
últimas.
— É a maior verdade que já foi dita — afirmou a senhora
Dilber. — É um juízo sobre ele.
— Quem me dera que fosse um juízo mais severo — respondeu
a mulher —; e devia ter sido, lá isso podes estar certa. Ah!, se
eu pudesse ter

93

deitado a mão a mais alguma coisa! Abre essa touxa, Joe, e diz-
me lá quanto vale. Fala sinceramente. Não tenho medo de ser a
primeira, nem tenho medo que eles vejam. Acho que sabíamos
muito bem que nos estávamos a abotoar antes mesmo de nos
termos encontrado aqui. Não é pecado. Abre a trouxa, Joe.
Mas a delicadeza dos companheiros não o permitiu e o homem
vestido de preto ruço, antecipando-se, exibiu o seu saque. Não
era grande. Um sinete ou dois, um estojo de lápis, um par de
botões de punho, um broche de pouco valor — era tudo. Foram
minuciosamente examinados pelo velho Joe, que ia escrevendo
a giz na parede a quantia que estava disposto a pagar por cada
um; e, vendo que nada mais havia, fez a soma.
— Esta é a tua conta — disse Joe — e, nem que me matem, não
te dou nem mais um cêntimo. Quem se segue.
Seguia-se a senhora Dilber. Lençóis e toalhas, alguma roupa
usada, duas colheres de chá, de prata, já antiquadas, um par de
tenazes de açúcar e uns pares de botas. A sua conta foi
igualmente feita na parede.
— Dou sempre demasiado às senhoras. É uma fraqueza minha
e é assim que me arruino — disse o velho Joe. — Esta é a tua
conta. Se me pedisses mais um penny e fizesses questão nisso,
arrependia-me de ser tão liberal e descontava-te meia coroa.
— E agora desfaz a minha trouxa, velho Joe — disse a primeira
mulher.
Joe ajoelhou-se para maior comodidade em abrir e, depois de
desatar uma data de nós, tirou de lá um pesado rolo de tecido
escuro.
— Que é isto? — disse Joe. — São cortinas de cama!
— Ah! — retorquiu a mulher, rindo e dobrando-se sobre os
braços cruzados. — São cortinas de cama!

94

— Não me digas que as tirastes, com argolas e tudo, com ele lá


estendido! — disse Joe.
— Ah, isso tirei — afirmou a mulher. — E porque não?
— Nasceste para te governares — disse Joe — e o certo é que
te governas.
— Não fico de mão quieta se ao estendê-la puder apanhar
qualquer coisa, muito menos por um homem como ele, lá isso
te garanto, Joe — respondeu-lhe a mulher friamente. — Agora,
não entornes a gordura em cima dos cobertores.
— São os cobertores dele? — perguntou Joe.
— De quem pensas que seriam? — respondeu a mulher. —
Diria que ele não vai apanhar frio sem eles.
— Espero que não tenha morrido de doença contagiosa, hem?
— disse o velho Joe, parando o trabalho e olhando para cima.
— Disso não tenhas medo — respondeu a mulher. — Se
tivesse, não gosto assim tanto da companhia dele que perdesse
tempo à sua volta por estas coisas. Ah!, podes olhar através
dessa camisa até te doerem os olhos, mas não lhe encontras
um buraco, nem um sítio passajado. É a melhor que ele tinha e
é de boa qualidade. Se não fosse eu, tinham-
-na deitado fora.
— A que é que chamas deitar fora? — perguntou o velho Joe.
— Vestir-lha, claro, e enterrá-lo com ela — respondeu a mulher
com uma gargalhada. — Alguém foi suficientemente parvo para
o fazer, mas eu despi-lha. Se o pano de algodão não serve para
aquilo, então não serve para nada. Fica-lhe mesmo a matar no
corpo. Não pode ficar mais feio do que estava com esta.
Scrooge ouvia horrorizado este diálogo. Enquanto estavam
sentados em volta dos seus despojos, à escassa luz que o
candeeiro do velho

95

difundia, ele imaginou-os com um nojo e uma repugnância que


maiores não podiam ser, ainda que eles tivessem sido
demónios asquerosos, negociando o próprio cadáver.
— Ah, ah! — riu a mesma mulher, quando o velho Joe,
exibindo uma bolsa de flanela com dinheiro, espalhou no chão
os seus diversos lucros. — E assim acabou, vêem? Assustou
todos em vida e afastou-os, para nos dar lucro depois de
morto! Ah, ah, ah!
— Espírito! — disse Scrooge tremendo dos pés à cabeça. —
Entendo. Entendo. O caso deste infeliz pode vir a ser o meu. A
minha vida para lá se encaminha, agora. Deus de misericórdia,
que é isto?!
Recuou aterrado, porque a cena mudara e agora estava quase
a tocar numa cama, uma cama nua e sem cortinas, sobre a qual,
coberto por um lençol esfarrapado, estava qualquer coisa que,
embora sem palavras, se fez anunciar numa linguagem horrível.
O quarto estava muito escuro, demasiado escuro para poder
ser examinado minuciosamente, embora Scrooge tivesse
deitado uma olhadela em volta, obedecendo a um impulso
secreto e ansioso por saber que espécie de quarto era aquele.
Uma pálida luz que se erguia lá fora incidiu directamente na
cama e ali, saqueado, despojado, desprotegido, sem quem o
chorasse e desprezado, jazia o corpo daquele homem.
Scrooge lançou um olhar ao fantasma. A sua mão firme
apontava para a cabeça. A cobertura estava tão mal posta que
o mínimo toque, o movimento dum dedo de Scrooge, teria
descoberto a cara. Ele pensou nisso, sentiu como seria fácil
fazê-lo e desejou efectuá-lo; mas, tal como para fazer retirar de
junto de si o espectro, também para afastar a mortalha não
tinha poder suficiente.
Oh, fria, fria, rígida e horrível Morte, que aqui ergueste o teu

96
altar e sobre ele depuseste tais horrores, à tua ordem, pois que
este é o teu domínio! Mas da cabeça amada, respeitada e
honrada, não podes tu mudar um só cabelo para os teus
terríveis fins, ou tornar as feições odiosas. Não interessa que a
mão esteja pesada e caia quando a largam, não interessa que o
coração e o pulso tenham cessado, o que importa é que a mão
enquanto aberta foi generosa e leal, o coração corajoso, quente
e terno e o pulso o de um homem. Ataca, Sombra, ataca! E da
ferida verás brotar as suas boas acções para semearem no
mundo a vida imortal!
Nenhuma voz pronunciara estas palavras ao ouvido de
Scrooge, e no entanto ouviu-as quando olhava para a cama.
Pensou então quais seriam os principais pensamentos daquele
homem se pudesse ser ressuscitado nesse momento. Seriam
preocupações pungentes, de avareza ou de negócios difíceis?
Esses tinham-no, de facto, levado a um lindo fim!
Ali jazia numa casa vazia, sem homem, mulher ou criança que
pudesse dizer: «Ele foi bom para mim, nisto ou naquilo e em
memória duma boa palavra vou ser bom para ele». Um gato
esgatanhava na porta e havia barulho de ratos a roer, por baixo
da pedra da lareira. Scrooge não se atrevia a pensar o que
queriam eles duma câmara funerária e porque estavam tão
desassossegados e inquietos.
— Espírito! — disse. — Este lugar é tenebroso. Ao deixá-lo,
acredita que não esquecerei a lição que encerra. Vamos!
No entanto o espírito continuava a apontar para a cabeça com
um dedo imóvel.
— Compreendo-te — retorquiu Scrooge — e fá-lo-ia, se
pudesse. Mas, espírito, não tenho esse poder! Não tenho esse
poder!

97

Ele pareceu novamente estar a olhá-lo.


— Se existe nesta cidade alguém que experimente alguma
emoção pela morte deste homem — disse Scrooge muito
perturbado —, mostra-me essa pessoa, imploro-te!
O fantasma estendeu na frente dele por um momento a sua
veste escura, como se fosse uma asa, e ao retirá-la revelou-lhe
um quarto à luz do dia, onde estava uma mãe com os seus
filhos.
Ela esperava alguém com ansiosa impaciência, porque andava
no quarto de um lado para o outro, parava a cada som, olhava
pela janela, espreitava o relógio; tentava em vão trabalhar com
a agulha e mal podia suportar as vozes dos filhos que
brincavam.
Ao fim de algum tempo soaram as pancadas tão longamente
esperadas. Ela correu para a porta e deu com o marido, um
homem de rosto gasto pelas preocupações e abatido, embora
novo. Havia agora nele uma expressão especial, como de
solene prazer de que se sentia envergonhado e que lutava para
reprimir.
Sentou-se para o jantar que estivera guardado para ele junto
do lume; e, quando ela lhe perguntou baixinho (depois de
prolongado silêncio) quais eram as notícias, ele pareceu
embaraçado.
— São boas ou más? — disse ela para o ajudar.
—Más — respondeu.
— Estamos completamente arruinados?
— Não. Ainda há esperança, Caroline.
— Se ele se apiedar, há — disse ela espantada. — Nada está
perdido se um tal milagre se der.
— Ele já não pode apiedar-se — disse o marido. — Morreu.
Ela era uma criatura dócil e paciente, se a cara não enganava,
mas ficou feliz ao ouvir aquilo e disse-o batendo as mãos. No
momento seguinte pediu perdão e arrependeu-se, mas o
primeiro momento foi de

98

emoção no seu coração.


— Aquilo que me disse aquela mulher meio embriagada, de
que te falei ontem à noite, quando tentei vê-lo e obter uma
semana de adiamento e que pensei ser uma mera desculpa
para me evitar, revelou-se verdade. Naquela altura ele estava
não só muito doente, mas moribundo.
— Para quem será transferida a tua dívida?
— Não sei. Mas antes dessa altura temos de ter o dinheiro; e
mesmo que o não tivéssemos, seria realmente um grande azar
que o seu sucessor fosse um credor tão desumano. Esta noite
podemos dormir com o coração aliviado, Caroline!
Sim. Agora, acalmados, os seus corações estavam mais leves.
Os rostos das crianças, caladas e apinhadas em volta para
ouvirem aquilo de que tão pouco entendiam, estavam mais
alegres. Era uma casa mais feliz pela morte deste homem! A
única emoção que o Fantasma lhe podia mostrar, provocada
pelo acontecimento, era de alegria.
— Mostra-me alguma piedade relacionada com uma morte —
disse Scrooge —, ou aquele quarto escuro que acabámos de
deixar, espírito, para sempre me ficará presente.
O fantasma conduziu-o por algumas ruas a que os seus pés
estavam habituados. À medida que avançavam, Scrooge olhava
para um lado e para outro na esperança de se ver a si próprio,
mas não se via em lado algum. Entraram em casa do pobre Bob
Cratchit, a morada que já visitara, e encontrou a mãe e os filhos
sentados em volta da lareira.
Em silêncio. Muito em silêncio. Os pequenos Cratchits, sempre
barulhentos, estavam imóveis como estátuas a um canto,
sentados e

99

olhando para Peter que tinha na frente um livro. Mãe e filha


estavam ocupadas a coser, mas estavam também muito
caladas!
— E Ele tomou uma criança e sentou-a no meio deles.
Onde é que Scrooge já ouvira aquelas palavras? Não as tinha
sonhado. O rapaz devia estar a lê-las, quando ele e o espírito
cruzaram a soleira. Porque é que ele não continuou?
A mãe pousou o trabalho na mesa e levou a mão ao rosto.
— A cor fere-me os olhos — disse.
A cor? Ah, pobre pequeno Tim!
— Agora já estão melhores — disse a mulher de Cratchit. — A
luz da vela enfraquece-os e não quero, por nada deste mundo,
mostrar olhos enfraquecidos ao vosso pai, quando ele
regressar. Deve estar na hora de ele chegar.
— Até já passa — respondeu Peter fechando o livro. — Mas
acho que nestas últimas noites deve ter vindo mais devagar do
que é costume, mãe.
Ficaram de novo muito calados. Por fim ela disse, numa voz
alegre e firme que só hesitou uma vez:
— Lembro-me de ele caminhar... lembro-me de ele caminhar
com o pequeno Tim aos ombros e muito depressa.
— Também eu — exclamou Peter. — Muitas vezes.
— Também eu — disse outro. E todos se lembravam. — Mas
ele era levezinho — rematou ela, concentrada no seu trabalho
— e o pai amava-o tanto que isso não o maçava nada, nada. Aí
está o vosso pai, à porta!
Ela correu ao seu encontro e o pequeno Bob, com o seu
cachecol (bem precisava dele, pobre homem), entrou. O chá
estava pronto na chapa do fogão e todos queriam ser quem
mais ajudava. Então os dois Cratchits

100

mais novos treparam-lhe para os joelhos e cada criança apoiou


a sua facezita contra a cara dele, como se lhe dissessem: «Deixa
lá, pai! Não estejas triste!».
Bob foi caloroso para com eles e falava com toda a família em
tom animado. Olhou o trabalho que estava em cima da mesa e
louvou a diligência e a rapidez da senhora Cratchit e das filhas.
Disse que iriam ficar prontos antes de domingo.
— Domingo! Então foste lá hoje, Robert? — disse a mulher.
— Sim, querida — respondeu Bob. — Quem me dera que
pudesses ter ido. Ter-te-ia feito bem veres como tudo aquilo
está verde, mas hás-de vê-
-lo muitas vezes. Prometi-lhe que ia lá no domingo. Meu
querido filho! — soluçou Bob. — Meu querido filho!
De repente deixou-se abater. Não conseguiu evitá-lo. Se
tivesse conseguido, talvez ele e o filho não estivessem tão
ligados como estavam. Saiu da sala e subiu para o quarto lá de
cima, que estava alegremente iluminado e onde pendiam os
enfeites de Natal. Havia uma cadeira junto da criança e havia
sinais de alguém lá ter ido recentemente. O pobre Bob sentou-
se nela e, depois de pensar um momento e de se recompor,
beijou a carita. Estava conformado com o que se passara e
desceu novamente feliz.
Reuniram-se em volta do lume e falaram, continuando mãe e
filhas a trabalhar. Bob contou-lhes a extraordinária bondade do
sobrinho de Scrooge, a quem vira uma vez e mal e que, ao
encontrá-lo na rua naquele dia e vendo que parecia um pouco
abatido («só um pouco, sabem?», disse Bob), lhe perguntou o
que lhe tinha acontecido para o desgostar.
— Pelo que, sendo ele o homem de mais agradável trato que
eu conheço, lhe contei tudo. «Lamento muito,senhor Cratchit»,
disse ele,

101
«e lamento muito, também, pela sua extremosa esposa.» E, a
propósito, como ele soube isso é que eu não sei.
— Soube o quê, querido?
— Que tu eras uma esposa extremosa — respondeu Bob.
— Toda a gente sabe isso! — disse Peter.
— Muito bem observado, meu rapaz! — exclamou Bob. —
Espero que saibam. «Lamento muito», disse ele, «pela sua
extremosa esposa. Se lhe puder ser útil de algum modo», disse
ele, dando-me o seu cartão, «aqui tem a minha morada. Peço-
lhe que me procure.» Isto foi maravilhoso — exclamou Bob —,
não tanto por aquilo que poderia ter feito por nós, mas mais
pela sua gentileza. Parecia mesmo que tinha conhecido o nosso
pequeno Tim e que sofria connosco.
— Tenho a certeza de que é uma boa alma! — afirmou a
senhora Cratchit.
— Ainda estarias mais certa disso, querida — replicou Bob —,
se o visses e falasses com ele. Não ficaria nada surpreendido —
nota! — se arranjasse melhor colocação para o Peter.
— Estás a ouvir isto, Peter? — disse a senhora Cratchit.
— E depois — exclamou uma das raparigas — o Peter arranjará
alguém e irá viver a sua vida.
— Deixa-te disso! — resmungou Peter com uma careta.
— Muito provavelmente, qualquer dia — disse Bob —, se bem
que para isso ainda falte muito tempo. Mas, quando quer ou
como quer que nos separemos uns dos outros, estou certo que
nenhum de nós esquecerá o pequeno Tim, nem esta primeira
separação que se deu entre nós, pois não?
— Nunca, pai! — exclamaram todos.

102

— E eu sei — disse Bob —, eu sei, meus queridos, que quando


lembrarmos como ele era paciente e dócil, embora fosse
apenas uma criança muito pequena, não brigaremos uns com
os outros, esquecendo assim o pequeno Tim.
— Não, nunca, pai! — exclamaram novamente todos.
— Estou muito feliz! — disse o pequeno Bob —, estou muito
feliz!
A senhor Cratchit beijou-o, as filhas beijaram-no, os dois
Cratchit mais novos beijaram-no e ele e Peter apertaram a mão.
Oh, espírito do pequeno Tim, a tua essência de criança provinha
de Deus!
— Espectro — disse Scrooge —, algo me diz que é chegado o
momento de nos separarmos. Eu sei-o, mas não sei como. Diz-
me quem era aquele homem que ali jazia.
O Espírito do Natal Futuro conduziu-o, como antes fizera (ainda
que em momento diferente e ele pensou que, realmente,
parecia não haver qualquer ordem nestas últimas visões, salvo
a de se situarem no futuro), aos locais dos homens de negócios,
mas não lhe mostrou a sua pessoa. Em boa verdade, o espírito
nem sequer se detinha em parte alguma, continuando sempre
direito ao fim agora pretendido, até que Scrooge implorou que
se detivessem por um instante.
— Este pátio — disse Scrooge — que agora atravessamos é
onde se situa e situou por muito tempo o meu local de
trabalho. Estou a ver a casa. Deixa-me ver o que serei no
futuro!
O Espírito parou apontando com a mão para outro lado.
— A casa é acolá — disse Scrooge. — Porque apontas para
além?
O inexorável dedo não se moveu. Scrooge precipitou-se para a
janela do escritório e olhou lá para dentro. Ainda era um
escritório, mas não o dele. A mobília não era a mesma e a
pessoa sentada na cadeira

103

não era ele. O fantasma continuava a apontar.


Voltou para junto dele, pensando para consigo onde e porquê
teria ido a sua pessoa, e acompanhou-o até chegarem a um
portão de ferro. Parou para olhar em redor, antes de entrarem.
Um cemitério. Era então aqui que jazia debaixo do chão o
infeliz cujo nome ele iria agora saber. Era um local digno.
Rodeado de casas, coberto de relva e de ervas daninhas, o
crescimento da vegetação da morte, não da vida, saturada de
demasiados enterrados, gorda e de apetite saciado. Um local
digno!
O espírito ficou de pé entre as campas e apontou uma. Ele
avançou para ela a tremer. O fantasma foi preciso como
sempre, mas ele temeu ver um novo significado na sua forma.
— Antes que me aproxime dessa pedra para que estás a
apontar — disse Scrooge —, responde-me a uma pergunta.
Estas são as sombras do que será ou apenas as sombras do que
poderá vir a ser?
O fantasma continuou a apontar para a campa junto da qual
estava.
— Os rumos dos homens fazem prever certos fins, aos quais, se
neles persistirem, serão levados — disse Scrooge. — Mas se se
desviarem desses rumos os fins mudarão. Assim é o que me
mostras!
O espírito mantinha-se imóvel como sempre.
Tremente, Scrooge arrastou-se até lá e, seguindo o dedo, leu
na lousa da desprezada campa o seu próprio nome, Ebenezer
Scrooge.
— Sou eu o homem que jaz naquela campa? — gritou de
joelhos.
O dedo apontou da campa para ele e de novo para a campa.

104

— Não, espírito! Oh, não, não! O dedo lá continuava.


— Espírito! — gritou, agarrando-se com força à túnica dele. —
Escuta-me! Já não sou o homem que era. Não serei o homem
que tive de ser durante este lapso de tempo. Porque me
mostras isto, se não há para mim qualquer esperança?
Pela primeira vez a mão pareceu tremer.
— Bom espírito — prosseguiu enquanto caía a seus pés —, a
tua natureza intercede e apieda-se de mim. Diz-me que ainda
posso alterar estas sombras que me mostraste, mudando a
minha vida!
A boa mão estremeceu.
— Honrarei o Natal de todo o meu coração e tentarei conservá-
lo todo o ano. Viverei no passado, no presente e no futuro. Os
espíritos dos três empenhar-se-ão no meu íntimo. Não
desprezarei as lições que eles me deram. Oh, diz-me que posso
apagar o que está escrito nesta lousa!
No meio do seu sofrimento agarrou-se àquela mão espectral,
que tentou libertar-se, mas ele era forte na sua súplica e
deteve-a.
Pondo as mãos numa última súplica, para que o seu destino
fosse desviado, viu operar-se uma modificação no capuz e na
túnica do fantasma. Ela encolheu, caiu e tombou pela coluna da
cama.

Página em branco

ESTROFE V
O fim de tudo

Sim! E a coluna da cama era a sua. A cama era a sua, o quarto


era o seu. Melhor que tudo isso: o tempo que tinha à sua frente
era seu, para se emendar!
— Viverei no passado, no presente e no futuro! — repetia
Scrooge, enquanto rebolava para fora da cama. — Os espíritos
dos três empenhar-se-ão no meu íntimo. Oh, Jacob Marley!
Que o Céu e o Natal sejam por isto louvados! Digo isto de
joelhos, velho Jacob, de joelhos!
Estava tão excitado e tão entusiasmado com as suas boas
intenções, que a sua voz alquebrada mal correspondia ao seu
apelo. Estivera a soluçar violentamente durante o conflito com
o espírito e o seu rosto estava molhado de lágrimas.
— Não estão derrubadas — gritava Scrooge, abraçando uma
das cortinas da cama. — Não estão derrubadas, têm argolas e
tudo. Estão aqui... eu estou aqui... as sombras das coisas que
podiam vir a ser podem ser afastadas. E serão, sei que serão!
As suas mãos estiveram sempre ocupadas com a roupa,
virando-a do avesso, de cima para baixo, rasgando-a,
pendurando-a e fazendo-a participar em todas as
extravagâncias.
— Não sei o que fazer! — exclamou Scrooge, rindo e chorando
ao mesmo tempo e parecendo qual Laoconte, enrolado nas
peúgas (Nota da tradutora: Personagem mitológico que foi
devorado por serpentes). — Sinto-me

107

leve que nem uma pena, feliz que nem um anjo, alegre que
nem um garoto e tonto que nem um ébrio. Feliz Natal para
todos! Próspero Ano Novo, para toda a gente! Eia, aí! Hoopi!
Viva!
Tinha pulado até à sala e ali estava de pé, completamente
ofegante.
— Cá está a caçarola onde estava a papa! — gritou Scrooge,
pondo-se novamente em movimento em volta da lareira. — Lá
está a porta por onde Jacob Marley e o espírito entraram! Lá
está o canto onde se sentou o Espírito do Natal Presente! Lá
está a janela onde eu vi as almas penadas! Tudo é certo, tudo é
verdade, tudo aconteceu. Ah, ah, ah!
Para um homem que tinha perdido o treino há tantos anos, era
realmente uma gargalhada maravilhosa, uma gargalhada
esplendorosa. A mãe de muitas e muitas outras gargalhadas
cristalinas!
— Não sei que dia do mês é! — disse Scrooge. — Não sei
quanto tempo estive entre os espíritos. Não sei nada. Sou um
verdadeiro bebé. Não importa. É melhor ser um bebé. Eia!
Hoopi! Viva!
Os seus transportes foram detidos pelos mais fortes repiques
que jamais ouvira. Choquem, retinam, martelem; ding, dong,
piam. Piam, dong, ding; martelem, choquem, retinam! Glória,
glória!
Correu para a janela, abriu-a e deitou a cabeça de fora. Não
havia nevoeiro nem neblina. Que belo ar fresco! Que alegres
sinos! Oh, glória, glória!
— Que dia é hoje? — gritou Scrooge lá para baixo, para um
rapaz de fato domingueiro, que provavelmente se atrasou para
olhar em volta.
— Hã? — respondeu o rapaz, com todo o assombro.

108

— Que dia é hoje, meu bonitão? — disse Scrooge.


— Hoje? — respondeu o rapaz. Eia! É DIA DE NATAL!
— É dia de Natal! — disse Scrooge para consigo. — Não o
perdi. Os espíritos fizeram tudo numa só noite. Conseguem
fazer tudo quanto querem. Claro que conseguem. Olá,
amigalhaço!
— Olá! — respondeu o rapaz.
— Conheces o galinheiro, na segunda rua, à esquina? —
inquiriu Scrooge.
— Queira Deus que sim! — replicou o rapaz.
— És um rapaz inteligente! — disse Scrooge. — Um rapaz
notável! Sabes se venderam aquele peru premiado que lá
tinham pendurado?.. Não é o peru premiado pequeno, é o
grande.
— O quê, aquele tão grande como eu? — respondeu o rapaz.
— Que estupendo rapaz! — disse Scrooge. — É um prazer falar
com ele. Sim, meu peralvilho!
— Está agora lá pendurado — respondeu o rapaz.
— Está? — tornou Scrooge. — Vai lá comprá-lo.
— Haaã! — exclamou o rapaz.
— Não, não — disse Scrooge. — Estou a falar a sério. Vai lá
comprá-
-lo e diz-lhes que mo tragam cá e eu dar-lhes-ei a morada onde
devem levá-lo. Volta cá com o homem que te darei um xelim.
Volta dentro de cinco minutos e dou-te meia coroa!
O rapaz desapareceu que nem uma seta. Teria de ter um bom
dedo para o gatilho quem quisesse disparar com metade da
velocidade.
— Vou mandá-lo ao Bob Cratchit! — murmurou Scrooge,
esfregando as mãos e desatando a rir. — Não deve saber quem
lho manda. É duas vezes maior que o pequeno Tim. Nunca
houve uma piada batida tão boa como esta de o mandar ao
Bob!

109

A mão com que escreveu a morada não era das mais firmes,
mas mesmo assim escreveu e desceu para abrir a porta da rua,
preparado para a chegada do galinheiro. Enquanto ali esperava
que ele chegasse, deram-
-lhe os olhos no batente.
— Amá-lo-ei enquanto viver! — exclamou Scrooge, dando-lhe
umas pancadinhas amigáveis. — Antes mal olhava para ele.
Que expressão tão honesta ele tem no rosto! É um batente
maravilhoso!.. Aqui está o peru. Olá Hoopi! Como está? Feliz
Natal!
Era um peru! Uma ave daquelas nunca devia ter conseguido
pôr-se em cima das pernas. Devia parti-las logo, como se
fossem paus de lacre.
— Ui, é impossível levar isso a Camdem Town — disse Scrooge.
— Tem de tomar um carro.
O riso com que disse isto, o riso com que pagou o peru, o riso
com que pagou o carro, o sorriso com que recompensou o
rapaz, só foram ultrapassados pelo riso com que se sentou na
cadeira onde riu até chorar.
Barbear-se não foi tarefa fácil, já que a mão continuava a
tremer-
-lhe muito e o barbear requer atenção, mesmo que não
estejamos a dançar enquanto nos barbeamos; mas se ele
tivesse cortado a ponta do nariz, ter-lhe-ia posto um bocado de
adesivo e teria ficado satisfeito.
Vestiu-se «com o melhor» e saiu por fim para a rua. A essa
hora as ruas pululavam de gente, tal como ele as tinha visto
com o Espírito do Natal Presente; e, de mãos atrás das costas,
Scrooge olhava todos com um sorriso de prazer. Em resumo:
parecia tão irresistivelmente alegre que três ou quatro
indivíduos bem humorados disseram: «Bom dia, senhor! Feliz
Natal para si!». E Scrooge disse depois muitas vezes que, de
todos os alegres sons que já ouvira, aqueles soaram aos seus
ouvidos como os mais alegres.

110

Não tinha ido longe quando viu, avançando para ele, o


cavalheiro imponente que na véspera entrara no seu escritório
e lhe dissera:
« Scrooge e Marley, não é assim?». O coração deu-lhe um
baque ao pensar como é que aquele cavalheiro o iria olhar
quando se encontrassem; sabia o que o esperava e avançou.
— Meu caro senhor — disse Scrooge apressando o passo e
apertando ambas as mãos do cavalheiro. — Como está? Espero
que tenha conseguido ontem. Foi muito simpático da sua parte.
Feliz Natal para si!
— Senhor Scrooge?
— Sim — disse Scrooge. — Sim, é esse o meu nome, e receio
que não lhe seja agradável. Permita-me que lhe peça desculpa.
E terá a bondade — aqui Scrooge segredou-lhe ao ouvido.
— Valha-me Deus! — gritou o cavalheiro, como se lhe tivesse
faltado o ar. — Meu caro senhor Scrooge, está a falar a sério?
— Por favor — acrescentou Scrooge —, nem um quarto de
pény a menos. Já aí incluo muitos pagamentos atrasados, pode
estar certo. Far-me-á esse favor?
— Meu caro senhor — disse o outro apertando-lhe a mão. —
Não sei o que dizer a tanta generosi...
— Não diga nada, por favor — retorquiu Scrooge. — Venha
visitar-me. Virá?
— Virei! — exclamou o cavalheiro. E não havia dúvida que
estava decidido a fazê-lo.
— Obrigado — disse Scrooge. — Estou-lhe muito agradecido.
Agradeço-
-lhe cinquenta vezes. Deus o abençoe!
Foi à igreja e vagueou pelas ruas, observou as pessoas que se
afadigavam de cá para lá, deu palmadinhas na cabeça das
crianças, interrogou mendigos, espreitou para as cozinhas das
casas e para as janelas e descobriu que tudo lhe podia dar
prazer. Nunca sonhara que

111

um passeio — ou qualquer outra coisa — lhe pudesse dar


tamanha felicidade. De tarde encaminhou-se para casa do
sobrinho.
Passou uma dúzia de vezes pela porta antes que tivesse
coragem de subir e bater, mas arremeteu e fê-lo.
— O patrão está em casa? — disse Scrooge à rapariga.
Rapariguinha engraçada! Muito mesmo.
— Está sim, senhor.
— Onde está ele, amorzinho? — disse Scrooge.
— Está na sala de jantar com a senhora. Eu levo-o lá acima, se
o senhor quiser.
— Obrigada. Ele conhece-me -— disse Scrooge já com a mão no
puxador da porta da sala de jantar. — Eu entro, minha menina.
Girou lentamente o puxador e enfiou a cara pela frincha da
porta. Eles estavam a olhar para a mesa (que estava posta com
muitos atavios), porque estas jovens donas de casa ficam
sempre um pouco nervosas com estes pontos e gostam de
verificar tudo bem.
— Fred! — disse Scrooge.
Como a sua sobrinha por afinidade se sobressaltou! Que
coração sensível! Scrooge esquecera por momentos que ela
estava sentada a um canto com o banquinho para os pés, senão
não o teria feito de maneira nenhuma.
— Valha-me Deus — exclamou Fred. — Quem é?
— Sou eu. O teu tio Scrooge. Vim jantar. Permites-me que
entre, Fred?
Permitir-lhe que entre?! Foi milagre ele não lhe arrancar o
braço. Em cinco minutos estava em sua casa. Nada poderia ser
mais caloroso. A sua sobrinha estava na mesma. Também o
Topper, quando chegou. E a irmã gorducha, quando chegou. E
toda a gente quando chegou. Maravilhosa festa, maravilhosos
jogos, maravilhosa unanimidade, ma-ra-vi-lho-sa felicidade!
112

Mas chegou cedo ao escritório na manhã seguinte. Chegou


mesmo cedo. Se ao menos conseguisse chegar primeiro e
apanhar o Bob Cratchit a chegar atrasado! Nisso se empenhou.
E assim fez; sim, assim fez! O relógio bateu as nove. E o Bob,
nada. Já passavam dezoito minutos e meio da sua hora.
Scrooge estava sentado com a sua porta escancarada, para o
ver entrar no tanque.
Antes de entrar, já tinha tirado o chapéu e o cachecol. Num
instante se pôs no seu banco, dando à pena como se quisesse
recuperar as nove horas.
— Olá! — rosnou Scrooge na sua voz habitual, tão bem imitada
quanto podia. — Que é que pretendes entrando aqui a esta
hora do dia?
— Peço muita desculpa, senhor — disse Bob. — Estou
atrasado.
— Estás? — repetiu Scrooge. — Sim. Acho que estás. Vossa
excelência pode aqui chegar, se faz favor?
— É só uma vez no ano — implorou Bob, saindo do tanque. —
Não se repetirá. Ontem diverti-me muito.
— Agora vou dizer-te uma coisa, meu amigo — disse Scrooge.
— Não vou tolerar uma coisa destas por mais tempo e por isso
— continuou, descendo do seu banco e enfiando-lhe de tal
modo o dedo no colete que ele cambaleou de costas até ao seu
tanque —, e por isso vou aumentar-
-te o ordenado!
Bob tremia e aproximou-se mais da régua. Teve por um
momento a ideia de agredir Scrooge com ela, enquanto o
segurava e pedia socorro para o pátio e um colete de forças.
— Feliz Natal, Bob! — disse Scrooge, com uma sinceridade que
não podia ser confundida, enquanto lhe dava palmadinhas nas
costas. — Desejo-te, meu bom amigo Bob, um Natal mais feliz
do que aqueles que

113

te tenho dado de há muitos anos! Vou aumentar-te o salário e


compro- meter-me a ajudar a tua necessitada família e esta
tarde discutiremos acerca de negócios, em frente duma tigela
de Natal com ponche fumegante, Bob! Acende os fogões e vai
comprar um balde de carvão antes que o Diabo esfregue um
olho, Bob Cratchit!

Scrooge excedeu as suas promessas. Fez tudo e infinitamente


mais e para o pequeno Tim, que NÃO morreu, foi um segundo
pai. Tornou-se um bom amigo, um bom patrão, um bom
homem, como toda a boa cidade sabia ou qualquer outra boa
cidade, vila ou lugar do nosso bom mundo. Alguns riam-se da
sua modificação, mas ele deixava-os rir e pouca atenção lhes
prestava, porque era suficientemente sensato para saber que
nada de bem acontecia neste mundo sem que as pessoas
troçassem, a princípio; e sabendo que esses, de qualquer
forma, seriam sempre cegos, pensou igualmente que podiam
fazer rugas de tanto rir ou apanhar a doença com forma menos
atraente. O seu coração ria e isso era quanto lhe bastava.
Não voltou a ter contactos com os espíritos, mas viveu, a partir
de então, em voto total de abstinência e dele sempre se disse
que sabia como conservar o Natal, se é que alguém possuía
essa sabedoria. Que isso possa ser dito de nós, de todos nós! E,
tal como dizia o pequeno Tim: que Deus nos abençoe a todos!

OS SINOS DE ANO NOVO

Uma história de duendes sobre uns sinos, que repicavam pela


saída do ano velho e pela entrada do ano novo

Personagens

SIR JOSEPH BOWLEY, membro do Parlamento, um cavalheiro


idoso e altivo.
SENHOR BOWLEY, filho do anterior.
ALDERMAN LUTE, um homem que se orgulhava do seu carácter
simples, prático e sábio.
WiLL FERN; um homem pobre e honesto, a quem foi dada má
reputação.
SENHOR FILER, um desconsolado cavalheiro de meia-idade.
SENHOR FISH, secretário particular do senhor Joseph Bowley.
RICHARD, um ferreiro bonito e jovem.
TUGBY, lacaio do senhor James Bowley.
TOBY VECK (TROTTY), moço de recados.
A SENHORA BOWLEY, esposa do senhor Joseph Bowley.
A SENHORA ANNE OHICKENSTALKER, lojista de um armazém.
LILIAN FERN, órfã, sobrinha de Will Fern.
MARGARET VECK, filha de Toby Veck.

Primeiro quarto

Não há muita gente (e como é desejável que o contador de


histórias e o leitor estabeleçam, tão depressa quanto possível,
um entendimento mútuo, peço que anotem que não restrinjo
essa observação a jovens ou a crianças, mas todo o tipo de
gente: pequenos e grandes, jovens e velhos, àqueles que estão
a crescer e aos que já estão a diminuir), não há, dizia eu, muita
gente que se importasse de dormir numa igreja. Não durante o
sermão com tempo quente (quando isso já foi feito por uma ou
duas vezes), mas durante a noite, e só. Sei que muitíssima
gente ficará tremendamente admirada por esta atitude em
pleno dia. Mas esta aplica-se à noite. Deve decorrer de noite e
eu comprometo-me a conferir-lhe bom êxito numa qualquer
noite tempestuosa de Inverno, escolhida para o efeito, com um
adversário qualquer escolhido entre outros, que me encontrará
a sós num velho cemitério frente a um velho portal de igreja e
que previamente me concederá o poder de ali o fechar até de
manhã, se isso indispensável for para seu contentamento.
O vento nocturno tem a lúgubre mania de voltear e voltear em
torno dum edifício daquele género e de gemer enquanto
volteia e de forçar, com a sua mão invisível, janelas e portas,
procurando fendas por onde entrar. Uma vez lá dentro, e não
encontrando o que procurava, seja lá o que for, lamenta-se e
uiva para escapar novamente e não contente

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com espalhar-se pelas galerias e com enlaçar-se nos pilares,


experimentando o sonoro órgão, eleva-se até ao telhado e luta
para despedaçar as vigas. Lança-se então desesperadamente
sobre as pedras cá de baixo e passa murmurante pelas galerias.
E já sobe furtivamente e trepa pelas paredes, parecendo ler
num murmúrio as inscrições dedicadas aos mortos. Nalgumas
destas manifesta-se estridentemente como se risse e noutras
lamenta-se e chora como se carpisse. Atardando-se dentro do
altar, produz também um som fantasmagórico, onde parece
salmodiar, no seu tom tempestuoso, sobre o mal e o crime
cometidos, sobre os falsos deuses adorados em desafio às
Tábuas da Lei que parecem claras e lisas, mas estão tão
falhadas e partidas. Uuu! Deus nos proteja, a nós que estamos
comodamente sentados em volta do lume! Aquele vento da
meia-noite, cantando na igreja, tem uma voz terrível!
E então lá em cima no campanário?! Ali, a tenebrosa rajada
ruge e assobia! Lá em cima, no campanário, é onde ele é livre
de ir e vir, passando através de muitos arcos abertos e de
buracos, de rodopiar, de se encaracolar pela vertiginosa escada,
de rodar o catavento que range e de fazer a própria torre
abanar e estremecer! Lá em cima, no campanário onde é a
torre dos sinos, onde as correntes de ferro estão despedaçadas
pela ferrugem e onde as chapas e as folhas de cobre estalam e
ondulam arrepiadas com a mudança de tempo e sob uma
superfície diferente; onde os pássaros estofam os esfarrapados
ninhos, nos cantos das velhas traves e vigas de carvalho; onde o
pó se faz velho e cinzento; onde as aranhas pintadas, gordas e
indolentes pela já longa estabilidade, se balançam
indolentemente de cá para lá com a vibração dos sinos, nunca
se desprendendo dos seus castelos no ar, feitos de teia, nem
trepando como o marinheiro subitamente alarmadas,nem
caindo ao chão e manejando uma quantidade

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de pernas ágeis para salvar a vida! Lá em cima, no campanário


duma igreja, muito acima das luzes e dos murmúrios da cidade
e muito abaixo das esvoaçantes nuvens que o ensombram, ali é
durante a noite o local bravio e tenebroso — lá em cima, no
campanário duma velha igreja, vivem os sinos de que estou a
falar.
Acreditem-me que eram velhos sinos. Há muitos séculos
aqueles sinos tinham sido baptizados por bispos. Há tantos,
tantos séculos que o registo do seu baptismo de há muito se
perdeu, muito antes da memória dos homens, e os seus nomes
ninguém sabia. Tinham tido os seus padrinhos e as suas
madrinhas, aqueles sinos (que eu, pela minha parte, também
vos digo que preferiria assumir a responsabilidade de ser
padrinho dum sino que de um rapaz) e além disso as suas
carrancas de prata sem dúvida. Mas o tempo afastara os seus
protectores, Henrique VIII mandara fundir as suas carrancas e
agora ali estavam eles suspensos, sem nome e sem caras, na
torre da igreja.
Mas não mudos. Longe disso. Estes sinos tinham, ai isso
tinham, vozes sonoras, vigorosas e fortes que podiam ser
ouvidas bem longe, levadas pelo vento. Além disso eram sinos
demasiado vigorosos para estarem dependentes da disposição
do vento, pois que lutando galhardamente contra ele, quando o
seu capricho lhes era adverso, instilariam no ouvido atento e
muito soberanamente as suas alegres notas e desviar-se-iam
para serem ouvidos em noites tempestuosas, por alguma infeliz
mãe que seu filho velasse, ou por alguma esposa solitária cujo
marido andava no mar, pois elas já os tinham visto vencer um
violento vento de noroeste. Sempre «a calhar», como dizia o
Toby Veck — porque, embora tivessem optado por lhe chamar
Trotty Veck, o seu nome era Toby e ninguém lhe poderia
chamar outra coisa

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(excepto Tobias) sem uma lei especial, tendo ele sido tornado
oficialmente cristão no seu dia, como os sinos o tinham sido no
deles, ainda que sem tamanha solenidade ou júbilo público.
Pela minha parte, confesso-me partidário da opinião de Toby
Veck, pois tenho a certeza de que não lhe faltaram
oportunidades de a formular correctamente. E o que quer que
o Toby Veck tenha afirmado — eu afirmo-o. E tomo lugar a seu
lado, se bem que o seu lugar fosse permanecer todo o dia (e
que trabalho cansativo, aquele!) à porta da igreja. Ele era
realmente moço de recados, esse Toby Veck, e ali esperava
pelas tarefas.
E que lugar aquele no Inverno para esperar: ventoso,
arrepiante, gélido, glacial e de fazer bater o dente. Toby Veck
bem o sabia! O vento vinha da esquina espadanando
(sobretudo o vento leste), como se tivesse brotado dos confins
da Terra expressamente para soprar sobre Toby. Muitas vezes
parecia chocar com ele mais depressa do que contava, porque,
arremetendo da esquina e ultrapassando Toby, rodopiava
novamente para trás como se gritasse: «Olha, cá está ele!».
Incontidamente, levantava-se então o seu aventalinho como as
roupas de um menino mau, e via-se a sua débil bengalinha lutar
e debater-se em vão na sua mão, e as suas pernas sofriam uma
tremenda agitação, e o pobre Toby todo de esguelha, virando-
se ora para um lado ora para outro, era de tal modo sacudido,
esbofeteado, descomposto, perturbado, empurrado e erguido
que dir-se-ia faltar um passo para que se desse um autêntico
milagre, o de ser erguido no ar em corpo como o são por vezes
uma colónia de rãs ou de caracóis ou de outros seres portáteis
e novamente despejado, para grande espanto dos nativos,
nalgum canto do mundo onde os moços de recados fossem
coisa desconhecida.
Mas o tempo ventoso, apesar de o cansar tanto, era no fim de
contas,

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para Toby, uma espécie de entretém. Isso é um facto. Parecia-


lhe não esperar tanto por uma moeda quando havia vento
como noutras alturas. O facto de ter de lutar contra um
elemento turbulento absorvia-lhe a atenção e reanimava-o
bastante quando começava a sentir fome e desânimo. Também
uma forte geada ou um nevão constituíam um acontecimento e
de certa forma parecia fazer-lhe bem — ainda que fosse difícil
dizer porquê, Toby! Os dias de vento, de geada, de neve, e até
de uma forte tempestade de granizo, eram dias de festa para
Toby!
O tempo húmido era o pior: aquela humidade fria e viscosa
que o envolvia como um sobretudo húmido, o único sobretudo
que Toby tinha, ou que poderia aumentar o seu conforto
desaparecendo. Dias húmidos, quando a chuva caía lenta,
pesada e obstinadamente, quando a garganta da rua, tal como
a dele, sufocava com a neblina, quando os guarda-
-chuvas fumegantes passavam e voltavam a passar, rodopiando
como outros tantos piões, e esbarravam uns com os outros na
rua apinhada de gente, lançando um remoinho de
desagradáveis salpicos, quando as sarjetas murmuravam e as
goteiras estavam cheias e barulhentas, quando a humidade das
pedras mais salientes e dos beirais da igreja caía, ping, ping,
ping, sobre Toby, transformando em lama, em menos de nada,
o feixe de palha em cima do qual ele estava. Esses, sim, eram os
dias que o punham à prova. Nessa altura podia realmente ver-
-se Toby, de cara esticada e desconsolada, olhando
ansiosamente do seu abrigo, num canto da parede da igreja
(um abrigo tão exíguo que de Verão nunca projectava no
pavimento sombra mais larga que a de um bordão de tamanho
normal). Saindo porém, um minuto depois, para se aquecer
com algum exercício, saltitando de um lado para o outro uma
dúzia de vezes, conseguia mesmo assim reanimar-se e voltar
mais

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animado para o seu abrigo.


Chamavam-lhe Trotty pelo seu passo, que pretendia ser veloz,
ainda que não o conseguisse. Talvez que caminhando pudesse
ser mais rápido; é provável; mas, se lhe tirassem o seu passo,
Trotty teria caído à cama e morrido. Em tempo sujo salpicava-o
de lama, custava-lhe uma infinidade de sarilhos, poderia
caminhar com muito mais facilidade, mas essa era uma das
razões porque se agarrava a ele tão tenazmente. Era um
velhote fraco, pequeno e magro, mas nas suas boas intenções
este Toby era um Hércules. Adorava ganhar o seu dinheiro.
Gostava de acreditar (Toby era pobre e não podia dar-se ao
luxo de alienar um gosto) que valia o pão que comia. Com um
recado que valia um xelim ou um penny, ou com um pequeno
embrulho na mão, a sua coragem, sempre grande, aumentava
ainda mais. Enquanto saltitava, gritava ao carteiro que ia à sua
frente que se afastasse, acreditando piamente que, como
ordem natural das coisas, ele tinha de ultrapassá-lo
inevitavelmente e vencê-lo e tinha absoluta crença — não
muitas vezes posta à prova — de que era de transportar fosse o
que fosse que ser humano conseguisse levantar.
Assim, mesmo quando saía do seu esconderijo para se aquecer
em dia húmido, mesmo então Toby saltitava. Desenhando no
lodaçal, com os seus sapatos mal vedados, uma linha torta de
pegadas enlameadas, e bafejando as mãos geladas e
esfregando-as, defendendo-se assim parcamente do
penetrante frio que entrava pelos buracos das suas luvas de lã
cinzenta, que só tinham dedo para o polegar e para o resto dos
dedos um espaço comum, de joelhos curvados e de bengala
debaixo do braço, Trotty ainda saltitava. E trotava ainda,
quando saía para a estrada, para olhar o campanário, quando
ressoavam os sinos.

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Fazia essa caminhada várias vezes por dia, porque eles eram
para ele uma companhia; e quando lhes ouvia as vozes queria
olhar o seu abrigo, pensando na forma como eram movidos e
nos martelos que lhes batiam. Talvez sentisse mais curiosidade
por eles por haver pontos de semelhança entre os sinos e ele.
Ambos ali estavam, com qualquer tempo, aguentando as
arremetidas do vento e da chuva, vendo apenas a parte
exterior de todas aquelas casas, nunca se aproximando dos
brilhantes lumes que se viam das janelas ou cujo fumo saía
pelas chaminés e incapazes de participar de qualquer das coisas
boas que eram constantemente entregues a fantásticos
cozinheiros às portas de serviço ou às grades das propriedades.
Em muitas janelas apareciam e desapareciam caras, por vezes
caras bonitas, jovens, agradáveis; outras vezes o contrário; mas
Toby sabia tanto como os sinos (embora muitas vezes
especulasse sobre esses nadas, enquanto permanecia ocioso
pelas ruas) donde vinham ou para onde iam ou, quando os
lábios deles se moviam, se iriam dizer durante todo o ano uma
palavra amável a seu respeito.
Toby não era um casuísta (pelo menos que o soubesse), nem
eu quero dizer que, quando se começou a afeiçoar aos sinos e a
tecer a primeira tosca relação com eles transformando-a em
algo de mais delicada trama, tivesse feito uma a uma tais
considerações ou que as tenha passado em revista na sua
mente. Mas o que quero dizer, e digo, é que tal como as
funções orgânicas de Toby cumprem os seus objectivos, as do
seu aparelho digestivo, por exemplo, faziam por seu próprio
atributo uma quantidade de operações que ele ignorava em
absoluto e cujo conhecimento o espantaria grandemente, assim
também as suas faculdades mentais, sem a sua autorização ou
contributo, desencadeavam todos estes mecanismos e molas e
milhares de outros, quando trabalhavam no sentido de o
fazerem gostar dos sinos. E ainda

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que tivesse empregado a palavra amor, não a teria retirado,


embora ela exprimisse escassamente o seu complexo
sentimento. Porquanto, sendo um homem simples, lhes
conferia um carácter solene e estranho. Eram tão misteriosos,
sempre ouvidos e nunca vistos! Estavam lá tão em cima, tão
longe, possuíam um som tão forte e profundo que ele os olhava
com uma espécie de respeito! E por vezes quando olhava lá
para cima, para as sombrias janelas em arco da torre, esperava
ver acenar-
-lhe algo que não um sino, ainda que tivesse sido sempre um o
que ele ouviu no carrilhão. Por tudo isto, Toby opunha-se
indignado a um certo rumor que pairava de que os sinos
estavam assombrados, como se isso implicasse estarem ligados
a algo de mal. Resumindo, eles estavam frequentemente nos
seus ouvidos e frequentemente nos seus pensamentos, mas
sempre no seu elevado conceito; e muitas vezes arranjava uma
tal cãibra no pescoço, por ficar a olhar de boca aberta para o
campanário onde eles estavam, que de bom grado dava depois
mais uma ou duas trotadelas para a curar.
Era isso mesmo que ele estava a fazer, num dia frio, quando
soou no campanário a última badalada sonolenta das doze,
enérgica como uma monstruosa abelha, não de maneira
nenhuma como uma abelha diligente!
— Hora de jantar, hem? — disse Toby, trotando de lá para cá,
frente à igreja. —Ah!
Toby tinha o nariz vermelho e as pálpebras muito vermelhas e
pestanejava muito e os ombros estavam muito próximos das
orelhas, as pernas estavam muito rígidas e todo ele evidenciava
caminhar há muito sob a face gelada do frio.
— Hora de jantar, hem? — repetia Toby, usando a luva da
direita como uma luva de boxe de criança e castigando o peito
por estar frio. — Ah-h-h-h!

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Depois e durante um ou dois minutos deu uma trotadela em


silêncio.
— Não há nada — disse Toby, recomeçando novamente, mas
nesse momento estacou o seu trote e, com ar de grande
interesse e de certa preocupação, apalpou todo o seu nariz
cuidadosamente. Tinha pouco que apalpar (não era lá um
grande nariz) e depressa acabou.
— Pensei que tinha desaparecido — disse Toby recomeçando o
seu trote. — Mas afinal está bem. Acho que não podia queixar-
me dele, se se fosse embora. O mau tempo dá-lhe bem que
fazer e tem muitíssimo pouco a esperar, pois que eu nem
sequer cheiro rapé. Pobrezito, tem passado o seu mau bocado,
nas melhores épocas, pois que quando se apodera dum
agradável aroma (o que raramente acontece), ele provém
geralmente do jantar de outra pessoa, que o traz do forno do
padeiro.
Aquela reflexão lembrou-lhe outra que deixara inacabada.
— Não há nada de mais certo, na sua aparição, que a hora de
jantar e nada de menos certo do que o jantar. Essa é a grande
diferença entre eles. Levei tempo a descobri-lo. Pergunto-me se
valeria a pena a qualquer cavalheiro levar agora esta
observação aos jornais ou ao Parlamento!
Toby estava apenas a brincar, pois que abanou a cabeça em
sinal de autodepreciação.
— Oh, meu Deus! — disse Toby. — Cheios como estão de
observações, os jornais e o Parlamento! Aqui está o jornal da
semana passada — tirou do bolso um muito sujo e esticou o
braço a todo o comprimento —, cheio de observações! Gosto
de saber as notícias como qualquer outro — disse Toby,
lentamente, dobrando-o num tamanho mais pequeno e
metendo-o novamente ao bolso —, mas ler agora o jornal, faço-
o de mau grado. Quase me assusta. Não sei ao que
chegaremos, nós, os pobres.

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Senhor, faz com que algo de melhor nos possa vir com a
aproximação do Ano Novo!
— Oh, pai, pai! — disse uma voz agradável, ali próximo.
Mas Toby, não a ouvindo, continuou a trotar para trás e para
diante, meditando à medida que avançava e falando de si para
si.
— É como se não achássemos o caminho certo, como se não
conseguíssemos agir acertadamente ou não nos fizessem justiça
— disse Toby. — Eu cá por mim não tive grande instrução,
quando era novo; e não consigo perceber se andamos a fazer
alguma coisa ao cimo da Terra ou se não. Por vezes penso que
sim, pelo menos um pouco; outras vezes acho que estamos a
mais. Fico por vezes tão confuso que nem consigo ajuizar se há
em nós algo de bom, ou se nascemos maus. Parece que somos
coisas horríveis e que trazemos montes de complicações.
Sempre se queixam de nós e estão sempre na defensiva a nosso
respeito. Duma maneira ou de outra, enchemos os jornais. E
por falar em Ano Novo! — disse Toby, tristonho. — Consigo
conservar a coragem, em certas alturas, tanto como qualquer
outro e por vezes melhor do que muitos, porque sou forte que
nem um leão e nem todos o são, mas supondo que não temos
realmente direitos a um Novo Ano, supondo que somos
realmente intrusos...
— Ó pai, pai! — disse novamente a voz agradável. Desta vez
Toby ouviu. Partiu. Parou. Encurtando o olhar, que tinha estado
dirigido para longe, como se procurasse ser esclarecido no
coração do ano que se aproximava, encontrou-se cara a cara
com a sua própria filha e olhou-a no fundo dos seus olhos.
E que olhos brilhantes eram aqueles! Olhos que suportavam
um mundo de olhares antes que as suas profundezas fossem
exploradas. Olhos

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escuros que reflectiam os que neles se embrenhavam; não


cintilantes, ou a capricho da dona, mas com um clarão
transparente, calmo, honesto e paciente, que reclamava
afinidade com aquela luz que o Céu criou. Olhos que eram belos
e sinceros e onde brilhava a esperança. Esperança tão jovem e
fresca, esperança tão alegre, vigorosa e jovial, apesar dos vinte
anos de trabalho e pobreza a que tinham assistido. Tinham-se
tornado como que uma voz para Trotty Veck e diziam: «Acho
que temos aqui algo que fazer!».
Trotty beijou os lábios da dona daqueles olhos e apertou entre
as mãos aquele rosto em flor.
— Olá, querida — disse Trotty. — Que há? Não te esperava
hoje, Meg.
— Nem eu esperava vir, pai — exclamou a rapariga, acenando
com a cabeça e sorrindo enquanto falava. — Mas eis-me aqui! E
não estou só, não estou só!
— O quê, não queres dizer-me — observou Trotty olhando com
curiosidade um cesto coberto que ela trazia na mão — que tu...
— Cheire, querido pai — disse Meg. — Cheire só! Trotty ia
levantar logo o pano, cheio de pressa, quando ela interpôs
alegremente a mão.
— Não, não, não — disse Meg, com uma alegria infantil.
— Afasta-o só um bocadinho. Deixa-me só levantar uma
pontinha, só uma pontinha pequerruchinha, sim — disse Meg
juntando a palavra à acção com a maior delicadeza e falando
muito baixinho, como se temesse ser ouvida por algo que
estava dentro do cesto. — Olhe. E agora? Que é isto?
Toby aspirou tão perto quanto possível da borda do cesto e
exclamou num rompante:
— Oh! Está quente!

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— Está em brasa! — exclamou Meg. — Ah, ah, ah! Está a


escaldar!
— Ah! ah! ah! — gargalhou Toby, dando uma espécie de
pontapé. — Está em brasa!
— Mas o que é, pai? — disse Meg. — Vá lá. Ainda não
adivinhou o que é. Tem de adivinhar o que é. Nem pensar em
tirá-lo antes de adivinhar o que é. Não tenha tanta pressa! Mais
um momento! Mais um bocadinho da cobertura. Adivinhe lá!
Meg estava assustada, não fosse ele adivinhar cedo de mais;
encolhia-se, ao mesmo tempo que lhe estendia o cesto,
encurvando os seus lindos ombros, encaracolando a orelha com
a mão, como se fazendo isso conseguisse tirar da boca de Toby
a palavra certa. E continuava a rir de mansinho.
Toby, entretanto, pôs as mãos nos joelhos, inclinou o nariz até
ao cesto e inspirou profundamente a tampa; durante esse
processo o sorriso rasgou-se na sua face mirrada, como se ele
estivesse a inalar gás hilariante.
— Ah! É muito bom — disse Toby. — Acho que são salpicões,
não são?
— Não, não, não! — exclamou Meg, encantada. — Nada que se
pareça com salpicões!
— Não — disse Toby, depois de nova cheiradela. — É mais
macio do que os salpicões. É muito bom. A cada momento se
torna melhor. É demasiado categórico dizer que são pezinhos
de porco. Não é?
Meg estava exultante. Ele não poderia afastar-se mais da
verdade do que afirmando que eram pezinhos de porco
(excepto dizendo que eram salpicões).
— Fígado? — disse Toby falando para consigo. — Não. Há nisto
uma suavidade que não corresponde a fígado. Pezinhos? Não.
Não é suficientemente suave para serem pezinhos. Falta-lhe a
viscosidade das cabeças de galo e sei que não são salsichas. Já
te digo o que é.

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São tripas!
— Não, não são! — exclamou Meg, num ímpeto de prazer. —
Não são!
— Oh, mas que estou eu a pensar? — disse Toby retomando
bruscamente uma posição tão próxima da perpendicular
quanto lhe era possível. — Depois disto, nem do meu nome me
vou lembrar. É bucho!
E era mesmo bucho. Meg, na sua grande alegria, replicou que
ele teria de dizer, dentro de meio minuto, que se tratava do
melhor bucho que jamais fora guisado.
— E agora — disse Meg, atarefando-se exultante com o cesto
—, vou já pôr a toalha, pai; porque trouxe o bucho numa tijela
e embrulhei-a num lenço de algibeira e se por uma vez desejo
ser orgulhosa e estendê-lo como se fosse uma toalha,
chamando-lhe toalha, não há lei que mo proíba, pois não, pai?
— Que eu saiba, não, minha querida — disse Toby. — Mas
estão sempre a inventar novas leis.
— E segundo aquilo que no outro dia lhe li no jornal, pai, sabe
que o juiz diz que nós, os pobres, devemos sabê-las todas. Ah,
ah! Que disparate! Meu Deus, como eles nos julgam espertos!
— Sim, minha querida — disse Trotty—; e gostariam muito
daquele que realmente as soubesse todas. Esse homem havia
de engordar com o trabalho que arranjasse e seria muito
querido por todos os senhores da região. Era mesmo assim!
— Comeria o seu jantar com apetite, fosse ele quem fosse, se
ele cheirasse assim — disse Meg alegremente. — Despache-se,
porque também tem batata quente e meio quartilho de cerveja
recém-tirada, numa garrafa. Onde é que janta, pai? Na estação
ou nos degraus? Querido pai, como somos importantes. Temos
dois lugares à escolha!
— Hoje é nos degraus, querida — disse Trotty. — Nos degraus
com

129

tempo seco. Na estação quando está húmido. Nos degraus há


sempre grande conveniência, porque nos podemos sentar, mas
com humidade fazem reumático.
— Então, aqui — disse Meg batendo as palmas, depois de um
momento de alvoroço —, aqui está tudo prontinho! Que bom
aspecto que tem! Venha pai! Venha!
Desde que descobrira o conteúdo do cesto, Trotty ficara de pé
a olhá-la (e a falar também) numa atitude abstracta que
significava que, sendo ela embora o objectivo dos seus
pensamentos e dos seus olhares (excluindo até o bucho), ele
não pensava nela nem a via como ela ali estava naquele
momento, mas tinha perante os seus olhos um esboço
imaginário da cena ou do drama da sua vida futura.
Despertado, naquele momento, pelas suas incitações joviais,
repeliu um melancólico aceno de cabeça que se aproximava e
trotou para junto dela. No momento em que se curvava para se
sentar, o carrilhão soou.
— Amen! — disse Trotty, tirando o chapéu e olhando para ele.
— Amen, aos sinos, pai? — exclamou Meg.
— Eles surgem como uma graça, minha querida — disse Trotty,
sentando-se. — Diriam algo de bom, se pudessem, tenho a
certeza. Muita coisa agradável me têm eles dito.
— Os sinos, pai? — disse Meg a rir, enquanto colocava a bacia,
o garfo e a faca na frente dele. — Bem!
— A mim parece-me, pequerrucha — disse Trotty, começando
a comer com grande energia. — E onde é que está a diferença?
Se eu os ouço, que interessa que falem ou não? Olha, Deus te
abençoe, minha querida — disse Toby apontando para a torre
com o garfo e tornando-se mais animado sob a influência do
jantar —, por quantas vezes tenho ouvido os sinos dizerem:
«Toby Veck, Toby Veck, mantém a coragem, Toby! Toby
Veck,Toby Veck, mantém a coragem». Um milhão de vezes?
Mais!

130

— Bom, eu nunca ouvi! — exclamou Meg.


Ela tinha pensado no assunto vezes sem conta, porque era o
tema constante de Toby.
— Quando as coisas vão muito mal — disse Trotty —, mas
mesmo muito mal, sabes, quase o pior possível, então dizem:
«Toby Veck, Toby Veck, o trabalho não tarda, Toby!». Assim.
— E por fim vem, pai — disse Meg, com um toque de tristeza
na sua voz agradável.
— Sempre — respondeu o inconsciente Toby. — Nunca falha.
Enquanto durava esta conversa, Trotty nunca interrompera o
seu ataque à saborosa carne que tinha na frente, cortava e
comia, cortava e bebia, cortava e mastigava e debicava ora a
batata quente ora de novo o bucho, com um prazer untuoso e
persistente. Aconteceu porém que, olhando a rua em redor —
não fosse alguém espreitar a uma porta ou janela à procura
dum moço de recados —, ao completar a volta o seu olhar
pousou em Meg, que estava sentada na sua frente de braços
cruzados e ocupada apenas a observar a azáfama dele, com um
sorriso de felicidade.
— Oh, meu Deus perdoai-me! — disse Trotty, largando o garfo
e a faca. — Meg! Minha pomba! Porque é que não me fizeste
ver o estúpido que eu sou?
— Pai!
— Para aqui sentado — disse Trotty, numa explicação de
arrependimento —, a fartar-me, a empanturrar-me e a saciar-
me, e tu aí na minha frente, sem teres quebrado o jejum, nem
querendo, quando...
— Mas eu quebrei-o, pai — retorquiu a filha, a rir —, e quebrei-
o bem quebrado. Já jantei.

131

— Que disparate — disse Trotty. — Dois jantares no mesmo


dia! Não é possível! Podias dizer-me também que haverá dois
dias de Ano Novo ao mesmo tempo, ou que tive toda a vida
uma cabeça de ouro e nunca a mudei.
— Pai, apesar de tudo eu já comi o meu jantar — disse Meg,
aproximando-se dele. — E se continuar a comer o seu, dir-lhe-ei
como e onde e como lhe chegou o seu jantar e... e outra coisa
ainda.
Toby parecia ainda incrédulo, mas ela olhava para a cara dele
com os seus olhos transparentes, e pousando-lhe a mão no
ombro, fez-lhe sinal para que comesse enquanto a carne estava
quente. Trotty retomou então a faca e o garfo e deitou-se à
tarefa, mas muito mais lentamente do que antes e abanando a
cabeça, como se não estivesse nada satisfeito consigo.
— Eu jantei, pai — disse Meg, após uma certa hesitação —,
com... com o Richard. A hora de jantar dele foi cedo e como ele
trouxe o jantar dele quando foi ver-me, nós... nós comemos
juntos, pai.
Trotty bebeu um pouco de cerveja e deu um estalo com os
lábios. Depois disse: «Oh!», porque ela estava à espera.
— E o Richard diz, pai... — resumiu Meg e parou.
— O que é que o Richard diz, Meg? — perguntou Toby.
— O Richard diz, pai... — outra pausa.
— O Richard já anda a dizer isso há muito tempo — disse Toby.
— Diz ele, então, pai — prosseguiu Meg, levantando por fim os
olhos e falando numa voz trémula mas perfeitamente clara —,
que já lá vai quase outro ano e que é que ganhamos em esperar
de ano para ano, quando é tão improvável que alguma vez
estejamos melhor do que agora? Ele diz que agora somos
pobres, pai, mas somos jovens, e que os anos

132
farão de nós velhos antes que demos por isso. Ele diz que se
nós, gente da nossa condição, esperarmos até termos caminho
aberto, o caminho será bem estreito (será o caminho vulgar),
será a campa, pai.
Para um homem mais ousado que Trotty Veck, teria sido
necessário castigar bem a sua ousadia, para negar isto. Trotty
ficou quieto.
— E como é duro, pai, envelhecermos e morrermos a pensar
que nos poderíamos ter acarinhado e ajudado um ao outro!
Como é difícil, com vidas como as nossas, amarmo-nos e
sofrermos separados, vendo-nos mutuamente trabalhar,
modificar-nos, tornar-nos velhos e grisalhos. Ainda que
conseguisse ultrapassar isto e esquecê-lo (o que nunca faria), ó
meu querido pai, como seria duro ter um coração tão cheio
como o meu está agora e viver para vê-lo ser drenado gota a
gota, sem a compensação de um momento feliz dos da vida de
uma mulher, para me amparar e confortar e fazer-me sentir
melhor!
Trotty continuava sentado e em silêncio. Meg enxugou os
olhos e disse em tom mais alegre, ou seja, com um sorriso aqui,
e um soluço ali, e acolá um soluço e um sorriso ao mesmo
tempo:
— O Richard diz então, pai, que como o trabalho dele ficou
desde ontem assegurado por algum tempo e visto que eu o
amo e há três anos que não deixo de o amar (oh!, há mais
tempo! Se ele soubesse!...), poderia casar com ele no dia de
Ano Novo, o melhor e o mais feliz dos dias de todo o ano, diz
ele, e aquele que traz de certeza boa sorte. É um prazo curto,
não é, pai? Mas eu não tenho fortuna a assegurar, ou fatos de
casamento a fazer, como as grandes senhoras, não é, pai? Ele
disse tanta coisa e disse-as à sua maneira, em tom tão forte e
decidido, mas sempre tão amável e terno, que eu disse que
vinha falar consigo, pai. E como me pagaram esta manhã (sem
eu esperar) aquele

133

trabalho que eu fiz e como o pai ganhou tão pouco esta


semana, e como eu não podia deixar de desejar que houvesse
algo que fizesse deste dia como que um dia de festa, pai, bem
como um dia caro e feliz para mim, fiz um pequeno festim e
comprei-lhe isto para lhe fazer a surpresa.
— E vê lá como ele a deixa ali a arrefecer no degrau — disse
uma outra voz.
Era a voz do próprio Richard que tinha chegado até junto deles
sem darem por isso e ali se erguia perante pai e filha, olhando
para eles, com um rosto tão brilhante como o ferro em que o
seu enérgico martelo de forja malhava todos os dias. Era um
jovem bonito, bem constituído e vigoroso, de olhos brilhantes
como gotas chamejantes duma fornalha, cabelo negro que se
encaracolava disperso sobre a fronte morena e um sorriso... um
sorriso que confirmava o elogio de Meg acerca do seu estilo de
conversa.
— Vêem como ele o deixa arrefecer no degrau? — disse
Richard. — A Meg não sabe do que ele gosta. Não é ela que
sabe!
Trotty, todo ele cheio de entusiasmo e dinamismo, estendeu
imediatamente a mão a Richard e ia a dirigir-se-lhe com grande
pressa quando uma porta se abriu inesperadamente e um
lacaio quase meteu o pé no bucho.
— Saiam do caminho, vocês! Têm de estar sempre sentados
nos nossos degraus! Nunca chega a vez dos vizinhos, pois não?
Saem do caminho, ou não saem?
Falando com propriedade, aquela última pergunta era
irrelevante, porque eles já o tinham feito.
— Que é que há, que é que há? — inquiriu o senhor para quem
a porta fora aberta, saindo de casa num passo leve (esse
compromisso esquisito entre o andar e o meio trote), naquele
em que um cavalheiro já no doce outono da vida, usando botas
novas, relógio de corrente e

134

roupa branca lavada, pode sair de sua casa, não só sem


qualquer quebra da sua dignidade, mas com uma expressão de
quem tem importantes e rendosos negócios noutro lado.
— Que há? Que há?
— Estamos sempre a pedir-te e a rogar-te, pelas tuas pernas
curvadas, que deixes em paz os nossos degraus! — disse o
lacaio a Trotty Veck com grande ênfase. — Porque é que não os
deixas em paz? NÃO CONSEGUES deixá-los em paz?
— Pronto! Já chega! Já chega! — disse o cavalheiro. — Tu aí!
Moço! — apontou com a cabeça para Trotty Veck.
— Vem cá. Que é isso? É o teu jantar?
— Sim, senhor — disse Trotty, deixando-o lá atrás, a um canto.
— Não o deixes ali — exclamou o cavalheiro. — Trá-lo para
aqui. Então, é isto o teu jantar?
— É sim, senhor — repetiu Trotty, olhando, com olhar fixo e
boca aguada, para um último pedaço de bucho, que reservara
para uma última e deliciosa trincadela e que o cavalheiro virava
e revirava, agora com a ponta do garfo.
Dois outros senhores tinham saído com ele. Um era um
cavalheiro desanimado e de meia-idade, de trajo modesto e de
cara desconsolada, que mantinha permanentemente as mãos
nos bolsos, das suas estreitas calças sal e pimenta, bolsos muito
largos e dobrados para fora do fato. Não estava
particularmente bem escovado e lavado. O outro era um
cavalheiro bem constituído, insinuante, bem arranjado, de
casaco azul, com botões brilhantes e de gravata branca. Este
cavalheiro tinha a cara muito vermelha, como se uma porção
indevida do sangue do seu corpo tivesse sido espremida para a
cabeça, o que talvez explicasse o facto de ele ter o coração
bastante frio.

135

Aquele que tinha a carne de Toby na ponta do garfo tratou o


primeiro pelo nome de Filer e ambos se aproximaram. Como o
senhor Filer era muito míope, viu-se obrigado a aproximar-se
tanto do resto do jantar de Toby, para poder ver o que era, que
o coração de Toby lhe veio à boca. Mas o senhor Filer não o
comeu.
— Isto corresponde à descrição de um alimento de origem
animal, Alderman — disse Filer, dando-lhe pequenas pancadas
com uma lapiseira —, vulgarmente conhecido entre a classe
operária deste país como bucho.
Alderman riu e pestanejou, porque Alderman Cute era um tipo
alegre. E um tipo manhoso, também! Um tipo conhecedor.
Pronto para tudo! Não era tipo que se deixasse enganar. Sabia
ler nos corações! Cute conhecia-os. Acredito!
— Mas quem é que come bucho? — disse Filer olhando em
volta. — O bucho é, sem excepção, o menos económico e o
mais ruinoso artigo de consumo que os mercadores deste país
podem exibir. Descobriu-se que a perda numa libra de tripas,
ao cozer, era sete oitavos de um quinto maior do que qualquer
outra substância animal, fosse ela qual fosse. O bucho é mais
dispendioso do que ananás de estufa. Tendo em conta o
número de animais abatidos anualmente, apenas dentro das
tabelas de mortalidade; e fazendo uma estimativa, por baixo,
da quantidade de bucho que conteriam as carcaças desses
animais, razoavelmente bem abatidos, acho que o desperdício
dessa quantidade de bucho, se cozido, alimentaria uma
guarnição de quinhentos homens durante cinco meses de trinta
e um dias e ainda mais Fevereiro. Que desperdício, que
desperdício!
Trotty estava espantado e as pernas tremiam-lhe sob o seu
peso. Parecia que tinha feito morrer de fome uma guarnição de
quinhentos homens apenas por sua culpa.

136

— Quem é que come bucho? — disse o senhor Filer,


amigavelmente. — Quem é que come bucho?
Trotty fez uma triste vénia.
— És tu, não és? — disse o senhor Filer. — Digo-te uma coisa.
Tiras o bucho da boca de viúvas e órfãos, meu amigo.
— Espero que não, senhor — disse Trotty, brandamente. —
Antes queria morrer à míngua!
— Divide a quantidade de bucho já mencionada, Alderman —
disse Filer —, pelo número calculado de viúvas e órfãos
existentes e o resultado será um penny de bucho a cada um.
Nem uma migalha ficava para este homem.
Consequentemente, ele é um ladrão.
Trotty estava tão sentido que nem o preocupou ver Alderman
acabar com o bucho. De certo modo até era um alívio ver-se
livre dele.
— E tu, que dizes? — perguntou Alderman jocosamente ao
cavalheiro de cara vermelha e casaco azul. — Ouviste o nosso
amigo Filer. Que dizes tu?
— Que é que há a dizer? — retorquiu o cavalheiro. — Que é
que se pode dizer? Quem é que pode interessar-se por um
indivíduo como este — referia-se a Trotty —, em tempos tão
degenerados como estes? Olhem para ele. Que espécime! Os
bons velhos tempos, os grandes velhos tempos, os formidáveis
velhos tempos! — Aqueles, sim, eram tempos de camponeses
intrépidos, e de tudo o mais. Aqueles eram realmente tempos
para tudo. Hoje em dia, tudo acabou. Ah! — suspirou o senhor
de rosto vermelho. — Os bons velhos tempos, os bons velhos
tempos!
O cavalheiro não especificou a que tempos se referia
especialmente, nem sequer disse que se opunha aos tempos
presentes, por uma desinteressada consciência de que, ao
trazê-lo cá, nada de muito importante tinham feito.

137
— Os bons velhos tempos, os bons velhos tempos — repetia o
cavalheiro. — Que tempos aqueles! Foram únicos. Não vale a
pena falar de outros, ou discutir o que as pessoas são hoje. Não
se chama a isto tempos, pois não? Eu cá não. Deitem uma
olhadela aos trajos do Strutt e vejam o que era um moço,
nesses bons velhos reinados ingleses.
— Não tinha, nos seus melhores momentos, uma camisa para o
cobrir nem uma meia para calçar e em toda a Inglaterra mal
achava um legume para comer — disse o senhor Filer. — Posso
prová-lo com gráficos.
Mas mesmo assim o cavalheiro de cara vermelha enaltecia os
bons velhos tempos, os grandes velhos tempos, os formidáveis
velhos tempos. Não importava o que outra pessoa dissesse, ele
continuava a repetir numa fórmula estabelecida as palavras
que se lhe referiam, qual infeliz esquilo girando e girando na
sua gaiola rotativa, tocando no mecanismo e tendo do seu
segredo possivelmente a mesma percepção que este senhor de
cara vermelha tinha do milénio passado.
Pode ser que a fé do pobre Trotty naqueles velhos tempos
muito vagos não estivesse completamente destruída, porque
também ele naquele momento se sentia bastante vago. Uma
coisa, porém, era para ele clara, no meio da sua desgraça: por
mais que aqueles cavalheiros pudessem diferir nos seus
pormenores, as suas dúvidas daquela manhã e de tantas outras
manhãs eram bem fundadas.
«Não, não. Não podemos andar bem nem agir bem», pensou
Trotty desesperado. «Não há em nós algum bem. Nascemos
maus!»
Mas Trotty tinha um coração de pai dentro de si e, apesar da
sua decisão, tinha caído em si e não podia suportar que Meg,
no rubor da sua breve alegria, visse a sua sina lida por aqueles
avisados senhores. «Deus a ajude», pensou o pobre Trotty. «Em
breve vai ficar

138

a sabê-lo.» Por isso, fez sinal ansiosamente ao jovem ferreiro


para que a levasse, mas ele estava tão entretido a falar com ela
baixinho, a curta distância, que só se apercebeu daquele desejo
ao mesmo tempo que Alderman Cute. O Alderman ainda não
dissera o que tinha a dizer, mas também ele era um filósofo,
ainda que prático (muito prático até), e, como não tinha a
mínima intenção de perder qualquer porção da assistência,
gritou: «Alto!».
— Como vocês sabem — disse Alderman dirigindo-se aos seus
dois amigos, com um sorriso de autocomplacência no rosto,
que já lhe era habitual —, eu sou um homem simples e prático
e deito-me ao trabalho de maneira simples e prática. É essa a
minha maneira. Não há qualquer mistério ou dificuldade na
minha maneira de lidar com esta gente, se os compreendermos
e formos capazes de lhes falar na sua própria linguagem. Tu,
moço! Não me digas, a mim, meu amigo, ou a qualquer outro,
que nem sempre tiveste comida suficiente e da melhor, porque
eu sei muito bem. Já provei do teu bucho, sabes, e de mim não
podes caçoar. Sabes o que quer dizer «caçoar», hem? É a
palavra certa, não é? Ah, ah, ah! Valha-vos Deus — disse
Alderman, virando-se novamente para os seus amigos —, é a
coisa mais fácil do mundo lidar com este tipo de gente, se os
compreendermos.
Aquele Alderman Cute era famoso pelo trato com gente do
povo! Nunca perdia a paciência com eles! Um cavalheiro
acessível, afável, brincalhão e sábio!
— Sabes, meu amigo — continuou Alderman —, diz-se muito
disparate acerca da necessidade... de «estar em apuros»,
percebes, é essa a frase não é? Ah, ah, ah! E eu tenciono
desmascará-lo. Está em moda uma certa hipocrisia em torno da
fome e eu tenciono desmascará-la. Só isso! Valha-vos Deus —
disse Alderman, virando-se para os seus amigos

139

novamente —, entre este tipo de gente pode desmascarar-se


tudo, se se souber como fazê-lo.
Trotty pegou na mão de Meg e enfiou-a no seu braço. Não
parecia, porém, saber o que estava a fazer.
— É a tua filha, hem? — disse Alderman, acariciando-a
familiarmente debaixo do queixo.
Sempre afável com a classe trabalhadora, aquele Alderman
Cute! Sabia o que lhes agradava! Nada orgulhoso!
— Onde está a mãe dela? — perguntou o respeitável senhor.
— Morreu — disse Toby. — A mãe dela lavava e passava roupa
e foi chamada ao Céu quando ela nasceu.
— Não foi para lavar e passar lá, creio eu — respondeu
Alderman jovialmente.
Toby poderia ou não ter conseguido separar a situação da sua
mulher no Céu das suas antigas tarefas, mas pergunta-se: se a
senhora Alderman a representaria como possuindo lá qualquer
cargo ou estado?
— E tu andas a fazer-lhe a corte, não é? — disse o senhor Cute
para o jovem ferreiro.
— Ando — respondeu rapidamente Richard, que se sentiu
picado com a pergunta. — E vamos casar no dia de Ano Novo.
— O quê!? — gritou Filer em tom agudo. — Casar!
— Sim, patrão, estamos a pensar nisso — disse Richard. —
Estamos com bastante pressa, sabe? Isto é já para o caso de
estar a pensar em destruí-lo.
— Ah! — exclamou Filer num rugido. — De facto isso é de
destruir, Alderman, e tu vais fazer alguma coisa. Casar! Casar! A
ignorância dos princípios básicos da economia política, por
parte desta gente, a sua imprevidência, a sua maldade, brada
aos Céus! Basta... olhem só para este casal, olhem!

140

E então? Valia a pena olhar para eles. E o casamento parecia


uma coisa tão natural e justa, como necessidade eles tinham de
os contemplar.
— Pode um homem viver tanto como Matusalém — disse o
senhor Filler —, e trabalhar toda a sua vida em benefício desta
gente, pode amontoar números e factos, números e factos,
números e factos aos montes, mas não pode ter esperança de
os persuadir de que não têm direito nem razão de se casarem,
nem de que não têm direito nem razão de ter nascido. E isso
sabemos nós que não têm. De há muito que reduzimos isso a
uma certeza matemática!
Alderman Cute estava muitíssimo divertido e levou o indicador
à aba do nariz como se dissesse aos dois amigos: «Olhem para
mim! Ponham os olhos num homem prático!», e chamou Meg
para junto dele.
— Vem cá, pequena! — disse Alderman Cute.
O sangue jovem do namorado tinha-lhe subido de raiva, nos
minutos anteriores e estava disposto a não a deixar ir; mas,
dominando-se, deu um passo em frente quando Meg se
aproximou e ficou ao lado dela. Trotty manteve a mão dela no
seu braço, mas olhava de rosto para rosto, tão desnorteado
como um homem adormecido, em sonhos.
— Agora, minha pequena, vou dar-te um ou dois bons
conselhos — disse Alderman, no seu modo brando. — Está no
meu papel dar conselhos, sabes, porque sou um magistrado.
Sabes que sou um magistrado, não sabes?
Meg respondeu timidamente: «Sim». Mas toda a gente sabia
que Alderman Cute era magistrado! E que magistrado tão
activo! Quem era tido pela opinião pública por mais brilhante
que Cute?!
— Dizes que vais casar-te — continuou Alderman. —

141

Coisa muito imprópria e grosseira para uma pessoa do teu


sexo! Mas deixemos isso. Depois de casada vais ter discussões
com o teu marido e transformar-te-ás numa esposa infeliz.
Podes pensar que não, mas assim vai ser, porque assim to digo.
Agora faço-te um aviso justo: decidi destruir as esposas
infelizes. Portanto, que não venhas à minha presença. Vais ter
filhos... rapazes. Esses rapazes crescerão maus, claro, e andarão
à solta pelas ruas, sem meias nem sapatos. Toma cuidado,
minha jovem amiga! Condená-los-ei sumariamente, um a um,
porque estou decidido a destruir rapazes sem sapatos nem
meias. O teu marido morrerá provavelmente jovem e deixar-te-
á com um bebé. Serás expulsa da casa e vaguearás pelas ruas.
Não passes junto de mim, minha querida, porque estou
decidido a destruir todas as mães que vagueiam. Estou decidido
a destruir todas as espécies e tipos de mães jovens. Não penses
alegar como desculpa a doença e as crianças. Comigo não!
Porque estou disposto a acabar com todos os doentes e
crianças (espero que conheças o serviço religioso, mas receio
bem que não)! E se tentares, ingrata, desesperada, impiedosa e
fraudulentamente afogar-te, ou enforcar-te não terei de ti
qualquer piedade, porque decidi destruir todos os suicidas! Se
há alguma coisa — disse Alderman com o seu sorriso de auto-
satisfação — da qual possa dizer que estou decidido mais do
que a qualquer outra, essa é destruir o suicídio. Por isso não o
experimentes. É assim que se diz não é? Ah, ah! Agora
entendemo-nos.
Toby não sabia se devia estar angustiado ou contente, vendo
Meg ficar mortalmente pálida e largar a mão do namorado.
— Quanto a ti, meu néscio — disse Alderman, virando-se para
o jovem ferreiro ainda com mais jovialidade e lhaneza —, para
que é que pensas que te vais casar? Para que te queres casar,
meu palerma? Se

142
eu fosse um tipo jovem e forte como tu, tinha vergonha de ser
tão maricas que me fosse coser às saias duma mulher! Ela vai
fazer-se uma velha, antes que tu sejas um homem de meia-
idade! E que bonita figura vais fazer então com uma mulher
desmazelada e um rancho de filhos escanzelados, atrás de ti,
por onde quer que vás!
Oh, ele sabia bem como meter a ridículo a gente do povo,
aquele Alderman Cute!
— Pronto! Muda de opinião — disse Alderman — e arrepende-
te. Não faças o disparate de casar no dia de Ano Novo. Antes do
próximo dia de Ano Novo já deves pensar de maneira muito
diferente. Um jovem bonito como tu, com todas as raparigas
atrás de ti. Pronto! Vai-te lá embora!
Eles lá se foram. Não de braço dado, ou de mão na mão, ou
trocando olhares brilhantes, mas ela lacrimosa e ele triste e
cabisbaixo. Eram estes, então, os corações que tinham feito
Toby recuperar da sua fraqueza, ultimamente? Não, não. O
Alderman (abençoado seja!) tinha-
-os deitado abaixo.
— Já que aqui estás — disse Alderman a Toby —, levas-me uma
carta. Consegues ser rápido? És velho.
Toby, que tinha estado muito estupidamente a seguir Meg com
o olhar, encontrou maneira de murmurar que era muito rápido
e muito forte.
— Que idade tens? — indagou Alderman.
— Tenho quase sessenta, senhor — disse Toby.
— Oh, este homem já ultrapassou de longe a média da idade,
sabem — exclamou o senhor Filer, como se isto fosse de mais
para o que a sua paciência ainda podia suportar.
— Acho que estou a mais, senhor — disse Toby. — Esta manhã
bem tive dúvidas. Valha-me Deus!

143

Alderman atalhou, dando-lhe a carta que tinha no bolso. Toby


devia também receber um xelim; mas como o senhor Filer
demonstrou claramente que nesse caso ele roubaria um
determinado número de pessoas em nove pennies e meio cada,
recebeu apenas seis pennies e achou-se assim muito bem pago.
Alderman deu então o braço aos seus amigos e afastou-se leve
que nem uma pena; mas imediatamente voltou atrás, sozinho,
como se se tivesse esquecido de dizer alguma coisa.
— Moço de recados! — disse Alderman.
— Sim, senhor? — respondeu Toby.
— Toma cuidado com a tua filha. É demasiado bonita.
«Até a sua beleza é roubada a alguém, acho eu», pensou Toby,
olhando para os seis pennies que tinha na mão e pensando no
bucho. «Ela deve ter roubado quinhentas senhoras, um sopro
de beleza a cada uma, não me admira. É horrível!»
— Ela é demasiado bonita, meu velho — repetiu Alderman. —
O mais certo é acabar mal, estou mesmo a ver. Toma nota no
que eu digo. Olha por ela! — E dizendo aquilo afastou-se
novamente.
— De toda a maneira está mal. Está sempre mal! — disse
Trotty torcendo as mãos. — Nascemos maus. Não há aqui nada
a fazer!
Os sinos começaram a badalar sobre ele, quando acabou de
proferir estas palavras. Plenos, fortes e sonoros... mas sem
encorajamento. Nem pitada.
— O som mudou — exclamou o velho, ao ouvi-los. — Não há
nele uma palavra sequer de tudo aquilo que imaginei. E porque
é que haveria? Nada tenho a ver com o Ano Novo, nem com o
velho. Quero é morrer!
Mesmo assim os sinos, repicando as suas variações, faziam o
próprio

144

ar girar. Destruam-nos, destruam-nos! Os bons velhos tempos!


Os factos e os números, os factos e os números! Destruam-nos,
destruam-
-nos! Se alguma coisa eles diziam era isto, e disseram-no até
fazer titubear o juízo de Toby.
Apertou a cabeça tonta entre as mãos, como para impedir que
estourasse. Essa foi uma atitude oportuna, porque numa delas
deu com a carta e, lembrando-se assim da sua tarefa, começou
mecanicamente no seu trote habitual e afastou-se a trotar.

Página em branco

Segundo quarto
A carta que Toby recebera de Alderman Cute era dirigida a um
homem importante, na zona importante da cidade. Na zona
mais importante da cidade. Devia ser a parte mais importante
da cidade, pois que era frequentemente chamada «o mundo»
pelos seus habitantes.
A carta parecia realmente mais pesada, na mão de Toby, do
que qualquer outra carta. Não porque Alderman a tivesse
selado com um grande brasão e sem lacre, mas pelo pesado
nome no sobrescrito e pelo peso de ouro e prata que a ele
estava ligado.
«Como é diferente de nós!», pensou Toby com toda a
simplicidade e sinceridade, ao olhar o endereço. «Se nas listas
de óbitos dividirem as tartarugas vivas pelo número de
senhores que podem comprá-las, ele não rouba o quinhão dele
a ninguém! E quanto a tirar o bucho da boca de alguém... nem
pensar!»
E, com a reverência devida a tão excelsa personagem, Toby
interpôs a ponta do seu avental entre os seus dedos e a carta.
— Os filhos dele — e ao dizer isto uma névoa subiu-lhe aos
olhos —, as suas filhas... poderão ser conquistadas e desposar
cavalheiros, podem ser mães e esposas felizes, podem ser
lindas como a minha querida M... e...
Não conseguiu acabar o nome. A última letra ficou-lhe na
garganta como se fosse do tamanho do alfabeto.

147
«Não faz mal», pensou Trotty. «Eu sei o que quero dizer e isso
basta-me.» E, ruminando estas palavras de conformação,
continuou a trotar.
Havia naquele dia uma forte geada. O ar estava revigorante,
fresco e transparente. O Sol de Inverno, ainda que sem força
para aquecer, espreitava radiosamente o gelo, que não
conseguia derreter, fazendo-o resplandecer. Noutra altura
Trotty poderia ter extraído do Sol de Inverno uma lição sobre o
homem pobre, mas já ultrapassara essa fase.
Aquele dia ainda era de ano velho. O ano paciente suportara as
censuras e os desmandos dos seus caluniadores e cumprira
fielmente a sua missão. Primavera, Verão, Outono e Inverno.
Trabalhara durante toda a sua vida e pousava agora a cabeça
para morrer. Ele próprio já fora de qualquer esperança, de
qualquer impulso forte, de qualquer felicidade activa, mas
ainda activo mensageiro de muitas alegrias para outros,
apelava no seu declínio para que lembrassem os seus dias de
labuta e as suas horas de paciência e para morrer em paz.
Trotty podia ter lido no ano que morria a alegoria do homem
pobre, mas já ultrapassara essa fase.
E seria só ele? Ou teria o mesmo apelo sido feito em vão,
durante setenta anos, aos trabalhadores ingleses?!
As ruas estavam cheias de movimento e as lojas estavam
alegremente decoradas. O novo ano era esperado como um
novo herdeiro para o mundo, com presentes, boas-vindas e
alegria. Havia livros e brinquedos para o Ano Novo, brilhantes
adornos para o Ano Novo, vestidos para o Ano Novo, projectos
de sorte para o Ano Novo e novas invenções para passar o
tempo. A sua vida estava parcelada em almanaques e agendas,
já naquele momento se sabia com antecedência das suas luas,
das estrelas e das marés, todo o funcionamento das
estações,dos dias e das noites, estava calculado com a mesma
precisão

148

com que o senhor Filer fazia contas com homens é mulheres.


O Ano Novo, o Ano Novo. Ano Novo por toda a parte! Já se
olhava o ano velho como se morto estivesse e os seus
resultados vendiam-se baratos, como os haveres de um
marinheiro afogado, que ficassem a bordo. As suas modas eram
as do ano passado e eram sacrificadas já antes dele expirar. Os
seus tesouros eram mero lixo comparados com as riquezas do
seu sucessor que agora ia nascer!
Trotty não tinha, pensava ele, qualquer quinhão, no velho ou
no novo ano.
«Destruam-nos, destruam-nos! Factos e números, factos e
números! Bons velhos tempos, bons velhos tempos! Destruam-
nos, destruam-nos!» Aquela era a medida do seu trote e a mais
nenhuma se adaptaria.
Mas mesmo aquela, melancólica como era, o conduziu a seu
tempo ao fim da caminhada: a mansão de Sir Joseph Bowley,
membro do Parlamento.
A porta foi aberta por um lacaio. E que lacaio! Não do tipo de
Toby. Aquilo era outra coisa! A sua função era levar recados,
porém não era a mesma de Toby.
Este lacaio sofreu fortes palpitações antes de poder falar,
porque se cansara saindo despreocupadamente da sua cadeira,
sem ter tido tempo de pôr primeiro as ideias em ordem.
Quando conseguiu encontrar a voz — o que lhe levou certo
tempo, devido ao caminho que ela tinha de percorrer,
escondida sob uma carga de carne —, disse num grosso
murmúrio:
— De quem é?
Toby respondeu-lhe.
— Vais lá levá-lo tu — disse o lacaio, apontando para uma sala
ao fundo dum longo corredor, que se estendia a partir dum
átrio. — Neste dia do ano, entra tudo. Vens mesmo a tempo,
porque a carruagem está

149

já à porta e eles só vêm à cidade por umas horas e de


propósito.
Toby limpou os pés (que estavam já completamente secos)
com grande cuidado e tomou o caminho que lhe fora indicado,
observando, à medida que caminhava, que era uma enorme
casa, mas silenciosa e com os móveis cobertos como se a
família estivesse para o campo. Bateu à porta e lá de dentro
responderam-lhe que entrasse; assim fez e encontrou-se numa
espaçosa biblioteca, onde a uma mesa coberta de dossiers e de
papéis estavam uma imponente senhora de touca e um senhor
não muito imponente vestido de preto, que escrevia o que ela
ditava, enquanto outro senhor mais velho e muito mais altivo,
cujo chapéu e bengala estavam pousados sobre a mesa,
passeava de um lado para o outro, com uma mão no peito,
olhando complacentemente de vez em quando para o seu
retrato, em tamanho natural, em tamanho mesmo natural, que
estava suspenso sobre o fogão de sala.
— Que é isso? — disse este último senhor. — Senhor Fish, pode
ter a bondade de atender?
O senhor Fish pediu desculpa e, tirando a carta a Toby,
entregou-a com grande deferência.
— É do senhor Alderman Cute, Sir Joseph.
— É tudo? Não trazes mais nada, moço? — indagou Sir Joseph.
Toby respondeu que não.
— Não trazes nenhuma conta, nem nenhum pedido de
qualquer tipo dirigido a mim (o meu nome é Sir Joseph Bowley)
e da parte seja de quem for? — disse Sir Joseph. — Se o tens
apresenta-mo. Está ali um livro de cheques ao lado do senhor
Fish. Não quero deixar nada para o Ano Novo. Qualquer espécie
de conta é paga nesta casa no fim do ano velho, para que se a
morte viesse, vie... —
— Cortar — sugeriu o senhor Fish.

150

— Desfazer, senhor — replicou Sir Joseph, com grande


aspereza —, a corda da existência, os meus negócios seriam
encontrados, assim o espero, em boa ordem.
— Meu caro Sir Joseph! — disse a senhora, que era muito mais
nova do que o cavalheiro. — Mas que horror!
— Minha cara Lady Bowley — respondeu Sir Joseph,
estendendo-se de vez em quando na profundidade das suas
observações —, nesta altura do ano devemos pensar em... em
nós. Devemos olhar para as nossas... as nossas contas.
Devíamos sentir que cada volver de um período tão recheado
de acontecimentos no capítulo das transacções humanas
envolve um tema de profunda gravidade entre o homem e o
seu... e o seu banqueiro.
Sir Joseph pronunciou estas palavras como se sentisse a
profunda moralidade do que estava a dizer e como se desejasse
que até mesmo Trotty pudesse ter a oportunidade de se
valorizar com aquela prelecção. Possivelmente já tinha esse fim
em vista quando se absteve de quebrar o selo da carta e ao
dizer a Trotty que esperasse um momento.
— Minha senhora, desejáveis que o senhor Fish mandasse
dizer que... — notou Sir Joseph.
— Creio que o senhor Fish já disse — respondeu a senhora,
deitando uma olhadela à carta. — Mas, por minha fé, Sir
Joseph, parece-me que não posso deixá-la seguir. É-me tão
querida.
— O quê? — inquiriu Sir Joseph.
— A caridade, meu amor. Só concedem dois votos por uma
contribuição de cinco libras. Verdadeiramente monstruoso!
— Minha querida Lady Bowley — retorquiu Sir Joseph —,
surpreendeis-
-me. Será o prazer do sentimento em proporção ao número de
votos, ou será para um espírito bem formado proporcional ao
número de candida-

151

tos e o estado de espírito geral a que o facto de angariar votos


os reduz? Será que não há qualquer entusiasmo e do melhor no
facto de se dispor apenas de dois votos num conjunto de
cinquenta pessoas?
— Para mim não, confesso — respondeu a senhora. — É
enfadonho e além disso uma pessoa pode fazer bem aos seus
conhecidos, mas vós sois o Amigo dos Pobres, sabeis, Sir
Joseph. Vós pensais de maneira diferente.
— Eu sou o Amigo dos Pobres — observou Sir Joseph, deitando
um olhar ao pobre ali presente. —Assim posso ser chamado
sarcasticamente. Assim sou chamado sarcasticamente. Mas
outro título não peço.
«Deus o abençoe, nobre homem!», pensou Trotty.
— Por exemplo, eu não concordo com este Cute — disse Sir
Joseph, mostrando a carta. — Não concordo com o partido do
Filer. Não concordo com nenhum partido. O homem pobre,
meu amigo, não tem nada a ver com coisas dessas. O homem
pobre, meu amigo, dentro da minha zona, é assunto que me diz
respeito. Nenhum homem ou grupo de homens tem o direito
de interferir entre mim e o meu amigo. Esta é a posição que eu
assumo. E assumo uma... uma atitude paternal para com o meu
amigo. Eu digo: «Meu bom amigo, tratar-te-ei paternalmente».
Toby escutava com grande seriedade e começou a sentir-se
mais à vontade.
— Só tens a ver, meu amigo — prosseguiu Sir Joseph, olhando
abstractamente para Toby —, na vida só tens que ver comigo.
Não tens de te preocupar a pensar seja no que for. Eu pensarei
por ti, eu sei o que é o teu bem. Eu sou o teu eterno pai. Assim
é a vontade da Providência omnisciente! O desígnio da tua
criação é assim, não que te embriagues, que comas e bebas
excessivamente e que associes brutalmente a comida a todas as
tuas alegrias — Toby pensou com
152

remorso no bucho —, mas que sintas a dignidade do trabalho.


Caminha direito ao ar alegre da manhã e... e espera aí. Vive na
dificuldade e na temperança, sê respeitador, exercita a tua
autoanulação, cria a tua família com pouco mais que nada,
paga a tua renda tão regularmente como batem as badaladas
do relógio, sê pontual nos teus negócios (e dou-te um bom
exemplo: poderás ver o meu secretário particular, sempre com
um cofre na sua frente), e podes confiar em mim como teu
amigo e pai.
— Belos filhos, na verdade, Sir Joseph! — disse a senhora, com
um estremecimento. — Reumatismos e febres, pernas aleijadas
e asmas e todo o género de horrores!
— Minha senhora — replicou Sir Joseph, solenemente —, não
só eu sou o amigo e pai dos pobres, não só de mim é que têm
de receber o incentivo, mas no dia do pagamento do trimestre
ele pôr-se-á em contacto com o senhor Fish. Todos os dias de
Ano Novo, eu e os meus amigos beberemos à sua saúde. Uma
vez em cada ano eu e os meus amigos a ele nos dirigiremos com
a maior ternura. Talvez até uma vez na vida ele receba (em
público, na presença da alta sociedade inglesa) uma bagatela
de um amigo. E quando, já abandonado por estes estímulos e
pela dignidade do trabalho, baixe à sua confortável campa,
então, minha senhora — aqui Sir Joseph assoou-se —, serei, da
mesma forma, um amigo e um pai para os seus filhos.
Toby estava muitíssimo comovido.
— Oh, Sir Joseph, tendes uma família agradecida! — exclamou
a esposa.
— Minha senhora — disse Sir Joseph em tom majestático —, a
ingratidão é o notório pecado desta classe. Não espero outra
paga.

153

«Ah, nascemos maus!», pensou Toby. «Nada há que nos


abrande.»
— O que é humano fazer-se, eu faço-o — prosseguiu Sir
Joseph. — Cumpro o meu dever como amigo e pai dos pobres e
empenho-me em educá-
-los, inculcando-lhes em todas as ocasiões a grande lição de
moral de que essa classe precisa e que é a completa
dependência da minha pessoa. Nada tem a ver com... com eles
próprios. Se pessoas más e insidiosas lhes disserem o contrário
e se tornarem impacientes e insatisfeitos e culpados de
insubordinação e de negra ingratidão (o que certamente é o
caso), mesmo assim sou seu amigo e pai. Assim está designado.
É esta a natureza das coisas.
Com este espírito, abriu a carta de Alderman e leu.
— Muito delicada e atenciosa, com certeza! — exclamou Sir
Joseph. — Minha senhora, o Alderman tem a bondade de me
lembrar que teve «a subida honra» (ele é muito bom) de me
encontrar em casa do nosso amigo comum, o banqueiro; e faz-
me o favor de me perguntar se me agradaria destruir o Will
Fern.
— Agradaria muito — respondeu Lady Bowley. — Esse é o pior
de todos eles! Deve ter cometido um roubo, não foi?
— Oh, não — disse Sir Joseph referindo-se à carta. — Não foi
bem. Foi quase. Não foi bem. Veio para Londres, segundo
parece, procurar emprego (tentando melhorar a vida, segundo
ele diz) e, ao ser encontrado de noite a dormir num alpendre,
foi preso preventivamente e levado no dia seguinte à presença
de Alderman. O Alderman observa, e muito bem, que está
decidido a pôr fim a este estado de coisas e que se for do meu
agrado aniquilaremos o Will Fern. Pela parte dele agrada-lhe.
— Que ele sirva de exemplo, sem dúvida — respondeu a
senhora. — No Inverno passado, quando ensinei recorte e furos
de ilhó aos homens e

154

rapazes da aldeia, como um belo entretém para o serão, e pus


em música no novo sistema os seguintes versos:

O let us love our occupations


Bless the squire and his relations
Live upon our daily rations
And always know our proper stations
(Nota da tradutora: Amemos as nossas tarefas / Bendigamos o
morgado e os seus parentes / Vivamos com o nosso quinhão
diário / E conheçamos sempre o nosso lugar).

para eles cantarem, esse mesmo Fern (agora me lembro dele)


levou a mão ao chapéu e disse: «Peço-lhe humildemente
perdão, minha senhora, mas não serei eu diferente duma
mocetona?». Já esperava aquilo, claro. Quem é que pode
esperar outra coisa senão insolência e ingratidão daquele tipo
de gente? Mas isso não vem agora ao caso. Sir Joseph! Que ele
sirva de exemplo!
— Hum! — tossiu Sir Joseph. — Senhor Fish, quer ter a
bondade de tomar nota...
Imediatamente o senhor Fish pegou na caneta e escreveu o
que Sir Joseph ditou.
— Particular. Meu caro senhor. Agradeço-lhe profundamente a
sua gentileza, acerca do assunto dum tal William Fern, do qual,
lamento acrescentar, nada de favorável tenho a dizer. Sempre
me considerei uniformemente como seu pai e amigo, mas
retribuiu-me (é um caso comum, lamento dizê-lo) com
ingratidão e uma oposição constante aos meus planos.É um
espírito rebelde e turbulento. O seu carácter não suportará
uma investigação. Nada o convencerá a ser feliz quando podia
sê-lo. Nestas circunstâncias, parece-me, tenho para mim que,
quando ele voltar à sua presença (como me informou que fará
amanhã, durante o seu inquérito e creio que nesse ponto se
pode confiar nele),

155

a sua condenação, por um pequeno período, por


vagabundagem, seria um serviço prestado à sociedade e seria
um bom exemplo para o país onde (por aqueles que, segundo
bons e maus relatórios, sabemos serem os amigos e os pais dos
pobres, bem como e em vista disso duma maneira geral pela
própria classe transviada) os exemplos são tão necessários. E
sou de vossa excelência, etc, etc.
»Parece — notou Sir Joseph depois de assinar a carta e quando
o senhor Fish estava a selá-la — realmente que assim estava
prescrito. Ao terminar o ano, saldo as minhas contas e fecho o
balanço, até com William Fern!
Trotty, que de há muito era reincidente, e estava muito
abatido, deu um passo em frente com uma cara lastimável,
para aceitar a carta.
— Com os meus cumprimentos e agradecimentos — disse Sir
Joseph. — Ponto final!
— Ponto final! — repetiu o senhor Fish.
— Talvez tenhas ouvido — disse Sir Joseph profeticamente —,
algumas observações que fui levado a fazer atendendo ao
solene período em que estamos e ao dever que nos é imposto
de resolvermos os nossos assuntos e de estarmos preparados.
Já viste que eu não me escudo por detrás da minha elevada
posição social, mas que o senhor Fish, aquele senhor, tem à
mão um livro de cheques e está aqui para me possibilitar
recomeçar do princípio e entrar com as contas em dia na nova
época que temos na nossa frente. E tu, meu amigo, podes jurar
sobre o teu coração que também fizeste os teus preparativos
para o novo ano?
— Receio bem, senhor — gaguejou Trotty, olhando para ele
humildemente —, receio estar um pou... pouco atrasado em
relação ao mundo.
— Atrasado em relação ao mundo?! — repetiu Sir Joseph
Bowley, num tom terrivelmente distinto.

156
— Receio, senhor — titubeou Trotty —, que haja aí uns dez ou
doze xelins em atraso à senhora Chickens-talker.
— À senhora Chickenstalker! — repetiu Sir Joseph no mesmo
tom que anteriormente.
— Numa loja, senhor — exclamou Toby —, de comércio geral.
E também ai... algum dinheiro de rendas. Muito pouco. Não
devíamos estar a dever, eu sei, mas temos sido realmente
obrigados a isso pelas dificuldades!
Sir Joseph olhou para a sua esposa e para o senhor Fish e para
Trotty, uns após outros, por duas vezes. Fez depois um gesto
desesperançado com as duas mãos ao mesmo tempo, como se
desistisse de tudo ao mesmo tempo.
— Como pode um homem, mesmo entre esta raça de
imprevidentes e de impossíveis, um velho, um homem já
grisalho, olhar o ano novo de frente com os seus assuntos neste
estado. Como pode ele deitar-se à noite na sua cama e
levantar-se de manhã e... Pronto! — disse, virando as costas a
Trotty. — Leva a carta. Leva a carta!
— Eu desejava ardentemente que as coisas se passassem
doutra maneira — disse Trotty, ansioso por se desculpar. —
Temos tentado duramente.
Com Sir Joseph sempre a repetir «Leva a carta, leva a carta!», o
senhor Fish não só a repetir a mesma coisa mas reforçando o
pedido empurrando o portador para a porta, nada mais lhe
restava que fazer uma vénia e sair daquela casa. Na rua puxou
o velho chapéu para a frente para esconder o desgosto que
sentia de não ter nada a que se agarrar fosse onde fosse, no
ano novo.
Nem sequer levantou o chapéu para olhar para o campanário
quando, de regresso, chegou junto da velha igreja. Por hábito,
parou ali por um momento e apercebeu-se de que estava a
escurecer e de que acima dele se erguia o campanário no meio
do ar fusco. Sabia também que os sinos

157

iriam repicar imediatamente e que na sua imaginação eles lhe


soavam como vozes nas nuvens. Mas ainda mais se apressou
para entregar a carta a Alderman e sair dali antes que eles
começassem, porque temia ouvi-los acrescentar: «Amigos e
pais, amigos e pais», à lengalenga que já tinham tocado antes.
Por isso Trotty despachou-se o mais depressa possível da sua
tarefa e desatou a trotar para casa. Mas com o seu passo, do
qual o mínimo que se poderia dizer é que era desajeitado, e
com o chapéu que não ajudava nada, esbarrou com alguém em
menos de um ai e foi atirado a cambalear para a estrada.
— Peço-lhe desculpa! — disse Trotty, tirando o chapéu muito
perturbado e enfiando a cabeça numa espécie de favo entre o
chapéu e a aba rasgada. — Espero não o ter magoado.
Quanto a magoar alguém... Toby não era precisamente um
Sansão. Era mais provável que alguém o magoasse e realmente
ele tinha voado para a estrada como um volante. Porém ele
tinha uma tal opinião da sua própria força que estava
realmente preocupado com a outra parte e disse novamente:
— Espero não o ter magoado.
O homem com quem ele tinha chocado, um homem tisnado do
sol, vigoroso, com aspecto de camponês, de cabelo grisalho e
queixo duro, fixou-o por um momento, como se desconfiasse
que ele estava a brincar. Mas, tendo-se certificado da sua boa-
fé, respondeu:
— Não, amigo. Não me magoou.
— Espero que à criança também não — disse Trotty.
— Nem à criança — retorquiu o homem. — Agradeço-lhe
muito.
Ao dizer isto deitou um olhar à menina que levava a dormir,
nos

158

braços; e, fazendo-lhe sombra à cara com a ponta do pobre


lenço que levava ao pescoço, prosseguiu lentamente o seu
caminho.
O tom em que ele disse «Agradeço-lhe muito» tocou
profundamente o coração de Trotty. Estava tão exausto e com
tantas dores nos pés, tão sujo da caminhada e olhava em volta
tão desamparado e estranho, que para ele era um consolo
alguém poder agradecer-lhe ainda que por muito pouco. Toby
ali ficou a olhá-lo, enquanto ele se afastava cansado e a custo,
com o braço da criança agarrando-lhe o pescoço.
Trotty ficou a olhar, sem nada mais ver da rua, para aquela
figura de sapatos gastos (agora para a própria sombra,
fantasma dos sapatos), para as polainas de couro rústico, para a
blusa ordinária de operário, para o chapéu largo e descaído e
para o braço da criança agarrando-lhe o pescoço.
Antes de se embrenhar na escuridão o caminhante parou.
Olhou em volta e, vendo Trotty ainda ali parado, pareceu
indeciso se havia de continuar ou de voltar para trás. Depois de
ter avançado e depois voltado atrás, decidiu-se por esta última
e Trotty andou meio caminho ao seu encontro.
— Talvez me saiba dizer — disse o homem com um pálido
sorriso —, e se souber com certeza que mo diz e eu antes quero
perguntar-lhe a si do que a outro, onde mora Alderman Cute.
— É aqui perto — respondeu Toby. — Eu mostro-lhe onde é a
casa, com todo o prazer.
— Eu era para ir ter com ele a outro lado, amanhã — disse o
homem, acompanhando Toby —, mas sinto-me mal sob
suspeita e quero ilibar-me e ficar livre para ir procurar o meu
pão... nem sei onde. Por isso talvez ele me perdoe ir a casa dele
esta noite.

159

— Não é possível — exclamou Toby com um sobressalto — que


o seu nome seja Fern!
— Hã?! — exclamou o outro, virando-se para ele, atónito.
— Fern! Will Fern! — disse Trotty.
— É esse o meu nome — respondeu o outro.
— Olhe, então — disse Trotty, agarrando-lhe no braço e
olhando cautelosamente em redor —, por amor de Deus, não
vá a casa dele! Ele destrói-o, tão certo como você ter nascido!
Venha por este beco e eu dir-lhe-ei o que quero dizer. Não vá
ter com ele.
O seu novo conhecido olhava-o como se ele fosse doido, mas
mesmo assim acompanhava-o. Quando estavam ao abrigo de
olhares, Trotty contou-lhe o que sabia, a reputação que lhe
tinham atribuído e tudo sobre o assunto.
O sujeito da história ouviu-a com uma calma surpreendente.
Não contradisse nem interrompeu uma vez sequer. De vez em
quando assentia com a cabeça, mais como se corroborasse uma
velha história gasta do que se a refutasse, e por uma ou duas
vezes atirou o seu chapéu para trás e passou a mão sardenta
pela testa, onde parecia estarem gravados em miniatura todos
os sulcos que ele já lavrara. Mas nada mais.
— No fundo é verdade — disse ele —, senhor, eu podia
peneirar aqui e além, mas deixem estar. Que mal é que tem?
Fui contra os planos deles, para meu azar. Paciência, devia
fazer-lhes o gosto amanhã. Quanto à reputação, essa gente de
bem há-de buscar e rebuscar, indagar e reindagar e livrar-nos-á
de mancha ou nódoa e ajudar-nos-á em frente rumo a um
mundo limpo e bom! Bem, espero que não percam a boa
reputação tão depressa como nós, ou a vida deles é difícil e não
vale a pena ser vivida. Cá por mim, patrão, nunca tirei com esta
mão — e ergueu-a na frente dele — o que não fosse meu, nem
nunca a

160

subtraí ao trabalho, por mais duro ou mais mal pago que fosse.
E quem puder negá-lo que ma corte! Mas quando o trabalho já
não me sustenta como a um ser humano, quando a minha
condição de vida é tão má que tenho fome dentro e fora de
casa, quando vejo toda uma vida de trabalho começar assim,
prosseguir assim e terminar assim, sem uma oportunidade ou
uma alteração, então digo à gente de bem: «Afastem-se de
mim! Deixem em paz a minha cabana. A minha porta já é
suficientemente escura, sem que vocês a ensombrem mais. Não
esperem ver-me no parque para ajudar à festa quando houver
um aniversário ou um belo discurso, ou sei lá que mais outras
representações e jogos, que vocês fazem sem mim, e que lhes
faça muito bom proveito e se divirtam muito. Não temos nada
que ver uns com os outros. Estou muito melhor sozinho!».
Ao ver que a criança que tinha ao colo abrira os olhos e olhava
em redor espantada, deteve-se para lhe dizer uma ou duas
palavras ao ouvido, numa tagarelice pateta, e para a pôr em pé
no chão, ao lado dele. Então, enrolando e tornando a enrolar
lentamente uma das suas longas tranças em volta do indicador
grosseiro, como se fosse um anel, enquanto ela se pendurava
na perna poeirenta dele, disse a Trotty:
— Acho que não sou um homem mal-humorado por natureza e
tenho a certeza de que facilmente me satisfaço. Não guardo
qualquer rancor contra nenhum deles. Só quero viver como
uma criatura de Deus. Não posso, não vivo e aí está cavado o
fosso entre mim e eles, que podem e vivem. Outros há como
eu. E contam-se mais depressa por centenas e por milhares do
que por unidades.
Trotty sabia que neste ponto ele dizia a verdade e abanou a
cabeça para concordar.
— Assim tenho eu uma má reputação — disse Fern

161

— e receio que não seja provável melhorá-la. Não é lícito estar-


se aborrecido, mas EU ESTOU aborrecido; porém Deus sabe
bem que, se pudesse, mais depressa estaria de boa disposição.
Bom, não sei se esse Alderman me poderia fazer mal a ponto de
me mandar para a prisão, mas sem um amigo que acuda por
mim, era capaz de fazê-lo e está a ver...! — apontou com o
dedo para baixo, para a criança.
— Tem uma linda carinha — disse Trotty.
— Ah, tem! — respondeu o outro em voz baixa, enquanto lha
virava docemente para ele com as duas mãos e a olhava
fixamente. — Já pensei nisso, muitas vezes. Já pensei nisso
quando o meu coração estava muito frio e o aparador muito
vazio. Pensei nisso a noite passada, quando fomos apanhados
como dois ladrões. Mas eles... eles não deviam atormentar
tanto esta carinha, pois não, Lilian? Já com um homem não é
justo...!
Baixou tanto a voz e fixou-a com um ar tão austero e estranho
que Toby, para distrair a corrente dos seus pensamentos, lhe
perguntou se a sua mulher ainda era viva.
— Nunca tive mulher — respondeu, abanando a cabeça. — Ela
é filha do meu irmão. É órfã. Tem nove anos, embora não
pareça, mas está cansada e alquebrada. Tomavam conta dela,
no asilo (a vinte oito milhas da nossa casa), entre quatro
paredes, como tomaram conta do meu pai quando já não podia
trabalhar, embora já não lhes desse trabalho, mas eu preferi
ficar com ela e tem estado comigo desde sempre. A mãe dela
tinha uma amiga aqui em Londres. Temos andado a tentar
encontrá-la e encontrar também trabalho, mas isto é muito
grande. Não faz mal, mais espaço temos para andar, não é,
Lilly?
Ao dar com os olhos da criança, onde havia um sorriso que
comoveu mais Toby do que as lágrimas, ele apertou a mão do
homem.
162

— Eu nada mais sei que o seu nome — disse ele — mas já lhe
abri o meu coração, porque lhe estou grato e com razão. Aceito
o seu conselho e afasto-me desse tal...
— Magistrado — adiantou Toby.
— Ah! — disse ele. — Se é esse o nome que lhe dão, a esse
magistrado. Amanhã vou ver se tenho mais sorte, por aí
próximo de Londres. Boa noite e feliz ano novo!
— Espere! — disse Toby agarrando-se à mão dele quando ele já
soltava a sua. — Fique! O ano novo não poderá ser feliz para
mim se nos separarmos assim. Nunca o ano novo poderá ser
feliz para mim se vir você e a criança afastarem-se para aí ao
deus-dará, sem saberem para onde e sem refúgio onde se
abrigarem. Venham para casa comigo! Vá, eu levo-a! —
declarou Toby pegando na criança. — Tão bonitinha! Era capaz
de transportar vinte vezes o peso dela, sem dar por isso. Diga-
-me se vou depressa de mais para si. Eu sou muito rápido.
Sempre fui! — Ao dizer isto Trotty deu seis dos seus passitos de
trote, com as suas pernitas trementes sob o peso que
transportava, enquanto o seu parceiro exausto dava uma
passada.
— Ah, ela é tão leve — disse Trotty, trotando tanto na fala
como na maneira de andar, porque não suportava
agradecimentos e temia por isso calar-se —, tão leve como uma
pena. Mais leve que uma pena de pavão, muito mais leve. Aqui
estamos nós e cá vamos! Depois desta curva à direita, tio Will,
depois da bomba e de nos esgueirarmos pelo corredor, mesmo
em frente da hospedaria. Cá estamos e cá vamos nós! Passe, tio
Will, e cuidado com o homem das empadas de rim que está à
esquina! Aqui estamos e aqui vamos nós! Por baixo da
cavalariça, tio Will, e pare na porta preta, que tem escrito na
madeira «T. Veck, moço de recados», aqui estamos e aqui
vamos nós, já cá estamos mesmo, minha querida Meg, aqui
tens uma surpresa!
Com estas palavras Trotty, sem fôlego, depôs a criança no meio
do

163

chão, em frente da filha. A pequena visitante, não duvidando


daquele rosto, confiando em tudo quanto ali via, lançou-se nos
braços dela.
— Pronto, cá estamos! — exclamou Trotty, correndo à volta da
casa, resfolegando sonoramente. — Aqui, tio Will, aqui temos o
lume! Porque é que não vem para junto do lume? Cá estamos
nós! Meg, minha queridinha, onde é que está a chaleira? Ela
aqui está e cá vai ela ferver em menos de nada!
Trotty pegara realmente na chaleira enquanto calcorreava e
pusera-a agora ao lume, enquanto Meg, sentando a criança a
um canto quente, se ajoelhara em frente dela, lhe descalçara os
sapatos e com uma toalha lhe limpava os pés molhados. E ela
ria-se também para Trotty, tão satisfeita e jovial que Trotty
gostaria de abençoá-la ali mesmo ajoelhada, pois reparara, ao
entrarem, que estava sentada junto ao lume a chorar.
— Oh, pai! — disse Meg. — Parece-me que hoje está louco.
Não sei o que é que os sinos diriam a isto. Pobres pezinhos! Tão
frios!
— Ah, agora já estão mais quentes! — exclamou a criança. —
Agora estão muito quentes!
— Não, não, não — disse Meg. —Ainda não os friccionámos
metade do que devíamos. Temos que fazer. Muito que fazer! E
quando eles estiverem despachados, escovaremos o cabelo
húmido; e quando isso estiver feito, daremos um pouco de cor
a esta carinha pálida, com água fresca; e quando isso estiver
feito ficaremos alegres, activos e felizes...!
A criança, num acesso de soluços, agarrou-se ao pescoço dela,
acariciou-lhe o belo rosto com a mão e disse:
— Oh Meg! Oh querida Meg!
A bênção de Toby não podia ser melhor do que aquilo. Que
poderia ser melhor?

164

— Oh, pai! — exclamou Meg depois de um silêncio.


— Cá estou eu e cá vou eu, minha querida! — disse Trotty.
— Valha-me a Divina Providência! — exclamou Meg. — Ele
está doido! Pôs a touca da criancinha sobre a chaleira e
pendurou o abafador atrás da porta!
— Não digo que não o fiz, minha querida — disse Trotty,
apressadamente, reparando o erro. — Meg, minha querida...?
Meg olhou para ele e reparou que se colocara pomposamente
atrás da cadeira do visitante masculino, onde, com muitos
gestos misteriosos, esticava a mão com os seis pennies que
tinha ganho.
— Ao entrar, minha querida — disse Trotty —, vi meia onça de
chá ali na escada em qualquer sítio e tenho a certeza de que
também lá estava um bocado de toucinho. Como não me
lembro bem onde estava, vou lá eu mesmo procurá-lo.
Com este impenetrável artifício, Toby retirou-se para ir
comprar, a pronto, à senhora Chickenstalker, as vitualhas de
que tinha falado e regressou fingindo não ter conseguido
encontrá-las às primeiras, no escuro.
— Mas elas aqui estão, finalmente — disse Trotty, preparando
as coisas para o chá. — Tudo em ordem! Eu cá tinha a certeza
de que era chá e toucinho fumado. E é mesmo. Meg, meu
amorzinho, se fizesses o chá enquanto o teu inútil pai grelha o
toucinho, despachávamo-nos já. É um facto curioso — disse
Trotty, continuando no seu cozinhado com a ajuda dum garfo
de grelhar —, curioso, mas bem conhecido dos meus amigos, é
que nunca me interessei por toucinho fumado e por chá. Gosto
de ver outras pessoas apreciarem-nos — disse Trotty falando
muito alto para marcar bem o facto no espírito do seu hóspede
—, mas para mim, como alimento, são desagradáveis.

165

No entanto, Trotty aspirava o cheiro do toucinho a chiar, aah!,


como se gostasse; e, quando deitou a água a ferver no bule,
olhou deliciadamente para o fundo do aconchegado recipiente
e suportou o fragrante vapor que se encaracolava em torno do
seu nariz, enrolando-
-se à sua cabeça e à sua cara numa espessa nuvem. Contudo,
por tudo isso, não comeu nem bebeu, senão ao princípio, um
pequeno pedaço, por cerimónia, que pareceu comer com
infinito prazer, mas que declarou ser-lhe perfeitamente
indiferente.
Não. A ocupação de Trotty, bem como a de Meg, era ver Will
Fern e Lilian comerem e beberem. E nunca espectador algum,
num jantar da cidade ou num banquete da corte, sentiu tanto
prazer em ver o festim de outrem, nem que fosse dum monarca
ou dum papa, como estes dois sentiram naquela noite. Meg
sorria para Trotty, Trotty ria-se para Meg. Meg abanava a
cabeça e fingia bater as palmas aplaudindo Trotty. Trotty
explicava a Meg, através duma pantomina de ininteligíveis
narrativas, como, quando e onde tinha encontrado os seus
visitantes; e estavam felizes. Muito felizes.
«Se bem que», pensava Trotty, tristemente, ao olhar o rosto de
Meg, «eu veja que aquela união está desfeita!»
— E agora já lhes digo — afirmou Trotty depois do chá — a
pequenina dorme com a Meg, já sei.
— Com a minha Meg! — exclamou a criança acariciando-a. —
Com a Meg.
— Sim, senhora — afirmou Trotty. — E não me admirava nada
se ela desse um beijo ao pai de Meg. O pai de Meg sou eu.
Muito feliz ficou Trotty quando a criança se dirigiu a ele
timidamente e, tendo-o beijado, se atirou novamente para
cima de Meg.
— E mais sensível que Salomão — disse Trotty. — Aqui estamos
nós e

166
aqui... não, não é isso, não é isso que eu quero dizer. Eu... que é
que eu ia dizer, Meg, minha querida?
Meg olhou para o seu hóspede, que estava inclinado na
cadeira, com o rosto desviado do dela, e acariciou a cabeça da
criança, semi-
-escondida no seu regaço.
— Para dizer a verdade — disse Toby —, para dizer a verdade,
não sei o que é que estou para aqui a divagar, esta noite. O
meu juízo está enovelado, quer parecer-me. Will Fern, venha
comigo. Você está exausto e alquebrado por falta de descanso.
Venha comigo.
O homem ainda acariciava os caracóis da criança, ainda estava
inclinado para a cadeira de Meg, ainda tinha a cara voltada.
Não falava, mas nos seus dedos rudes e grosseiros, que se
abriam e fechavam no cabelo louro da criança, havia uma
eloquência que dizia muito.
— Sim, sim — disse Trotty, respondendo inconscientemente
àquilo que via escrito no rosto da filha. — Leva-a contigo, Meg.
Mete-a na cama. Vá! Agora Will, vou mostrar-lhe onde você
dorme. Não é lá grande coisa, é apenas um palheiro, mas ter
um palheiro, é o que eu digo sempre, é uma das grandes
conveniências de viver num estábulo; e até esta cocheira e este
estábulo terem melhor inquilino, aqui vivemos por preço em
conta. Lá em cima há muito feno fofo, que pertence a um
vizinho e está muito limpinho. A Meg pode compô-lo. Alegre-
se! Não desista. Sempre um coração novo, para um novo ano!
A mão soltou-se do cabelo da criança e caiu tremente na mão
de Trotty. Trotty, falando então sem parar, conduziu-o tão
terna e facilmente como se ele próprio fosse uma criança.
Regressando antes de Meg, escutou durante um momento à
porta do quartinho dela, o compartimento ao lado. A criança
balbuciava uma simples oração antes de se deitar para dormir e
quando se lembrou do

167

nome de Meg, «Querida, Querida», assim dizia ela, Trotty


ouviu-a parar e perguntar o dele.
Ainda decorreu um momento antes que o tolo velhote se
recompusesse, para poder atear o lume e arrastar a cadeira
para junto da lareira quente. Depois, porém, de o ter feito e de
ter arranjado a luz, tirou do bolso o jornal e começou a ler. A
princípio descuidadamente, percorrendo as colunas de alto a
baixo, mas em breve com uma atenção mais intensa e triste.
Este mesmo terrível jornal reconduzia os pensamentos de
Trotty para o caminho que tinham tomado durante todo o dia e
que os acontecimentos tinham marcado e moldado. O interesse
pelos dois forasteiros desviara-lhe o curso dos pensamentos,
por um tempo; mas, encontrando-se de novo sozinho e ao ler
as notícias sobre crimes e violências das pessoas, voltou a cair
na primitiva sequência de pensamentos.
Com esta disposição, chegou ao relato (e não era o primeiro
que lia) duma mulher que desesperada pôs termo não só à sua
vida, mas também à do seu filhinho. Era um crime tão terrível e
tão revoltante para o seu coração, avolumado ainda pelo amor
de Meg, que deixou cair o jornal e se encostou à cadeira,
horrorizado!
— Antinatural e cruel! — exclamou Toby. — Antinatural e
cruel! Só gente de mau coração, gente que nasceu má e que
não tem lugar no mundo, poderia cometer tal acção. É bem
verdade o que ouvi hoje, bem certo e bem provado. Nós somos
maus!
Os sinos pegaram-lhe tão rapidamente na palavra (soaram tão
alto, claro e sonoramente) que as badaladas pareciam bater-lhe
na carne.
E que diziam eles?
«Toby Veck, Toby Veck, estamos à tua espera, Toby!

168

Toby Veck, Toby Veck, estamos à tua espera, Toby! Vem ver-
nos, vem ver-nos, trá-lo até nós, trá-lo até nós, assombra-o e
persegue-o, assombra-o e persegue-o, interrompe o seu sono
interrompe o seu sono! Toby Veck, Toby Veck, Toby Veck, abre
toda a porta, Toby...», voltando depois furiosamente à sua
impetuosa canção, ressoando dentro dos próprios tijolos e do
gesso das paredes. Toby escutava. Imaginava, imaginava! Os
remorsos que tinha por ter fugido deles naquela tarde! Não,
não. Nada disso. Repetiu uma, duas, uma dúzia de vezes:
«Assombra-o e persegue-o, assombra-o e persegue-o. Trá-lo
até nós, trá-lo até nós!». Ensurdeciam toda a cidade!
— Meg — disse Trotty baixinho, dando pancadinhas na porta
dela. — Ouves alguma coisa?
— Oiço os sinos, pai. Esta noite soam realmente muito alto.
— Ela está a dormir? — disse Toby, desculpando-se por
espreitar.
— Tão feliz e tranquilamente! No entanto, ainda não a posso
deixar, pai. Olhe como ela me segura na mão!
— Meg — murmurou Trotty. — Escuta os sinos! Ela escutou,
sempre de cara virada para ele, mas nada nela se alterou. Ela
não os entendia.
Trotty retirou-se, retomou o seu lugar junto do lume e mais
uma vez escutou, sozinho. Ali ficou durante algum tempo.
Era impossível suportá-los; a sua energia era terrível.
— Se a porta da torre estiver aberta — disse Toby, pondo
apressadamente de lado o avental, sem nunca pensar no
chapéu —, que é que me impede de ir ao campanário e fazer o
gosto? Se estiver fechada, pronto, chega.
Quando se esgueirou silenciosamente para a rua, ia
absolutamente seguro de que iria encontrá-la fechada e
trancada, porque conhecia bem a porta e raramente a vira
aberta, que nem três vezes ao todo,

169

poderia contar. Era um portal baixo, fora da igreja, num recanto


escuro por trás duma coluna; e tinha umas dobradiças de ferro
tão grandes e uma fechadura tão monstruosa que havia mais
dobradiça e fechadura do que porta.
Mas qual não foi o seu espanto quando, ao chegar à igreja, sem
chapéu e ao meter a mão no recanto escuro com um certo
receio de que ela fosse subitamente agarrada e tremendo com
vontade de a retirar, viu que a porta que abria para fora estava
realmente aberta de par em par!
Com o impacte da surpresa pensou voltar para trás ou arranjar
uma luz ou um parceiro, mas a coragem acudiu-lhe de imediato
e decidiu subir sozinho.
— Que é que tenho a temer? — disse Trotty. — É uma igreja.
Além disso, os sineiros podem lá estar e terem-se esquecido de
fechar a porta.
Então entrou, tacteando o caminho à medida que avançava,
como um cego, porque estava escuro. E em silêncio, porque os
sinos estavam calados.
O pó da rua entrara para o nicho; e, permanecendo ali
amontoado, tornava-o tão fofo para os pés como veludo, e até
nisso havia algo de surpreendente. A estreita escada estava tão
junta à porta que ele tropeçou logo no primeiro degrau; e
batendo com o pé na porta fechou-
-a atrás de si, fazendo-a ressoar pesadamente, não mais
conseguindo abri-la.
Esta foi, porém, mais uma razão para prosseguir. Trotty
continuou tacteando o caminho. Para cima, para cima, uma
volta, outra volta e para cima, para cima, mais acima, mais,
mais!
Era uma escada desagradável por ter de se andar às
apalpadelas, tão baixa e estreita que a sua mão que tacteava
estava sempre a tocar nalguma coisa; e por vezes tanto lhe
parecia ver um homem ou uma figura fantasmagórica,
erguendo-se erecta e dando-lhe espaço para ele

170

passar sem a descobrir, que esfregava a parede acima


procurando-lhe o rosto e abaixo procurando-lhe os pés,
enquanto um formigueiro arrepiante o percorria todo. Por duas
ou três vezes uma porta ou um nicho quebraram a monótona
superfície e esse espaço vazio parecia tão grande como toda a
igreja e ele sentia-se à beira de um abismo, quase a cair de
cabeça para baixo, até que de novo encontrava a parede.
Mais para cima ainda, mais, mais; e volta, volta; e para cima,
mais e mais, mais, mais para cima!
Por fim a atmosfera pesada e sufocante começou a refrescar e
a ficar ventosa. Agora soprava já tão forte que ele mal se
aguentava nas pernas. Chegou porém a uma janela em arco que
lhe dava pelo peito e, agarrando-se bem, olhou lá para baixo
para os telhados das casas, para as enfarruscadas chaminés,
para as manchas e borrões das luzes (na direcção do local onde
Meg estava talvez a perguntar-se onde estaria ele e a chamá-lo)
todas amassadas num fermento de neblina e escuridão.
Era este o campanário, onde os sineiros vinham. Deitara a mão
a uma das puídas cordas que pendiam pelas aberturas do tecto
de carvalho. Primeiro pensou que era cabelo, depois
estremeceu só de pensar poder acordar o sonoro sino. Os sinos
propriamente ditos estavam lá mais em cima. Mais em cima.
Trotty, fascinado, ou concretizando o feitiço que lhe tinha sido
lançado, tacteou o caminho. Agora por escadas de mão e
laboriosamente, porque era íngreme e inseguro para os pés.
Upa, upa, upa; trepa e amarinha; upa, upa, upa; mais para
cima, mais para cima!
Até que emergindo do soalho e parando com a cabeça
exactamente ao nível das traves, ficou junto dos sinos. Era
impossível, na escuridão, aperceber-se da sua enorme forma;
mas eles ali estavam.

171
Sombrios, escuros e mudos.
Sobre ele caiu nesse instante uma sensação de pavor e de
solidão, ao trepar para o seu arejado ninho de pedra e metal. A
cabeça rodopiava-
-lhe. Escutou e depois lançou um «Ôoôoh!» selvagem.
O «Oôooh!» foi tristemente repetido pelo eco.
Atordoado, confuso, sem fôlego e assustado, Toby olhou em
redor vagamente e mergulhou num desmaio.

Terceiro quarto

Negros são os rebanhos de nuvens e agitadas as profundas


águas, quando o mar do pensamento, erguendo-se de uma
calmaria, desiste de estar morto. Estranhos e selvagens
monstros se erguem em prematura e imperfeita ressurreição.
As diversas partes e formas das coisas reú-nem-se e misturam-
se ao acaso e nenhum homem sabe dizer quando e como e
porque maravilhosas fases cada um se separa de cada um e
cada sentido e cada objecto do espírito reúne a sua forma
habitual e renasce, embora cada homem seja todos os dias o
cofre deste tipo de grande mistério.
Assim, não há também dados ou meios para dizer quando e
como a escuridão da noite no campanário se transformou em
brilhante luz; quando e como a solitária torre se viu povoada
duma miríade de figuras; quando e como o murmúrio
«Assombra-o e persegue-o», em monótono arfar, no seu sonho
ou desmaio, se transformou numa voz exclamando aos ouvidos
despertos de Trotty: «Quebra-lhe o sono»; quando e como
deixou de ter o seu pensamento moroso e confuso onde tais
coisas confusas e morosas coexistiam com outras que o não
eram. Mas, acordado e de pé sobre as tábuas onde
anteriormente jazia, teve aquela visão de gnomo.
Viu a torre, onde os seus encantados degraus o tinham
conduzido, enxameada de gnomozinhos dos sinos. Via-os
saltando, voando, caindo,

173

chovendo dos sinos, sem parar. Via-os em volta dele, no chão;


por cima dele, no ar; a fugir dele, trepando pelas cordas;
olhando para ele lá de cima, das maciças vigas cintadas de
ferro; espreitando-o pelas gretas e buracos das paredes;
espalhando-se mais e mais em torno dele, em círculos que se
alargavam, tal como a ondulação da água dando lugar a uma
grande pedra que nela caía de repente. Viu-os de todos os
ângulos e formas. Viu-os feios, bonitos, aleijados e de formas
caprichosas. Viu-os novos e velhos, viu-os bons e cruéis, viu-
-os alegres e carrancudos; viu-os dançar e ouviu-os cantar; viu-
os puxarem-se os cabelos, e ouviu-os uivar. Viu o ar cheio deles.
Viu-os irem e virem incessantemente. Viu-os flutuar para baixo,
elevarem-se muito alto, vogarem para longe e empoleirarem-se
ali mesmo à mão, todos incansáveis e violentamente activos. A
pedra, o tijolo, a ardósia e a telha tornaram-se tão
transparentes para si como para eles. Viu-os dentro das casas,
de volta das camas dos que dormiam. Viu-os a sugar pessoas
que sonhavam; viu-os bater-lhes com chicotes de nós; viu-os
gritarem-lhes aos ouvidos; viu-os tocarem a mais suave música
sobre as suas almofadas; viu-os acarinharem alguns com cantos
de pássaros e aromas de flores; viu-os fazer horríveis caras no
sono perturbado de outros, em frente de espelhos encantados
que traziam na mão.
Viu estes seres, não só entre os que dormiam, como entre os
que estavam despertos, ocupados com perseguições,
irreconciliáveis uns com os outros e possuindo ou fingindo
maneiras de ser completamente opostas. Viu um afivelando a si
numerosas asas para aumentar a sua velocidade e outro
carregando-se de correntes e de pesos para a diminuir. Viu uns
adiantando os ponteiros do relógio e outros atrasando-os, e
outros ainda tentando parar completamente o relógio. Viu-os
representando aqui uma cerimónia de casamento, ali uma de

174

funeral; neste quarto uma eleição, naquele um baile; por todo


o lado viu irrequieto e incansável movimento.
Confuso pela multidão de figuras extraordinárias e em
movimento, bem como pelo troar dos sinos, que durante todo
este tempo continuavam a tocar, Trotty agarrou-se a um pilar
de madeira como que procurando apoio, e virava a pálida cara
para cá e para lá, num espanto mudo e aturdido.
Enquanto assim olhava, os sinos pararam. Deu-se uma
modificação instantânea. Toda a multidão esmoreceu! As suas
formas desvaneceram-
-se, a velocidade abandonou-os; tentaram voar, mas no
momento de caírem morriam e dissolviam-se no ar. Nenhum
novo grupo vinha substituir aquele. Um deles isolado saltou
muito rapidamente da superfície do sino grande e pousou aos
pés dele, mas antes que tivesse tempo de se virar já ele se
sumira. Alguns do último grupo, que tinham dado cambalhotas
na torre, lá permaneceram um pouco mais, girando e
rodopiando; mas a cada volta se tornavam menos nítidos,
menos numerosos, mais débeis, e em breve tiveram o mesmo
destino dos outros. O último de todos era um pequeno
corcunda, que se tinha metido num recanto que ecoava, onde
flutuou e girou e rodopiou durante muito tempo, sozinho;
mostrava muita perseverança, até que por fim ficou reduzido a
uma perna e até a um pé apenas, antes de desaparecer
finalmente. Sumiu-se por fim e a torre ficou em silêncio.
Só então Trotty viu em cada sino uma figura barbuda do
volume e da estatura dos sinos. Era incompreensivelmente uma
figura e o próprio sino. Pregado ao chão, ali estava ela,
gigantesca, ameaçadora e observando-o sombriamente.
Figuras misteriosas e terríveis! Apoiadas no nada;

175

pousadas no ar nocturno da torre, com as cabeças envolvidas e


encapuçadas fundindo-se no obscuro telhado; sombriamente e
imóveis. Sombrias e escuras, ainda que ele as visse devido a
alguma luz que delas partia (não havia ali outra), todas com a
mão enluvada sobre a boca de duende.
Ele não conseguia atirar-se cá para baixo precipitadamente,
pela abertura que havia no chão, porque toda a capacidade de
movimento o tinha abandonado. Se assim não fosse, tê-lo-ia
feito, ai tinha mesmo, ter-se-ia atirado do cimo do campanário,
para não os ver olharem-no com olhos que acordavam e viam
embora as pupilas lhes tivessem sido tiradas.
Mais uma e outra vez, o medo e o pavor daquele local solitário,
e da noite bravia e tenebrosa que ali reinava, o tocaram como
mão espectral. A distância a que estava de qualquer auxílio; o
caminho escuro, longo, sinuoso e assombrado que o separava
do mundo dos homens; o facto de estar lá muito, muito, muito
em cima, onde lhe causara tonturas ver os pássaros voar
durante o dia; o ver-se afastado de toda a boa gente, que
àquela hora estaria a dormir em segurança na sua cama — tudo
isto o percorria geladamente, não como um pensamento mas
como uma verdadeira sensação física. Entretanto os seus olhos,
os seus pensamentos e temores estavam concentrados nas
figuras que o olhavam e que se apresentavam como nenhuma
figura deste mundo; na profunda escuridão e sombra que as
envolvia e embrulhava, bem como nos seus aspectos e formas e
estatura descomunal pairando acima do chão e que contudo se
viam tão distintamente como as robustas cercaduras de
carvalho, as travessas e as traves que suportavam os sinos e
que os guarneciam como uma verdadeira floresta de madeira
cortada e dentro de cujos emaranhados, labirintos e

176

profundezas, como das ramagens duma velha floresta seca para


seu fantasmagórico uso, mantinham o seu olhar tenebroso e
fixo.
Uma corrente de ar (que fria e arrepiante!) atravessou a torre,
gemendo. Quando já desaparecia, o sino grande, ou o gnomo
do sino grande, falou.
— Quem é este visitante? — disse. A voz era baixa e profunda
e Trotty imaginou que ela ressoava também nas outras figuras.
— Pensei que os sinos chamavam pelo meu nome! — disse
Trotty, erguendo as mãos numa atitude de súplica. — Mal sei
porque aqui estou, ou como vim. Há todos estes anos que ouço
os sinos. Muitas vezes eles me encorajaram.
— E tu agradeceste-lhes? — disse o sino.
— Mil vezes! — respondeu Trotty.
- Como?
— Sou um homem pobre — gaguejou Trotty — e só podia
agradecer-lhes com palavras.
— E sempre assim fizeste? — inquiriu o duende do sino. —
Nunca nos feriste com palavras?
Trotty ia a responder «Nunca!», mas parou e ficou perturbado.
— A voz do tempo — disse o fantasma — grita ao homem
«Avança!». O tempo serve para avançar e melhorar; para sua
maior utilidade, sua maior felicidade, sua melhor vida; para o
seu progresso em direcção àquele objectivo ao alcance do seu
conhecimento e da sua visão e que foi ali estabelecido, no
período em que o tempo e ele foram criados. Épocas de trevas,
de maldade e de violência vieram e foram, milhões incontáveis
sofreram, viveram e morreram, para lhe apontar o caminho.
Quem procura fazê-lo retroceder ou impedir o seu curso, faz
parar uma poderosa máquina, que destruirá o intrometido; e
ele tornar-se-á,

177

depois desta momentânea pausa repentina, mais feroz e mais


implacável!
— Que eu saiba, nunca fiz isso, senhor — disse Trotty.
— E se o fiz, foi absolutamente por acaso. Não teria intenção
de o fazer, tenho a certeza.
— Quem põe na boca do tempo, ou dos seus servos — disse o
duende do sino —, um grito de lamentação pelos dias que já
foram julgados e que já tiveram os seus fracassos e dele deixam
traços tão profundos que até os cegos podem ver; um grito que
só serve o tempo presente, por mostrar aos homens como ele
precisa da sua ajuda, quando há ouvidos que possam ouvir um
tal passado; quem assim procede, procede mal. E tu causaste-
nos esse mal, a nós, sinos.
O primeiro acesso de medo de Trotty passara-lhe. Como viram,
ele sentira-se terno e grato para com os sinos; e quando ouviu
acusarem-
-no de tão duramente os ter ofendido, o seu coração foi
assaltado por um sentimento de penitência e remorso.
— Se soubessem — disse Trotty enclavinhando as mãos
desesperadamente — (ou talvez saibam), se soubessem
quantas vezes me têm feito companhia, quantas vezes me
deram ânimo quando eu me encontrava desanimado, como
vocês eram o brinquedo da minha filha Meg (praticamente o
único que ela teve) logo que a mãe morreu e ficámos os dois
sozinhos, não veriam maldade numa palavra impensada!
— Quem ouve em nós, sinos, uma nota que indique
desinteresse, ou austero respeito, por qualquer esperança,
alegria, dor ou tristeza, da multidão de muitas tristezas; quem
nos ouve responder a qualquer crença que dá a medida das
paixões e dos afectos humanos, como da quantidade da
miserável alimentação com a qual a humanidade definha e
estiola; quem isso ouve, faz-nos mal. Foi esse o mal que tu nos
178

fizeste! — disse o sino.


— Fiz? — disse Trotty. — Oh, perdoem-me!
— Quem nos ouve como se fôssemos o eco dos vermes da
terra: daqueles que destroem as almas esmagadas e
destroçadas, criadas para serem elevadas mais alto do que
essas larvas do tempo alguma vez rastejarão ou poderão
imaginar — prosseguiu o duende do sino —, quem assim
procede, faz-nos mal. E assim tu nos fizeste mal!
— Não foi por querer — disse Trotty. — Foi por ignorância.
Sem querer!
— Finalmente e acima de tudo — continuou o sino —, quem
volta as costas aos desprezados e aos marcados da sua espécie;
quem os abandona como vis e não contempla com olhos
piedosos o precipício aberto, donde eles caíram do bem,
agarrando-se na queda a alguns tufos e pedaços desse solo
perdido e a eles ainda se agarram quando feridos e moribundos
jazem lá em baixo no abismo; quem assim age, faz mal ao Céu,
ao homem, ao tempo e à eternidade. E tu fizeste esse mal!
— Poupa-me — exclamou Trotty, caindo de joelhos e
implorando misericórdia.
— Escuta! — disse a sombra.
— Escuta! — exclamaram as outras sombras.
— Escuta! — disse uma voz infantil e clara que Trotty julgou
reconhecer por já ter ouvido.
Lá em baixo, na igreja, o órgão soou debilmente. Aumentando
gradualmente, a melodia chegou ao telhado e encheu a nave e
o coro. Aumentando cada vez mais, elevou-se mais e mais, cada
vez mais e mais alto, despertando almas agitadas que estavam
dentro das robustas estacas de carvalho, dos sinos ocos, das
portas ferradas e dos degraus de pedra sólida, até as paredes
da torre serem insuficientes para a conter e se elevar ao céu.
Não admira que o peito dum velho não pudesse conter um
som tão

179

grande e poderoso. Saía dessa fraca prisão uma torrente de


lágrimas; e Trotty cobriu o rosto com as mãos.
— Escuta! — disse a sombra.
— Escuta! — disseram as outras sombras.
— Escuta! — disse a voz infantil.
Subiu até à torre um fluxo de vozes misturadas.
Era um fluxo muito baixo e lamentoso, um hino fúnebre; e, ao
escutá-
-lo, Trotty ouviu a sua filha entre os cantores.
— Ela morreu! — gritou o velho. — Meg morreu! O espírito
dela chama-
-me. Estou a ouvi-lo!
— O espírito da tua filha chora os mortos e mistura-se com os
mortos... esperanças mortas, sonhos mortos, mortas ilusões da
juventude — respondeu-lhe o sino —, mas ela está viva. Da
vida dela colhe uma verdade viva. Aprende, com o ser que te é
mais querido, quão maus nascem os maus. Vê cada botão e
cada folha serem arrancados um a um do mais belo tronco, e vê
quão nu e desolado ele ficará. Segue-a, até ao desespero!
Cada uma das sombrias figuras estendeu o braço e apontou
para baixo.
— O espírito dos sinos está na tua companhia — disse a figura.
— Vai! Ele irá atrás de ti, apagando-te as pegadas!
Trotty virou-se e viu... a criança! Era a criança que Will Fern
transportava na rua, a criança que Meg velara e que agora
dormia!
— Eu próprio a levei ao colo esta noite — disse Trotty. — Com
estes braços!
— Mostrem-lhe o que ele é agora — disseram as negras figuras
à uma.
A torre abriu-se sob os seus pés. Ele olhou para baixo e
contemplou a sua própria forma, jazendo lá no fundo, do lado
de fora, esmagado e imóvel.

180

— Já não estou vivo! — exclamou Trotty. - Morto!


— Morto! — disseram as figuras em coro.
— Deus seja louvado! E o ano novo.
— Passado — disseram as figuras.
— O quê?! — exclamou ele a tremer. — Enganei-me no
caminho e às escuras, ao sair desta torre, caí... há um ano?
— Há nove anos! — responderam as figuras.
Ao darem a resposta, recolheram os braços esticados; e, onde
as suas figuras tinham estado, estavam agora os sinos.
E tocavam, tendo chegado de novo a sua altura. E uma vez
mais vastas multidões de fantasmas saltaram para a vida; mais
uma vez tinham ocupações incoerentes, como tinham tido
antes; mais uma vez esmoreciam à paragem dos sinos e
diminuíam até ao nada.
— Quem são estes? — perguntou ao seu guia. — Se não estou
louco, quem são estes?
— São os espíritos dos sinos. O som deles no ar — retorquiu a
criança. — Eles tomam as formas e ocupações das esperanças e
pensamentos dos mortais e dão-lhes as recordações que
guardaram.
— E tu? — disse Trotty buscamente. — Quem és tu?
— Vá, vá! — respondeu a criança. — Olha para ali! Num
compartimento pobre e humilde, trabalhando no mesmo
género de bordado que tantas e tantas vezes ele vira na frente
dela, foi-lhe apresentada Meg, a sua querida filha. Não fez
qualquer esforço para lhe depor beijos na face, não tentou
apertá-la ao peito que a amava, pois sabia que esses carinhos
tinham terminado para ele. Susteve porém a respiração e
limpou as lágrimas que o cegavam, para que pudesse olhá-la,
para que pudesse apenas vê-la.
Ah! Estava mudada. Mudada. A luz clara dos seus olhos estava
escurecida. Como estava desmaiado o rosado das faces! Bela
estava,

181
como sempre fora, mas a esperança, a esperança, a esperança,
oh, onde estava a viva esperança que como uma voz lhe falava?
Ela ergueu os olhos do trabalho, para uma companheira.
Seguindo-lhe o olhar, o velho recuou.
Na mulher já feita, ele reconheceu-a imediatamente. No
sedoso cabelo comprido, reconheceu os mesmos caracóis e em
volta dos lábios ainda pairava a mesma expressão infantil.
Olha! Nos olhos que agora se voltavam inquiridores para Meg
brilhava o mesmo olhar que examinava aqueles traços quando
ele a trouxera para casa!
E que era então aquilo que estava a seu lado?!
Olhando com temor para aquele rosto, viu que nele pairava
algo, algo de sublime, de indefinido e indistinto, que fazia dele
pouco mais que a recordação daquela criança (tal como a figura
além podia sê-lo), sendo embora a mesma. A mesma e usava o
mesmo vestido.
Escutem! Estão a falar!
— Meg — disse Lilian hesitante. — Quantas vezes levantas a
cabeça do trabalho para olhares para mim!
— Será que o meu olhar está tão alterado que te assusta? —
perguntou Meg.
— Não, querida! Mas até para isso tu te ris! Porque não te ris
quando olhas para mim, Meg?
— Mas eu rio. Não rio? — perguntou Meg, sorrindo para ela.
— Agora, sim — disse Lilian —, mas habitualmente não.
Quando pensas que eu estou ocupada e que não te vejo, tens
um ar tão ansioso e duvidoso que eu mal ouso levantar os
olhos. Nesta vida dura e trabalhosa há pouca razão para sorrir,
mas tu já foste alegre.
— E agora não sou! — exclamou Meg num tom de estranha
exaltação. — Torno ainda mais dura a tua vida já dura, Lilian?

182

— Tu tens sido a única pessoa que fizeste disto vida — disse


Lilian, beijando-a ardentemente —; por vezes foste a única
coisa que me fez querer viver mesmo assim, Meg. Tanto, tanto
trabalho! Tantas horas, tantos dias, tantas e tão longas noites
de trabalho sem esperança, sem alegria e sem fim e não para
amontoar riquezas, não para viver bem e alegremente, nem
sequer para viver remediadamente, ainda que de maneira
rudimentar, mas para ganhar pão seco. Economizar apenas o
suficiente para nos permitir continuar a mourejar, a necessitar,
a manter viva em nós a consciência do nosso duro destino! Oh,
Meg, Meg! — Ela levantou a voz e cruzou os braços em volta
do corpo, enquanto falava como se sofresse. — Como pode
este mundo cruel continuar a girar e suportar ver tais vidas?!
— Lilly! — disse Meg acarinhando-a e afastando-lhe o cabelo
do rosto molhado. — Oh, Lilly! Tu! Tão bonita e tão jovem!
— Oh, Meg! — interrompeu-a ela, agarrando-lhe nos braços e
olhando-a no rosto, suplicante. — O pior de tudo, o pior de
tudo! Que Deus me envelheça, Meg! Que me faça definhar e
enrugar e me liberte dos terríveis pensamentos que tentam a
minha juventude!
Trotty virou-se para o seu guia, mas o espírito da criança tinha
voado. Desaparecera.
Também ele não ficara no mesmo sítio. Sir Joseph Bowley,
amigo e pai dos pobres, dava uma grande festa em Bowley Hall,
em honra do aniversário natalício de Lady Bowley. E como Lady
Bowley nascera no dia de Ano Novo (o que os jornais locais
consideravam uma designação especial de primeiro lugar, dada
pela Providência à predestinada figura de Lady Bowley, na
criação), era no dia de Ano Novo que esta festa se realizava.
A mansão Bowley estava cheia de convidados. Lá estava o
senhor de

183

cara vermelha, o senhor Filer, o grande Alderman Cute


(Alderman Cute mantinha cordiais relações com muita gente e
tinha melhorado a sua relação com Sir Joseph Bowley, com
base naquela carta tão atenciosa. Na verdade e desde aí
tornara-se um grande amigo da família) e muitos convidados lá
estavam. O fantasma de Trotty por ali andava, vagueando
tristemente. Pobre fantasma, procurando o seu guia!
Ia haver um grande jantar no Great Hall, durante o qual Sir
Joseph Bowley, na sua reconhecida qualidade de amigo e pai
dos pobres, ia fazer o seu grande discurso. Noutro salão, alguns
pudins de ameixa iam ser comidos pelos seus amigos e filhos,
primeiro e, a um dado sinal, os amigos e filhos entrariam em
rebanho misturando-se com os seus amigos e pais, para
formarem uma reunião de família em que não haveria ser
humano que resistisse à emoção.
Mas mais do que isto estava para acontecer. Ainda mais do
que isso. Sir Joseph Bowley, baronete e membro do
Parlamento, ia disputar um jogo de boliche — de boliche
mesmo — com os seus inquilinos!
— Isto lembra-me — dizia Alderman Cute — os dias do velho
rei Hal, do bravo rei Hal, o franco rei Hal (Nota da tradutora:
Abreviatura de Henry). Ah, que belo carácter!
— Muito — disse secamente o senhor Filer. — Por casar com
mulheres e assassiná-las. E diga-se de passagem que teve um
número de esposas maior do que a média.
— Tu hás-de casar com as senhoras bonitas e não hás-de
assassiná-
-las, hã? — disse Alderman Cute ao herdeiro dos Bowley, que
tinha doze anos. — És um belo rapaz! Antes de darmos por isso,
já teremos este cavalheiro no Parlamento — disse Alderman,
tomando-o pelos

184

ombros e olhando-o tão seriamente quanto podia. —


Ouviremos falar do seu êxito nas eleições, dos seus discursos na
Câmara, das propostas que os governos lhe fazem, dos seus
brilhantes feitos de todo o género; ah!, antes que o Diabo
esfregue um olho, tenho a certeza de que sobre ele se farão
discursos na Câmara Municipal!
«Oh, que diferença nos sapatos e nas meias!», pensou Trotty.
O seu coração, porém, sentia-se atraído para a criança, por
amor daqueles rapazes sem sapatos e sem meias,
predestinados (por Alderman) a tornarem-se maus e que
podiam ter sido filhos da pobre Meg.
— Richard — gemeu Trotty, deambulando entre os presentes,
de um lado para o outro —, onde está ele? Não encontro o
Richard! Onde está o Richard?
Parecia não estar ali, se é que ainda era vivo! Mas a solidão e o
desgosto perturbavam Trotty e continuou ainda a vaguear
entre tão elegante assistência, procurando o seu guia e
repetindo: «Onde está Richard? Mostrem-me onde está
Richard!».
Assim andava vagueando quando deparou com o senhor Fish,
o secretário particular, em grande agitação.
— Valha-me Deus! — exclamava o senhor Fish. — Onde é que
está Alderman Cute? Alguém viu Alderman?
Se viram Alderman? Ora essa! Quem é que podia deixar de ver
Alderman? Ele que era tão atencioso, tão afável, ele que tinha
sempre em mente o desejo de o ver que todos tinham, se
algum defeito ele tinha era o de estar sempre visível. E, onde
estivesse a gente importante, de certeza que, atraído pela
afinidade entre os grandes espíritos, aí estava o Cute.
Várias vozes gritaram que ele estava no círculo em torno de Sir
Joseph. O senhor Fish abriu caminho até lá e levou-o
discretamente até uma janela que havia ali perto. Trotty
juntou-se a eles, não por sua iniciativa, mas porque sentia que
os seus passos eram conduzidos

185

naquela direcção.
— Meu caro Alderman Cute — disse o senhor Fish. — Chegue-
se um pouco mais para aqui. Aconteceu uma coisa horrível.
Recebi neste momento o recado. Acho que é melhor não se dar
conhecimento a Sir Joseph antes de o dia findar. O senhor
conhece Sir Joseph e dar-me-á a sua opinião. Foi um
acontecimento terrível e deplorável!
— Fish! — retorquiu Alderman. — Fish, meu bom amigo, que
há? Espero que não seja nada de revolucionário! Nenhuma
tentativa de interferir com os magistrados!
— Deedles, o banqueiro — sussurrou o secretário. — Deedles
Brothers (que era para cá ter estado hoje), o mais importante
nos escritórios da companhia Goldsmith...
— Não me diga que foi suspenso! — exclamou Alderman. —
Não pode ser!
— Suicidou-se.
— Meu Deus!
— Pôs uma pistola de dois canos à boca, no seu próprio
escritório — disse o senhor Fish —, e estourou com os miolos.
Sem motivo. Altas razões!
— Razões? — exclamou Alderman. — Um homem de nobre
fortuna. Um dos homens mais respeitáveis. Suicidar-se, senhor
Fish! Por sua própria mão!
— Esta manhã mesmo — replicou o senhor Fish.
— Oh, o cérebro, o cérebro! — exclamou o piedoso Alderman
erguendo as mãos. — Ah, os nervos, os nervos! Os mistérios
desta máquina chamada Homem! Tão pouco basta para a
desengonçar. Que pobres seres nós somos! Talvez por um
jantar, senhor Fish. Talvez pela conduta de seu filho, que
segundo ouvi dizer era muito descontrolada e que tinha o
hábito de fazer contas em seu nome sem a mínima autoridade!
Um homem muito respeitável. Um dos homens mais
respeitáveis que alguma
186

vez conheci! Um incidente lamentável, senhor Fish. Uma


calamidade pública! Farei questão de trazer luto carregado. Um
homem muito respeitável! Mas lá em cima há Alguém. Temos
de nos submeter, senhor Fish. Temos de nos submeter!
O quê, Alderman? Nem falaste em deitar abaixo? Lembra-te,
magistrado, do teu falatório sobre o orgulho e elevada moral.
Vá lá, Alderman. Põe os pratos da balança a funcionar! Atira-
me para este o vazio, sem jantar, e um exemplar da natureza,
numa pobre mulher, seca pela fome e amadurecida às súplicas
às quais o seu filho tem direito pela santa mãe Eva. Pesa os
dois, meu Daniel, que irás a julgamento quando o teu dia soar!
Pesa-os à vista de milhares que sofrem, essa audiência (não
desinteressada) da farsa que representas. Ou supondo que te
tivesses afastado dos teus cinco sentidos (não vamos tão longe,
mas poderia ser) e deitasses a mão à tua garganta, avisando os
teus amigos (se é que tens amigos) como grasnam a sua
maldade às cabeças em desvario e dos corações aflitos. E
então?
As palavras subiram no peito de Trotty, como se tivessem sido
ditas por outra voz dentro dele. Alderman Cute ofereceu-se ao
senhor Fish para o ajudar a dar a notícia da triste desgraça a Sir
Joseph quando o dia acabou. Então, antes de partirem,
torcendo a mão do senhor Fish com grande amargura de alma,
disse: «Era o mais respeitável dos homens!», e acrescentou que
não sabia (e não era só ele) porque é que no mundo são
permitidas tais desgraças.
— Quase basta para nos fazer pensar, se já não soubéssemos
— disse Alderman Cute —, que naqueles tempos estava em
curso algum movimento de natureza sediciosa, que afectava a
economia geral do sistema social. Deedles Brothers!

187

O jogo de boliche decorreu com imenso sucesso. Sir Joseph


derrubou as marcas com bastante destreza e o menino Bowley
fez uma boa jogada também, a uma distância mais curta. Toda
a gente dizia que agora, quando um baronete e o filho dum
baronete jogavam ao boliche, o país estava a recuperar
novamente e a recuperar depressa.
Na devida altura foi servido o banquete. Involuntariamente
Trotty dirigiu-se para o salão com os outros, pois sentia-se ali
levado mais por um estranho impulso do que por sua livre
vontade. O espectáculo era lindo: as senhoras estavam muito
elegantes e os visitantes encantados, alegres e bem
humorados. Quando se abriram as portas mais baixas e o povo
entrou em rebanho, com os seus fatos rústicos, a beleza do
espectáculo atingiu o auge, mas Trotty murmurava cada vez
mais: «Onde é que está Richard? Ele podia ajudá-la a confortá-
la! Não vejo o Richard!»
Fizeram-se alguns discursos e pediu-se saúde para Lady Bowley
e Sir Joseph Bowley agradeceu e fez o seu grande discurso,
mostrando por factos que ele nasceu para amigo e pai, etc, etc,
e brindou aos seus amigos e filhos e à dignidade do trabalho.
Nisto um pequeno incidente ao fundo do salão atraiu a atenção
de Toby. Depois de alguma confusão, barulho e oposição, um
homem abriu caminho entre os outros e adiantou-se sozinho.
Não era Richard. Não. Mas um em quem ele tinha pensado e
por quem tinha procurado muitas vezes. Com menos luz, teria
duvidado da identidade daquele homem gasto, tão velho, tão
grisalho, tão curvado; mas, com um clarão de luz sobre a
cabeça curtida pelo tempo e emaranhada, reconheceu Will Fern
no momento em que ele avançou.
— Que é isto? — exclamou Sir Joseph, erguendo-se. — Quem é
que deixou entrar este homem? É um criminoso vindo da
prisão! Senhor Fish, quer ter a bondade...

188

— Um momento! — disse Will Fern. — Um momento! Minha


senhora, a senhora nasceu neste dia com o Ano Novo. Dê-me
autorização de falar um momento.
Ela intercedeu por ele. Sir Joseph voltou a sentar-se, com a sua
primitiva dignidade.
O esfarrapado visitante (porque estava miseravelmente
vestido) olhou em volta para a assistência e prestou-lhe
homenagem com uma humilde vénia.
— Meus senhores! — disse ele. — Beberam ao trabalhador.
Olhem para mim!
— Acabou de sair da prisão — disse o senhor Fish.
— Acabei de sair da prisão — disse Will. — E já não é a
primeira vez, nem a segunda, nem a terceira, nem sequer a
quarta.
Ouviu-se o senhor Filer notar de mau humor que quatro vezes
era acima da média e que ele devia ter vergonha.
— Meus senhores! — repetiu Will Fern. — Olhem para mim! Já
viram que estou no pior estado possível. Nada me pode ferir ou
magoar. Não me podeis ajudar, pois o tempo em que as vossas
boas palavras e as vossas boas acções me poderiam ter feito
bem — bateu com a mão no peito e abanou a cabeça — já lá
vai, com o cheiro dos feijões do ano passado ou do trevo.
Deixem-me que lhes diga uma palavra para estes — apontou
para os trabalhadores que estavam no salão — e que enquanto
estão juntos ouçam a verdade dita pelo menos uma vez.
— Não há aqui um homem — disse o anfitrião — que o
quisesse para orador.
— É possível, Sir Joseph. Acredito, mas nem por isso é menos
verdade o que vou dizer. Talvez seja até uma prova disso. Meus
senhores, vivi aqui muito tempo. Podem ver dalém a cabana,
dali da vedação quebrada. Vi muitas vezes as senhoras a
desenhar nos seus livros. Ouvi dizer que ficam muito bem num
quadro, mas nos quadros não há tempo e talvez

189

este lugar seja melhor para quadros do que para se viver. Bom,
ali vivi! Quão duramente, quão amarga e duramente ali vivi,
nem posso dizer. Qualquer dia do ano, e todos os dias, podem
julgar por vós próprios.
Falou como falara na noite em que Trotty o encontrara na rua.
A sua voz era mais profunda e mais rouca e havia nele de vez
em quando uma certa tremura, mas nunca a elevou com paixão
e raramente ela soou mais acima do nível duro e firme dos
próprios factos domésticos que ele relatava.
— É mais duro do que vocês pensam, meus senhores, crescer
decentemente, com um mínimo de decência, num tal lugar. Ter
crescido como um homem, e não como um selvagem, já diz
algo de mim... do que eu era, então. Por aquele que eu sou
agora, nada pode ser dito nem feito. Já ultrapassei essa fase.
— Estou contente por este homem ter entrado — observou Sir
Joseph, olhando em volta, com serenidade. — Não o
interrompam. Parece que foi o destino. Ele é um exemplo, um
exemplo vivo. Tenho esperança, confio e espero
confiantemente que ele não se perca entre os meus amigos
aqui presentes.
— Continuei a arrastar-me — disse Fern após um momento de
silêncio —, de qualquer maneira. Nem eu nem qualquer
homem sabe como, mas tão pesadamente que não podia
mostrar boa cara ou fingir aquilo que não era. Olhem,
cavalheiros, vocês cavalheiros, que vão ao Parlamento, quando
vêem um homem com expressão de descontentamento no
rosto dizem uns para os outros: «É suspeito. Tenho as minhas
dúvidas sobre o Will Fern», dizem, «vigiem esse indivíduo!».
Não digo, meus senhores, que não seja muito natural, mas
assim é e, desse momento em diante, tudo o que Will Fern
fizer, ou deixar de fazer, mas tudo, será contra ele.

190

Alderman Cute meteu os polegares nos bolsos do colete e


recostando-
-se na cadeira, a sorrir, piscou os olhos para o candelabro que
tinha ao lado, para dizer apenas:
— Claro! Bem vos digo. É a lamentação usual! Valha-te Deus,
estamos sujeitos a este tipo de coisas... eu e a natureza
humana.
— Olhem, meus senhores — disse Will Fern, estendendo as
mãos enquanto o seu rosto macilento se ruborizava —, vejam
como as vossas leis são feitas para nos encurralarem e nos
perseguirem, quando chegamos a este estado. Tentei viver
noutro lado. E sou um vagabundo. Cadeia com ele! Volto
novamente, para cá. Vou apanhar nozes e quebro (quem não
faz o mesmo?) um ou dois ramos flexíveis. Cadeia com ele! Um
dos vossos guardas vê-me em pleno dia, junto do meu pedaço
de jardim, com uma arma. Cadeia com ele! Tenho, muito
naturalmente, uma palavra azeda com esse homem quando
saio em liberdade. Cadeia com ele! Corto um pau. Cadeia com
ele! Como um nabo ou uma maçã podre. Cadeia com ele! São
vinte milhas de distância e no caminho peço uma bagatela.
Cadeia com ele! Por fim, o oficial da polícia, o guarda, seja
quem for, vê-me em qualquer lado sem fazer nada. Cadeia com
ele, porque é um vadio, um pássaro de gaiola; e a cadeia é a
única casa que tenho.
Alderman fez um sinal de entendimento com a cabeça, como
se dissesse: «E é uma bela casa!»
— Acham que digo isto para servir a MINHA causa?! —
exclamou Fern. — Quem é que pode devolver-me a minha
liberdade, quem pode devolver-me o meu bom nome, quem
pode devolver-me a minha inocente sobrinha? Nem todos os
lordes e ladies de toda a Inglaterra. Mas, senhores, senhores
que lidais com outros homens como eu, começai pelo princípio.
Dêem-nos, por piedade, melhores casas, quando ainda

191
estamos no berço; dêem-nos melhor alimentação, quando
trabalhamos para viver; dêem-nos melhores leis, para nos
trazer ao bom caminho quando erramos; e não coloquem na
nossa frente sempre a cadeia, a cadeia, a cadeia, para onde
quer que nos viremos. Não haverá então concessão feita ao
trabalhador que ele não aceite tão pronta e agradecidamente
como nenhum homem, porque o seu coração é paciente,
pacífico e condescendente. Mas têm primeiro de pôr nele o
espírito recto; pois quer ele seja um destroço e uma ruína como
eu, ou seja como um destes que aqui estão neste momento, o
seu espírito está separado de vós. Recuperem-no, meus
senhores, recuperem-no! Recuperem-no antes que chegue o
dia em que até no seu espírito alterado a sua Bíblia apareça
modificada e lhes pareça que as palavras dizem, como já a
meus olhos pareceram dizer... na cadeia: «Por onde tu fores eu
não irei, onde habitares eu não habitarei, o teu povo não é o
meu povo, nem o teu Deus é o meu Deus!».
Gerou-se um súbito movimento e uma súbita agitação no
salão. Trotty pensou a princípio que vários se tinham levantado
para expulsar o homem e daí a modificação do seu aspecto.
Mas no momento seguinte viu que a sala e todos os convidados
tinham desaparecido da sua frente e que tinha ali de novo a sua
filha sentada a trabalhar, mas num sótão ainda mais pobre e
humilde e sem Lilian junto dela.
O bastidor a que estivera a trabalhar estava posto numa
prateleira e coberto. A cadeira onde estivera sentada estava
virada para a parede. Nestas pequenas coisas e no rosto de
Meg consumido pelo desgosto estava escrita uma história. Oh!
Quem não a lia!
Meg esforçava os olhos no trabalho antes que fosse escuro de
mais para ver as linhas; e quando a noite caiu,acendeu a débil
vela e
192

continuou a trabalhar. O seu velho pai ali estava invisível junto


dela, amando-a (e como a amava!), falando com ela em voz
terna sobre os velhos tempos e sobre os sinos, embora ele
soubesse, pobre Trotty, que ela não podia ouvi-lo.
Já grande parte do serão tinha passado quando se ouviu uma
pancada na porta. Abriu-a. Estava um homem na soleira. Um
bêbado desmazelado, curvado, taciturno, gasto pelos excessos
e pelo vício e com o cabelo emaranhado e a barba crescida em
terrível desordem; mas mantendo ainda sinais de ter sido na
sua juventude um homem de boa figura e bem parecido.
Deteve-se até ter licença de entrar; e ela, desviando-se um ou
dois passos da porta aberta, olhou-o silenciosa e tristemente. A
vontade de Trotty fizera-se. Já vira Richard.
— Posso entrar, Margaret?
— Sim! Entra, entra!
Ainda bem que Trotty o conhecera antes de ele ter falado;
porque, se alguma dúvida persistisse no seu espírito, aquela voz
áspera e dissonante tê-lo-ia persuadido de que aquele não era
Richard, mas qualquer outro homem.
Só havia duas cadeiras na sala. Deu-lhe a dela e ficou de pé a
pouca distância, esperando o que ele tinha para dizer.
Ele, porém, sentou-se olhando abstractamente o chão, com um
sorriso estúpido e sem brilho. Era uma visão de tão profunda
degradação, de desesperança tão abjecta, de tão infeliz
descalabro que ela pôs as mãos no rosto e virou-se, para que
ele não visse quanto ela se emocionava.
Despertado pelo roçagar do vestido dela, ou por qualquer som
insignificante, ergueu a cabeça e começou a falar como se não
tivesse havido qualquer interrupção desde que entrara.

193

— Ainda estás a trabalhar, Margaret? Trabalhas até tarde?


— Geralmente trabalho.
— E de manhã cedo?
— De manha cedo.
— Ela bem dizia. Dizia que nunca te cansavas ou que nunca
dava por tu te cansares, enquanto viveram juntas. Nem quando
desmaiaste devido ao trabalho e ao jejum. Eu disse-te isso da
última vez que cá estive.
— Disseste — respondeu ela. — E eu supliquei-te que não me
contasses mais nada; e tu prometeste-me solenemente,
Richard, que não mais dirias.
— Foi uma promessa solene — repetiu ele com voz fátua e um
olhar vazio. — Foi uma promessa solene. Foi mesmo uma
promessa solene! — Estando como já estivera e sendo
despertado como antes, disse com súbita animação: — Como
posso evitar, Margaret? Que hei-de fazer? Ela voltou a ir ter
comigo!
— Outra vez? — exclamou Meg pondo as mãos. — Oh, ela
pensa assim tanto em mim? Esteve lá outra vez?
— Voltou lá vinte vezes — disse Richard. — Margaret, ela
persegue-
-me. Vem atrás de mim na rua e enfia-mo na mão à força.
Ouço-lhe o pé sobre as cinzas quando trabalho (ah, ah!, isso
não é muitas vezes) e, antes que eu possa virar a cabeça, a voz
dela diz-me ao ouvido: «Richard, não te vires. Por amor de
Deus, dá-lhe isto!». Ela manda-mo a casa, manda-o por carta,
bate-me à janela e pousa-o no parapeito. — Que é que tu posso
fazer? Olha!
Estendeu a mão com uma pequena bolsa e chocalhou o
dinheiro que lá havia dentro.
— Esconde isso — disse Meg. — Esconde isso! Quando ela
voltar, diz-
-lhe, Richard, quando ela voltar, que a amo de todo o coração.
Que nunca me deito para dormir que não a abençoe e reze por
ela. Que no meu trabalho solitário nunca deixo de a ter no
pensamento. Que ela

194

está comigo dia e noite. Que se eu morresse amanhã, no meu


último momento lembrá-la-ia, mas que não posso olhar para
isso!
Lentamente ele voltou a encolher a mão e a esmagar a bolsa e
disse numa espécie de reflexão sonolenta:
— Eu já lhe tinha dito isso. Disse-lho tão claramente quanto é
possível. Desde aí já peguei nesta oferta e voltei a pô-la à porta
uma dúzia de vezes. Mas quando por fim ela veio e se pôs na
minha frente, cara a cara, que é que eu podia fazer?
— Viste-a! — exclamou Meg. — Viste-a! Oh, Lilian, minha
pequenina! Oh, Lilian, Lilian!
— Vi-a — continuou ele, não em resposta, mas embrenhado na
mesma toada lenta dos seus pensamentos.
— Ela ali estava: a tremer! «Como está ela, Richard? Ela fala
alguma vez em mim? Está mais magra? No meu antigo lugar, à
mesa, que é que está? E o bastidor em que me ensinou o nosso
velho trabalho, já o queimou, Richard?» Ela ali estava e foi o
que eu a ouvi dizer.
Meg conteve os soluços e com as lágrimas a correr curvou-se
para ele para ouvir. Não queria perder nem um suspiro.
Prosseguia com os braços pousados nos joelhos e inclinando-se
para a frente na cadeira, como se o que dizia estivesse escrito
no chão em caracteres dificilmente legíveis, que a ele competia
decifrar e coordenar.
— «Richard, eu desci muito baixo e deves calcular quanto sofri
para devolver isto, quando tenho de to trazer em mão. Mas tu
amaste-a muito, mesmo em minha memória. Outras coisas se
interpuseram entre vós; medos, ciúmes, dúvidas e vaidades
afastaram-te dela, mas tu amáva-la mesmo em minha
memória!» Acho que amava — disse ele interrompendo-se por
um momento. — Amava! E isso todos sabem. «Oh,

195

Richard, se a amaste alguma vez, se te resta alguma lembrança


do que já lá vai e já se perdeu, leva-lhe isto mais uma vez. Mais
uma vez! Diz-lhe como deitei a minha cabeça no teu ombro,
onde a poderia ter repousado e como fui humilde contigo,
Richard. Diz-lhe que olhaste para o meu rosto e viste que a
beleza, que ela costumava elogiar, desaparecera por completo,
por completo, e que em seu lugar viste uma face infeliz, pálida,
encovada, que a faria chorar se ela a visse. Diz-lhe tudo e leva-
lho de novo, que ela não há-de recusá-lo outra vez. Não terá
coragem!»
Ele ficou ali sentado, assim, repetindo as últimas palavras até
despertar de novo e levantar-se.
— Não aceitas, Margaret?
Ela abanou a cabeça e fez-lhe sinal de que a deixasse.
— Boa noite, Margaret.
— Boa noite!
Ele virou-se para a olhar, tocado pelo seu desgosto e talvez
pela pena que por ele sentia e que se reflectia na sua voz
tremente. Foi um movimento rápido; e por um momento
brilhou na sua silhueta um lampejo do seu antigo porte. Logo
voltou como tinha vindo. Mas nem esta centelha de fogo
apagado pareceu acender nele uma mais subtil percepção da
sua degradação.
Com qualquer disposição, qualquer desgosto, qualquer tortura
de espírito ou de corpo, o trabalho de Meg tem de ser feito. Ela
sentou-
-se ao trabalho e trabalhou com afinco. Noite, meia-noite e
ainda ela trabalhava.
A noite estava muito fria e ela só tinha um lume muito pobre.
Levantava-se de vez em quando para o espevitar. Estava assim
ocupada quando os sinos bateram a meia-noite e meia; e,
quando se calaram, ouviu uma leve pancada na porta. Antes
que pudesse perguntar-se quem seria, a uma hora tão
imprópria, ela abriu-se.

196
Ó juventude e beleza, felizes como vós deveis ser, olhai para
isto. Ó juventude e beleza, abençoada e abençoando tudo o
que está ao teu alcance e cumprindo os fins do teu benévolo
Criador, olha para isto!
Ela viu a figura que entrava, gritou o seu nome, exclamou:
— Lilian!
Ela precipitou-se e caiu-lhe de joelhos aos pés, agarrando-se-
lhe ao vestido.
— Upa, Lilian! De pé! Minha queridinha!
— Nunca mais, Meg, nunca mais! Aqui, aqui! Próximo de ti,
abraçando-
-te, sentindo o teu hálito no meu rosto!
— Querida Lilian! Adorada Lilian! Filha do meu coração, deita a
tua cabeça no meu peito. Não há amor de mãe mais terno do
que este.
— Nunca mais, Meg. Nunca mais! Quando te vi pela primeira
vez, Meg, ajoelhaste diante de mim. Agora ajoelho-me eu,
antes que morra. Deixa-me aqui estar!
— Voltaste, meu tesouro! Viveremos juntas, trabalharemos
juntas, juntas teremos esperança e juntas morreremos!
— Ah, beija-me, Meg, envolve-me com os teus braços, aperta-
me ao teu peito, olha-me com doçura, mas não me ergas.
Deixa-me estar. Deixa-me ver pela última vez o teu rosto, de
joelhos!
Ó juventude e beleza, felizes como deveis ser, olhai para isto!
Ó juventude e beleza, cumprindo os fins designados pelo vosso
benévolo Criador, olhai para isto!
— Perdoa-me, Meg! Querida, querida! Perdoa-me! Sei que me
perdoas, vejo-o, mas diz-mo, Meg!
Ela disse-o com os lábios na face de Lilian e com os braços em
torno do que ela sabia agora ser um coração despedaçado.

197

— Que a Sua benção desça sobre ti, minha querida. Beija-me


uma vez mais! Ele deixou que ela se sentasse a Seus pés e lhos
secasse com o seu cabelo. Ó Meg, que piedade e que
compaixão!
Mal ela morreu, o espírito da criança regressou inocente e
radiante, tocou o velho com a mão e acenou-lhe que se
afastasse.

Quarto quarto

Uma nova lembrança das fantasmagóricas figuras dos sinos;


uma ténue impressão do som dos sinos; uma confusa
consciência de ter visto a multidão de fantasmas reproduzidos
e reproduzidos até a reminiscência deles se perder na confusão
do seu número; um conhecimento apressado, que ele não sabia
como lhe tinha chegado, de que mais anos tinham passado; e
Trotty, com o espírito da criança acompanhando-o, continuava
a observar o mundo dos mortais.
Gente gorda, corada, bem instalada. Só havia dois, mas eram
corados por dez. Estavam sentados em frente dum lume
brilhante, com uma mesinha baixa entre eles; e a menos que a
fragrância do chá quente e dos bolinhos se misturasse por mais
tempo naquela salinha do que em muitas outras, a mesinha
tinha sido utilizada muito recentemente. Todas as chávenas e
pires, porém, estavam limpas e no seu lugar na cantoneira; e o
garfo de grelhados, de cobre, estava no seu recanto habitual,
com os seus quatro dentes ociosos bem abertos como se
quisesse parecer-se com uma luva; não havia outros indícios
visíveis da refeição que tinha terminado, a não ser no ronronar
e no lamber dos bigodes do gato e o brilho nas faces afáveis,
para não dizer gordas, dos seus donos.
Este confortável casal (casado, evidentemente) dividira entre si
muito justamente o lume e estavam sentados olhando as
brilhantes

199

centelhas que caíam na grelha, ora escabeceando sonolentos,


ora acordando quando algum fragmento quente, maior do que
os outros, caía ressoando como se o lume viesse atrás dele.
Não havia, porém, perigo de se apagar rapidamente, porque
brilhava não só na salinha, como nas bandeiras da porta e na
cortina semicorrida sobre elas, mas também na pequena loja
que ficava para lá da porta. Era uma lojazinha completamente
atafulhada e atravancada com a abundância das suas provisões,
uma lojazinha perfeitamente voraz, com um ventre tão
acomodatício e tão cheio como o de um tubarão. Queijo,
manteiga, lenha, sabão, pickles, fósforos, toucinho fumado,
cerveja, pitorras, frutas cristalizadas, papagaios para os
garotos, sementes para pássaros, presunto frio, vassouras de
vidoeiro, pedras de lareira, sal, vinagre, graxa, arenques, artigos
de escritório, toucinho, molho picante de cogumelos, rendas
para cor-petes, pães, pélas, ovos e penas de ardósia; nesta loja
ávida, tudo que vinha à rede era peixe e na sua rede havia
todos os artigos. Seria difícil dizer quantas outras qualidades de
miudezas lá havia, mas do tecto pendiam em molhos como
frutos exóticos: novelos de fio para coser fardos, fiadas de
cebolas, libras de velas, redes de couves e escovas, enquanto
várias canastras esquisitas, donde se desprendiam odores
aromáticos, confirmavam a veracidade da inscrição na porta da
frente, a qual informava o público de que o dono desta
lojazinha era um acreditado comerciante de chá, café, tabaco,
pimenta e rapé.
Deitando uma olhadela a tais artigos, visíveis ao brilho da
lareira e à luz menos radiante de dois candeeiros enfarruscados
que ardiam obscuramente na loja propriamente dita, como se a
sua abundância lhe pesasse nos pulmões; olhando, então, para
um desses rostos junto da lareira da sala, Trotty teve pouca
dificuldade em reconhecer na velha

200

e imponente senhora a senhora Chickenstalker, sempre com


tendência para a obesidade, mesmo já nos tempos em que ele
a conhecera no comércio geral e tendo uma dívida dele nos
seus livros.
Os traços do seu companheiro eram-lhe menos distintos. O
queixo grande e profundo, com grandes pregas onde caberia
um dedo; os olhos espantados, que pareciam contender entre
si para se afundarem cada vez mais na gorda cara; o nariz
perturbado com a desordenada acção das suas funções,
normalmente denominada de catarro nasal; a garganta curta e
grossa e o peito arfante; e outras belezas de descrição
semelhantes que, ainda que calculadas para impressionar a
memória, Trotty não conseguia atribuir a ninguém que tivesse
conhecido, mas das quais tinha no entanto ideia. Por fim, a
traços gerais e seguindo uma linha da vida torta e defeituosa,
ele reconheceu no companheiro da senhora Chickenstalker o
antigo lacaio de Sir Joseph Bowley, um inocente apoplético que
na mente de Trotty se ligara à senhora Chickenstalker anos
antes, por lhe ter dado entrada na mansão onde ele confessara
as suas dívidas para com essa senhora e atraíra sobre a sua
infeliz pessoa graves censuras.
Trotty tinha pouco interesse em tal modificação, depois das
modificações a que tinha assistido; mas a associação é por
vezes muito forte e ele olhou involuntariamente para trás da
porta da sala, onde costumavam estar anotadas a giz as contas
dos clientes que deviam. Não havia qualquer registo do seu
nome. Estavam lá alguns nomes, mas que ele não conhecia e
que eram muitíssimo menos do que os antigos; do que ele
depreendeu que o lacaio advogava as transacções a pronto e ao
entrar no negócio tinha passado a olhar com severidade os
devedores da senhora Chickenstalker.
Trotty estava tão desolado, tão choroso pela juventude e pelo
futuro

201

da sua menina estiolada, que para ele fora uma tristeza até o
facto de não constar no livro razão da senhora Chickenstalker.
— Que tempo faz esta noite, Anne? — inquiriu o antigo lacaio
de Sir Joseph Bowley, estendendo as pernas em frente do lume,
esfregando-as tanto quanto os seus braços curtos permitiam,
com um ar que dizia: «Se está mau, aqui estou; e se está bom,
não quero sair».
— Faz vento e está a cair granizo — respondeu-lhe a mulher —
e ameaça nevar. Está escuro e muito frio.
— Estou contente por pensar que temos bolinhos — disse o ex-
lacaio, no tom de alguém que tivesse posto a consciência em
descanso: — É mesmo o género de noite talhada para os
bolinhos, bem como para bolos finos e para bolinhos de chá.
O ex-lacaio mencionava sucessivamente cada tipo de
comestível, como se enumerasse contemplativamente as suas
boas acções. Depois disso voltou a esfregar as pernas gordas,
como anteriormente fizera, puxando-as pelos joelhos para que
o fogo desse nas partes ainda não assadas, rindo-se como se
alguém lhe estivesse a fazer cócegas.
— Estás contente, meu querido Tugby — observou a mulher.
A firma era Tugby, ex-Chickenstalker.
— Não — disse Tugby. — Não, nem por isso. Estou um bocado
excitado. Os bolinhos caíram-me mesmo bem!
Ao dizer isto riu-se até ficar negro e custou-lhe tanto a mudar
de cor que as suas pernas gordas fizeram as mais estranhas
evoluções no ar. Só adquiriram um certo decoro quando a
senhora Tugby lhe deu violenta palmada nas costas e o abanou
como se ele fosse uma grande garrafa.

202
— Valha-me Deus, Deus seja louvado, o senhor nos acuda! —
exclamou a senhora Tugby muito assustada. — Que é que ele
está a fazer?
O senhor Tugby esfregou os olhos e repetiu debilmente que
estava um pouco excitado.
— Então não voltes a estar, por amor de Deus — disse a
senhora Tugby —, se não queres matar-me de susto, com esse
lutar e esbracejar!
O senhor Tugby disse que não, mas toda a sua existência era
uma luta, da qual, a julgar pela brevidade sempre aumentada
da sua respiração e da cor púrpura escura do seu rosto, ele
estava sempre a sair vencido.
— Está então a fazer vento, a cair granizo e a ameaçar neve; e
está escuro e muito frio, minha querida? — disse o senhor
Tugby, olhando para o lume, regressando ao âmago e à
essência da sua meditação temporária.
— Está mesmo mau tempo — respondeu-lhe a mulher
abanando a cabeça.
— Hum, hum! Os anos são, nesse aspecto, como os cristãos —
disse o senhor Tugby. — Uns morrem facilmente, outros
morrem dificilmente. Este já não tem muitos dias para viver e
está a lutar pelos que lhe restam. Assim ainda gosta mais dele.
Olha, minha querida, está ali um cliente!
Atenta à porta que tilintava, a senhora Tugby já se tinha
levantado.
— Já lá vai! — disse a senhora, passando para a loja. — Que
deseja? Oh, desculpe, senhor. Não pensei que fosse o senhor.
Ela pediu estas desculpas a um senhor de preto que, de punhos
arregaçados, com o chapéu descuidadamente posto de lado e
de mãos nos bolsos, estava sentado escarranchado no barril da
cerveja e lhe acenou com a cabeça em resposta.

203

— Lá em cima a coisa vai mal, senhora Tugby — disse o


cavalheiro. — O homem não resiste.
— Nem o sótão das traseiras resiste! — gritou Tugby,
aparecendo na loja para se juntar à reunião.
— O sótão das traseiras, senhor Tugby — disse o cavalheiro —,
vai desabar em breve, e muito em breve ficará abaixo da cave.
Olhando ora para Tugby, ora para a mulher, fez ressoar com os
nós dos dedos as profundezas do barril, procurando o fundo à
cerveja e, tendo-o encontrado, tocou uma melodia na parte
vazia.
— O sótão das traseiras, senhor Tugby — disse o cavalheiro,
enquanto aquele permanecia numa consternação silenciosa,
durante uns momentos —, está a ir-se.
— Então — disse Tugby, virando-se para a mulher —, ele tem
de ir antes que se acabe, já sabes.
— Acho que não conseguem movê-lo — disse o cavalheiro,
abanando a cabeça. — Eu próprio não tomaria a
responsabilidade de dizer que ele podia ser mudado. Faziam
melhor deixá-lo onde está. Pode viver mais tempo.
— É o único assunto sobre o qual discutimos, ele e eu; e veja o
que deu! — disse Tugby, fazendo baixar sobre o balcão com
estrondo a balança da manteiga, sob o peso do seu pulso. — No
fim de contas, ele vai morrer aqui. Vai morrer aqui! Vai morrer
em nossa casa!
— E onde é que ele havia de morrer? — gritou-lhe a mulher.
— No asilo — respondeu-lhe ele. — Para que é que servem os
asilos?
— Para aquele, não! — disse a senhora Tugby com grande
energia. — Para aquele não! Nem foi para isso que eu casei
contigo. Não penses nisso, Tugby. Não tolero. Não permito.
Antes queria separar-me de ti e nunca mais te ver. Quando o
meu nome de viúva estava naquela porta,

204

como esteve durante muitos anos, esta casa era conhecida por
toda a gente como a da senhora Chickenstalker e só pelo seu
crédito honesto e pelas suas boas referências. Quando o meu
nome de viúva estava sobre aquela porta, Tugby, eu conheci-o
como um jovem bem parecido, vigoroso, másculo e
independente, e conheci-a a ela, a rapariga mais doce que
jamais conheci. Conheci o pai dela (pobre velhote, caiu do
campanário durante o sono e morreu) como o homem mais
simples, mais trabalhador, de coração mais puro que jamais
existiu. E quando eu os expulsar da minha casa e do meu lar,
que os anjos me expulsem do Céu. Que assim faça e é bem
feito!
A cara dela, que antes de se darem estas modificações era
balofa e com covinhas, parecia superá-la, ao dizer estas
palavras; e quando ela secou os olhos e abanou a cabeça e o
lenço para Tugby, com uma expressão de determinação a que
era evidente não se poder facilmente resistir, Trotty disse:
«Abençoada seja! Abençoada seja!».
Escutou depois, com o coração ofegante, o que se seguiria.
Sabendo apenas naquela altura que falavam de Meg.
Se Tugby tivesse sido mais nobre na sala, talvez tivesse
ajustado aquelas contas, sem ficar um pouco deprimido na loja,
onde estava agora olhando fixamente para a sua mulher, sem
tentar sequer dar resposta; levando porém em segredo (ou por
acesso de abstracção ou por medida de precaução), nos bolsos,
o dinheiro da caixa registadora, enquanto a fitava. O cavalheiro
que estava em cima da pipa de cerveja, que parecia ser médico
autorizado, com tabuleta, estava evidentemente habituado a
pequenas diferenças de opinião entre marido e mulher, para
fazer naquele momento qualquer observação. Permanecia
sentado, assobiando calmamente e deixando cair no chão
pequenas gotas de cerveja, até se restabelecer a completa
calma. Foi

205

então que levantou a cabeça e disse à senhora Tugbv, ex-


Chickenstalker:
— Mesmo agora há algo de interessante na mulher. Como é
que ela casou com ele?
—Ah, essa — disse a senhora Tugby, sentando-se junto dele —,
essa não é a parte menos cruel da sua história. Sabe, eles
andaram juntos há muitos anos. Quando eram um casal jovem
e belo, tudo estava destinado e eram para se casar num dia de
Ano Novo. Richard, porém, meteu na cabeça, por conselho do
senhor, que faria melhor e que depressa se arrependeria e que
ela não era suficientemente boa para ele e que um jovem
alegre não devia casar-se. O senhor assustou-a e despertou
nela a melancolia e o receio de que ele a deixasse, de que os
seus filhos fossem para as galés e de que fossem maus para
marido e mulher e sei lá quantas coisas mais. Resumindo:
foram adiando, adiando e quebrou-se a confiança mútua e por
fim desfez-se o compromisso. Mas a culpa foi dele. Ela teria
casado com ele de bom grado. Vi-a muitas vezes, depois disso,
engolir em seco quando ele passava por ela de maneira
desinteressada e orgulhosa e nunca uma mulher sofreu mais
sinceramente por um homem do que ela por Richard, quando
ele começou a andar mal.
— Oh, ele procedeu mal, não procedeu? — disse o cavalheiro
tirando a rolha do barril e tentando espreitar lá para dentro
pelo buraco.
— Bem, eu não sei se ele estava em si, sabe. Acho que ele tinha
a mente perturbada, por terem rompido e além disso por ter
sido envergonhado perante os senhores e também talvez pela
incerteza de como ela aceitaria. Ele deve ter sofrido e passado
por uma certa provação, tendo quebrado o compromisso com
Meg e tendo voltado a pe-dir-lhe a mão. Isto é o que eu penso.
Que ele nunca o disse e ainda mais é de lastimar! Entregou-se à
bebida, à ociosidade, às más

206

companhias, todas as tais coisas que seriam melhores para ele


do que um lar. Perdeu o seu bom aspecto, a sua personalidade,
a sua saúde, as suas forças, os seus amigos, o seu trabalho,
tudo!
— Não perdeu tudo, senhora Tugby — replicou o cavalheiro —,
porque ganhou uma esposa, e quero saber como é que ele a
ganhou.
—Já lá vou, dentro de momentos. Isto continuou durante anos
e anos. Ele cada vez mais se afundava. Ela, pobrezinha, sofria
miséria que chegava para lhe tirar a vida. Por fim, estava tão
abatido e era tão repudiado que já ninguém lhe dava trabalho
nem lhe ligava; fosse onde fosse, todas as portas se lhe
fechavam. Pedindo aqui e ali e de porta em porta e indo pela
centésima vez ter com um senhor que já muitas vezes lhe dera
oportunidades (ele foi até ao fim sempre um bom trabalhador),
esse senhor, que conhecia a sua história, disse-lhe: «Acho que
és incorrigível, só há uma pessoa no mundo que pode emendar-
te. Até ela o tentar, não me peças que confie mais em ti».
Disse-lhe uma coisa assim deste género, para sua cólera e
vexame.
— Ah! — disse o cavalheiro. — E então?
— Então, ele foi ter com ela, ajoelhou-se, disse-lhe que era
assim e que sempre fora assim e implorou-lhe que o salvasse.
— E ela?... Não se aflija, senhora Tugby.
— Ela veio ter comigo naquela noite, pedir-me para viver aqui.
«O que ele um dia foi para mim», disse ela, «está enterrado
numa sepultura, lado a lado com o que eu fui para ele. Mas
pensei nisto e tomei a decisão. Na esperança de o salvar, pelo
amor daquela jovenzinha feliz (lembra-se dela?) que se ia casar
no dia de Ano Novo e por amor de Richard.» E disse que ele
tinha vindo ter com ela, da parte de Lilian e que Lilian confiava
nele e ela não podia esquecer

207
isso. Assim se casaram; e quando vieram para aqui morar e eu
os vi, tive esperança que as tais profecias que os apartaram em
novos não se cumpririam, frequentemente, como neste caso se
cumpriram, ou não queria ser eu a fazê-las nem por uma
montanha de ouro. O cavalheiro saltou do barril e espreguiçou-
se, observando:
— Ele começou logo que casaram a fazê-la sofrer, não?
— Acho que nunca o fez — disse a senhora Tugby, abanando a
cabeça e limpando os olhos. — Ele melhorou durante algum
tempo, mas os seus hábitos eram demasiado velhos e fortes
para se livrar deles. Em breve decaiu um pouco, estava já a
voltar atrás intensamente, quando foi assaltado pela doença.
Acho que ele sempre gostou dela. Tenho a certeza. Vi-o, nos
seus acessos de tremores e de gritos, tentar beijar-lhe a mão e
ouvi-o chamar «Meg» e dizer que era o dia em que ela fazia
dezanove anos. Agora ali está na cama há semanas ou meses.
Entre ele e o bebé, ela não tem tido tempo de fazer o seu
antigo trabalho; e, não podendo ser regular, perdeu-o, e
mesmo que pudesse perdê-lo-ia. Como têm sobrevivido, não
sei!
— Sei eu — resmungou o senhor Tugby, olhando para a caixa
registadora, para toda a loja e para a mulher e rodando a
cabeça significativamente. — Comem e bebem do melhor!
Foi interrompido por um grito (em tom de lamentação)
proveniente do andar superior. O cavalheiro dirigiu-se
apressadamente para a porta.
— Meu amigo — disse ele olhando para trás —, já não precisa
de discutir se ele deve ser mudado, se não. Creio que já lhe
poupou esse trabalho.
Dizendo isto, correu escada acima, seguido pela senhora
Tugby, enquanto o senhor Tugby resfolegava e resmungava,
seguindo-os com todo o vagar, com a respiração mais curta do
que habitualmente, pelo

208

peso da caixa que continha uma quantidade despropositada de


moedas. Trotty, com a criança ao lado, flutuou pela escada
como o ar.
— Segue-a, segue-a, segue-a! — ouviu as fantasmagóricas
vozes dos sinos repetirem as palavras enquanto subia. —
Aprende com a criatura que te é mais querida!
Tudo estava acabado. Tudo estava acabado. E era ela, a alegria
e o orgulho do seu pai! Aquela mulher macilenta e desprezível,
que chorava junto à cama, se é que aquilo assim se podia
chamar, apertando ao peito e inclinando a cabeça sobre uma
criança. Sabe Deus como aquela criança era magra, enfermiça e
infeliz. E sabe Deus quão amada!
— Graças a Deus! — exclamou Trotty, erguendo as mãos
postas. — Oh, Deus seja louvado! Ela ama o filho!
O cavalheiro, embora não indiferente ou endurecido perante
tais cenas, tanto mais que as via todos os dias, sabia que elas
eram números de qualquer momento nos registos do Criador —
meros riscos na trama daqueles cálculos —, pousou a mão no
coração que já não batia, escutou a respiração e disse: «O seu
sofrimento já acabou. Foi melhor assim!». A senhora Tugby
tentou confortá-la ternamente. O senhor Tugby optou pela
filosofia.
— Pronto, pronto! — dizia ele de mãos nos bolsos. — Não deve
desesperar. Isso não resolve nada. Deve lutar. O que teria sido
de mim se eu tivesse desistido quando era lacaio, chegámos a
ter seis carruagens à porta para fugirmos! Mas recorri à minha
força de espírito e não as abri!
Trotty ouviu novamente as vozes dizerem: «Segue-a!». Virou-
se para o seu guia e viu-o erguer-se e atravessar o ar. «Segue-
a!», disse ele e desapareceu!
Ele pairou em torno dela e sentou-se a seus pés. Olhou-lhe o
rosto, procurando nele o seu antigo eu e escutou uma nota da
sua agradável

209

voz. Esvoaçou em volta da criança, tão gasta, tão envelhecida


prematuramente, tão terrível na sua seriedade, tão queixosa no
seu choro dócil, lamentoso e triste. Quase que venerava.
Agarrou-se a ela como uma tábua de salvação, como o último
elo inquebrável que a ligasse à capacidade de sofrer. Punha na
frágil criança as esperanças e a confiança do seu pai, observava
cada olhar dela para o bebé, quando o tinha nos braços, e
exclamava milhares de vezes: «Ela ama-o! Deus seja louvado,
ela ama-o!».
Ele via a mulher fazer-lhe companhia à noite, voltar para junto
dela, quando o marido rabugento já estava a dormir e tudo
estava em silêncio, encorajá-la e chorar com ela e pôr-lhe
comida. Ele via nascer o dia e a noite, passar o tempo, a casa
mortuária liberta da morte, o compartimento entregue a ela e à
criança que lamuriava e chorava. Viu-o cansá-la, esgotá-la e
quando ela caía de exaustão, fazê-la recuperar consciência e
agarrar-se a ela com as suas mãozitas no bastidor, mas ela era
solitária, terna e paciente com ele. Paciente! Era a sua querida
mãe no mais fundo do seu coração e da sua alma e tinha o seu
ser tão ligado ao dela como quando ainda não tinha nascido e
ela o trazia dentro de si.
Durante todo este tempo ela passava necessidades,
definhando em horrível e miserável necessidade. Com a criança
nos braços batia a todas as portas procurando trabalho; com a
carita magra deitada no colo e olhando a sua, ela fazia qualquer
trabalho por uma quantia miserável. Um dia e uma noite de
trabalho por tantos farthing quantos os números do mostrador
do relógio. Podia por um momento aborrecer-se com ela,
descurá-la, olhá-la com uma ira de momento, ou bater-lhe na
irritação dum instante! Não. Ela era o seu conforto, amava-a
sempre.
Não falava a ninguém da sua miséria e vagueava por longe
durante o

210

dia para não ser interpelada pela sua única amiga, porque
algum auxílio que recebia dela ocasionara recentes discussões
entre a boa mulher e o marido e para ela era mais um desgosto
ser a causa diária de contendas e discussões, numa casa onde
tanto devia.
Mesmo assim amava a criança. Amava-a cada vez mais. Mas
operou-se uma modificação na forma do seu amor. Uma noite.
Cantava levemente para a adormecer e passeava de cá para lá,
embalando-a, quando a porta se abriu suavemente e um
homem espreitou para dentro.
— Pela última vez — disse ele.
— William Fern!
— Pela última vez!
Pôs-se à escuta como um homem que é perseguido e falou em
surdina.
— Margaret, a minha corrida está quase a chegar ao fim. Não
podia acabá-la sem uma palavra de despedida para ti. Sem uma
palavra de gratidão.
— Que é que fizeste? — perguntou, olhando-o aterrorizada.
Ele olhou-a, mas não lhe deu resposta.
Depois de um curto silêncio, fez um gesto com a mão, como se
quisesse afastar a pergunta dela, como se a varresse; e disse:
— Já lá vai muito tempo, Margaret, mas essa noite está tão
fresca na minha memória como sempre esteve. Mal sabíamos
nós, então — completou o que dizia olhando em volta —, que
nos viríamos a encontrar assim. É o teu filho, Margaret? Deixa-
me pegar-lhe. Deixa-me pegar no teu filho.
Pôs o chapéu na mão e pegou-lhe. E tremia ao olhá-lo da
cabeça aos pés.
— É uma menina?

211

— É.
Ele pôs a mão em frente da carinha do bebé.
— Estás a ver como estou fraco, Margaret, preciso até de
arranjar coragem para olhar para ela! Deixa-a estar por um
momento. Não lhe faço mal. Já lá vai muito tempo, mas...
Como se chama?
— Margaret! — respondeu ela rapidamente.
— Ainda bem — disse ele. — Ainda bem!
Parecia respirar mais à vontade; e depois de se calar por um
momento, retirou a mão e olhou para a cara da criança, mas
voltou a cobri-la imediatamente.
— Margaret! — disse ele, devolvendo-lhe a criança. — É a
Lilian.
— A Lilian!
— Tive o mesmo rosto nos meus braços quando a mãe de Lilian
morreu e a deixou!
— Quando a mãe de Lilian morreu e a deixou! — repetiu ela
asperamente.
— Falas tão asperamente! Porque é que me fixas assim?
Margaret!
Ela afundou-se na cadeira e apertou a criança ao peito,
chorando sobre ela. Às vezes aliviava o abraço, para olhar
ansiosamente a sua carita, apertando-a depois contra o peito,
novamente. Nessas alturas, quando a fitava, havia algo de
terrível e cruel que começava a místurar-se ao seu amor. Foi
então que o seu velho pai desanimou.
«Segue-a!», ouviu-se na casa. «Aprende com a pessoa a quem
mais amas!»
— Margaret — disse Fern, inclinando-se sobre ela e beijando-a
na testa —, agradeço-te pela última vez. Boa noite. Adeus! Põe
a tua mão na minha e diz-me que a partir deste momento me
esquecerás e tenta pensar que eu acabei aqui.
— Que é que fizeste? — perguntou ela novamente.

212

— Esta noite vai haver um fogo — disse ele, afastando-se dela.


— Neste Inverno vai haver fogos para iluminar a noite escura,
no Norte, no Sul, no Leste e no Oeste. Quando vires o céu
ardente ao longe, já sabes que há um fogo. Quando vires o céu
vermelho, não penses mais em mim; ou, se pensares, lembra-te
do inferno que eu tenho aceso em mim e pensa que vês as suas
chamas reflectidas nas nuvens. Boa noite. Adeus!
Ela chamou-o, mas ele já se fora. Sentou-se estupidificada, até
que o seu filho a despertou para uma sensação de frio, fome e
escuridão. Passeou-o toda a noite pelo quarto, embalando-o e
mimando-o. De vez em quando dizia: «Como Lilian, quando a
mãe morreu e a deixou!». Porque seria o seu passo tão rápido,
o seu olhar tão duro, o seu amor tão áspero e terrível sempre
que repetia aquelas palavras?
— Mas é amor — dizia Trotty. — É amor. Ela nunca deixará de
amá-la. Minha pobre Meg!
No dia seguinte vestiu a criança com o mesmo cuidado
(trabalho vão em tão pobres vestes) e mais uma vez tentou
encontrar meios de sobrevivência. Era o último dia no ano
velho. Tentou até à noite, sem nunca ter quebrado o jejum.
Tentou em vão.
Misturou-se com uma multidão abjecta que esperava na neve
até que aprouvesse a um funcionário, designado para praticar a
caridade pública (a caridade institucionalizada, não aquela que
foi pregada no Monte), chamá-los e dizer a este: «Vai para tal
sítio», e ao outro: «Volta cá para a semana», fazendo bola de
um outro desgraçado, pas-sando-o daqui para ali, de mão para
mão, de casa para casa, até que esgotado se estenda para
morrer, ou, despertado, roube, tornando-se assim um
criminoso da pior espécie, cujas reivindicações não merecem
adiamento. Aqui também nada conseguiu.

213

Amava o seu filho e desejava tê-lo deitado no seu regaço e isso


bastava-lhe.
Era noite, uma noite gelada, escura e cortante, quando,
apertando ao peito a criança para a aquecer, chegou junto da
casa a que chamava lar. Estava tão fraca e atordoada que não
viu ninguém na soleira da porta senão quando já estava muito
perto e ia a entrar. Reconheceu então o dono da casa que se
tinha colocado (e com a sua figura não era difícil) por forma a
tapar toda a entrada.
— Oh! — disse ele baixinho. —Já voltaste? Ela olhou para a
criança e abanou a cabeça.
— Não achas que já aqui viveste tempo suficiente, sem pagares
renda? Não achas que, sem dinheiro, tens sido uma cliente
muito regular nesta loja? — disse o senhor Tugby.
Ela repetiu o mesmo apelo mudo.
— E se tentasses a sorte por outro lado? — disse ele. — E se
arranjasses outro alojamento? Vá lá! Achas que não
conseguias?
Ela disse em voz baixa que já era muito tarde. Amanhã.
— Ah, já sei o que queres e o que pensas — disse Tugby. —
Sabes que nesta casa há duas posições a teu respeito e gostas
de as ver em conflito. Não quero discussões. Estou a falar baixo
para evitar discussões; mas, se não te vais embora, falarei alto
e vais provocar palavras em tom suficientemente alto para te
satisfazer. Mas entrar, não entras. A isso estou decidido.
Ela atirou o cabelo para trás com a mão e olhou de certa forma
para o céu e para o escuro que descia.
— Esta é a última noite do ano velho e não quero levar para o
ano novo animosidade, questões e preocupações. Esse gosto
não te faço nem a ti, nem a ninguém — disse Tugby, que era
um verdadeiro amigo e pai de pacotilha.

214

— Admira-me que não te envergonhes de entrar o ano com


acções dessas. Se não tens no mundo outra função senão
cederes sempre e estares sempre a provocar aborrecimentos
entre marido e mulher, então melhor seria desapareceres. Vai-
te embora.
«Segue-a! Segue-a no desespero!»
Novamente o velho ouviu as vozes. Olhando para cima viu as
figuras pairando no ar e apontando para onde ela ia, descendo
a rua escura.
— Ela ama-o! — exclamou, numa súplica agonizante por ela. —
Sinos! Ela ainda o ama!
— Segue-a! — A sombra espalhou-se sobre o caminho que ela
tomara como se fosse uma nuvem.
Ele juntou-se à perseguição, mantendo-se junto dela e
olhando-lhe para a cara. Viu-lhe a mesma expressão terrível e
dura misturada com o amor e abrasando-lhe o olhar. Ouviu-a
dizer: «Como Lilian! Há-de mudar como a Lilian!», e redobrava
de velocidade.
Oh, se houvesse alguma coisa que a despertasse! Alguma
visão, algum som ou cheiro que lhe trouxesse ternas
recordações à mente em fogo! Alguma imagem do passado que
surgisse perante ela!
— Eu fui o seu pai! Eu fui o seu pai! — gritou o velho,
estendendo as mãos para as figuras negras que pairavam lá em
cima. — Tende piedade dela e de mim! Onde vai ela? Façam-na
voltar atrás! Eu fui o seu pai!
Mas elas só a apontavam enquanto caminhava e disseram:
— Até ao desespero! Aprende com a criatura que mais amaste!
Cem vezes ecoavam a frase. O ar era constituído pelo hálito
que era expelido ao serem pronunciadas estas palavras. Parecia
que as absorvia a cada inspiração ofegante. Estavam em toda a
parte e não se podia escapar-lhes.

215

Mesmo assim, ele continuava a estugar o passo, levando a luz


no olhar e as mesmas palavras na boca: «Como a Lilian! Há-de
vir a ser como a Lilian!».
De repente parou.
— Olhem, façam-na voltar para trás! — exclamou o velho,
arrepelando os cabelos brancos. — Minha filhinha! Meg!
Façam-na voltar atrás! Ó Deus, fazei-a voltar para trás!
Embrulhava a criança no seu próprio xaile estreito, para a
aquecer. Com as mãos febris acariciava-lhe os membros,
compunha-lhe a carinha, arranjava-lhe as pobres roupinhas.
Envolvia-a com os braços como se nunca a ela fosse renunciar e
com os seus lábios secos beijava-a numa última ânsia e numa
prolongada agonia de amor.
Levantando-lhe a pequenina mão até ao seu pescoço e
mantendo-a aí dentro do vestido, próximo do seu coração
ausente, encostou a carinha sonolenta à sua, encostou-a muito
e encostou-a fortemente, e apressou-se em direcção ao rio.
O rio corria, rápido e turvo, e ali a noite invernosa sentava-se a
meditar com os últimos pensamentos negros dos muitos que já
ali tinham procurado refúgio antes dela. Ali as luzes espalhadas
sobre os bancos brilhavam lugubremente, vermelhas e tristes,
como se fossem tochas ali acesas para mostrarem o caminho da
morte. Ali nem vivalma projectava a sua sombra no abismo, ele
mesmo sombra impenetrável e melancólica.
Para o rio! Para esse portão da eternidade se encaminhavam
os seus passos desesperados com a rapidez das rápidas águas
correndo para o mar. Tentou tocar-lhe quando ela passou por
ele, descendo ao nível de trevas, mas aquela silhueta agressiva,
o duro e terrível amor, o desespero que tinha deixado atrás de
si qualquer vestígio ou vínculo, passaram por ele como o vento.

216

Seguiu-a. Ela parou um momento na margem, antes do terrível


mergulho. Ele caiu de joelhos e num grito dirigiu-se às figuras
dos sinos que pairavam sobre eles.
— Já aprendi! — gritou o velho. — Pela criatura que mais amei!
Oh, salvem-na, salvem-na!
Ele podia enrolar os dedos no vestido dela. Podia detê-la!
Quando as palavras lhe saíam dos lábios, sentiu que lhe voltava
o sentido do tacto e soube que podia detê-la.
As figuras olhavam lá de cima para ele, com firmeza.
— Já aprendi! — gritava o velho. — Oh, tende piedade de mim
nesta hora se, no meu amor por ela, tão jovem e bondosa,
caluniei a natureza, através dos peitos das mães desesperadas!
Apiedai-vos da minha presunção, fraqueza e ignorância e salvai-
a!
Ele sentiu a pressão da sua mão diminuir. Eles continuavam em
silêncio.
— Tende piedade dela — exclamou —, como de alguém cujo
crime lhe proveio dum amor pervertido, do amor mais forte e
mais profundo que nós, seres caídos, conhecemos! Pensai qual
deve ter sido a sua miséria, para que tais sementes dêem tais
frutos! O Céu fê-la boa. Não há no mundo mãe extremosa que
não chegasse a isto, se tivesse tido atrás de si uma tal vida. Oh,
tende piedade da minha filha que, mesmo neste transe, tem
em vista a piedade por aquilo que é seu e morre, ela arrisca a
sua alma imortal para salvar a criança!
Agora ela estava nos seus braços. Ele segurava-a! A sua força
era gigantesca.
— Vejo que o espírito dos sinos está entre vós! — exclamou o
velho desembrulhando a criança e falando como inspirado, de
tal forma que os olhares convergiram para ele. — Sei que a
nossa herança nos está reservada pelo tempo. Sei que há um
mar do tempo que se erguerá um dia, perante quantos nos
oprimem e nos maltratam, os quais serão

217
varridos como folhas. Vejo isso, na corrente! Sei que devemos
confiar e ter esperança e não duvidarmos de nós, nem
duvidarmos da bondade dos outros. Aprendi isso com o ser que
mais amo neste mundo. Aperto-a de novo nos meus braços. Ó
piedosos e bons espíritos, com ela aperto ao peito a vossa lição!
Ó espíritos piedosos e bons, eu vos agradeço!
Podia ter dito mais, mas os sinos, os velhos sinos amigos,
começaram a repicar pelo Ano Novo, tão forte, tão feliz e tão
alegremente que pulou sobre os seus pés e quebrou o feitiço.
— E faça o que fizer, pai — disse Meg —, não volte a comer
bucho, sem perguntar a um doutor qualquer se está de acordo
com a forma como se tem portado. Valha-me Deus!
Ela estava a coser na mesinha pequena, junto do lume. Vestia
o seu modesto vestido de casamento, com fitas, tão
silenciosamente feliz, tão florescente e tão jovem, tão cheia de
belas promessas, que ele soltou um grito enorme, como se
houvesse em sua casa um anjo; e correu a estreitá-la nos
braços.
Mas enredou os pés no jornal que tinha caído ao chão e
alguém veio a correr interpor-se entre os dois.
— Não — gritou a voz desse mesmo alguém, uma voz generosa
e jovial. — Nem o senhor. Nem o senhor. O primeiro beijo da
Meg no ano novo é meu. Meu! Tenho estado lá fora à espera
deste momento, para ouvir os sinos e vir reclamá-lo. Meg,
minha valiosa recompensa, feliz ano novo! Uma vida de felizes
anos, minha querida esposa!
E Richard sufocou-a com beijos.
Nunca viram em toda a vossa vida coisa parecida com Trotty,
depois de ter presenciado isto. Não importa onde viveram ou o
que viram, não viram foi nada que se assemelhasse a ele!
Sentou-se na cadeira

218

batendo os joelhos e chorando; sentou-se na cadeira batendo


os joelhos e rindo; sentou-se na cadeira batendo os joelhos e
chorando e rindo ao mesmo tempo. Levantou-se da cadeira e
abraçou Meg; levantou-
-se da cadeira e abraçou Richard; levantou-se da cadeira e
abraçou os dois ao mesmo tempo; continuou a correr para
Meg, apertando entre as mãos o seu rosto fresco e beijando-o,
afastava-se de novo para a ver voltando a aproximar-se como
uma figura de lanterna mágica; e, fizesse o que fizesse, estava
constantemente a sentar-se na cadeira, não parando nela um
momento. Estava (e a verdade é essa) fora de si de alegria.
— Amanhã é o teu casamento, minha queridinha! — exclamou
Trotty. — O teu verdadeiro dia do casamento!
— Hoje! — disse Richard, apertando-lhe a mão. — Hoje! Os
sinos estão a repicar pelo ano novo. Ouça-os!
ESTAVAM a tocar! Benditos os seus robustos corações,
ESTAVAM a tocar! Grandes sinos eram aqueles, melodiosos,
graves e nobres sinos! Não eram moldados em metal vulgar,
nem fundidos por vulgar fundidor. Nunca assim tinham
repicado!
— Mas hoje, minha querida? — disse Trotty. — Tu e o Richard
discutiram hoje.
— Porque ele é mau, pai — disse Meg. — Não és, Richard? É
um homem tão cabeçudo e bruto! Importava-se tanto de dizer
o que pensava àquele importante do Alderman e de deitá-lo
abaixo, como de...
— ... de beijar a Meg — sugeriu Richard. Passando à acção!
— Não. Nem mais um bocadinho — disse Meg. — Mas eu não
o deixei, pai. De que é que servia?
— Richard, meu rapaz! — exclamou Trotty. — Desde o
princípio que te mostraste melhor do que se esperava, e assim
hás-de morrer! Mas tu, minha queridinha, estavas a chorar
junto à lareira, quando eu vim

219

para casa! Porque é que estavas a chorar ao pé do lume?


— Estava a pensar nos anos que passámos juntos, pai. Só isso.
Pensava que iria sentir a minha falta e sentir-se só.
Trotty estava de novo naquela extraordinária cadeira, quando
a criança, que fora acordada pelo barulho, entrou a correr,
seminua.
— Olha, cá está ela! — exclamou Trotty, erguendo-a. — Cá está
a nossa pequena Lilian! Ah, ah, ah! Cá estamos e cá vamos nós!
E o tio Will, também! — E parou o seu trote para o
cumprimentar calorosamente. — Oh, tio Will, a visão que eu
tive esta noite depois de o instalar! Oh, tio Will, os trabalhos
em que me meteu com a sua vinda, meu bom amigo!
Antes que Will Fern pudesse esboçar a mais pequena resposta,
uma banda de música irrompeu pela sala, acompanhada por
uma quantidade de vizinhos que gritavam: «Feliz Ano Novo,
Meg! Feliz boda! Muitas felicidades!» e outros votos soltos,
desse género. O tambor, que era amigo íntimo de Trotty,
avançou e disse:
— Trotty Veck, meu rapaz! A tua filha está prestes a casar,
amanhã! Não há vivalma que te conheça que não te deseje
bem, ou que a conheça e bem não lhe deseje, ou que vos
conheça a ambos e a ambos não deseje todas as felicidades que
o novo ano possa trazer. E para isso aqui estamos, para tocá-lo
e dançá-lo, como convém.
Isto foi recebido com um grito geral. A propósito, diga-se que o
tambor estava bastante embriagado, mas isso não importa.
— Estou certo de que é uma grande felicidade ser assim
estimado! — disse Trotty. — Quão amigos e bons vizinhos vocês
são! Do principio ao fim, tudo é mérito da minha filha. Ela
merece-o!
Num minuto todos ficaram prontos para a dança (Meg e
Richard

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encabeçavam-nos) e o tambor estava mesmo à beira de atacar


com toda a força, quando se ouviu lá fora um misto de sons
extraordinários e uma mulher bem humorada e simpática, dos
seus cinquenta anos, entrou apressada, seguida por um homem
que transportava um cântaro de pedra de tamanho descomunal
e logo atrás os ossos de tutano, a faca de carniceiro e os sinos;
não os sinos, mas uma colecção portátil numa moldura.
Trotty disse: «É a senhora Chickenstalker!», e sentou-se e
voltou a bater nos joelhos.
— Casar e não me dizer! — exclamou a boa mulher. — Nunca!
Não podia descansar na última noite do ano sem vir desejar-te
felicidades. Não podia deixar de o fazer, Meg. Nem que
estivesse de cama. Por isso aqui estou, é véspera do ano novo e
véspera também do teu casamento, minha querida, tinha um
bocado de flip feito e trouxe-o comigo (Nota da tradutora:
Bebida feita de cerveja, aguardente e açúcar).
O conceito de um bocado de flip, da senhora Chickenstalker,
fazia jus ao seu carácter. O cântaro lançava vapor e fumegava
como um vulcão e o homem que o transportara estava fraco.
— Senhora Tugby! — disse Trotty, que tinha andado em volta
dela em êxtase. — Direi antes Chickenstalker... Deus a abençoe!
Um feliz ano novo e que conte muitos! Senhora Tugby — disse
Trotty depois de a cumprimentar —, digo, senhora
Chickenstalker... Estes são Will Fern e Lilian.
A digna senhora, para sua surpresa, fez-se muito pálida e
depois muito vermelha.
— Não é a Lilian Fern, cuja mãe morreu em Dorsetshire?! —
disse ela.
O tio respondeu «Sim», e, apresentando-se apressadamente,
trocaram

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algumas palavras rápidas, cujo resultado foi a senhora


Chickenstalker apertar-lhe ambas as mãos, cumprimentar
Trotty beijando-o na face de livre vontade e erguer a criança ao
seu peito largo.
— Will Fern! — disse Trotty, calçando a luva da mão direita. —
É a amiga que esperavas encontrar?
— Humm! — respondeu Will, pondo uma mão em cada um dos
ombros de Trotty. — E gostava de ver uma amiga melhor do
que esta que acabo de encontrar!
— Oh! — disse Trotty. — Vamos tocar. Tenham a bondade!
A música da banda, os sinos, os ossos de tutano e a faca de
carniceiro começaram ao mesmo tempo, enquanto os sinos
estavam também em alegre actividade lá fora. Trotty, fazendo
de Meg e de Richard o segundo par, conduziu a senhora
Chickenstalker na dança e dançou num passo nunca visto,
baseado no seu trote peculiar.
Trotty sonhara? Serão um sonho as suas alegrias e tristezas e
aqueles que nelas participaram? Será o contador desta história
um sonhador, que só agora acordou? Se assim é, ouvinte, que
lhe és querido em todas as suas visões, tenta conservar em
mente a dura realidade da qual saíram estas sombras; e na tua
esfera (nenhuma é demasiado pequena ou demasiado grande
para tal fim), tenta corrigi-
-la, melhorá-la e suavizá-la. Assim, que o ano novo seja feliz
para ti, feliz para muitos cuja felicidade de ti depende! Que
cada ano seja mais feliz do que o anterior e que nem o pior dos
nossos irmãos se veja privado do seu justo quinhão, com direito
ao qual o Senhor os criou.

FIM

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