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T TQ 1 (2002) 7:26 As religides e a paz Marcial MACANEIRO* Reconhecemos que muitos conflitos mundiais trdgicos surgem de uma injusta e pragmdtica associacdo entre religido e interesses nacionalistas, politicos, econdmicos ou de outra natureza. E convicgao nossa que estamos em condicées de agin juntosyno . A colaboracde entre as diversas religides deve fundar-se em bases sdlidas, como o nosso “nao” ao fanatismo, ao. dial das Religides em outubro de 1999! — constatamos 0 agrava- P oucos meses apés esta declaragao — feita pela Assembléia Mun- mento da chamada “violencia religiosa” em varias partes do plane- * Doutor em Teologia Sistematica pela Universidade Gregoriana de Roma. Profes- sor da Area de teologia sistematica e comparada, na Faculdade Dehoniana 1. Cl MAGANEIRO, Marcial. “Assembléia Mundial das Religides”. In Grande Sinai janeiro-fevereito (2000), p. 49-53, A paz é possivel? ta. Em certos contextos, os termos “intolerancia” e “fundamentalismo” sio rapidamente associados — senao assimilados — aos termos “ata- que” e “terrorismo”. A gramdtica ndo permitiria uma tao direta assimi- Jaco; nem mesmo a verdade dos fatos, que exigemm um paciente discemnimento. Mas a dramatica vivida em cenario mundial a sugere, por forca da nefasta cadeia que associa intolerancia, fundamentalismo, agressao e, enfim, exterminio do outro. Assistimos, perplexos, a traig4o do sentido primordial de religio (religio)*: religar o ser humano a seu nticleo misterioso e essencial, religando-o desde ai ao seu semelhante e demais criaturas co-envolvidas no mistério maior que abraga a exis- téncia. A este mistério maior, infinito e absoluto, chamamos “Deus”. Este processo de 7e-ligio resulta numa experiéncia de vinculo entre interioridade e exterioridade, possibilitando a coniunctio (encontro) do “eu” e do “nos”, do fragmento e do todo, do histérico e do utépico, da terra e do céu?. Fis uma caracteristica originaria da religio, atestada por misticos e misticas de tantos credos que, em unissono, delatam a contradigéo em que caem todos aqueles que invocam a religiao para justificar a violéncia’e a morte. Diante desta “dramatica diminutiva” (a violéncia que diminui a vida), seria possivel recuperar a “gramdtica maiuscula” das teligioes, capazes de pronunciar a paz € conjugar verbos como dialogar e pacificar? Haveria, no lesouro intimo das religiées, uma promessa de paz para a humanidade? 1. A paz, entre mistica e politica Talvez pela contradicao mesma de certas experiéncias histéricas, as religides nao so ingénuas diante da questo da paz. Podemos vé- las utopicas, eivadas de esperanca, algumas até mesmo pregadoras de uma paz messidnica e escatoldgica. Mas utopia e escatologia nao signi- ficam, necessariamente, ingenuidade. A paz nao é tida como valor totalmente assimilado ou aquisicao facil. Inserida nam corpo maior de crengas, a paz transita entre dois pélos: a mistica, de um lado; a 2. Jodo Paulo II fala de “profanagao da religiéo”, na mensagem para a Celebracdo do Dia Mundial da Paz do Ane 2002, n. 7. 3. CE. PIKAZA, Xebier. El fendmeno religioso. Madrid: Trotta, 1999. p. 93-113. 8 As religides e a paz politica, de outro. E neste inter-espaco que as religides geralmente situam a paz na terra, como algo dinamico, a ser sempre teafirmado e construido, para vir a ser um evento estavel. Da afirmacao da paz até 0 seuestabelecimento duradouro ha um percurso a ser trilhado. No percurso, a paz se mostra como ideal nobre, mas fragil. Como disse- mos, nao é fato concluido. £, antes, uma edificacao, uma reparacdo urgente dos danos causados pela violencia, um cuidado permanente. Algo tao vital para a existéncia, que merece ter os deuses como aliados. Eis porque os mesmos Livros Sagrados que conclamam & concé1- dia e a harmonia, narram situagoes antagonicas de discérdia ¢ caos. Assim lemos na Tora hebraica, no Bhagavad-Gita, nos Evangelhos e no Alcorao*. Nestas narrativas, a posigdo tomada pela divindade é determinante: pode provocar mais violéncia, mas pode também conté- Ja e até supera-la. Muitas vezes a divindade se pronuncia pela paz e abre para os seres humanos uma era justa e pacifica. Podem ocorrer processos regeneradores, capazes de curar as chagas da violéncia, quando a divindade se decide pela vida e usa de bondade e compaixao. O cristianismo ecoa in extremis esta atitude regenerativa, quando exorta a que se ame os inimigos e perseguidotes (cf. Mt 5,44). 2. O devir da concérdia perene Lendo alguns relatos sagrados, percebermos que a busca de uma paz estavel, no percurso que vai da mistica a politica, corresponde ao proprio caminho civilizatério da humanidade. Superar a violencia e toda logica perversa, passando da vinganga a reconciliacdo, sintetiza — numa amostra breve, mas densa — o processo de humanizacao dos individuos e culruras. Neste procurar a paz futura, desponta a comu- nicacdo basica entre os diferentes (cimento das negociacées), projeta- se teimosamente o ideal da concordia perene (cimento das utopias) € alarga-se espago para a vida e a festa: a lanca se converte em arado o ser humano danca, em vez de guerrear. A paz se firma como valor 4. CE. Na Tora: Nm 16; no Bhagavad-Gita: 2,27-29; nos Evangelhos: Mt 5,L1- 12; no Aleordo: 2,190-194. A paz é possivel? sagrado, registrado em ritos e mitos. A violéncia passa a ser contida. Surgem estratégias para administrar as tensdes, implantar o direito e promover a concérdia>. 3. Relato sagrado e superagao da violéncia O desafio continuo das religioes aos seus crentes é perseverar na busca da paz, insistindo nas negociagdes e nos ideais pacificos. Daf a forca motriz de alguns relatos religiosos, como a batalha mitica do Mahabharata, no Hinduismo: ao iniciar 0 combate, o guerreiro Arjuna € tomado de compaixdo pelos semelhantes que esta para destruir, ao reconhecé-los como seus irmaos. Na presenca de Krishna, divindade suprema, Arjuna pondera: Nao consigo ver qual o bem que decorreria da morte de meus préprios parentes nesta batalha, nem posso eu, meu querido Krishna, desejar alguma vitoria, reinado ou felicidade subsequentes. De que nos adian- tam um reino, felicidade ou até mesmo a propria vida, quando todos aqueles pelos quais desejamas tudo isto esido agora enfileirados neste campo de batalha? Quando mestres, pais, filhos, avés, tios maternos, Sogros, netos, cunhados e outros parentes esto prontos a abandonar suas vidas ¢ propriedades e colocam-se diante de mim, por que deveria eu querer matd-los, mesmo que, por sua parte, eles sejam capazes de matar-me? (Bhagavad-Gita 1,32-35) Apesar desta ponderacdo, irrompe a luta. A batalha ¢ apresentada como recurso extremo para superar uma terrivel ameaca: os parentes de Arjuna o atacam para roubar-lhe o reino, num conflito dindstico pelo poder. A batalha nao era desejo de Arjuna, mas exercicio de defesa imposto pelo impasse. Nesta situac4o, o divino Krishna se poe do lado de Arjuna porque este age segundo o diteito e promete mais justiga que os demais. Se, de um lado, a compaixao do guerreiro 5. Sobre a tolerincia ea contengao da violencia, cf. na Tora: Ly 19,16-18; no Bhagavad-Gita: 10,4-5; nos Evangelhos: Mt 26,51-52; no Alcorio: 16,126. 10 As religiées e a paz arrisca enfraquecé-lo diante do combate, de outro lado indica seu profundo senso do bem, funcionando como uma reserva moral e es- piritual que lhe permitira reimplantar a paz, logo que possivel. Daf o ensindiento final do Mahabharata: terminada a batalha, desponta a concérdia. Arjuna sai vencedor mas nao se vinga descontroladamente. A experiéncia dolorosa do combate desaba sobre as consciéncias. Os personagens percebem o mal realizado. Desejam uma outra realidade para si ¢ seu reino. Neste momento, 0 texto reafirma o ideal da con- cérdia com uma teflexdo de estilo sapiencial. Vencedor e vencidos se encontram, Na conclusio, gestos simbélicos celebram o fim da guerra e abrem o tempo da paz®. Outro relato nos vem do Judaismo: o chamado “sacrificio de Isaac” em Gn 22,1-19. Carregado de sentido arquetipico (vitima, pai, oferenda, altar), pode ser lido sob varios aspectos, da fenomenologia religiosa 4 psicologia profunda. Para nos, interessa o limite que esta pericope pée a violéncia contra os seres humanos. No pano-de-fundo da cena vemos a pratica de sacrificios humanos, comum aos cultos médio-orientais de entdo. A intengao basica do sacrificio era exaltar 0 senhorio absoluto da divindade, oferecendo-lhe dons vivos (vegetais € animais). Deste modo se adorava, se aplacava a ira dos deuses e se mantinha a relac4o sagrada entre o humano e o divino. Os dons de- veriam ser integros, para corresponder a grandeza da divindade a que eram oferecidos. S6 assim seriam vitimas agradaveis e imaculadas. Sacrificar um animal defeituoso era uma ofensa aos deuses. Esta mes- ma légica foi aplicada a cultos com vitimas humanas: o que mais poderia agradar o divino soberano sendo a oferta de seres humanos jovens e perfeitos como, por exemplo, um filho primogénito?” E neste horizonte cultural que se move Abrado, quando sobe a montanha, disposto a sacrificar seu filho Isaac. Disposto, de um lado, por causa da fidelidade irrestrita que ele mesmo jurara manter com o Deus da Alianca. Doutro lado, porém, o texto da indicios de que Abrado tinha 0 cora¢ao dilacerado pela palavra de lahweh. Em sua fé, 6. CE COMTE, Fernand. Los libros sagrados. Madrid: Alianza, 1995. p. 121-124. 7. Cf. BINGEMER, Maria CL. (org.). Violencia e religido: cristianismo, islamismo, judaismo. S. Paulo: Loyola, 2001. p. 40. 11 A paz é possivel? obedecia sem compreender. Como o Senhor pode manter sua promes- sa de dar-lhe uma descendeéncia, se agora pede a morte do filho primogenito? Acaso Sara poderia gerar ainda outro rebento? Ou Deus mesmo ira intervir, revelando o sentido obscuro de sua ordem? Abrado parece retardar o ato derradeiro: ele € o filho “sobem devagar, constro- em o altar pedra por pedra, empilham a lenha pedaco por pedaco; até que enfim ele é obrigado a amarrar o filho”.* Entao, Abrado € surpreendido: “Nao levantes a mao contra o menino"y. 11), E a voz mesma de Deus que se faz ouvir (os anjos sio uma Tepresentacdo literaria da teofania). Iahweh nao quer a oferta cru- enta de vidas humanas. Quer, sim, a fidelidade radical de Abrado, agora comprovada. O sacrificio humano € cancelado, $6 a fidelidade € exalta- da. “Daqui por diante, fica estabelecido claramente que o que lahweh quer é distinto daquilo que pedem os deuses/dolos fabricados pelas tribos e clas vizinhos de Israel”. A santidade cultual exigira, cada vez mais, a santidade ética. O respeito a vida, sobretudo humana, se inscreve de modo incisivo no cédico religioso-moral do Judatsmo. Uma longa tradi¢io se desenvolvera posteriormente, para combater a idolatria e afirmar a exceléncia do culto auténtico, marcado pelo zelo da Lei e pela justica para com “a vitiva, o érfao, o estrangeiro e 0 pobre"(Ze 7,10)'°. 4. A palavra essencial Os relatos mencionados (hindu e hebraico) convergem em trés ensinamentos: 1. a violéncia pode ser contida; 2. a vida € um valor sagrado; 3. a paz € possivel. Ha uma experiéncia fundante que o comprova. E desta experiéncia brota um desejo e uma sabedoria: de- sejo de paz duradoura e sabedoria para edifica-la. A paz faz seu nicho no coracdo das religides, de onde deuses e mortais pronunciarao uma palavra essencial: shalom, salam, eiréne, pax! Vejamos como algumas religides articulam esta palavra. 8. DATTLER, Frederico, Genesis: texto e comentario. S. Paulo: Paulinas, 1984. p. 132. 9. BINGEMER, Maria C.L. (org), op. cit., p. 42. 10. CL. também: Ex 22,22; Lv 19,15; SI 146; Is 58; Am 5 12 As religides ¢ a paz Hinduismo Devocional A forma devocional de Hinduismo (Bhakti) se concentra na ado- racio servigo de Krishna, suprema manifestacdo da personalidade divina. Krishna € 0 rosto pessoal do Brahman impessoal. E a face benevolente da deidade imutavel. Quem o culma, caminha na perfei- c4o mais rapidamente: tem os pecados perdoados, se livra do ciclo de reencamacées e mergulha na eternidade. Visando isto, Krishna ensina 0 aperfeigoamento. Caminha-se por trés modos de ser, do menos ao mais excelente: 1. modo da ignorancia (desconhecimento da verdade); 2. modo da paix4o (submissio aos desejos enganadotes); 3. modo da pondade (sabedoria e virtude). Neste sentido, a paz ¢ prépria do estado de bondade. E uma exceléncia do ser, como esclarece o Bhagavad-Gita: Quem considera a irreligido como religido, e a religiao como irreligido, que age sob o encando das ilusdes ¢ da escuriddo, ese esforca sempre na direcéo errada — esta no modo de ignordncia. (18, 32) S6 quem nao se perturba com o incessante fluxo dos desejos que sao como os rios que entram no oceano: esid sempre sendo preenchido, mas nunca de agita com isso) — esta pessoa pode alcancar a paz, ¢ nao aquela que luta pela satisfacdo desses desejos. (2, 70) Aquele que abandonou todos os desejos de gozo dos sentidos, que vive livre dos desejos, que abandonou todo o sentimento de propriedade ¢ nao tem falso ego — sé este pode conseguir a paz verdadeira. (2, 71) Passando da mistica a ética, Krishna elenca os tragos da pessoa pacificada e feliz: Destemor, purificacao da propria existencia, cultive do conhecimento espiritual, caridade, autocontrole, execucao dos sacrificios, estudo dos Vedas, austeridade, simplicidade, ndo-violencia, veracidade, estar livre da ira, rentincia, tranquilidade, ndo alegrar-se em achar defeitos, compaixao para com todos os seres vivos, estar livre da cobica, gen- tileza, modéstia, firme determinacao, vigor, cleméncia, fortaleza, lim- peza, estar livre da inveja e da paixdo por honras — estas qualidades transcendentais existem nos homens piedosos, dotados de natureza divina. (16, 3) 13 A paz é possivel? E mais adiante, conclui: Aquele que libertou-se da idéia de posse e € pacifico: este, certamente, elevou-se a condigéo de auto-realizagao. (18, 53) Budismo O Budismo propée oito passos no caminho da iluminacao: 1. compreensdo reta; 2. intencdo teta; 3. discurso reto; 4. ago reta; 5. existéncia reta; 6. esforco reto; 7. introspeccao reta; 8. contemplacado teta. E o chamado “caminho éctuplo”. Sem retidao, nao ha iluminacao. Nesta via, o discipulo desenvolve a virtude da compaixao por todas as formas de vida, a exemplo do mestre Sidarta: Quem faz surgir 0 amor — sem medidas, cuidadoso (...) — mostrando amor a um ser vivo que seja, sem malicia, ja passa com isto a ser virtuoso. Compassivo em esptrito com todos os seres, alcanca ricos méri- tos. Aqueles que, depois de vencer a terra com todas as suas multidoes, se fazem sdbios e reis, e oferecem sacrificios, no possuem uma. décima parte do valor de um animo amdvel ¢ bondoso. Quem ndo mata, nem faz matar; quem nao oprime, nem permite opressdo, mostra amor a todos os seres e ndo teme de ninguém a inimizade. (itivutaka, 27) Este ideal inspirou o chamado “bodhisattva”: um discipulo que, por livre decisio, se faz auxilio do préoximo, para que outras pessoas alcancem a iluminacdo. Trata-se de um caminho solidario, em que a pessoa progride na perfeicdo & medida em que progride na compaixdo. Diz-se bodhi-sattva porque a pessoa participa da mesma “iluminacdo” (bodhi) que Sidarta experimentou e ensinou a seus seguidores. O pré- prio Sidarta € denominado Budha (iluminado). O disctpulo que esco- the tal caminho, faz o seguinte voto: Que eu possa ser em qualquer tempo ~— agora & sempre — um protetor para os que ndo tém protecdo, um guia para os que perderam o rumo, um navio para os que precisam atravessar oceanos, uma ponte para os que necessitam cruzar os rios, um saniudrio para os que 14 As religides © a paz se sentem em perigo, uma lampada para os que carecem de luz, um refugio para os que buscam abrigo, um servo para os necessitados."! Q Bodhisattva irradia compaixio e, deste modo, pacifica a si mesmo e 4s outras criaturas. Apesar das divergéncias doutrinais entre certas correntes do Budismo (Theravada, Mahayana ou Zen), os prin- cfpios da compaixdo e da ndo-violéncia continuam inabalaveis. Teste- munho recent nos dé o Dalai Lama: O Budismo, com sua énfase sobre 0 amor universal e a compaixdo, esta perpassado de conceitos ¢ ideais totalmente ndo-violentos e pa- cificos. O Budismo oferece ao mesmo tempo recursos unicos e de perpétua validade para alcancar a paz e a seguranca, dos quais tanto os homens quanto os animais podem tirar proveito. E correto dizer que 0 amor-bondade ¢ a compaixao sao as duas colunas sobre as quais repousa todo o edificio do Budismo. Destruir ¢ ofender a vida é rigorosamente vedado. Prejudicar ou matar qualquer criatura que seja — desde os mais altamente desenvolvidos até os mais pri- mitivos, do homem até o menor dos insetos — tem que ser por todos os meios evitado. O Buda diz: “Ndo prejudiques a ninguém! Da mesma maneira como sentes afeicao quando ves uma pessoa a quem de coragéo amas, exatamente desta maneira deverias estender este amor-bondade a todas as criaturas”. Aqueles que seguem a senda mahayana séo aconselhados nao somente a evitar um comportamen- to prejudicial, mas também a desenvolver um intenso sentido de compaixdo. Isto traz consigo um grande desejo de salvar todos os seres sensiveis de suas dores e sofrimentos." Judaismo Mosaico de muitas cores, 0 Judaismo é ao mesmo tempo plural e unitério. Plural em suas express6es (moderado, ortodoxo, hassfdico, refor- 11. Voto de bodhisattva, Cf. GIRA, Dennis. Budismo: histéria ¢ doutrina. Petrépolis: Vozes, 1992. p. 181 12. Apud BOFE Leonardo. Principio de compaixao ¢ cuidado. Petropolis: Vozes, 2001. p. 60. 15 A paz é possivel? mista, cabalistico, messianico); unitario nos valores que professa: unicidade e santidade de Deus, conhecimento religioso por tevelacao, a criacdo do ser humano a semelhanca do Criador, a recompensa eterna dos justos, 0 primado da vida como pilar de uma ética universal, a aplicacao do direito e da misericérdia, sobretudo em prol dos mais necessitados. Ainda que Israel tenha provado intensos conllitos, as Escrituras exortam a paz como valor ultimo. O conjunto da Lei (Tord), Profetas (Nebiim) e Fscritos (Keiubim) se projeta na direcdo da paz, relendo continuamente a propria tradicéo judaica, num esforgo de re-propor o Shalom para Israel e as nacées. Algumas mensagens so exemplares: A regra-de-ouro: Os capitulos 17-26 do Levitico codificam a “Lei de Santidade”: normas morais € cultwais a serem observadas pelo Povo de Israel. Em meio a tantas regras, o cédigo declara seu motivo primeiro: “Sede santos, porque eu, lahweh vosso Deus, sou santo”(Lv 19,2). A santi- dade divina deve refletir-se na santidade dos israelitas, a quem se prescreve a pureza e a retidao em todas as esferas da vida: na liturgia, na corivivéncia social, no trabalho, na ordem juridica e na vida familiar (cf. Lv 19-24). Deste modo, a santidade absoluta de Jahweh interpela motiva a santidade cotidiana de Israel. O texto diz: “Amards o teu proximo como a ti mesmo”(Lv 19,18). A luz desta regra-de-ouro, podemos entender o “olho por olho, dente por dente”(Lv 24,20) como contengao da violencia: a pena infligida nao deve ultrapassar 0 mal perpetrado, mas reparar os danos de modo proporcional. Um olho nao vale uma vida humana em pagamento, mas simplesmente outro olho. O talido veta o uso indiscriminado da pena de morte (reservada aos casos de homicidio comprovado). Além disso, esta norma se impée a judeus e ndo-judeus, estabelecendo uma plata- forma de equidade legal. No contexto da época, conter a violéncia com. tais normas ja era uma estratégia de paz. Nao sé entre israelitas, mas também na convivéncia com estrangeiros: “Se um estrangeiro habita convosco na vossa terra, ndo o molestareis. O estrangeiro que habita convosco sera para v6s como um compatiiota — e tu o amard4s como a ti mesmo -— pois fostes estrangeiros na terra do Egito”(Lv 19,35-34). E uma afirmacdo de universalidade inculcada na antiga Tord. 16 As religides e a paz Shabat shalom: A “Lei de Santidade” desemboca na proposta de um Grande Shabat: co ano sabatico, a ser realizado a cada sete semanas de anos, isto é, de 49 em 49 anos. “Declarareis santo o quinquagésimo ano e proclamareis a libertacdo de todos os moradores da terra”(Lv 25,10). O ano sabatico prescreve: 1. repouso da terra; 2. redistribuigdo das propriedades; 3. perdao das dividas e conseqiiente recuperacdéo da cidadania e dos direitos, 4. resgate de pessoas, no caso de estrangeiros, escravos ou servos israelitas (cf. Lv 25). JA se vé a reviravolta que isto provocaria em Israel: reforma agraria, alforria de escravos e uso da anistia. A intencdo do ano sabatico € reordenar a vida de Israel segundo o espi- tito genuino da Alianga (cf. Lv 25, 38). A eqaidade do shabat derra- maria sobre Israel o orvalho curador do shalom divino, espalhando paz entre os moradores da terra. Ungidos para a paz: Tanto o Messias em particular, quanto o povo de Israel em geral, sio ungidos para o servigo da paz: A canga que pesava em seus pescocos, a vara que feria seus ombros, o chicote dos capatazes... tudo quebraste como naquele dia em Madia. Toda bota que marcha com barulho e a farda manchada de sangue, vdo para a fogueira — alimento das chamas. Pois nasceu para nds um Menino, um filho nos foi dado. (..) Seu nome é Principe da Pag. (Is 9, 3-5) Eu te chamei para a justica e te tomei pela mao: te formei e te encarreguei para seres alianca do meu povo e luz das nagées, para abrires os olhos aos cegos, tirares do cdrcere os prisioneiros, da mas- morra os que estao na prisdo escura. (Is 42, 6-7) O fruto da justicga: Tipica do pensamento judaico, é a nogéo de paz como fruto da justica: 17 A paz é possivel? O direito vai morar no que € deserto, a justiga tomard assento no bosque: ¢ o fruto da justica sera a paz! A pratica da justica resultara em trangiilidade e seguranca duradouras. (Is 32, 16-17) Dayenu: O rito da Pascoa Judaica (Séder) celebra a vitoria israelita sobre os egfpcios, como dom de Iahweh. A libertacdo é festejada, com a consciéncia de que os castigos € a morte infligidos sobre os egipcios constinuem um mal, paradoxalmente presente no processo do éxodo. Nao se deve desejar a morte de ninguém. Nao se festeja a destruigao dos egipcios, mas a libertacao de Israel. Por isso, nesta ceia, os hebreus cantam o Dayenu (= j4 nos bastaria): Se Deus apenas tivesse nos tirade do Egito, mas néo tivesse castigado os egipcies —~ ja nos bastaria, Se Deus apenas tivesse castigado os egipcios, mas nao tivesse destruido seus tdolos — ja nos bastaria. Se Deus tivesse apenas destrutdo seus tdolos, mas nda tivesse matado seus primogenitos — ja nos bastaria. Se Deus tivesse apenas matade seus primogénitos, mas néo tivesse nos dado suas riquezas — ja nos bastaria. Se Deus tivesse apenas nos dado suas riquezas, mas ndo tivesse divi- dido 0 Mar para nds — ja nos bastaria. Se Deus tivesse apenas dividido 0 Mar para nos, mas ndo nos tivesse feito passar por ele a seco — ja nos bastaria. Se Deus tivesse apenas nos feito passar pelo Mar a seco, mas ndo tivesse afogado nossos inimigos — ja nos bastaria.’* E obvio que todas estas afirmacdes contrastam com o conflito que perdura entre Israel ¢ povo palestino. Em muitos casos, ha uma distancia vistvel entre ética judaica e politica israelense. Perceber esta distingdo é importante. Pois ajuda a individuar os fatores deste ema- ranhado, em que a violéncia se conecta com a humilhacao e a deses- peranca. O Movimento Paz Agora, que congrega judeus, cristdos e muculmanos, defende uma politica de reconciliacdo baseada no prima- 13. Cf. FRIDLIN, Jairo. Hagada de Pessach. S. Paulo: Séfer, 1993. p. 24. 18 As religises e a paz do da ordem ética sobre as divergéncias nacionais e religiosas. Ainda neste sentido, vale citar a opiniao do rabino Henry Sobel: Rejeitamos qualquer manifestagdo de triunfalismo religioso. A humil- dade teoldgica exige admitirmos que, apesar de termos um tinico Deus, Deus tem mais do que um povo. Faz parte da nossa missdo compre- ender € respeitar os outros povos do mundo ¢ discernir as verdades que suas cultuxas tem para nos ensinar. Levamos muito a sério o didlogo- interreligioso.'* Cristianismo Nos Evangelhos, Jesus inaugura o tempo da graca e da verdade (cf. Jo 1,17). Sobre os pilares da Lei judaica ele instaura a Nova Alianca e alarga as dimensdes do Reino para além de Israel. Com esta dinami- ca, Jesus resgata o humano integralmente e supera os muros de sepa- taco entre judeus e samaritanos, circuncisos e incircuncisos (cf. Mc 7,24-30; Le 9,29-37). No sermao da montanha, ele relé a Tora com notas de novidade: Ouvistes o que foi dito: “Amards 0 teu proximo e odiards o teu inimi- go”. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; deste modo vos tornareis filhos do vosso Pai que esta nos céus, porque ele faz nascer o seu sol igualmente sobre maus ¢ bons € cair a chuya sobre justos e injustes, Com efeito, se amais aos que vos amam, que recompensa tereis? Nao fazem também os publicanos a mesma coisa? E se saudais apenas os vossos irmaos, que fazeis de mais? Nao fazem também os gentios a mesma coisa? Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito. (Mt 5,43-48) Jesus herda a tradicao profética e assume a paz (shalom) como elemento central de sua proposta. O perdio, o servigo generoso, a partilha de bens € a misericérdia vao compor — ao lado da paz — 0 novo cddigo de santidade ensinado pelo rabbi de Nazaré (cf. Mt 5 e Le 14. SOBEL, Henry. “Congregacéo Israelita Paulista, 65°, in Folha de Sao Paulo, secao Tendéncias ¢ Debates, 14 de marco de 2002. p. A3. 19 A paz é possivel? 15). Jesus perdoa pecadores pablicos (cf. Le 19,1-10), cura em dia de sabado (cf. Mt 12,9-14) e propde uma adoracdo além dos moldes farisaicos (cf. Jo 4,21-24). Algumas pericopes de tom apocaliptico e impactante — como a expulsao dos comerciantes do Templo e a mengao a “violéncia” do Reino (cf. Mc 11,15-17; Mt 12,12) — mostram que a assimilacao do shalom significou, para Jesus, um Proceso crescente. Jesus superou as tendéncias zelotas e sectarias, convencendo-se cada vez mais do amor universal de Deus (cf. Le 6,36-38). Das muitas pascagens que mostram isto, destacamos dois casos embleuuitivos: 0 perdao dado a mulher flagrada em adultério e a contengao da violéncia diante de uma reagdo adversa. No primeiro caso, Jesus impede o apedrejamenie iminente da mulher e afirma, diante dos disctpulos e demais, a sua opcao fundamental pela vida (cf. Jo 8,1-11). No segundo caso, ele educa seus discfpulos a paz, enquanto estes desejavam exter- minar uma vila de samaritanos (cf. Le 9,51-55). Jesus € um mestre em humanidade: envia os discipulos a anunciarem a paz e os ensina a romper com a espiral da violéncia, indo além do rancor e do instinto de vinganca (cf. Mt 5,39; 10,12-13). Na Historia posterior, o cristianismo viveu diferentes fases quanto 4 violéncia e a paz'. Mas sempre houve profetas da ndo-violéncia. Citemos alguns: Pedro Veneravel, que se opunha as cruzadas e pregava 9 didlogo religioso ¢ cultural com o Islam; Raimundo Lilio, que esta- beleceu conversacées pacificas com judeus e mugulmanes, ¢ Francisco de Assis, com sua mistica de fraternidade universal, da qual bebem cristéos € ndo-cristaos'®. No século XX, esforcos de paz se desenvolve- ram em Ambito catdlico, evangélico e ortodoxo. Personagens como Joao XXIII € Paulo VI (catélicos), Arcebispo Ramsey (anglicano), Dietrich Bonhoeffer (luterano), Patriarca Athenagoras (ortodoxo) e Martin Luther King (batista) sio reconhecidos como “promotores de paz’(Mt 5,9). Estes nomes marcaram o milénio passado, deixando muitos frutas: 0 15. Ch. BINGEMER, Maria C.L. (org), op. cit., p. 116-172 e, neste fasciculo, 0 artigo de Alceu Kubnen. 16, Personagens do perfodo medieval. Cf. LULIO, Raimundo. 0 livro do gentio ¢ dos tres sabios, Petrspolis: Vozes, 2001; GOFE Jacques Le. Sao Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2001 20 As religiées e a paz dialogo entre cristaos Ocidentais e Orientais, a aproximacdo das Igrejas romana e teformada, a fundacao de organismos de didlogo e cooperacao, a promocao da igualdade étnica e a dentincia das atrocidades nazistas. Alguns’selaram esta bem-aventuranga com o sangue do martirio. Sem tais nomes, seria dificil sustentar as iniciativas de paz promovidas pelas Igrejas mais recentemente. Destas iniciativas, destacamos: — O movimento ecuménico, que tem se afirmado como espaco de reconciliagao dos préprios cristaos, apés séculos de cismas, controvérsias € acusagées reciprocas. — O Concilio Vaticano II e suas exortacées sobre os direitos humanos, o didlogo inter-religioso, a dignidade humana e a paz mundial.” — A coordenadoria de Justiga, Paz ¢ Criagao do Conselho Mun- dial de Igrejas, que anima servic¢os ecuménicos em prol da paz e da ecologia. — A intervencdo salutar de entidades ¢ liderangas cristaés em conflitos localizados, como o arcebispo anglicano Desmond Tutu durante o apartheid da Africa do Sul e as negociacdes de paz em Mocambique, mediadas pela Comunidade Santo Egidio. — O pedido de perdao, da parte da Igreja catélica, pelos erros cometidos ao longo do segundo milénio. Joao Paulo I pre- sidiu o rito penitencial em 12 de marco de 2000. Foram seis pedidos especificos de perdao: pelo uso da violéncia na de- fesa da verdade crista, pelos pecados contra a unidade da Igreja, pelas culpas em relagdo aos hebreus, pelas violacdes dos direitos das culturas e religides, pelas agressées 4 digni- dade da mulher, pelas violagdes dos direitos fundamentais da pessoa humana’. 17. Cl. especialmente Lumen Gentium, Gaudium et Spes, Dignitatis Humanae e Nostra Aetate. 18. A Editora Piemme publicou um volume a respeito, com as declaragées de Joao Paulo Il, um documento da Comissio Teol6gica Internacional e diversos sub- sidios historicos: Il Papa chiede perdono: purificare la memoria. Casale Monferrato: Piemme, 2000. 21 A paz é possivel? Destas iniciativas ~- e além delas — nascem outros programas eclesiais ¢ ecuménicos, em favor da justica, paz e ecologia. Tenta-se um. esforco mais articulado, para se teagir a violencia e envolver as Igrejas na promogio local ¢ intemacional da paz. A bem-aventuranga de Mt 5,9 implica no servigo fraterno as vitimas de toda sorte de violencia, seja esta econdmica, étnica, politica ou confessional. Dai a ajuda a refugiados, a fundacdo de comunidades solidérias, as comissées de justica € paz, 0 apoio a infancia e adolescéncia, a promogao da mulher e as campanhas de fraternidade. Sintomaticos foram os atos de reconciliagéo realizados por algumas Igrejas durante as celebragdes dos 2000 anos de cristianismo. Jslamismo Quando 0 assunto é a paz, os muculmanos sao vistos com certa suspeita. Nao por culpa de Maomé ou do Alcorao. Mas pela violéncia empregada por individuos e grupos extremistas. Intimeros fatores con- tribuem para esta realidade, dentro e fora do Islam. Em sintese, pode- mos dizer que: Historicamente, nas comunidades cu nos Estados que invocam a reve- lacdo cordnica, a tentagdo constante de sacralizar o poder levou a uma instrumentalizacdo da religiao, que permite sujeitar a lei divina Gharia) as necessidades dos governantes, criando assim uma tradicao (Gunna) por vezes em contradicdo radical com a revelacao. Deste modo surgiu 0 que se poderia, por analogia, denominar “constantinismo muculmano”, que apela a teligido para justificar as piores violacoes dos direitos do homem.” Com efeito, nem o sagrado Livro, nem os ditos de Maomé pre- gam o terror e a agressio. E preciso voltar as fontes do Islam para acolher sua mensagem genufna e ouvir uma palavra de paz. 19, BINGEMER, Maria C.L. (org.), op. cit., p. 192. Este “constantinismo mucul- mano” é 0 correspondente islamice do “cristianismo constantiniano”, quando a Igreja incorporou os valores e mediagSes do Império Romano, juntanto poder espiritual ¢ poder temporal. Muitas violéncias tiveram af sua raiz his- torica, como sabemos. 22 As religides e a paz Direito de defesa e senso de eqitidade: E combatei, pela causa de Deus, os que vos combatem. Mas nao sejais os primeiros a agredir. Deus ndo ama os agressores. E matai-os onde quer que vos encontreis. E expulsai-os de onde vos expulsaram. (...) Se desistirem, lembrai-vos que Deus é clemente e misericordioso. (Sura 2,190-192) Para os muguimanas, trata-se de combater qnem as combate e atacar quem os ataca. A luta nao pode ser gratuita. Ela se justifica enquanto exercicio de defesa: “nao sejais os primeiros a agredir”. Se 0 inimigo desistir da luta, a agressdo deve ser contida: Combatei-os até que ndo haja mais idolatria ¢ que prevaleca a religiao de Deus. Se detiverem a sua hostilidade, detende-vos, exceto contra os iniquos. (Sura 2,193) Os “infquos” poderiam ser os enganadores, que apenas fingem reter a hostilidade; ou os impios, que perseveram na idolatria. De qualquer modo, a reacdo deve ser proporcional ao dano sofrido. Acon- selha-se inclusive a tolerancia: Se tiverdes que vos vingar, vingai-vos na medida em que agredidos. E se tolerardes com paciéncia, melhor serd para yds. (Sura 16,126) Jihad, a guerra santa: Segundo Seyed Hossein Nasr, um reconhecido intelectual mucul- mano, “o termo 4rabe jihad, geralmente traduzido para as linguas européias como ‘guerra santa’ — com base mais em seu uso juridico no Islam do que em seu significado universal no Alcorao e nos hadith (ditos de Maomé) — é derivado da raiz jhd, cujo significado primario € empenhar-se ou esforcar-se. Sua tradugéo como ‘guerra santa’, combi- nada com a nocdo errénea, prevalecente no Ocidente, do Islam como ‘religiao da espada’, ajuda a eclipsar seu significado interior e espiritual e a distorcer sua conotacéo. O aparecimento no palco da historia, durante o ultimo século e especialmente nos tiltimos anos, de uma 23 A paz & possivel? sucessao de movimentos revolucionarios ou, em maior parte, fun- damentalistas, no interior do movimento islamico, os quais freqien- temente opdem-se uns aos outros e usam o termo jihad ou um de seus derivados, tampouco ajuda a tornar conhecida toda a importancia de seu significado tradicional”. © sentido original de jihad ¢ dedicacdo em trilhar a senda dos justos. Tem conotagio moral, ascética e inclusive mistica. O Islam admite uma luta exterior (jihad menor) e uma luta interior (jihad maior). A finalidade € equilibrar a pratica social, moral e econémica, com os valores espirituais ensinados pelo Alcorao, Exterior e interior devem formar uma unidade no ser humano — a imagem de Deus, que € Uno. Orar regularmente e peregrinar até Meca é jihad. Jejuar e dar esmolas ¢ jihad, Se necessatio, defender o Deus Unico das idolatrias também é jihad. Como o € igualmente, todo esforco de instaurar uma ordem social e econémica que permita o desenvolvimento integral do ser hhumano. Dissociar jihad menor (exterior) e jihad maior (interior) seria impréprio. Pois levaria ao desequilfbrio da pessoa e de suas relacdes. Esta dissociagao pode dar espaco a guerra — que em arabe nao é fihad, mas harb. Logo, qualquer mugulmano que promova um combate ape- nas exterior, apartado da busca espiritual da santidade e da justica, arriscaria comecar uma harb (guerra). Neste caso, ainda que se invoque frases coranicas aparentemente motivadoras, seria uma distorcdo da autentica jihad. Tolerancia com outras religides: O Alcorao (como a Biblia e 0 Mahabharata) permite a luta em casos especificos. Mas sua mensagem universal nao se reduz a isto. A revelagdo coranica professa que Deus é Uno e Onisciente (Allah). Em sua provi- déncia, revelou-se hao 56 aos arabes, mas a todas as nacées. Os israelitas 20. NASR, Seyed Hossein, “O significado espirituel de Jihad”, In BARTHOLO, Roberto; CAMPOS, Arminda, Isla: 0 credo € a conduta. Rio de Janeiro: Imago; ISER, 1990. p. 269. 21. CE. idem, p. 270-273. 24 As religibes ¢ a paz tiveram Abrado, Moisés e os Profetas. Depois, Jesus abriu a verdade aos gentios. Maomé se insere nesta tradigao, conduzindo os arabes 4 mesma verdade anunciada por Abraio e pelos outros mensageiros: Para cada nacao ha um mensageiro. Quando chegar o mensageiro deles, serdo julgados na eqiidade, e ninguém sera lesado. (Sura 10,47) Nao se despreza cegamente as demais crencas. Nem € permitido impor ao outro a fé de Maomé: Se teu Senhor quisesse, todos os habitantes da terra seriam crentes. Pertencerd a ti compelir os homens a crer? Na verdade, nenhuma alma crerd sem a permissdo de Deus. (Sura 10,99-100) Também a pluralidade de povos é querida por Deus, que nos criou para a convivialidade: O filhas de Addo, criamo-vos macho e fémea ¢ vos dividimos em povos e tribos para que vos conhecésseis uns aos outros. (Sura 49,13) E quem trata os muculmanos pacificamente, mesmo se professa outra religido, deve ser respeitado: Deus nao vos protbe de tratardes com cordialidade e justica os que nao combateram vossa religido nem vos expulsaram de vossa terra. (Sura 60,8) Conclusdo Falando com realismo, sabemos que os textos citados tm um contexto nem sempre pacifico. Quem ler a Tora num campo de con- centracdo, ou recitar o Alcorio entre os miseraveis refugiados palesti- nos provara, inevitavelmente, um sabor amargo. E a amargura impede que se confie no outro, Tais situages pedem das religiées um empe- nho consciente e programado em prol da paz, como antidoto para a tetaliagdo. Nao se mantém esta palavra essencial — paz — sem um compromisso desde 0 coragao de cada tradigao religiosa. A bondade de Krishna, a compaixao de Buda e a bem-aventuranga de Jesus solicitam a mediacdo histdrica de seus respectivos discipulos. 25 A paz é possivel? O problema nao esta nas Escrituras, mas na leitura que delas fazemos. A violéncia ofusca a lucidez. Geracoes feridas e humilhadas, pisoteadas ao longo dos anos, poderiam por si s6, superar o rancor € promover iniciativas pacificas? Talvez. Mas nao deveriamos arriscar, deixando estas geracées ao desamparo. Urge, portanto, uma decisdo em favor da paz e dos processos que a ela conduzem. Ha um aprendizado permanente das religides nesta diregdo, como concluimos dos recentes encontros inter-religiosos. O quadro desafiador das injustigas, da tortura, da discriminacdo e dos ataques artados, maculam de sangue as paginas sagradas onde a paz foi escrita. As religides j4 perceberam o impasse presente, cuja timnica altemma- tiva sera uma convicta, teimosa e irreversivel deciséo em prol da paz. Esta, cremos ser a unica via que permite instaurar politicas de conten- cao da violencia e retomar as negociacdes a todo custo. Quem néo se decide pela paz, continuard cooptando com o terrorismo ou com a cumplicidade de assistir sem interferir, permitindo o alastramento de atitudes extremas, seja a indiferenca, de um lado, seja a intolerancia, de outro. 26

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