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O Natal Do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo
O Natal Do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo
Página de rosto
CHARLES DICKENS
O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo
Tradução de Lucília Filipe
COLECÇÃO MIL FOLHAS
Ficha técnica
Colecção Mil Folhas
PÚBLICO
O Natal do Senhor Scrooge e Os Sinos de Ano Novo
Charles Dickens
Título original: A Christmas Carol e The Chimes
Tradução: Lucília Filipe
© PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. 2001
© 2002 M.E.D.I.A.S.A.T. / Promoway Portugal Comércio de
Produtos Multimédia, Ltda. para esta edição.
Impressão Printer, Industria Gráfica, S.A.
Barcelona
Data de impressão Dezembro de 2002
ISBN 84-96075-69-9
Depósito Legal B. 45 430-2002
PÚBLICO COMUNICAÇÃO SOCIAL SA
Rua João de Barros 265
4150-414 Porto
Índice
Personagens
Prefácio
ESTROFE I
O fantasma de Marley
Para começar, Marley tinha morrido. Disso não restam
dúvidas. O registo do seu enterramento estava assinado pelo
pastor, pelo oficial do cartório, pelo cangalheiro e pelo principal
enlutado. Scrooge assinara-o. E o nome de Scrooge valia ouro,
quando ele se resolvia a pôr a mão em qualquer coisa.
O velho Marley estava mais morto do que um prego de porta.
Note-se que isto não significa que eu saiba claramente o que
há de especialmente morto num prego de porta. Cá por mim,
até talvez me sentisse mais inclinado a olhar um prego de
caixão como a coisa mais morta no reino da ferragem. Mas na
comparação reside a sabedoria dos nossos antepassados e não
serão as minhas mãos profanas que deverão perturbá-la, ou
então o País está perdido. Permitir-me-ão, portanto, que repita
enfaticamente que Marley estava morto como um prego de
porta!
Scrooge sabia que ele estava morto? Claro que sabia. E como
não havia de sabê-lo? Scrooge e ele foram sócios durante não
sei quantos anos. Scrooge era o seu único testamenteiro, o seu
único administrador, o seu único cessionário, o seu único
herdeiro universal, o seu único amigo e o único que por ele pôs
luto. E mesmo assim, Scrooge não ficou tão terrivelmente
deprimido pelo triste acontecimento que não tivesse ainda
feito um excelente negócio no
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como manchas rosadas de encontro ao ar acastanhado. O
nevoeiro começou a penetrar em cada fenda e em cada
fechadura e era tão denso lá fora que, embora o pátio fosse dos
mais estreitos, as casas fronteiriças não passavam de espectros.
Ao ver a nuvem escura descer, escurecendo tudo, poderia
julgar-se que a natureza mal existia e que estava a preparar
uma tempestade em larga escala.
A porta do escritório de Scrooge estava aberta, para que
pudesse ir vigiando o seu empregado, que copiava cartas num
exíguo cubículo em frente, uma espécie de tanque. Scrooge
tinha um fogo pequeníssimo, mas o do empregado era tão mais
pequeno que parecia ser apenas um carvão e não podia
reabastecê-lo porque Scrooge guardava a caixa do carvão no
seu escritório e, claro, quando o empregado apareceu com uma
pá, o patrão avisou-o de que tinham de repartir. Por
conseguinte o empregado pôs o seu cachecol e tentou aquecer-
se na vela, no que falhou por ser um homem de fraca
imaginação.
— Feliz Natal, tio! Deus o salve! — gritou uma voz alegre. Era a
voz do sobrinho de Scrooge, o qual se dirigiu a ele tão
rapidamente que aquilo foi o primeiro sinal da sua
aproximação.
— Bah! — disse Scrooge —, aldrabices!
Este sobrinho de Scrooge aquecera de tal maneira com a
caminhada apressada pelo nevoeiro e geada que todo ele
irradiava calor. O rosto era rosado e bonito, os olhos brilhavam
e o seu hálito fumegava.
— O Natal é uma aldrabice, tio?! — disse o sobrinho de
Scrooge. — Tenho a certeza de que não fala a sério.
— Falo — disse Scrooge. — Feliz Natal! Que direito tens tu de
te sentires feliz? Que razão tens para ser feliz? És muito pobre.
— Deixe-se disso — retorquiu o sobrinho jovialmente. — Que
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tem o tio de estar triste? Que razão tem para estar taciturno? É
muito rico.
Scrooge, não tendo melhor resposta pronta de repente, disse
«Bah!» outra vez e repetiu:
— Aldrabices!
— Não esteja zangado, tio! — disse-lhe o sobrinho.
— Que mais posso eu estar — objectou o tio —, vivendo num
mundo destes? Feliz Natal! Deixa-te de Feliz Natal! O que é
para ti o Natal além da época de pagar as contas sem dinheiro,
altura de dares contigo mais velho um ano, mas nem uma hora
mais rico, altura de fazeres o balanço das tuas contas e teres
cada parcela delas, em todos os doze meses do ano, com um
saldo negativo? Se eu pudesse agir à minha vontade — disse
Scrooge, indignado —, todo o idiota que anda para aí com essa
de «Feliz Natal» na boca devia ser cozinhado com o seu pudim
e enterrado com uma estaca de azevinho espetada no coração.
Isso é que devia!
— Tio! — suplicou o sobrinho.
— Sobrinho! — respondeu o tio asperamente. — Vive o Natal à
tua maneira que eu vivo-o à minha.
— Vive-o! — repetiu o sobrinho de Scrooge. — Mas o senhor
não o vive.
— Então deixa-me não o viver — disse Scrooge. — Vale de
muito! Sempre te valeu de muito!
— Eu diria que há muitas coisas das quais talvez tenha tirado
algo de bom e de que não tirei nenhum lucro — retorquiu o
sobrinho. — Entre elas o Natal. Mas sei que sempre pensei no
Natal — não falando na veneração devida ao seu sagrado nome
e origem, se é que algo a ele ligado pode estar afastado dela —,
pensei nele sempre como uma época boa; uma época de
perdão, de caridade e de alegria; a única época de todo o ano,
que eu saiba, durante a qual homens e mulheres parecem
abrir,de comum acordo e livremente, os seus corações fechados
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têmpera. Ao ouvir a agourenta palavra «liberalidade», Scrooge
franziu o sobrolho e abanou a cabeça, devolvendo as
credenciais.
— Senhor Scrooge, nesta festiva época do ano — disse o
cavalheiro pegando numa caneta — é mais do que habitual e
desejável que façamos uma pequena provisão para os pobres e
desprotegidos, que nesta altura tanto sofrem. Muitos milhares
estão à míngua do necessário e centenas de milhares sentem a
falta das comodidades básicas.
— Não há asilos? — indagou Scrooge.
— Há imensos asilos — disse o cavalheiro, voltando a pousar a
caneta.
— E os albergues do Estado? — perguntou Scrooge.
— Ainda estão em actividade?
— Estão sim. Ainda que — continuou o cavalheiro — me fosse
grato dizer que não.
— O Treadmill e a Poor Law ainda estão em vigor? — inquiriu
Scrooge (Nota da tradutora: Treadmill – A roda; Poor Law - Lei
de assistência aos pobres).
— E ambos em grande actividade.
— Ah, é que, pelo que disse a princípio, temi que algo tivesse
surgido a impedir a sua útil acção — disse Scrooge. — Fico
contente por sabê-lo.
— Perante a sensação de que eles prodigalizam escasso apoio
moral e auxílio material à população — continuou o cavalheiro
—, alguns de nós estamos empenhados em angariar um fundo
que nos permita comprar alguma carne, bebida e agasalhos
para os pobres. Escolhemos esta época porque é aquela de
entre todas em que a necessidade é mais agudamente sentida e
a abundância festejada. De quanto será a sua comparticipação
que devo anotar?
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três parelhas por uma escadaria ou de abrir caminho por uma
lei recém-criada e errada; mas o que eu quero realmente dizer
é que se poderia fazer subir por aquela escada um carro
funerário transversalmente, com a barra de tracção virada para
a parede e a porta para a balaustrada e fá-lo-íamos com toda a
facilidade. Talvez por esta razão, Scrooge pensou ver um carro
funerário avançando à sua frente na escuridão. Meia dúzia de
candeeiros a gás não chegariam para iluminar suficientemente
a entrada, por isso já se pode imaginar quão escuro estava só
com a vela de sebo que Scrooge levava.
Scrooge subiu, sem se importar com isso. A escuridão não lhe
custava dinheiro, e isso era o que agradava a Scrooge. Antes,
porém, de fechar a pesada porta, deambulou pelas
dependências, para se certificar de que tudo estava bem. Tinha
ainda bem presente a recordação daquele rosto, para sentir
vontade de agir assim.
Sala de estar, quarto de dormir, quarto de arrumações.
Ninguém debaixo da mesa, ninguém debaixo do sofá; um lume
fraco na grelha, a colher e a malga prontas e a caçarola com o
caldo de aveia na estufa do fogão (Scrooge estava com coriza).
Ninguém debaixo da cama, ninguém no armário, ninguém no
seu roupão que pendia da parede com ar suspeito. O quarto de
arrumação estava como de costume. Um velho guarda-fogo,
sapatos velhos, dois cestos para peixe, um lavatório de três
pernas e um atiçador.
Satisfeito, fechou a porta e trancou-se por dentro; deu duas
voltas à chave, o que não era seu costume. Seguro assim contra
qualquer surpresa, tirou a gravata, vestiu o roupão, calçou as
chinelas, pôs o barrete de dormir e sentou-se em frente do
lume para comer o caldo de aveia.
O lume estava realmente bastante fraco; em semelhante noite
era como se não existisse. Viu-se obrigado a sentar-se muito
perto e a
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— Ó homem profano! — respondeu o espírito. — Acreditas em
mim ou não?
— Acredito — disse Scrooge. — Tenho de acreditar. Mas
porque vêm os espíritos à terra e porque me procuram?
O espírito respondeu:
— Espera-se que o espírito que habita em cada homem saia
dele e vagueie entre os outros homens e viaje por toda a parte;
se esse espírito não emana em vida, está condenado a fazê-lo
depois da morte. Fica condenado a vaguear pelo mundo — oh!,
ai de mim! — e a ser testemunha daquilo de que não pôde
compartilhar, mas poderia ter compartilhado em vida e
transformado em felicidade!
O espectro soltou novamente um grito, sacudiu a corrente e
torceu as transparentes mãos.
— Estás preso com cadeias — disse Scrooge a tremer. — Diz-
me porquê.
— Trago comigo a corrente que forjei em vida — respondeu o
fantasma.
— Construí-a elo a elo e jarda a jarda; cingi-a de minha única e
livre vontade, e de minha única e livre vontade a trago. O
material de que é feita, não te é familiar?
Scrooge tremia cada vez mais.
— Saberás tu — prosseguiu o espírito — o peso e o
comprimento da forte corrente que tu próprio trazes? Era tão
pesada e comprida como esta há sete Natais. Desde aí tens
continuado a trabalhar nela. É uma pesada corrente!
Scrooge deitou um olhar para o chão à sua volta, esperando
ver-se rodeado de umas cinquenta ou sessenta toesas de cabo
de ferro, mas nada viu (Nota da tradutora: Antiga medida de
comprimento, de seis pés).
— Jacob — disse em tom suplicante. — Velho Jacob
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no seu limitado ambiente, seja ele qual for, achará a sua vida
mortal demasiado curta para as suas vastas possibilidades de
utilidade. Não saberes que nenhum arrependimento ilimitado
poderá compensar uma oportunidade desperdiçada na vida! E
assim eu fiz! Oh! Assim eu fiz!
— Mas sempre foste um bom homem de negócios, Jacob —
gaguejou Scrooge, que começava agora a aplicar a si próprio
aquelas palavras.
— Negócios! — gritou o espírito, torcendo novamente as mãos.
— A humanidade é que era o meu negócio. O bem comum é
que era o meu negócio: a caridade, a misericórdia, a tolerância
e a benevolência, esses sim eram os meus negócios. A forma de
negociar, no meu comércio, era apenas uma gota de água no
oceano que compreendia o meu negócio!
Ergueu os braços a toda a altura e com eles a corrente, como se
nela estivesse toda a causa do seu inútil pesar, e de novo a
arremessou pesadamente ao chão.
— Nesta altura do ano que decorre — disse o espectro —,
sofro ainda mais. Porque haveria eu de ter caminhado por
entre a multidão dos meus semelhantes de olhos postos no
chão e nunca os hei-de ter erguido para essa abençoada estrela
que conduziu os Reis Magos a uma pobre morada! Será que não
havia casas pobres onde a sua luz me tivesse conduzido?
Scrooge estava imensamente aterrado ouvindo o espectro
prosseguir neste tom e começou a tremer muitíssimo.
— Escuta-me! — gritou o fantasma. — O meu tempo está
quase a findar.
— Escuto-te — disse Scrooge —, mas não sejas difícil comigo!
Não sejas poético, Jacob! Diz!
— Não te sei dizer como é que te apareço sob uma forma que
consegues
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deparou-se-lhe o seu visitante sobrenatural, na sua frente,
numa postura erecta, com a corrente completamente enrolada
ao braço.
A visão afastou-se dele e a cada passo que dava a janela
levantava-
-se um pouco mais, de modo que, quando o espectro a
alcançou, já estava completamente aberta.
Fez sinal a Scrooge para que se aproximasse, e ele assim fez.
Quando estavam a dois passos um do outro, o fantasma de
Marley ergueu a mão, fazendo-lhe sinal para que não se
aproximasse. Scrooge deteve-se.
Não tanto por obediência como por surpresa e medo, pois que,
no momento em que ele levantou a mão, Scrooge apercebeu-se
de sons confusos no ar, sons incoerentes de lamentação e
remorso, prantos inexplicavelmente dolorosos e de auto-
acusação. Depois de escutar por um momento, o espectro
juntou-se ao lamentoso canto fúnebre e lançou-
-se na noite escura e fria.
Scrooge avançou para a janela e, desesperado de curiosidade,
olhou para fora.
O ar estava cheio de fantasmas, que vagueavam de cá para lá e
de lá para cá, numa pressa inquieta e lamentando-se enquanto
se deslocavam. Cada um deles usava correntes como o
fantasma de Marley, alguns (deviam ser governantes venais)
estavam acorrentados uns aos outros. Nenhum deles estava
solto. Muitos tinha-os Scrooge conhecido pessoalmente em
vida. Dum velho fantasma tinha sido muito íntimo, daquele que
usava um colete branco e trazia um monstruoso cofre de ferro
acorrentado ao tornozelo e que gritava lastimosamente ao ver-
se impossibilitado de ajudar uma mulher miserável com uma
criança, que via lá em baixo, na soleira duma porta. A desdita
de todos eles via-
-se que era claramente devida a tentarem interferir
positivamente nos assuntos dos humanos e terem para sempre
perdido a capacidade de o
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ESTROFE II
O primeiro dos três espíritos
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alta que, se fosse duas polegadas mais alta, o faria bater com a
cabeça no tecto, Scrooge gritou muito excitado:
— É o velho Fezziwig! Abençoado seja. E o Fezziwig novamente
vivo!
O velho Fezziwig pousou a caneta e levantou os olhos para o
relógio que marcava as sete. Esfregou as mãos, apertou o
colete largo, abriu-
-se num sorriso que lhe ia dos sapatos até ao órgão da bondade
e chamou numa voz fluente, rica, forte e jovial:
— Ei, vocês aí! Ebenezer! Dick!
O ex-eu de Scrooge, agora já um jovem, entrou subitamente
acompanhado pelo aprendiz seu colega.
— É o Dick Wilkins, com certeza! — disse Scrooge ao espírito.
— Valha-me Deus, é mesmo. Ali está ele. Era muito meu amigo,
aquele Dick. Pobre Dick! Caro, caro Dick!
— Ei, rapazes! — disse Fezziwig. — Por hoje acabou-se o
trabalho. É a véspera de Natal, Dick. Natal, Ebenezer! Vamos
pendurar os taipais — gritou Fezziwig com uma sonora batidela
de palmas —, antes que o Diabo esfregue um olho!
Nem imaginam como aqueles dois se atiraram a isso!
Avançaram para a rua com os taipais — um, dois, três —, já os
tinham colocado — quatro, cinco, seis —, trancaram-nos e
aparafusaram-nos — sete, oito, nove — e regressaram antes de
contar até doze, arquejantes como cavalos de corrida.
— Eia! — gritou o velho Fezziwig, escorregando da sua alta
secretária com uma estupenda agilidade. — Sumam-se,
rapazes, e deixemos o campo livre! Viva, Dick! Ânimo,
Ebenezer!
Desaparecer! Não houve nada que não fizessem desaparecer
ou que pudessem não ter feito desaparecer, com o velho
Fezziwig a vigiar.
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— Essa é a conduta imparcial do mundo! — disse ele. — Não
há nada com que seja mais duro do que com a pobreza e não há
nada que declare condenar tão severamente como a procura de
riqueza!
— Temes demasiado o mundo — respondeu-lhe ela
docemente. — Todas as tuas esperanças se fundiram na
esperança de te manteres fora do alcance da sua mesquinha
censura. Vi as tuas aspirações mais nobres desabarem uma a
uma, até a paixão-mestra chamada Lucro te monopolizar. Não
foi?
— E depois? — respondeu. — Ainda que eu me tenha tornado
mais sensato, que é que tem? Não mudei para contigo.
Ela abanou a cabeça.
— E eu?
— O nosso compromisso é antigo. Foi celebrado quando ambos
éramos ainda pobres e contentes de o ser, até em devido
tempo podermos aumentar a nossa parca fortuna através do
nosso paciente trabalho. Tu estás diferente. Quando o
compromisso foi celebrado, eras outro homem.
— Era um rapaz — disse impacientemente.
— Os teus próprios sentimentos dizem-te que já não és aquele
que eras — respondeu-lhe ela. — Eu sou a mesma. Aquela a
quem prometeste felicidade, quando éramos um só coração,
está cheia de pesar agora que somos dois. Nem direi quantas
vezes e quão vivamente pensei nisto. Basta que tenha pensado
e que te liberte.
— Alguma vez pedi que me libertasses?
— Por palavras, não. Nunca.
— Então como?
— Pela modificação da tua maneira de ser, pelo teu espírito
diferente, por outra forma de vida, por outra esperança e seu
grande objectivo. Por tudo o que tornou o meu amor sem
qualquer valor ou
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evitar vê-lo. Dizem que o sócio dele está a morrer e ele ali está
sentado sozinho. Só no mundo, creio eu.
— Espírito! — disse Scrooge em voz alquebrada. — Leva-me
deste lugar.
— Já te disse que isto são sombras de coisas passadas — disse
o fantasma. — Se elas são o que são, não me tornes as culpas!
— Leva-me daqui! — exclamou Scrooge. — Não suporto isto!
Virou-se para o fantasma e vendo que ele o olhava com uma
cara na qual, por qualquer estranha razão, havia pedaços de
todas as caras que lhe mostrara, lutou com ele.
— Deixa-me! Leva-me de volta. Não me persigas mais!
Durante a luta, se é que àquilo se poderia chamar luta,
enquanto o fantasma, sem qualquer aparente resistência da
sua parte, se mostrava imperturbado por qualquer esforço
exercido pelo adversário, Scrooge observou que a sua luz
brilhava clara e forte e, fazendo uma obscura ligação entre isto
e a sua influência sobre ele, agarrou no barrete e com um
movimento rápido enfiou-lho na cabeça.
O espírito caiu debaixo dele e assim o barrete cobriu toda a sua
forma; mas, embora Scrooge enterrasse o barrete com toda a
força, não conseguia esconder a luz que se escapava por baixo
em jorro ininterrupto, espalhando-se pelo chão.
Tinha a consciência de que estava exausto e avassalado por
uma irresistível sonolência e além disso de que estava no seu
quarto. Apertou o barrete como numa despedida, depois do
que relaxou a mão e mal teve tempo de cambalear para a cama
antes de mergulhar num pesado sono.
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Página em branco
ESTROFE III
O segundo dos três espíritos
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jovens Cratchits, batia com o cabo da faca na mesa e gritava de-
bilmente: «Viva!».
Nunca houvera ganso semelhante. Bob afirmou que não
acreditava que jamais se tivesse cozinhado um ganso assim. A
sua macieza e sabor, tamanho e barateza, foram pontos de
universal admiração. Aumentado com o molho de maçã e com
o puré de batata, era um jantar suficiente para toda a família e
de facto tal como a senhora Cratchit disse com grande prazer
(observando cada átomo de osso ainda no prato), acabaram
por nem o comer todo! No entanto, cada um comera o
suficiente e especialmente os jovens Cratchits estavam
atafulhados de salva e cebolas até ao nariz! Agora, e enquanto
os pratos eram mudados pela menina Belinda, a senhora
Cratchit saiu da sala sozinha — demasiado nervosa para
suportar testemunhas —, para desenformar e trazer o pudim.
E se não estivesse bem cozido? E se se partisse ao
desenformar? E se alguém tivesse saltado o muro do quintal e o
tivesse roubado enquanto eles se regozijavam com o ganso —
hipótese que deixava lívidos os dois pequenos Cratchits! Toda a
espécie de horrores foi imaginada.
Eia! Muito vapor! O pudim saíra da caldeira. Cheirava como em
dia de barrela! Era do pano. Um cheiro parecido com o de uma
casa de comidas e de uma pastelaria ao lado uma da outra e
com uma lavandaria ao lado das duas! Assim era o pudim!
Passado meio minuto, a senhora Cratchit entrou, ruborizada
mas sorrindo orgulhosamente, trazendo o pudim como uma
bala de canhão malhada, tão duro e firme, ardendo em metade
de meio quartilho de brande chamejante e ornado com
azevinho de Natal espetado no cimo.
Oh, que maravilhoso pudim! Bob Cratchit afirmou,
calmamente, que encarava aquele como o maior sucesso
conseguido pela senhora Cratchit desde o seu casamento,ao
que ela respondeu, agora que o peso já
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— Não, não — disse Scrooge. — Não, bom espírito! Diz que ele
será poupado.
— Se estas sombras permanecerem inalteradas pelo futuro,
nenhum outro da minha raça o encontrará aqui — respondeu o
espírito. — E depois? Se tiver de morrer que morra. Assim
diminuirá o excesso populacional.
Scrooge deixou pender a cabeça ao ouvir as suas próprias
palavras repetidas pelo espírito e foi assaltado pelo remorso e
pelo desgosto.
— Homem — disse o espírito —, se é que humano e não de
rocha é o teu coração, abstém-te dessa maldosa hipocrisia até
teres descoberto o que é o excesso populacional e onde existe.
Decidirás tu quem deve viver e quem deve morrer? Pode ser
que, aos olhos do Altíssimo, sejas tu menos valioso e apto a
viver do que milhões como o filho daquele pobre homem. Oh,
céus! Ouvir o insecto da folha pronunciar-se sobre o excesso de
vida existente entre os seus esfomeados irmãos do pó!
Scrooge curvou-se perante a censura do fantasma e, a tremer,
pôs os olhos no chão, mas ao ouvir o seu próprio nome
levantou-os rapidamente.
— O senhor Scrooge! — disse Bob. — Ofereço-te o senhor
Scrooge como o patrono da festa.
— Claro, o patrono da festa! — gritou a senhora Cratchit,
corando. — Quem me dera tê-lo aqui. Dar-lhe-ia um pedaço do
meu pensamento, para com ele festejar, e desejava-lhe bom
apetite.
— Querida, olha as crianças! — disse Bob. — É dia de Natal!
— Deve ser mesmo no dia de Natal tenho a certeza — disse ela
—, que se deve beber à saúde de tão odioso, avarento, duro e
insensível homem como o senhor Scrooge. E tu sabes que é,
Robert! Ninguém melhor do que tu, ó infeliz, sabe isso!
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que lhe era feita, o sobrinho soltava uma nova gargalhada e era
tão inexplicavelmente atacado de riso que era obrigado a
levantar-se do sofá e a bater o pé. Por fim a irmã gorducha, que
caíra num estado semelhante, gritou:
— Já descobri! Já sei o que é, Fred! Sei o que é!
— Que é? — gritou Fred.
— É o tio Scro-o-o-o-oge!
E era mesmo. A admiração foi geral, embora alguns tivessem
objectado que a resposta a «E um urso?» deveria ter sido
«Sim!», visto que uma resposta negativa era suficiente para
lhes ter afastado o pensamento do senhor Scrooge, se é que se
tinham chegado a inclinar para que fosse ele.
— Ele tem-nos feito divertir muito — disse Fred —, e seria
ingratidão não bebermos à sua saúde. Temos neste momento
aqui à mão um copo de vinho quente e eu digo: «Ao tio
Scrooge!».
— Sim! Ao tio Scrooge! — gritaram.
— Feliz Natal e próspero Ano Novo para o velhote, seja lá ele o
que for! — disse o sobrinho de Scrooge. — De mim não o
aceitaria, mas mesmo assim desejo-lho. Ao tio Scrooge!
Imperceptivelmente, o tio Scrooge tornara-se tão alegre e de
coração tão leve que, se o fantasma lhe tivesse dado tempo,
teria brindado em troca, à despreocupada companhia, e ter-
lhes-ia agradecido em discurso inaudível. Mas toda a cena
desapareceu com o sopro da última palavra dita pelo sobrinho
e ele e o espírito em breve viajavam de novo.
Muito viram e muito viajaram e muitos lares visitaram, mas
todos com um final feliz. O espírito esteve à cabeceira de
doentes e eles estavam alegres; em terras estrangeiras e todos
estavam próximo de casa; junto de homens que lutavam e eles
eram pacientes na sua maior
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ESTROFE IV
O último dos espíritos
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nem ossos mais velhos do que os meus. Ah, ah! Estamos bem
uns para os outros, fazemos um lindo par! Venham para a sala.
Venham para a sala!
A sala era um espaço por detrás da cortina de farrapos. O velho
espevitou o lume com um velho varão de passadeira e, tendo
regulado o enfarruscado candeeiro com a haste do cachimbo,
voltou a pô-lo na boca.
Enquanto fazia isto, a mulher que já tinha falado pôs a trouxa
no chão e sentou-se num banco em atitude importante,
cruzando os braços em volta dos joelhos e olhando os outros
dois com ar de desafio.
— Que é que há de mal nisto? Que é que há de mal, senhora
Dilber? — disse a mulher. — Todos têm o direito de olhar por
si. Foi isso que ele sempre fez.
— Lá isso é verdade! — disse a lavadeira. — Ninguém mais do
que ele o fez.
— Então, mulher, não fiques para aí a olhar como se tivesses
medo. Quem é o mais esperto? Acho que não vamos pôr-nos a
cortar na casaca uns dos outros!
— Claro que não! — disseram ao mesmo tempo a senhora
Dilber e o homem. — Esperamos bem que não!
— Pois muito bem! — gritou a mulher. — Já chega. A quem é
que prejudica a perda dumas coisitas como estas? Ao morto
não é com certeza, acho eu.
— Claro que não — disse a senhora Dilber a rir.
— Se queria conservá-las depois da sua morte, aquele velho
patifório — prosseguiu a mulher —, porque é que não foi bom
em vida? Se o tivesse sido, teria tido quem olhasse por ele
quando estava a morrer, em lugar de ficar ali sozinho a dar as
últimas.
— É a maior verdade que já foi dita — afirmou a senhora
Dilber. — É um juízo sobre ele.
— Quem me dera que fosse um juízo mais severo — respondeu
a mulher —; e devia ter sido, lá isso podes estar certa. Ah!, se
eu pudesse ter
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deitado a mão a mais alguma coisa! Abre essa touxa, Joe, e diz-
me lá quanto vale. Fala sinceramente. Não tenho medo de ser a
primeira, nem tenho medo que eles vejam. Acho que sabíamos
muito bem que nos estávamos a abotoar antes mesmo de nos
termos encontrado aqui. Não é pecado. Abre a trouxa, Joe.
Mas a delicadeza dos companheiros não o permitiu e o homem
vestido de preto ruço, antecipando-se, exibiu o seu saque. Não
era grande. Um sinete ou dois, um estojo de lápis, um par de
botões de punho, um broche de pouco valor — era tudo. Foram
minuciosamente examinados pelo velho Joe, que ia escrevendo
a giz na parede a quantia que estava disposto a pagar por cada
um; e, vendo que nada mais havia, fez a soma.
— Esta é a tua conta — disse Joe — e, nem que me matem, não
te dou nem mais um cêntimo. Quem se segue.
Seguia-se a senhora Dilber. Lençóis e toalhas, alguma roupa
usada, duas colheres de chá, de prata, já antiquadas, um par de
tenazes de açúcar e uns pares de botas. A sua conta foi
igualmente feita na parede.
— Dou sempre demasiado às senhoras. É uma fraqueza minha
e é assim que me arruino — disse o velho Joe. — Esta é a tua
conta. Se me pedisses mais um penny e fizesses questão nisso,
arrependia-me de ser tão liberal e descontava-te meia coroa.
— E agora desfaz a minha trouxa, velho Joe — disse a primeira
mulher.
Joe ajoelhou-se para maior comodidade em abrir e, depois de
desatar uma data de nós, tirou de lá um pesado rolo de tecido
escuro.
— Que é isto? — disse Joe. — São cortinas de cama!
— Ah! — retorquiu a mulher, rindo e dobrando-se sobre os
braços cruzados. — São cortinas de cama!
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altar e sobre ele depuseste tais horrores, à tua ordem, pois que
este é o teu domínio! Mas da cabeça amada, respeitada e
honrada, não podes tu mudar um só cabelo para os teus
terríveis fins, ou tornar as feições odiosas. Não interessa que a
mão esteja pesada e caia quando a largam, não interessa que o
coração e o pulso tenham cessado, o que importa é que a mão
enquanto aberta foi generosa e leal, o coração corajoso, quente
e terno e o pulso o de um homem. Ataca, Sombra, ataca! E da
ferida verás brotar as suas boas acções para semearem no
mundo a vida imortal!
Nenhuma voz pronunciara estas palavras ao ouvido de
Scrooge, e no entanto ouviu-as quando olhava para a cama.
Pensou então quais seriam os principais pensamentos daquele
homem se pudesse ser ressuscitado nesse momento. Seriam
preocupações pungentes, de avareza ou de negócios difíceis?
Esses tinham-no, de facto, levado a um lindo fim!
Ali jazia numa casa vazia, sem homem, mulher ou criança que
pudesse dizer: «Ele foi bom para mim, nisto ou naquilo e em
memória duma boa palavra vou ser bom para ele». Um gato
esgatanhava na porta e havia barulho de ratos a roer, por baixo
da pedra da lareira. Scrooge não se atrevia a pensar o que
queriam eles duma câmara funerária e porque estavam tão
desassossegados e inquietos.
— Espírito! — disse. — Este lugar é tenebroso. Ao deixá-lo,
acredita que não esquecerei a lição que encerra. Vamos!
No entanto o espírito continuava a apontar para a cabeça com
um dedo imóvel.
— Compreendo-te — retorquiu Scrooge — e fá-lo-ia, se
pudesse. Mas, espírito, não tenho esse poder! Não tenho esse
poder!
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«e lamento muito, também, pela sua extremosa esposa.» E, a
propósito, como ele soube isso é que eu não sei.
— Soube o quê, querido?
— Que tu eras uma esposa extremosa — respondeu Bob.
— Toda a gente sabe isso! — disse Peter.
— Muito bem observado, meu rapaz! — exclamou Bob. —
Espero que saibam. «Lamento muito», disse ele, «pela sua
extremosa esposa. Se lhe puder ser útil de algum modo», disse
ele, dando-me o seu cartão, «aqui tem a minha morada. Peço-
lhe que me procure.» Isto foi maravilhoso — exclamou Bob —,
não tanto por aquilo que poderia ter feito por nós, mas mais
pela sua gentileza. Parecia mesmo que tinha conhecido o nosso
pequeno Tim e que sofria connosco.
— Tenho a certeza de que é uma boa alma! — afirmou a
senhora Cratchit.
— Ainda estarias mais certa disso, querida — replicou Bob —,
se o visses e falasses com ele. Não ficaria nada surpreendido —
nota! — se arranjasse melhor colocação para o Peter.
— Estás a ouvir isto, Peter? — disse a senhora Cratchit.
— E depois — exclamou uma das raparigas — o Peter arranjará
alguém e irá viver a sua vida.
— Deixa-te disso! — resmungou Peter com uma careta.
— Muito provavelmente, qualquer dia — disse Bob —, se bem
que para isso ainda falte muito tempo. Mas, quando quer ou
como quer que nos separemos uns dos outros, estou certo que
nenhum de nós esquecerá o pequeno Tim, nem esta primeira
separação que se deu entre nós, pois não?
— Nunca, pai! — exclamaram todos.
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ESTROFE V
O fim de tudo
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leve que nem uma pena, feliz que nem um anjo, alegre que
nem um garoto e tonto que nem um ébrio. Feliz Natal para
todos! Próspero Ano Novo, para toda a gente! Eia, aí! Hoopi!
Viva!
Tinha pulado até à sala e ali estava de pé, completamente
ofegante.
— Cá está a caçarola onde estava a papa! — gritou Scrooge,
pondo-se novamente em movimento em volta da lareira. — Lá
está a porta por onde Jacob Marley e o espírito entraram! Lá
está o canto onde se sentou o Espírito do Natal Presente! Lá
está a janela onde eu vi as almas penadas! Tudo é certo, tudo é
verdade, tudo aconteceu. Ah, ah, ah!
Para um homem que tinha perdido o treino há tantos anos, era
realmente uma gargalhada maravilhosa, uma gargalhada
esplendorosa. A mãe de muitas e muitas outras gargalhadas
cristalinas!
— Não sei que dia do mês é! — disse Scrooge. — Não sei
quanto tempo estive entre os espíritos. Não sei nada. Sou um
verdadeiro bebé. Não importa. É melhor ser um bebé. Eia!
Hoopi! Viva!
Os seus transportes foram detidos pelos mais fortes repiques
que jamais ouvira. Choquem, retinam, martelem; ding, dong,
piam. Piam, dong, ding; martelem, choquem, retinam! Glória,
glória!
Correu para a janela, abriu-a e deitou a cabeça de fora. Não
havia nevoeiro nem neblina. Que belo ar fresco! Que alegres
sinos! Oh, glória, glória!
— Que dia é hoje? — gritou Scrooge lá para baixo, para um
rapaz de fato domingueiro, que provavelmente se atrasou para
olhar em volta.
— Hã? — respondeu o rapaz, com todo o assombro.
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A mão com que escreveu a morada não era das mais firmes,
mas mesmo assim escreveu e desceu para abrir a porta da rua,
preparado para a chegada do galinheiro. Enquanto ali esperava
que ele chegasse, deram-
-lhe os olhos no batente.
— Amá-lo-ei enquanto viver! — exclamou Scrooge, dando-lhe
umas pancadinhas amigáveis. — Antes mal olhava para ele.
Que expressão tão honesta ele tem no rosto! É um batente
maravilhoso!.. Aqui está o peru. Olá Hoopi! Como está? Feliz
Natal!
Era um peru! Uma ave daquelas nunca devia ter conseguido
pôr-se em cima das pernas. Devia parti-las logo, como se
fossem paus de lacre.
— Ui, é impossível levar isso a Camdem Town — disse Scrooge.
— Tem de tomar um carro.
O riso com que disse isto, o riso com que pagou o peru, o riso
com que pagou o carro, o sorriso com que recompensou o
rapaz, só foram ultrapassados pelo riso com que se sentou na
cadeira onde riu até chorar.
Barbear-se não foi tarefa fácil, já que a mão continuava a
tremer-
-lhe muito e o barbear requer atenção, mesmo que não
estejamos a dançar enquanto nos barbeamos; mas se ele
tivesse cortado a ponta do nariz, ter-lhe-ia posto um bocado de
adesivo e teria ficado satisfeito.
Vestiu-se «com o melhor» e saiu por fim para a rua. A essa
hora as ruas pululavam de gente, tal como ele as tinha visto
com o Espírito do Natal Presente; e, de mãos atrás das costas,
Scrooge olhava todos com um sorriso de prazer. Em resumo:
parecia tão irresistivelmente alegre que três ou quatro
indivíduos bem humorados disseram: «Bom dia, senhor! Feliz
Natal para si!». E Scrooge disse depois muitas vezes que, de
todos os alegres sons que já ouvira, aqueles soaram aos seus
ouvidos como os mais alegres.
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Personagens
Primeiro quarto
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(excepto Tobias) sem uma lei especial, tendo ele sido tornado
oficialmente cristão no seu dia, como os sinos o tinham sido no
deles, ainda que sem tamanha solenidade ou júbilo público.
Pela minha parte, confesso-me partidário da opinião de Toby
Veck, pois tenho a certeza de que não lhe faltaram
oportunidades de a formular correctamente. E o que quer que
o Toby Veck tenha afirmado — eu afirmo-o. E tomo lugar a seu
lado, se bem que o seu lugar fosse permanecer todo o dia (e
que trabalho cansativo, aquele!) à porta da igreja. Ele era
realmente moço de recados, esse Toby Veck, e ali esperava
pelas tarefas.
E que lugar aquele no Inverno para esperar: ventoso,
arrepiante, gélido, glacial e de fazer bater o dente. Toby Veck
bem o sabia! O vento vinha da esquina espadanando
(sobretudo o vento leste), como se tivesse brotado dos confins
da Terra expressamente para soprar sobre Toby. Muitas vezes
parecia chocar com ele mais depressa do que contava, porque,
arremetendo da esquina e ultrapassando Toby, rodopiava
novamente para trás como se gritasse: «Olha, cá está ele!».
Incontidamente, levantava-se então o seu aventalinho como as
roupas de um menino mau, e via-se a sua débil bengalinha lutar
e debater-se em vão na sua mão, e as suas pernas sofriam uma
tremenda agitação, e o pobre Toby todo de esguelha, virando-
se ora para um lado ora para outro, era de tal modo sacudido,
esbofeteado, descomposto, perturbado, empurrado e erguido
que dir-se-ia faltar um passo para que se desse um autêntico
milagre, o de ser erguido no ar em corpo como o são por vezes
uma colónia de rãs ou de caracóis ou de outros seres portáteis
e novamente despejado, para grande espanto dos nativos,
nalgum canto do mundo onde os moços de recados fossem
coisa desconhecida.
Mas o tempo ventoso, apesar de o cansar tanto, era no fim de
contas,
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Fazia essa caminhada várias vezes por dia, porque eles eram
para ele uma companhia; e quando lhes ouvia as vozes queria
olhar o seu abrigo, pensando na forma como eram movidos e
nos martelos que lhes batiam. Talvez sentisse mais curiosidade
por eles por haver pontos de semelhança entre os sinos e ele.
Ambos ali estavam, com qualquer tempo, aguentando as
arremetidas do vento e da chuva, vendo apenas a parte
exterior de todas aquelas casas, nunca se aproximando dos
brilhantes lumes que se viam das janelas ou cujo fumo saía
pelas chaminés e incapazes de participar de qualquer das coisas
boas que eram constantemente entregues a fantásticos
cozinheiros às portas de serviço ou às grades das propriedades.
Em muitas janelas apareciam e desapareciam caras, por vezes
caras bonitas, jovens, agradáveis; outras vezes o contrário; mas
Toby sabia tanto como os sinos (embora muitas vezes
especulasse sobre esses nadas, enquanto permanecia ocioso
pelas ruas) donde vinham ou para onde iam ou, quando os
lábios deles se moviam, se iriam dizer durante todo o ano uma
palavra amável a seu respeito.
Toby não era um casuísta (pelo menos que o soubesse), nem
eu quero dizer que, quando se começou a afeiçoar aos sinos e a
tecer a primeira tosca relação com eles transformando-a em
algo de mais delicada trama, tivesse feito uma a uma tais
considerações ou que as tenha passado em revista na sua
mente. Mas o que quero dizer, e digo, é que tal como as
funções orgânicas de Toby cumprem os seus objectivos, as do
seu aparelho digestivo, por exemplo, faziam por seu próprio
atributo uma quantidade de operações que ele ignorava em
absoluto e cujo conhecimento o espantaria grandemente, assim
também as suas faculdades mentais, sem a sua autorização ou
contributo, desencadeavam todos estes mecanismos e molas e
milhares de outros, quando trabalhavam no sentido de o
fazerem gostar dos sinos. E ainda
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Senhor, faz com que algo de melhor nos possa vir com a
aproximação do Ano Novo!
— Oh, pai, pai! — disse uma voz agradável, ali próximo.
Mas Toby, não a ouvindo, continuou a trotar para trás e para
diante, meditando à medida que avançava e falando de si para
si.
— É como se não achássemos o caminho certo, como se não
conseguíssemos agir acertadamente ou não nos fizessem justiça
— disse Toby. — Eu cá por mim não tive grande instrução,
quando era novo; e não consigo perceber se andamos a fazer
alguma coisa ao cimo da Terra ou se não. Por vezes penso que
sim, pelo menos um pouco; outras vezes acho que estamos a
mais. Fico por vezes tão confuso que nem consigo ajuizar se há
em nós algo de bom, ou se nascemos maus. Parece que somos
coisas horríveis e que trazemos montes de complicações.
Sempre se queixam de nós e estão sempre na defensiva a nosso
respeito. Duma maneira ou de outra, enchemos os jornais. E
por falar em Ano Novo! — disse Toby, tristonho. — Consigo
conservar a coragem, em certas alturas, tanto como qualquer
outro e por vezes melhor do que muitos, porque sou forte que
nem um leão e nem todos o são, mas supondo que não temos
realmente direitos a um Novo Ano, supondo que somos
realmente intrusos...
— Ó pai, pai! — disse novamente a voz agradável. Desta vez
Toby ouviu. Partiu. Parou. Encurtando o olhar, que tinha estado
dirigido para longe, como se procurasse ser esclarecido no
coração do ano que se aproximava, encontrou-se cara a cara
com a sua própria filha e olhou-a no fundo dos seus olhos.
E que olhos brilhantes eram aqueles! Olhos que suportavam
um mundo de olhares antes que as suas profundezas fossem
exploradas. Olhos
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São tripas!
— Não, não são! — exclamou Meg, num ímpeto de prazer. —
Não são!
— Oh, mas que estou eu a pensar? — disse Toby retomando
bruscamente uma posição tão próxima da perpendicular
quanto lhe era possível. — Depois disto, nem do meu nome me
vou lembrar. É bucho!
E era mesmo bucho. Meg, na sua grande alegria, replicou que
ele teria de dizer, dentro de meio minuto, que se tratava do
melhor bucho que jamais fora guisado.
— E agora — disse Meg, atarefando-se exultante com o cesto
—, vou já pôr a toalha, pai; porque trouxe o bucho numa tijela
e embrulhei-a num lenço de algibeira e se por uma vez desejo
ser orgulhosa e estendê-lo como se fosse uma toalha,
chamando-lhe toalha, não há lei que mo proíba, pois não, pai?
— Que eu saiba, não, minha querida — disse Toby. — Mas
estão sempre a inventar novas leis.
— E segundo aquilo que no outro dia lhe li no jornal, pai, sabe
que o juiz diz que nós, os pobres, devemos sabê-las todas. Ah,
ah! Que disparate! Meu Deus, como eles nos julgam espertos!
— Sim, minha querida — disse Trotty—; e gostariam muito
daquele que realmente as soubesse todas. Esse homem havia
de engordar com o trabalho que arranjasse e seria muito
querido por todos os senhores da região. Era mesmo assim!
— Comeria o seu jantar com apetite, fosse ele quem fosse, se
ele cheirasse assim — disse Meg alegremente. — Despache-se,
porque também tem batata quente e meio quartilho de cerveja
recém-tirada, numa garrafa. Onde é que janta, pai? Na estação
ou nos degraus? Querido pai, como somos importantes. Temos
dois lugares à escolha!
— Hoje é nos degraus, querida — disse Trotty. — Nos degraus
com
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farão de nós velhos antes que demos por isso. Ele diz que se
nós, gente da nossa condição, esperarmos até termos caminho
aberto, o caminho será bem estreito (será o caminho vulgar),
será a campa, pai.
Para um homem mais ousado que Trotty Veck, teria sido
necessário castigar bem a sua ousadia, para negar isto. Trotty
ficou quieto.
— E como é duro, pai, envelhecermos e morrermos a pensar
que nos poderíamos ter acarinhado e ajudado um ao outro!
Como é difícil, com vidas como as nossas, amarmo-nos e
sofrermos separados, vendo-nos mutuamente trabalhar,
modificar-nos, tornar-nos velhos e grisalhos. Ainda que
conseguisse ultrapassar isto e esquecê-lo (o que nunca faria), ó
meu querido pai, como seria duro ter um coração tão cheio
como o meu está agora e viver para vê-lo ser drenado gota a
gota, sem a compensação de um momento feliz dos da vida de
uma mulher, para me amparar e confortar e fazer-me sentir
melhor!
Trotty continuava sentado e em silêncio. Meg enxugou os
olhos e disse em tom mais alegre, ou seja, com um sorriso aqui,
e um soluço ali, e acolá um soluço e um sorriso ao mesmo
tempo:
— O Richard diz então, pai, que como o trabalho dele ficou
desde ontem assegurado por algum tempo e visto que eu o
amo e há três anos que não deixo de o amar (oh!, há mais
tempo! Se ele soubesse!...), poderia casar com ele no dia de
Ano Novo, o melhor e o mais feliz dos dias de todo o ano, diz
ele, e aquele que traz de certeza boa sorte. É um prazo curto,
não é, pai? Mas eu não tenho fortuna a assegurar, ou fatos de
casamento a fazer, como as grandes senhoras, não é, pai? Ele
disse tanta coisa e disse-as à sua maneira, em tom tão forte e
decidido, mas sempre tão amável e terno, que eu disse que
vinha falar consigo, pai. E como me pagaram esta manhã (sem
eu esperar) aquele
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— Os bons velhos tempos, os bons velhos tempos — repetia o
cavalheiro. — Que tempos aqueles! Foram únicos. Não vale a
pena falar de outros, ou discutir o que as pessoas são hoje. Não
se chama a isto tempos, pois não? Eu cá não. Deitem uma
olhadela aos trajos do Strutt e vejam o que era um moço,
nesses bons velhos reinados ingleses.
— Não tinha, nos seus melhores momentos, uma camisa para o
cobrir nem uma meia para calçar e em toda a Inglaterra mal
achava um legume para comer — disse o senhor Filer. — Posso
prová-lo com gráficos.
Mas mesmo assim o cavalheiro de cara vermelha enaltecia os
bons velhos tempos, os grandes velhos tempos, os formidáveis
velhos tempos. Não importava o que outra pessoa dissesse, ele
continuava a repetir numa fórmula estabelecida as palavras
que se lhe referiam, qual infeliz esquilo girando e girando na
sua gaiola rotativa, tocando no mecanismo e tendo do seu
segredo possivelmente a mesma percepção que este senhor de
cara vermelha tinha do milénio passado.
Pode ser que a fé do pobre Trotty naqueles velhos tempos
muito vagos não estivesse completamente destruída, porque
também ele naquele momento se sentia bastante vago. Uma
coisa, porém, era para ele clara, no meio da sua desgraça: por
mais que aqueles cavalheiros pudessem diferir nos seus
pormenores, as suas dúvidas daquela manhã e de tantas outras
manhãs eram bem fundadas.
«Não, não. Não podemos andar bem nem agir bem», pensou
Trotty desesperado. «Não há em nós algum bem. Nascemos
maus!»
Mas Trotty tinha um coração de pai dentro de si e, apesar da
sua decisão, tinha caído em si e não podia suportar que Meg,
no rubor da sua breve alegria, visse a sua sina lida por aqueles
avisados senhores. «Deus a ajude», pensou o pobre Trotty. «Em
breve vai ficar
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eu fosse um tipo jovem e forte como tu, tinha vergonha de ser
tão maricas que me fosse coser às saias duma mulher! Ela vai
fazer-se uma velha, antes que tu sejas um homem de meia-
idade! E que bonita figura vais fazer então com uma mulher
desmazelada e um rancho de filhos escanzelados, atrás de ti,
por onde quer que vás!
Oh, ele sabia bem como meter a ridículo a gente do povo,
aquele Alderman Cute!
— Pronto! Muda de opinião — disse Alderman — e arrepende-
te. Não faças o disparate de casar no dia de Ano Novo. Antes do
próximo dia de Ano Novo já deves pensar de maneira muito
diferente. Um jovem bonito como tu, com todas as raparigas
atrás de ti. Pronto! Vai-te lá embora!
Eles lá se foram. Não de braço dado, ou de mão na mão, ou
trocando olhares brilhantes, mas ela lacrimosa e ele triste e
cabisbaixo. Eram estes, então, os corações que tinham feito
Toby recuperar da sua fraqueza, ultimamente? Não, não. O
Alderman (abençoado seja!) tinha-
-os deitado abaixo.
— Já que aqui estás — disse Alderman a Toby —, levas-me uma
carta. Consegues ser rápido? És velho.
Toby, que tinha estado muito estupidamente a seguir Meg com
o olhar, encontrou maneira de murmurar que era muito rápido
e muito forte.
— Que idade tens? — indagou Alderman.
— Tenho quase sessenta, senhor — disse Toby.
— Oh, este homem já ultrapassou de longe a média da idade,
sabem — exclamou o senhor Filer, como se isto fosse de mais
para o que a sua paciência ainda podia suportar.
— Acho que estou a mais, senhor — disse Toby. — Esta manhã
bem tive dúvidas. Valha-me Deus!
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Segundo quarto
A carta que Toby recebera de Alderman Cute era dirigida a um
homem importante, na zona importante da cidade. Na zona
mais importante da cidade. Devia ser a parte mais importante
da cidade, pois que era frequentemente chamada «o mundo»
pelos seus habitantes.
A carta parecia realmente mais pesada, na mão de Toby, do
que qualquer outra carta. Não porque Alderman a tivesse
selado com um grande brasão e sem lacre, mas pelo pesado
nome no sobrescrito e pelo peso de ouro e prata que a ele
estava ligado.
«Como é diferente de nós!», pensou Toby com toda a
simplicidade e sinceridade, ao olhar o endereço. «Se nas listas
de óbitos dividirem as tartarugas vivas pelo número de
senhores que podem comprá-las, ele não rouba o quinhão dele
a ninguém! E quanto a tirar o bucho da boca de alguém... nem
pensar!»
E, com a reverência devida a tão excelsa personagem, Toby
interpôs a ponta do seu avental entre os seus dedos e a carta.
— Os filhos dele — e ao dizer isto uma névoa subiu-lhe aos
olhos —, as suas filhas... poderão ser conquistadas e desposar
cavalheiros, podem ser mães e esposas felizes, podem ser
lindas como a minha querida M... e...
Não conseguiu acabar o nome. A última letra ficou-lhe na
garganta como se fosse do tamanho do alfabeto.
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«Não faz mal», pensou Trotty. «Eu sei o que quero dizer e isso
basta-me.» E, ruminando estas palavras de conformação,
continuou a trotar.
Havia naquele dia uma forte geada. O ar estava revigorante,
fresco e transparente. O Sol de Inverno, ainda que sem força
para aquecer, espreitava radiosamente o gelo, que não
conseguia derreter, fazendo-o resplandecer. Noutra altura
Trotty poderia ter extraído do Sol de Inverno uma lição sobre o
homem pobre, mas já ultrapassara essa fase.
Aquele dia ainda era de ano velho. O ano paciente suportara as
censuras e os desmandos dos seus caluniadores e cumprira
fielmente a sua missão. Primavera, Verão, Outono e Inverno.
Trabalhara durante toda a sua vida e pousava agora a cabeça
para morrer. Ele próprio já fora de qualquer esperança, de
qualquer impulso forte, de qualquer felicidade activa, mas
ainda activo mensageiro de muitas alegrias para outros,
apelava no seu declínio para que lembrassem os seus dias de
labuta e as suas horas de paciência e para morrer em paz.
Trotty podia ter lido no ano que morria a alegoria do homem
pobre, mas já ultrapassara essa fase.
E seria só ele? Ou teria o mesmo apelo sido feito em vão,
durante setenta anos, aos trabalhadores ingleses?!
As ruas estavam cheias de movimento e as lojas estavam
alegremente decoradas. O novo ano era esperado como um
novo herdeiro para o mundo, com presentes, boas-vindas e
alegria. Havia livros e brinquedos para o Ano Novo, brilhantes
adornos para o Ano Novo, vestidos para o Ano Novo, projectos
de sorte para o Ano Novo e novas invenções para passar o
tempo. A sua vida estava parcelada em almanaques e agendas,
já naquele momento se sabia com antecedência das suas luas,
das estrelas e das marés, todo o funcionamento das
estações,dos dias e das noites, estava calculado com a mesma
precisão
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— Receio, senhor — titubeou Trotty —, que haja aí uns dez ou
doze xelins em atraso à senhora Chickens-talker.
— À senhora Chickenstalker! — repetiu Sir Joseph no mesmo
tom que anteriormente.
— Numa loja, senhor — exclamou Toby —, de comércio geral.
E também ai... algum dinheiro de rendas. Muito pouco. Não
devíamos estar a dever, eu sei, mas temos sido realmente
obrigados a isso pelas dificuldades!
Sir Joseph olhou para a sua esposa e para o senhor Fish e para
Trotty, uns após outros, por duas vezes. Fez depois um gesto
desesperançado com as duas mãos ao mesmo tempo, como se
desistisse de tudo ao mesmo tempo.
— Como pode um homem, mesmo entre esta raça de
imprevidentes e de impossíveis, um velho, um homem já
grisalho, olhar o ano novo de frente com os seus assuntos neste
estado. Como pode ele deitar-se à noite na sua cama e
levantar-se de manhã e... Pronto! — disse, virando as costas a
Trotty. — Leva a carta. Leva a carta!
— Eu desejava ardentemente que as coisas se passassem
doutra maneira — disse Trotty, ansioso por se desculpar. —
Temos tentado duramente.
Com Sir Joseph sempre a repetir «Leva a carta, leva a carta!», o
senhor Fish não só a repetir a mesma coisa mas reforçando o
pedido empurrando o portador para a porta, nada mais lhe
restava que fazer uma vénia e sair daquela casa. Na rua puxou
o velho chapéu para a frente para esconder o desgosto que
sentia de não ter nada a que se agarrar fosse onde fosse, no
ano novo.
Nem sequer levantou o chapéu para olhar para o campanário
quando, de regresso, chegou junto da velha igreja. Por hábito,
parou ali por um momento e apercebeu-se de que estava a
escurecer e de que acima dele se erguia o campanário no meio
do ar fusco. Sabia também que os sinos
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subtraí ao trabalho, por mais duro ou mais mal pago que fosse.
E quem puder negá-lo que ma corte! Mas quando o trabalho já
não me sustenta como a um ser humano, quando a minha
condição de vida é tão má que tenho fome dentro e fora de
casa, quando vejo toda uma vida de trabalho começar assim,
prosseguir assim e terminar assim, sem uma oportunidade ou
uma alteração, então digo à gente de bem: «Afastem-se de
mim! Deixem em paz a minha cabana. A minha porta já é
suficientemente escura, sem que vocês a ensombrem mais. Não
esperem ver-me no parque para ajudar à festa quando houver
um aniversário ou um belo discurso, ou sei lá que mais outras
representações e jogos, que vocês fazem sem mim, e que lhes
faça muito bom proveito e se divirtam muito. Não temos nada
que ver uns com os outros. Estou muito melhor sozinho!».
Ao ver que a criança que tinha ao colo abrira os olhos e olhava
em redor espantada, deteve-se para lhe dizer uma ou duas
palavras ao ouvido, numa tagarelice pateta, e para a pôr em pé
no chão, ao lado dele. Então, enrolando e tornando a enrolar
lentamente uma das suas longas tranças em volta do indicador
grosseiro, como se fosse um anel, enquanto ela se pendurava
na perna poeirenta dele, disse a Trotty:
— Acho que não sou um homem mal-humorado por natureza e
tenho a certeza de que facilmente me satisfaço. Não guardo
qualquer rancor contra nenhum deles. Só quero viver como
uma criatura de Deus. Não posso, não vivo e aí está cavado o
fosso entre mim e eles, que podem e vivem. Outros há como
eu. E contam-se mais depressa por centenas e por milhares do
que por unidades.
Trotty sabia que neste ponto ele dizia a verdade e abanou a
cabeça para concordar.
— Assim tenho eu uma má reputação — disse Fern
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— Eu nada mais sei que o seu nome — disse ele — mas já lhe
abri o meu coração, porque lhe estou grato e com razão. Aceito
o seu conselho e afasto-me desse tal...
— Magistrado — adiantou Toby.
— Ah! — disse ele. — Se é esse o nome que lhe dão, a esse
magistrado. Amanhã vou ver se tenho mais sorte, por aí
próximo de Londres. Boa noite e feliz ano novo!
— Espere! — disse Toby agarrando-se à mão dele quando ele já
soltava a sua. — Fique! O ano novo não poderá ser feliz para
mim se nos separarmos assim. Nunca o ano novo poderá ser
feliz para mim se vir você e a criança afastarem-se para aí ao
deus-dará, sem saberem para onde e sem refúgio onde se
abrigarem. Venham para casa comigo! Vá, eu levo-a! —
declarou Toby pegando na criança. — Tão bonitinha! Era capaz
de transportar vinte vezes o peso dela, sem dar por isso. Diga-
-me se vou depressa de mais para si. Eu sou muito rápido.
Sempre fui! — Ao dizer isto Trotty deu seis dos seus passitos de
trote, com as suas pernitas trementes sob o peso que
transportava, enquanto o seu parceiro exausto dava uma
passada.
— Ah, ela é tão leve — disse Trotty, trotando tanto na fala
como na maneira de andar, porque não suportava
agradecimentos e temia por isso calar-se —, tão leve como uma
pena. Mais leve que uma pena de pavão, muito mais leve. Aqui
estamos nós e cá vamos! Depois desta curva à direita, tio Will,
depois da bomba e de nos esgueirarmos pelo corredor, mesmo
em frente da hospedaria. Cá estamos e cá vamos nós! Passe, tio
Will, e cuidado com o homem das empadas de rim que está à
esquina! Aqui estamos e aqui vamos nós! Por baixo da
cavalariça, tio Will, e pare na porta preta, que tem escrito na
madeira «T. Veck, moço de recados», aqui estamos e aqui
vamos nós, já cá estamos mesmo, minha querida Meg, aqui
tens uma surpresa!
Com estas palavras Trotty, sem fôlego, depôs a criança no meio
do
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aqui... não, não é isso, não é isso que eu quero dizer. Eu... que é
que eu ia dizer, Meg, minha querida?
Meg olhou para o seu hóspede, que estava inclinado na
cadeira, com o rosto desviado do dela, e acariciou a cabeça da
criança, semi-
-escondida no seu regaço.
— Para dizer a verdade — disse Toby —, para dizer a verdade,
não sei o que é que estou para aqui a divagar, esta noite. O
meu juízo está enovelado, quer parecer-me. Will Fern, venha
comigo. Você está exausto e alquebrado por falta de descanso.
Venha comigo.
O homem ainda acariciava os caracóis da criança, ainda estava
inclinado para a cadeira de Meg, ainda tinha a cara voltada.
Não falava, mas nos seus dedos rudes e grosseiros, que se
abriam e fechavam no cabelo louro da criança, havia uma
eloquência que dizia muito.
— Sim, sim — disse Trotty, respondendo inconscientemente
àquilo que via escrito no rosto da filha. — Leva-a contigo, Meg.
Mete-a na cama. Vá! Agora Will, vou mostrar-lhe onde você
dorme. Não é lá grande coisa, é apenas um palheiro, mas ter
um palheiro, é o que eu digo sempre, é uma das grandes
conveniências de viver num estábulo; e até esta cocheira e este
estábulo terem melhor inquilino, aqui vivemos por preço em
conta. Lá em cima há muito feno fofo, que pertence a um
vizinho e está muito limpinho. A Meg pode compô-lo. Alegre-
se! Não desista. Sempre um coração novo, para um novo ano!
A mão soltou-se do cabelo da criança e caiu tremente na mão
de Trotty. Trotty, falando então sem parar, conduziu-o tão
terna e facilmente como se ele próprio fosse uma criança.
Regressando antes de Meg, escutou durante um momento à
porta do quartinho dela, o compartimento ao lado. A criança
balbuciava uma simples oração antes de se deitar para dormir e
quando se lembrou do
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Toby Veck, Toby Veck, estamos à tua espera, Toby! Vem ver-
nos, vem ver-nos, trá-lo até nós, trá-lo até nós, assombra-o e
persegue-o, assombra-o e persegue-o, interrompe o seu sono
interrompe o seu sono! Toby Veck, Toby Veck, Toby Veck, abre
toda a porta, Toby...», voltando depois furiosamente à sua
impetuosa canção, ressoando dentro dos próprios tijolos e do
gesso das paredes. Toby escutava. Imaginava, imaginava! Os
remorsos que tinha por ter fugido deles naquela tarde! Não,
não. Nada disso. Repetiu uma, duas, uma dúzia de vezes:
«Assombra-o e persegue-o, assombra-o e persegue-o. Trá-lo
até nós, trá-lo até nós!». Ensurdeciam toda a cidade!
— Meg — disse Trotty baixinho, dando pancadinhas na porta
dela. — Ouves alguma coisa?
— Oiço os sinos, pai. Esta noite soam realmente muito alto.
— Ela está a dormir? — disse Toby, desculpando-se por
espreitar.
— Tão feliz e tranquilamente! No entanto, ainda não a posso
deixar, pai. Olhe como ela me segura na mão!
— Meg — murmurou Trotty. — Escuta os sinos! Ela escutou,
sempre de cara virada para ele, mas nada nela se alterou. Ela
não os entendia.
Trotty retirou-se, retomou o seu lugar junto do lume e mais
uma vez escutou, sozinho. Ali ficou durante algum tempo.
Era impossível suportá-los; a sua energia era terrível.
— Se a porta da torre estiver aberta — disse Toby, pondo
apressadamente de lado o avental, sem nunca pensar no
chapéu —, que é que me impede de ir ao campanário e fazer o
gosto? Se estiver fechada, pronto, chega.
Quando se esgueirou silenciosamente para a rua, ia
absolutamente seguro de que iria encontrá-la fechada e
trancada, porque conhecia bem a porta e raramente a vira
aberta, que nem três vezes ao todo,
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Sombrios, escuros e mudos.
Sobre ele caiu nesse instante uma sensação de pavor e de
solidão, ao trepar para o seu arejado ninho de pedra e metal. A
cabeça rodopiava-
-lhe. Escutou e depois lançou um «Ôoôoh!» selvagem.
O «Oôooh!» foi tristemente repetido pelo eco.
Atordoado, confuso, sem fôlego e assustado, Toby olhou em
redor vagamente e mergulhou num desmaio.
Terceiro quarto
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como sempre fora, mas a esperança, a esperança, a esperança,
oh, onde estava a viva esperança que como uma voz lhe falava?
Ela ergueu os olhos do trabalho, para uma companheira.
Seguindo-lhe o olhar, o velho recuou.
Na mulher já feita, ele reconheceu-a imediatamente. No
sedoso cabelo comprido, reconheceu os mesmos caracóis e em
volta dos lábios ainda pairava a mesma expressão infantil.
Olha! Nos olhos que agora se voltavam inquiridores para Meg
brilhava o mesmo olhar que examinava aqueles traços quando
ele a trouxera para casa!
E que era então aquilo que estava a seu lado?!
Olhando com temor para aquele rosto, viu que nele pairava
algo, algo de sublime, de indefinido e indistinto, que fazia dele
pouco mais que a recordação daquela criança (tal como a figura
além podia sê-lo), sendo embora a mesma. A mesma e usava o
mesmo vestido.
Escutem! Estão a falar!
— Meg — disse Lilian hesitante. — Quantas vezes levantas a
cabeça do trabalho para olhares para mim!
— Será que o meu olhar está tão alterado que te assusta? —
perguntou Meg.
— Não, querida! Mas até para isso tu te ris! Porque não te ris
quando olhas para mim, Meg?
— Mas eu rio. Não rio? — perguntou Meg, sorrindo para ela.
— Agora, sim — disse Lilian —, mas habitualmente não.
Quando pensas que eu estou ocupada e que não te vejo, tens
um ar tão ansioso e duvidoso que eu mal ouso levantar os
olhos. Nesta vida dura e trabalhosa há pouca razão para sorrir,
mas tu já foste alegre.
— E agora não sou! — exclamou Meg num tom de estranha
exaltação. — Torno ainda mais dura a tua vida já dura, Lilian?
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naquela direcção.
— Meu caro Alderman Cute — disse o senhor Fish. — Chegue-
se um pouco mais para aqui. Aconteceu uma coisa horrível.
Recebi neste momento o recado. Acho que é melhor não se dar
conhecimento a Sir Joseph antes de o dia findar. O senhor
conhece Sir Joseph e dar-me-á a sua opinião. Foi um
acontecimento terrível e deplorável!
— Fish! — retorquiu Alderman. — Fish, meu bom amigo, que
há? Espero que não seja nada de revolucionário! Nenhuma
tentativa de interferir com os magistrados!
— Deedles, o banqueiro — sussurrou o secretário. — Deedles
Brothers (que era para cá ter estado hoje), o mais importante
nos escritórios da companhia Goldsmith...
— Não me diga que foi suspenso! — exclamou Alderman. —
Não pode ser!
— Suicidou-se.
— Meu Deus!
— Pôs uma pistola de dois canos à boca, no seu próprio
escritório — disse o senhor Fish —, e estourou com os miolos.
Sem motivo. Altas razões!
— Razões? — exclamou Alderman. — Um homem de nobre
fortuna. Um dos homens mais respeitáveis. Suicidar-se, senhor
Fish! Por sua própria mão!
— Esta manhã mesmo — replicou o senhor Fish.
— Oh, o cérebro, o cérebro! — exclamou o piedoso Alderman
erguendo as mãos. — Ah, os nervos, os nervos! Os mistérios
desta máquina chamada Homem! Tão pouco basta para a
desengonçar. Que pobres seres nós somos! Talvez por um
jantar, senhor Fish. Talvez pela conduta de seu filho, que
segundo ouvi dizer era muito descontrolada e que tinha o
hábito de fazer contas em seu nome sem a mínima autoridade!
Um homem muito respeitável. Um dos homens mais
respeitáveis que alguma
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este lugar seja melhor para quadros do que para se viver. Bom,
ali vivi! Quão duramente, quão amarga e duramente ali vivi,
nem posso dizer. Qualquer dia do ano, e todos os dias, podem
julgar por vós próprios.
Falou como falara na noite em que Trotty o encontrara na rua.
A sua voz era mais profunda e mais rouca e havia nele de vez
em quando uma certa tremura, mas nunca a elevou com paixão
e raramente ela soou mais acima do nível duro e firme dos
próprios factos domésticos que ele relatava.
— É mais duro do que vocês pensam, meus senhores, crescer
decentemente, com um mínimo de decência, num tal lugar. Ter
crescido como um homem, e não como um selvagem, já diz
algo de mim... do que eu era, então. Por aquele que eu sou
agora, nada pode ser dito nem feito. Já ultrapassei essa fase.
— Estou contente por este homem ter entrado — observou Sir
Joseph, olhando em volta, com serenidade. — Não o
interrompam. Parece que foi o destino. Ele é um exemplo, um
exemplo vivo. Tenho esperança, confio e espero
confiantemente que ele não se perca entre os meus amigos
aqui presentes.
— Continuei a arrastar-me — disse Fern após um momento de
silêncio —, de qualquer maneira. Nem eu nem qualquer
homem sabe como, mas tão pesadamente que não podia
mostrar boa cara ou fingir aquilo que não era. Olhem,
cavalheiros, vocês cavalheiros, que vão ao Parlamento, quando
vêem um homem com expressão de descontentamento no
rosto dizem uns para os outros: «É suspeito. Tenho as minhas
dúvidas sobre o Will Fern», dizem, «vigiem esse indivíduo!».
Não digo, meus senhores, que não seja muito natural, mas
assim é e, desse momento em diante, tudo o que Will Fern
fizer, ou deixar de fazer, mas tudo, será contra ele.
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estamos no berço; dêem-nos melhor alimentação, quando
trabalhamos para viver; dêem-nos melhores leis, para nos
trazer ao bom caminho quando erramos; e não coloquem na
nossa frente sempre a cadeia, a cadeia, a cadeia, para onde
quer que nos viremos. Não haverá então concessão feita ao
trabalhador que ele não aceite tão pronta e agradecidamente
como nenhum homem, porque o seu coração é paciente,
pacífico e condescendente. Mas têm primeiro de pôr nele o
espírito recto; pois quer ele seja um destroço e uma ruína como
eu, ou seja como um destes que aqui estão neste momento, o
seu espírito está separado de vós. Recuperem-no, meus
senhores, recuperem-no! Recuperem-no antes que chegue o
dia em que até no seu espírito alterado a sua Bíblia apareça
modificada e lhes pareça que as palavras dizem, como já a
meus olhos pareceram dizer... na cadeia: «Por onde tu fores eu
não irei, onde habitares eu não habitarei, o teu povo não é o
meu povo, nem o teu Deus é o meu Deus!».
Gerou-se um súbito movimento e uma súbita agitação no
salão. Trotty pensou a princípio que vários se tinham levantado
para expulsar o homem e daí a modificação do seu aspecto.
Mas no momento seguinte viu que a sala e todos os convidados
tinham desaparecido da sua frente e que tinha ali de novo a sua
filha sentada a trabalhar, mas num sótão ainda mais pobre e
humilde e sem Lilian junto dela.
O bastidor a que estivera a trabalhar estava posto numa
prateleira e coberto. A cadeira onde estivera sentada estava
virada para a parede. Nestas pequenas coisas e no rosto de
Meg consumido pelo desgosto estava escrita uma história. Oh!
Quem não a lia!
Meg esforçava os olhos no trabalho antes que fosse escuro de
mais para ver as linhas; e quando a noite caiu,acendeu a débil
vela e
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Ó juventude e beleza, felizes como vós deveis ser, olhai para
isto. Ó juventude e beleza, abençoada e abençoando tudo o
que está ao teu alcance e cumprindo os fins do teu benévolo
Criador, olha para isto!
Ela viu a figura que entrava, gritou o seu nome, exclamou:
— Lilian!
Ela precipitou-se e caiu-lhe de joelhos aos pés, agarrando-se-
lhe ao vestido.
— Upa, Lilian! De pé! Minha queridinha!
— Nunca mais, Meg, nunca mais! Aqui, aqui! Próximo de ti,
abraçando-
-te, sentindo o teu hálito no meu rosto!
— Querida Lilian! Adorada Lilian! Filha do meu coração, deita a
tua cabeça no meu peito. Não há amor de mãe mais terno do
que este.
— Nunca mais, Meg. Nunca mais! Quando te vi pela primeira
vez, Meg, ajoelhaste diante de mim. Agora ajoelho-me eu,
antes que morra. Deixa-me aqui estar!
— Voltaste, meu tesouro! Viveremos juntas, trabalharemos
juntas, juntas teremos esperança e juntas morreremos!
— Ah, beija-me, Meg, envolve-me com os teus braços, aperta-
me ao teu peito, olha-me com doçura, mas não me ergas.
Deixa-me estar. Deixa-me ver pela última vez o teu rosto, de
joelhos!
Ó juventude e beleza, felizes como deveis ser, olhai para isto!
Ó juventude e beleza, cumprindo os fins designados pelo vosso
benévolo Criador, olhai para isto!
— Perdoa-me, Meg! Querida, querida! Perdoa-me! Sei que me
perdoas, vejo-o, mas diz-mo, Meg!
Ela disse-o com os lábios na face de Lilian e com os braços em
torno do que ela sabia agora ser um coração despedaçado.
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Quarto quarto
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da sua menina estiolada, que para ele fora uma tristeza até o
facto de não constar no livro razão da senhora Chickenstalker.
— Que tempo faz esta noite, Anne? — inquiriu o antigo lacaio
de Sir Joseph Bowley, estendendo as pernas em frente do lume,
esfregando-as tanto quanto os seus braços curtos permitiam,
com um ar que dizia: «Se está mau, aqui estou; e se está bom,
não quero sair».
— Faz vento e está a cair granizo — respondeu-lhe a mulher —
e ameaça nevar. Está escuro e muito frio.
— Estou contente por pensar que temos bolinhos — disse o ex-
lacaio, no tom de alguém que tivesse posto a consciência em
descanso: — É mesmo o género de noite talhada para os
bolinhos, bem como para bolos finos e para bolinhos de chá.
O ex-lacaio mencionava sucessivamente cada tipo de
comestível, como se enumerasse contemplativamente as suas
boas acções. Depois disso voltou a esfregar as pernas gordas,
como anteriormente fizera, puxando-as pelos joelhos para que
o fogo desse nas partes ainda não assadas, rindo-se como se
alguém lhe estivesse a fazer cócegas.
— Estás contente, meu querido Tugby — observou a mulher.
A firma era Tugby, ex-Chickenstalker.
— Não — disse Tugby. — Não, nem por isso. Estou um bocado
excitado. Os bolinhos caíram-me mesmo bem!
Ao dizer isto riu-se até ficar negro e custou-lhe tanto a mudar
de cor que as suas pernas gordas fizeram as mais estranhas
evoluções no ar. Só adquiriram um certo decoro quando a
senhora Tugby lhe deu violenta palmada nas costas e o abanou
como se ele fosse uma grande garrafa.
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— Valha-me Deus, Deus seja louvado, o senhor nos acuda! —
exclamou a senhora Tugby muito assustada. — Que é que ele
está a fazer?
O senhor Tugby esfregou os olhos e repetiu debilmente que
estava um pouco excitado.
— Então não voltes a estar, por amor de Deus — disse a
senhora Tugby —, se não queres matar-me de susto, com esse
lutar e esbracejar!
O senhor Tugby disse que não, mas toda a sua existência era
uma luta, da qual, a julgar pela brevidade sempre aumentada
da sua respiração e da cor púrpura escura do seu rosto, ele
estava sempre a sair vencido.
— Está então a fazer vento, a cair granizo e a ameaçar neve; e
está escuro e muito frio, minha querida? — disse o senhor
Tugby, olhando para o lume, regressando ao âmago e à
essência da sua meditação temporária.
— Está mesmo mau tempo — respondeu-lhe a mulher
abanando a cabeça.
— Hum, hum! Os anos são, nesse aspecto, como os cristãos —
disse o senhor Tugby. — Uns morrem facilmente, outros
morrem dificilmente. Este já não tem muitos dias para viver e
está a lutar pelos que lhe restam. Assim ainda gosta mais dele.
Olha, minha querida, está ali um cliente!
Atenta à porta que tilintava, a senhora Tugby já se tinha
levantado.
— Já lá vai! — disse a senhora, passando para a loja. — Que
deseja? Oh, desculpe, senhor. Não pensei que fosse o senhor.
Ela pediu estas desculpas a um senhor de preto que, de punhos
arregaçados, com o chapéu descuidadamente posto de lado e
de mãos nos bolsos, estava sentado escarranchado no barril da
cerveja e lhe acenou com a cabeça em resposta.
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como esteve durante muitos anos, esta casa era conhecida por
toda a gente como a da senhora Chickenstalker e só pelo seu
crédito honesto e pelas suas boas referências. Quando o meu
nome de viúva estava sobre aquela porta, Tugby, eu conheci-o
como um jovem bem parecido, vigoroso, másculo e
independente, e conheci-a a ela, a rapariga mais doce que
jamais conheci. Conheci o pai dela (pobre velhote, caiu do
campanário durante o sono e morreu) como o homem mais
simples, mais trabalhador, de coração mais puro que jamais
existiu. E quando eu os expulsar da minha casa e do meu lar,
que os anjos me expulsem do Céu. Que assim faça e é bem
feito!
A cara dela, que antes de se darem estas modificações era
balofa e com covinhas, parecia superá-la, ao dizer estas
palavras; e quando ela secou os olhos e abanou a cabeça e o
lenço para Tugby, com uma expressão de determinação a que
era evidente não se poder facilmente resistir, Trotty disse:
«Abençoada seja! Abençoada seja!».
Escutou depois, com o coração ofegante, o que se seguiria.
Sabendo apenas naquela altura que falavam de Meg.
Se Tugby tivesse sido mais nobre na sala, talvez tivesse
ajustado aquelas contas, sem ficar um pouco deprimido na loja,
onde estava agora olhando fixamente para a sua mulher, sem
tentar sequer dar resposta; levando porém em segredo (ou por
acesso de abstracção ou por medida de precaução), nos bolsos,
o dinheiro da caixa registadora, enquanto a fitava. O cavalheiro
que estava em cima da pipa de cerveja, que parecia ser médico
autorizado, com tabuleta, estava evidentemente habituado a
pequenas diferenças de opinião entre marido e mulher, para
fazer naquele momento qualquer observação. Permanecia
sentado, assobiando calmamente e deixando cair no chão
pequenas gotas de cerveja, até se restabelecer a completa
calma. Foi
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isso. Assim se casaram; e quando vieram para aqui morar e eu
os vi, tive esperança que as tais profecias que os apartaram em
novos não se cumpririam, frequentemente, como neste caso se
cumpriram, ou não queria ser eu a fazê-las nem por uma
montanha de ouro. O cavalheiro saltou do barril e espreguiçou-
se, observando:
— Ele começou logo que casaram a fazê-la sofrer, não?
— Acho que nunca o fez — disse a senhora Tugby, abanando a
cabeça e limpando os olhos. — Ele melhorou durante algum
tempo, mas os seus hábitos eram demasiado velhos e fortes
para se livrar deles. Em breve decaiu um pouco, estava já a
voltar atrás intensamente, quando foi assaltado pela doença.
Acho que ele sempre gostou dela. Tenho a certeza. Vi-o, nos
seus acessos de tremores e de gritos, tentar beijar-lhe a mão e
ouvi-o chamar «Meg» e dizer que era o dia em que ela fazia
dezanove anos. Agora ali está na cama há semanas ou meses.
Entre ele e o bebé, ela não tem tido tempo de fazer o seu
antigo trabalho; e, não podendo ser regular, perdeu-o, e
mesmo que pudesse perdê-lo-ia. Como têm sobrevivido, não
sei!
— Sei eu — resmungou o senhor Tugby, olhando para a caixa
registadora, para toda a loja e para a mulher e rodando a
cabeça significativamente. — Comem e bebem do melhor!
Foi interrompido por um grito (em tom de lamentação)
proveniente do andar superior. O cavalheiro dirigiu-se
apressadamente para a porta.
— Meu amigo — disse ele olhando para trás —, já não precisa
de discutir se ele deve ser mudado, se não. Creio que já lhe
poupou esse trabalho.
Dizendo isto, correu escada acima, seguido pela senhora
Tugby, enquanto o senhor Tugby resfolegava e resmungava,
seguindo-os com todo o vagar, com a respiração mais curta do
que habitualmente, pelo
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dia para não ser interpelada pela sua única amiga, porque
algum auxílio que recebia dela ocasionara recentes discussões
entre a boa mulher e o marido e para ela era mais um desgosto
ser a causa diária de contendas e discussões, numa casa onde
tanto devia.
Mesmo assim amava a criança. Amava-a cada vez mais. Mas
operou-se uma modificação na forma do seu amor. Uma noite.
Cantava levemente para a adormecer e passeava de cá para lá,
embalando-a, quando a porta se abriu suavemente e um
homem espreitou para dentro.
— Pela última vez — disse ele.
— William Fern!
— Pela última vez!
Pôs-se à escuta como um homem que é perseguido e falou em
surdina.
— Margaret, a minha corrida está quase a chegar ao fim. Não
podia acabá-la sem uma palavra de despedida para ti. Sem uma
palavra de gratidão.
— Que é que fizeste? — perguntou, olhando-o aterrorizada.
Ele olhou-a, mas não lhe deu resposta.
Depois de um curto silêncio, fez um gesto com a mão, como se
quisesse afastar a pergunta dela, como se a varresse; e disse:
— Já lá vai muito tempo, Margaret, mas essa noite está tão
fresca na minha memória como sempre esteve. Mal sabíamos
nós, então — completou o que dizia olhando em volta —, que
nos viríamos a encontrar assim. É o teu filho, Margaret? Deixa-
me pegar-lhe. Deixa-me pegar no teu filho.
Pôs o chapéu na mão e pegou-lhe. E tremia ao olhá-lo da
cabeça aos pés.
— É uma menina?
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— É.
Ele pôs a mão em frente da carinha do bebé.
— Estás a ver como estou fraco, Margaret, preciso até de
arranjar coragem para olhar para ela! Deixa-a estar por um
momento. Não lhe faço mal. Já lá vai muito tempo, mas...
Como se chama?
— Margaret! — respondeu ela rapidamente.
— Ainda bem — disse ele. — Ainda bem!
Parecia respirar mais à vontade; e depois de se calar por um
momento, retirou a mão e olhou para a cara da criança, mas
voltou a cobri-la imediatamente.
— Margaret! — disse ele, devolvendo-lhe a criança. — É a
Lilian.
— A Lilian!
— Tive o mesmo rosto nos meus braços quando a mãe de Lilian
morreu e a deixou!
— Quando a mãe de Lilian morreu e a deixou! — repetiu ela
asperamente.
— Falas tão asperamente! Porque é que me fixas assim?
Margaret!
Ela afundou-se na cadeira e apertou a criança ao peito,
chorando sobre ela. Às vezes aliviava o abraço, para olhar
ansiosamente a sua carita, apertando-a depois contra o peito,
novamente. Nessas alturas, quando a fitava, havia algo de
terrível e cruel que começava a místurar-se ao seu amor. Foi
então que o seu velho pai desanimou.
«Segue-a!», ouviu-se na casa. «Aprende com a pessoa a quem
mais amas!»
— Margaret — disse Fern, inclinando-se sobre ela e beijando-a
na testa —, agradeço-te pela última vez. Boa noite. Adeus! Põe
a tua mão na minha e diz-me que a partir deste momento me
esquecerás e tenta pensar que eu acabei aqui.
— Que é que fizeste? — perguntou ela novamente.
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varridos como folhas. Vejo isso, na corrente! Sei que devemos
confiar e ter esperança e não duvidarmos de nós, nem
duvidarmos da bondade dos outros. Aprendi isso com o ser que
mais amo neste mundo. Aperto-a de novo nos meus braços. Ó
piedosos e bons espíritos, com ela aperto ao peito a vossa lição!
Ó espíritos piedosos e bons, eu vos agradeço!
Podia ter dito mais, mas os sinos, os velhos sinos amigos,
começaram a repicar pelo Ano Novo, tão forte, tão feliz e tão
alegremente que pulou sobre os seus pés e quebrou o feitiço.
— E faça o que fizer, pai — disse Meg —, não volte a comer
bucho, sem perguntar a um doutor qualquer se está de acordo
com a forma como se tem portado. Valha-me Deus!
Ela estava a coser na mesinha pequena, junto do lume. Vestia
o seu modesto vestido de casamento, com fitas, tão
silenciosamente feliz, tão florescente e tão jovem, tão cheia de
belas promessas, que ele soltou um grito enorme, como se
houvesse em sua casa um anjo; e correu a estreitá-la nos
braços.
Mas enredou os pés no jornal que tinha caído ao chão e
alguém veio a correr interpor-se entre os dois.
— Não — gritou a voz desse mesmo alguém, uma voz generosa
e jovial. — Nem o senhor. Nem o senhor. O primeiro beijo da
Meg no ano novo é meu. Meu! Tenho estado lá fora à espera
deste momento, para ouvir os sinos e vir reclamá-lo. Meg,
minha valiosa recompensa, feliz ano novo! Uma vida de felizes
anos, minha querida esposa!
E Richard sufocou-a com beijos.
Nunca viram em toda a vossa vida coisa parecida com Trotty,
depois de ter presenciado isto. Não importa onde viveram ou o
que viram, não viram foi nada que se assemelhasse a ele!
Sentou-se na cadeira
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FIM