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@ orenaceess ESTUDOS BH excouoe IBERO-AMERICANOS pucrs | HUMANIDADES Estudios Ibero-Americanos, Porto Alegre, v.48, .2,p.2-g,jan-dez 2022 ‘eISSN: 1980-064% | ISSN-L: o101-4084 © hpysiedslegrs0scea,iaaescescoaesnt08 ‘SEGAO: TRIBUNA O populismo no Brasil: desafios de um debate historiografico Populism in Brazil challenges of historiographical debate Populismo em Brasil: desafios de um debate historiografico Angela de Castro Resumo: Este texto fo pronunciado como Conferéncia de Encerramento doXIX Gomes! ‘Congresso Internacional da AHILA, realizado em Paris, em agosto de 2021, por via remota Ele faz uma rellexdo sobrea Vajetdra do concelte de populism, tendo ee ‘05 debates historiograficos ocorridos no Brasil. especialmente a pair dos anos ‘emailcam 1970, como base. A posigao critica da autora. assinalada em trabalhos anterio- res, € retomada sob 0 estimulo de se pensar os chamados neopopulismos, no ‘caso do Brasil. o do desgoverno Bolsonaro. Defende-se que. se como conceito, © populismo no ¢ teorica ou empiricamente sustentavel, como categoria de acusagao tem ¢ terd largo transito, Recebldo em: 16 fev.2022, __-Palavras-chave: Populismo, Histiria. Historiografia. Estado e Sociedade. Aprovade em: 8 131 2022 Publicado em: 30 ago. oz. ‘Abstract: Thistext was delivered atthe Closing Conference ofthe international ‘Congress as AHILA, heldin Pars, n august 2021, by remote means Itreflects on the trajectory of concept of populism, using the historiographical debates that took place in Brazil, especialy from the 1970s onwards, as a basis. The author's critical position, highlighted in previus works. is resummed under the stimulus of thinking about the so-called neopopulisms, in the case of Brazil, the Bolsonaro misgovernment. Lis argued that, ifas a concent. populism is not theoretically ‘or empirically sustainable. as a category of accusation it has and will have wide ‘irculation, Keywords: Populism. History. Historiography. State and Society, Resumen: Este texto fue entregado como Conferencia cle Clausura del X} ‘Congreso internacionalAHILA realzado en Paris, en agosto de 202: a distanc} Refiexiona sobre la trayectoria del concepto de populism, a partir de los debt Fistoriograticos ocurridos en Brasil, especialmente a partir de la década de 19 La posicion eritica del autor. destacada en trabajos anteriores. se retoma oaj0 At ‘estimulo de pensar en los lamades neopopulismes, en elcaso de Brasil, elde I ‘mala gestion de Blolsonara. Se argumenta que, si como cancepto, el populism: 1o es sostenible tedrica ni emptricamente, como categoria de acusacion tien: y tendra amplio transito. Palabras clave: Populismo. Historia Historiografia. Estado y Sociedad Gostaria de iniciar agradecendo as organizadoras do XIX Congreso, Internacional da AHILA. na pessoa de Annick Lempériére. 0 convite que me foi dirigido, E um prazer e uma honra proferir esta Conferéncia de Encerramento. em especial. porque a escolha de meu nome deseja assinalar a forte presenca de historiadores e historiadoras brasileiros/ ‘as nos encontros da AHILA. Atendendo a proposta das organizadoras, minha conferéncia se intitula. “O populismo no Brasil: desafios de um * Unversidage Federal Fluminense (UFF, Ro de Janet. RU. Brat 279 Estudos lnero-Americanas Porto Aleghe, v.48 n 1.9 19, Jan-dez 2022 e-42608 debate historiografico’? Nao importa qual seja a escolha realizeda, escrever sobre os popullismos = os populistas, no Brasil e creio que em qualquer outro pais do mundo, sera sempre um isco. Como ja escrevi por incompletude ou ma compreensio, porade- ‘880 ou recusa, 0 texto seré alvo facil para criticas de todos 0s tipos. Ha pouquissimos consensos na vasta literature que trata do populismo, Um deles é justamente que, tomado comoum conceito, ele possui gran- de fluidez, amplitude e ambiguidade, o que the permite nomear inimeros e diferenciados exem- ploshistéricos, através do tempo e do espaco. Tals caracteristicas so constitutivas da trajetoria de construgao do proprio conceito, balizande seus sos e despertando, ao mesmo tempo. adesbes © criticas. Dessa forma, 0 populismo ndoserianem uma doutrina, nem mesmo um elemento central do pensamento politico de um autor ou autores, no contando com elaboragio teorica sistematica e consistente. 0 ‘discurso populista’ abrigaria tal variedade de projetos ¢ ideias. que se tornaria profundamente eclético @ até contraditerio. Po- rém. come os vicios @ as virtudes podem estar no mesmo lugar. s8o essas marcas difusas que the permitem interpelar publicos diversos, 0 que the daria forca e poder de atragao, mas responderia por sua fraqueza tedrica e imprecise historica, Teoricamente, no singular, 0 populismo é pro- posto como um conceito de analise das ciéncias humanas e sociais, isto é, como um constructo que tem sua historicidade, Mas os populismos. no plural. s4o reconhecidos como fendmenos empiticos da histéria politica de diversos paises, Portanto. oconceito pretende realizar uma descri- 30 das caracteristicas observadas em fenome- os hist6ricos, localizados no tempo e no espago. paraassim entender o que se est definindo como populismo. Essa dupla existencia supde uma convergéncia entre o que 0 conceito presoreve teoricamente come caracteristicas fundamentals do que nomeia 0 que os fenémenos aos quais ele se aplica, evidenciam, quando analises his- toricas sobre tais realidades séo efetuadas, Essa convergéncia é necesséria para que 0 conceito tenha valor heuristice, o que significa que ele precisa ser construido com principios teéricos verifcaveis. quando aplicados & compreensao dos fenomenos historicos que pretende descre- ver. a despeito de sua diversidade, Do ponto de vista conceitual. mesmo considerando-se, como nos ensina Koselleck, que um conceito ¢ uma palavra que concentra uma multiplicidade de signiticados, sendo sempre polissémico e abrin- do horizontes de andlise - a0 que © populismo atende: um conceito precisa. igualmente, atuar como um “limitador” das experiéncias historicas as quais se aplica, remetendoa certos conteuidos € permitindo algumas interpretacdes - 0 que. a meu ver. néo ocorreria com 0 populismo. E que tipo de fendmeno recebe a designacdo de populismo? Esse é um ponto fundamental, ois, 0 populismo é geralmente identificado como uma forma, um estilo ou uma técnica de fazer politica. que envolveria uma relagao entre uma lideranga @ 0 “pove’, nogdo também fuida © complexe, Assim, sua utilidade cognitiva seria permitir um methor entendimento de determi- nados periodos, projetos. acontecimentos e per- sonagens da histéria politica de uma nacao. Ou seja, o populismo néo é um periodo, um projeto. um acontecimento ou uma personagem histérica, Como conceito pretende ser umainterpretacéo, que deseja descrever aquilo que enuncia, Ora, sabemos que néo ha fatos sem interpretacdes, €. muitas vezes. essas fronteiras sao borradas. Ha casos, contudo. em que 0 fato se confunde de tal maneira comaiinterpretacao. que o fato é a propria interpretacao que se constréi, E 0 que corre no caso do concelto de populismo,o que exige que fagamos. ao mesmo tempo, uma re- ‘lexéo sobre a traletoria historica desse concetto @m um caso especifico (o Bras\b. interligando-a + Oteitodessaconfetencia- ido ro Ri de Janeiro 827 de agosto de 2024 ulizourentesdes desemvoluidssaotongo.cdemeu taba ‘coma pesqusadora que debate o tera co popslimnaha cecadae Portm, banafcouse paricularmante ce parte ae uma pbb recente om Ungua inglesa “The History and Historiography of Populism Eran 930-1084" em Oxford Research Eneyciopede of Ltn ‘mercan History Oxo, Oxon University Press 2022 As feterenegs fram anewads pote essa UELEAGSO © 2 esUmEM 8 AgLNS GOs tus yn atria sobre 9 toma © populsme no Bras: desatos de um debate Nstoroaration ‘Angela de Castro Gomes 3/9 com os fatos que ele pretende nomear. quando aplicado a tal experiéncia. Essa preocupagao deixa claro que seu processo de construgao. bem como seus “usos politicos" - ao circularem na sociedade, integrando-se @ linguagem das midias. dos politicos do senso comum ~ S80 partes decisivas da trajetoria do conceito. Considerando que s8o muitos os populismos € 05 populstas, diversas tipologias foram cons- truidas para dar conta de suas possibilidades, Uma das mais utilizadas adota como critério, uma especie de cronologia de seu aparecimento Haveria os primeiros populismos, os “originais’ do século XIK e inicio do 0% 05 chamados popu- lismos classicos. da América Latina de meados do século XX: © 05 neopopulismos do século XI, Nessa tipologia, o que se chama de popu- lismo classico, para 0s casos latino-americanos. funciona como uma espécie de matriz: suas caracteristicas indicariam um conjunto de ele- mentos fundamentais, mesmo levando-se em conta as muitas variagdes. Porém, o que se tem observado. nos casos dos populismos atuais. por exemplo, & que tals variagdes tém sido t8o diferenciadas que. em alguns casos, chega a ocorrer uma completa transformacao do que se buscou definir como ‘classico’ Provavelmente, devido a esse extenso arco temporal e espacial, ha autores que defendem © caréter internacional ou globalizado do con- ceito, embora as andlises construidas com a utilizacdo dessa familia de palavras, tenham se voltado, predominantemente, para experiéncias hacionais. Mais especificamente ainda, quancio se referem aos populismos das experiéncias latino-americanas, Hé razdes para tanto. ¢ elas remetem a combinatoria entre as condicbes internacionais para a emergéncia do populismo. ‘chamado cldssico - 0 contexte da Segunda Guer- ra Mundial - ¢ 0 espago geogrético preferencial de sua ocorréncia: 0 terceito mundo. com grande destaque. a América Latina. O contexto politica das décadas de 1930, 1940 e 1950 explicaria a forga da supremacia dos EUA no caso dos paises, latino-americanos e, como decorréncia. o apelo do paradigma da modemnizacao, com a identi- ficagao do comunisme como grande ameaga & beral-democracia, entendida como baluarte do mundo ocidental livre. Entretanto, as condigdes internacionais nao seriam suficientes para se entender as caracte- Fisticas desse populismo classico, que clepen- deriam das realidades historicas de cada nacao, Estas experimentariam, de maneira singular. seu processo de modernizagao, pensado como transigao de uma sociedade tradicional de base agroexportadora, para umamodema sociedade urbano- industrial, politicamente demacratica. Ou seja, € 0 fracasso dessa transi¢ao - em termos socioeconémicos, mas principalmente politicos ~ que explicaria a emergéncia das experiéncias populistas, associadas a regimes autoritarios 4 dependéncia economica. Uma logica que evidencia que, come conceito, essa palavra mobilizada para identificar processos hist6ricos avaliados como frustrados, em relagao ao obje- tivo postulado: alcangar o patamar de sociedade democratica e desenvolvida, segundo o modelo norte-americano, Ora, esse claro julgamento de valor faz com que as palavras populismo, popu- listas ete. tenham. inevitavelmente e de partida, um forte sentido negative, ‘Ao menos no caso do Brasil, quero ressaltar como essa operacao classificatdria — que identi- fica © conceita e lhe da valor negative - torna-se ume constante, que acompanharé tudo 0 que for por ele nomeado. Justamente por essa razao, outra proposta para se trabalhar com © concei- to seria acotar a perspectiva do enunciador co Giscurso sobre quem é e como se é populista, Isso porque. grande parte da literatura constatou que tal conceito, certamente pelo valor negative a ele atribuido, raramente ou nunca é usado como uma autodefinigao. Os discursos que dizem 0 que populismo e quem & populista so uma forma de se identiicar. para combater, aqueles que esto sendo definides como os adversarios ou inimigos da ocasi8o. Assim. essa familia de palavras diria mais sobre aqueles que a utilizam. seja nas formulagdes académicas ou nos embates politicos. do que propriamente sobre aqueles nomeados como populistas Algo que evidencia a 4/9 Estudos lnero-Americanas Porto Aleghe, v.48 n 1.9 19, Jan-dez 2022 e-42608 forca dessa conotacao valorativa de teor negative has enunciages “sobre” os populismos, ja que 0 populistas sao sempre os ‘outros’. Desa forma, a despeito de existiruum sistema- tico debate sobre operacionalidade do canceito. ‘outra constante pode ser observada: 0 populismo, no Brasil. tomou-se uma categoria de acusagao. traduzindo valores negativos presentes no “outro” sobre 0 qual se fala, Por conseguinte. mesmo que pesquisas académicas busquem utiliza-lo sem esse tom depreciativa, seu sentido negative esta Zo consolidade, que chega a comprometer © vocabulario da analise, Consciente de tals percalcos, tratar do po- pulismo, especialment= no momento atual, € Particularmente desafiacior ja que as primeiras décadas do século XXI 0 trouxeram de volta para o futuro, sob a designagao neopopulismos. populisme pos-marshalliano etc. € possivel diag- nosticar, assim, um renascimento dos estudos sobre 0 populismo. quer nas Américas, quer na Europa, sendo interessante reconhecer que sua atual recepge tem sido t8o polémica, quanto fol A ocorrida na segunda metade do século Xx, quando 0 conesito era destinade a identificar as agruras de paises atrasados. subdesenvolvidos ou de terceiro mundo, Observando essa nova onda de interesses, percebo que ela assume duas vertentes prin- cipais. A primeira se vincula & multiplicagao de experiéncias de autoritarismo ocorridas em todos ‘oscontinentes, com a ascensdo de candidatos de extrema diteita ao primeiro plano das lutas polti- cas ou mesmo a chefia dos executives nacionals, Muitos exemplos dessa recente montante anti- democratica tém sido chamados de populistas. a despeito de sua variedade, o que ndo chega a surpreender. Entre eles estao:a eleigdo de Trump. nos EUA; a aprovagao do Brexit, na Inglaterra: € o fortalecimento dos nacionalismos de direita ne Franga, Polonia, Eslovaquia. Hungria e Repubblica ‘Teheca, entre outros. No Brasil, a eleicao de Jair Bolsonaro. em outubro de 2038. beneficiou-se dessa linhagem de experiéncias chamadas de populistas. Nessa chave, a palavra ganhou novo folego € atualidade, sendo interessante assinalar, de um lado, que esses novos governos chamados populistas s80 de extrema direita e nao de es- querda, a despeito das limitacdes, a0 uso do par direita - esquerda para nomear politicas © politicos: de outro, que essa designagéo tem sido utilizada © compartilhada néo 6 para identificar como para crticar, tanto experiéncias europeias. come latino-americanas. Ou seja. em contexto Muito diverso, tal designacao esta explicitando € reafirmando 0 valor negative presente no vo- cabulério populista ha décadas, Asegunda vertente, resultante da emergancia de exemplos histéricos do que seria o populismo atual.assinala um renascimento dos estudos s0- bre os populismos em geral. mas. principalmente, sobre © chamado de classico. Penso que esse ressurgimento quer trazer novidades tedricas. valendo-se das importantes transformacées ocorridas nos paradigmas das ciéncias humanas @ sociais na virada do século XX. Nesse novo contexto, a interpretacdo populista da historia dos paises latino-americanos seria retomada em bases mais positives. Por isso. entendo que tal retorno procura funcionar: 1) como uma forma de reabilitagdo do valor heuristico do conceit que passaria a ser retomado, para se repensar uma série de questdes-chave: 2) como uma reabilitacdo das proprias experiéncias histéricas opulistas dos anos 1930/40/50, que perderiam a forte marca do fracasso econdmico, social ¢ politico, a elas atribuida pela adocdo da teoria da modemizagso, \Verifico também que essa revisdo cos exem- plos histéricos do populismo classico. que de- fende a manutengao do uso dessa designacao. traz contribuigées muito instigantes. Contudo. nao estou segura de que elas sejam tao dife- rentes, daquelas que foram realizadas nos anos 1980/90. quando 0 conceito passou @ softer sistematices criticas. teérica ¢ empiricamente bem fundamentadas. o que gerou seu abandono or varios historiadores e cientistas sociais, mas no 0 tirou de circulacdo na academia € muito ‘menos. na luta politica. De todaa forma, um ponte desse renascimento © populsme no Bras: desatos de um debate Nstoroaration ‘Angela de Castro Gomes 5/9 me chama a atengo. No que diz respeito aos populismos atuais, 0 que tem ocorrido é um fortalecimento de seu valor negative, consa- grando-o, mais uma vez, como uma categoria de acusagao. Ou sela, os esforcos para que tal familia de palavras passe a ganhar sentidos neu- tros ou positives tém se demonstrado um imenso desafio. Se ele sera bem-sucedido para algumas experiéncias historicas de populismo.€ dificilde prever O que é possivel saber. € que estamos vivendo, em conjuntura diversa, um novo boom de reflexdes sobre esse polémico estilo de fazer politica, que recebeu o nome de populismo e. sem duivida, esta de volta para o futuro. Tendo em vista que o Brasil lembracio como um caso exemplar de populismo, passo a elen- car, brevemente, as condicées sociais dessa interpretacdo. Embora desde a década de 1950 as palavras populismo e populista circulassem ra imprensa e em alguns estudos académicos. apenas ap6s 0 golpe de 1964 e sob seu impacto, tomaram-se temas centrais da academia. Nos ‘anos 1960/70 alcangam grande compartitha- mento, para passar a receber crticas. a partir dos ‘anos 1980/60, Importa esclarecer que eu mesma fui uma das primeiras criticas dessa interpreta- 40. Por isso, comego assinalando sua grande importancia e influéncia no mundo intelectual € politico brasileiro, que se explica, quer pelo contexto de sua elaboragao e disseminagao - os ‘anos da ditadura - quer por seus indissociaveis € efetivos vinculos coma luta pela democratizagée. E devido a essa associacéo, que muito da renovacdo conceitual ocorrida na historia ¢ nas ciéncias sociais brasileiras foi alimentada ou pelas adesdes © ou pelas recusas. que marcaram 0 debate sobre as teses do populismo. A centrali- dade desse debate. portanto. levou a inovagdes nos temas ¢ abjetos de pesquisa e, principal- mente, nas abordagens te6ricas. que vo acabar minando © nucleo da interpretagao populista. Identificada na ‘manipulagao de massas’ Entre muitos exemplos. quero citar o da transformacao ocorrida na propria concepcéo de povo - exo da construgo de qualquer populismo - que deixou de ser um povo/massa, como aparece nessas primeiras formulacdes, para se apresentar como um conjunto de sujeitos histéricos, individuais e coletivos. dotados de agéncia racionalidade politica Essa interpretagao foi tao poderosa, que cons- truiu uma periodizagio para a histéria republicana do Brasil. em dois tempos. O primeira. ira da Revolugo de 1930 até o ano de 1945, 0 ds queda do Estado Novo e deposicao de Gettlio Vargas. identificado como o das “origens’ do populismo. © segundo. teria inicio com a Constituico de 1946, seguindo até 1964, ano do golpe civil-mi- litar, periodo da Republica Populista, no sentido de uma repuiblica fracassada, especialmente no que diria respeito avancos democraticos. Assim. compreender as razdes do golpe de 1954 era uma questo incontomavel para a construcéo de uma historia do Brasil interpretada por essa have de leitura.E a resposta formulada acabou or evidenciar 0 enredo de uma narrativa tele- ologicamente orientada: 0 golpe de 1964 teria sido causado pelo “esgotamento’ ou ‘colapso" do populisme no Brasil. Com talassertiva, portanto. fcava estabeleci- do que’ al tinha existido um fendmeno histérico. chamado populismo. no Brasil do pré-64: b) ele possuia uma histéria, que precisava ser co- nhecida, e, como se sabia, terminava (mal) em 1964, ) era preciso dat prioridade ao estudo das caracteristicas historicas desse fendmeno, que tinha um ‘nome’, mas ainda era desconhecido: 4) do conhecimento clo ‘passado populista’ do Brasil dependia o enfrentamento da ditacura civil-miltar. bem como a projacdo de um futuro liberal-democratico ou socialista, Isso significava que. no espago de tempo entre a década de 1930 € o inicio dos anos 1960. a mar- ca fundamental da politica brasileira teria sido um tipo de relacdo entre Estado e Sociedade, repre- sentantes e representados, que envolveria. de um lado. uma liderance pessoal carismatica. forte € benevolente:¢ de outro. 0 "povo’.entendide como “massa”. que por ndo estar organizada e nao ter consciéncia de seus “verdadeiros”interesses seria incapaz de agir autonomamente, o que permitiria a chamada ‘politica de manipulagao de massas” 6/9 Estudos lnero-Americanas Porto Aleghe, v.48 n 1.9 19, Jan-dez 2022 e-42608 Tal politica, entretanto, no era concebida de forma simplista ou unidtecional (de cima para baixo), 0 que efetivamente tornaria o apelo do discurso populista mais fraco e a adesdo do povo_ mais ‘irracional’. Em diversas formulagées, ela & marcacla por grande ambiguidadl, senco. tanto uma forma de o Estado controlar 0 processo de incorporagao politica do “povo". como um real atendimento de suas demandes. embora isso sempre fosse feito de maneira um tanto iuséria e-enganosa Este talvez seja o ponto que mether traduz a fragilidade, teérica e empirica, da interpretagdo populista. Isso porque, mesmo na versio que considera haver inelusBo politica 20 menos de parcelas do povo ~ no caso, 0s trabalhadores urbanos ~. 0 modelo populsta se constréia partir de uma concepea0 instrumental ce relacées po- liticas. que remete ao controle e a manipulagao_ estatal, o que era justificado pela fraqueza politica do interlocutor popular, composto por massas_ vindas do campo, pouco escolarizadas e alheias ‘seus verdadelros interesses. NBo por acaso. a interpretagdo populista se fortaleceu quando as teorias da modernizacao e da dependéncia ganharam transito na América Latina, Dai os vinculos entre “politica de massas"e industria- lizagSo da economia, para o que as polticas de regulamentagéo do mercado de trabalho seriam fundamentais, consttuindo-se nos melhores ind cadores da precoce incorporacéo das “massas" a. esse processo de modemizacao. Nao suportando escas pressdes por amplacdo da particioacae popular, © populismo entraria em colenso Enitido. portanto. como o populismo é postula- do comoo grande obstaculo a realizagao tanto do modelo tiberal-democratico. como doocialista esses casos. partidos e outras organizagées de mediagao poltcatém peso e, por talraz8o, trans- formama "massa" em povo organizado e racional retirando dos lideres populistas a possibilidade de encarnar 0 Estado como poder benevolente_ © manipulador € esse o modelo de andlise que cera progressivamente erticado, coma adogao de uma nova perspectiva teérica que sofitica 2 dinmica seciopolitica existente no interior das relagdes entre dominantes e dominados. representantes e representados, liderangas po- liticas/povo. De forma muito esquematica, por essa dinamica no existiriam atores. individuals ou coletivos, passives ¢/ousem consciéncia Ao contrario, seria sempre necessario consicerar as relagées de poder de forma ampliada, com grande variedade de possibilidades de interacao entre sujeitos historicos que. mesmo dispondo de recursos de poder muito diferenciados. de- veriam ser consideracios participantes da politica @ sujeitos de suas escolhas e agdes No case brasileiro, isso significou reconhecer que os trabalhadores urbanos, mesmo quando submeticos a ditadura do Estado Novo, foram capazes de ter agéncia, apropriando-se das pro- messas do discurso trabalhista varguista e das formas de organizacdo sindical corporativista, para utiliza-las em seu beneficio Uma estrategia de resisténcia e ampliagdo de margens de agéo, que ganhou muito mais forga durante a experi- éncia liberal-demoeratica do pos-1946. Assim. quando as crticas a interpretag3o popu- lista se disseminaram, surgiram e se multiplicaram Pesquisas académicas. que demonstraram como 05 trabalhadores, desde os anos 1940 ¢ durante toda a década de 1950, souberam se aproveitar das brechas do sistema politico, cobrando dos governos a expansao de seus direitos politicos & sociais, ¢ tornando o sindicalismo corporativista © Justica do Trabalho espagos de Luta efetiva, ‘S80 muito numerosos os estudios - querna érea da historia social de trabalho, quer da sociologia do trabalho ou da ciéncia politica - que exploram, até hoje. as numerosas formas de organizagao & luta dos trabathadores, Nesse sentido, entraram em cena outros sujeitos histories. como lide- rancas politico-partidarias vinculadas a0 mundo sindical e vice-versa; magistrados e advogados trabalhistas: ¢ membros de diferentes associa- Ges, como as de lazer, esporte, de luta contra o racismo, entre outras, ‘Sem divida, se até praticamente adécada de 1950, apenas os trabalhadores urbanos puderam se beneficiar de multas dessas conquistas, es- tando os trabalhadores rurais delas excluidos, © populsme no Bras: desatos de um debate Nstoroaration ‘Angela de Castro Gomes 7/9 Jina vada da decade de 1950 para 1960, eles rapidamente se mobilzam, e passam a demandar © cumprimento de direitos sociais, através de agdes grevistas, processos na justica e variadas manifestagdes politicas. Inumeras pesquisas atestam esse fato, bem como sua conexo com osindicalismo urbano ¢ os partidos politicos mais. permeaveis as reivindicagées dos trabalhadores. como 0 Partido Comurista Brasileiro (PCB) 0 Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Foi se tornando insustentavel, em fungo dos resultados alcangados pelas pesquisa de his- toriadores e cientistas socials, defender que a legislagao sociale o discurso trabalhista, vindos dos anos 1930/40, eram uma iluséo mantida por potticos populistas sem vinculos partidérios @ cem bases eleitorals, durante a experiéncia li beral-democratca do pés-1946.Acomplexidade dos confrontos e dos pactos politicos realzados. eoaumento da participacao e da representacao politicas, traduzidas pelo crescimento do eleito- rado e dos movimentos sociais, nao cabiam na interpretagdo populista dessas décadas da his- {6ria do Brasil. Nem os politics. nem os partidos. nem os sindicatos. nem os trabalhadores, nem 95 eleitores se comportavam da forma descrita pelainterpretagso. quando submetide & pesquisa histérico-sociologica E quase impossiveldimen- sionar a quantidade ea qualidade dessas novas pesquisas, orientadas por referéncias teéricas com efetivo valor heuristico para a compreenséo_ da histéria politica do Brasil. Isso nBo sigiicou. ¢claro.um complete aban- dono do concsite, mas 6 numero de estuciosos que o afastam de suas anélises vem crescendo, Vale assinalar. contudo. que tal afastamento no implicou na busca de outro conceito que funcionasse como um substitutivo para o de populisme Muito ao contrario, ¢eu sou um bom exemplo disso. a despeito dessa posi¢ao poder ser criticada por seu historicisme. Entendo que como conceito, as bases tedricas do populismo J foram muito questionadas, apontando-se, empiricamente, suas fragilidades. Porém, como categoria de acusacao da luta politica, essa familia de palavras mantém toda a sua forga € popularidade, continuando a seruma arma efetiva para ferir ou destrur os adversérios politicos. Algo que merece atencdo particular ands as eleigdes de Jair Bolsonaro, um politico de extrema-direita, que ascendeu na onda do que se tem chamado de neopopulismo. No Brasil. a existéncia de uma grande varieda- de de politicos acusados de populismo. a direita ou @ esquerda, nao surpreende mais ninguém. Talvez, 05 populistas de direita tenham sido até mais numerosos. Contudo, os de esquerda, ai- games assim, como Jo8o Goulart (0 presidente deposto pelo golpe de 1964 € herdeiro de Ge- tlio Vargas) continuam mais célebres como encamacdo deste mal. que seria dominante na 80 mattratada Repliblica do pos-1946, Um mal. alias, transmitide as lideraneas da Nova Republica do pds-1988, especialmente ao presidente Lula. com o mesmo objetivo de desqualificagso. Bolsonaro, cuja eleicéo ¢ identificada como indice do desmoronamento das bases dessa Nova Republica do pés-88. poderia ser visto ‘como mais um integrante dessa linhagem de liderangas populistas de extrema direita, Passaco valioso para se entender como ale se beneficiou de um conjunto de valores, crencas. linguagens esimibolos, que jé S40 conhecidos da populacdo © moralismo, 0 combate 8 corrupgao, 0 antico- ‘munismo, 0 ser 0 ‘novo" na politica etc. Por isso, 6 importante demarcar de que forma ele altera radicalmente essa tradicéo de direita, desafianco tentativas de classificagso que buscam the dar inteligibitidace, nomeandio o inominavl. ‘A meu ver. ele faz isso. quando articula um discurso de édio. cuja retérica esta povoade de palavras a agdes de baixo calao - palavrdes gestos obscenos - tudo para mobilizar apoios a uma plataforma governamental, definida, por ele mesmo, pelo objetivo politico da destruigso. Destruir, com violencia fisica e simbélica, todos @ tudo que for definide como inimigo ou obsta- culo: 0s diferentes, 0 meio ambiente, a cultura, 08 intelectuais, as mulheres, os negros, os povos ofiginarios ete. Bolsonaro, como diagnosticou 8/9 Estudos lnero-Americanas Porto Aleghe, v.48 n 1.9 19, Jan-dez 2022 e-42608 Angela Alonso, & um lider que nao lidera: ele libera® Libera e autoriza os integrantes de sua base politica, a se armar e ir para as ruas com- bater como em uma guerra santa, € assim que ele da um sinal positive, no mundo pubblico, a comportamentos ¢ sentimentos que, existindo no mundo privado. néo eram apresentados como modelo do que 0s cidadéos brasilsiros deveriam se tornar. Dessa forma, Bolsonaro, em diversas ocasides. estimula a violencia interpessoal como norma, destruindo os nexos regulatorios da vida em sociedade: desintegrando a sociedade langando-a numa espécie de “outro” estado da natureza, onde impera a desigualdade. Tenho certeza de que a sociedade brasileira é violenta, preconceituosa, racista, machista eateita 4s pregacées salvacionistas, no que, alids, no 6 t8o distinta de outras sociedades. Entretanto. ‘as mais expressivas liderangas politicas brasi- leiras de direita, do passado, estavam Longe de estimular condutas tio destrutivas nas relagdes cotidianas e no espaco piiblico, come faz Bol- sonaro, Esse 6 0 ponto que quero destacar pela importancia que the atribuo e pelo temor que me causa. As palavras © ages, baixas @ violentas de Bolsonaro no devem ser naturalizadas por sua repeticao ininda, A conduta de um presidente da Repiblica no é algo a ser banalizado, € 0 numero de mortos por COVID-1g evidencia as consequéncias terriveis de seu exemplo literal- mente mortal Venho observando que Bolsonaro tem sido chamado de populista por parte da imprensa mas nem tanto por seus opositores. a despeito do transito dessa categoria de acusacao no senso ‘comum dos brasileiros. Apalavra fascista tem sido utilizada pelos intelectuais.¢ talvez ganhe forca, mas. ameu ver. ela é adequada como categoria de acusago. Isso porque, os regimes fascistas. Violentos ¢ anticivilizatorios. primam pelo projeto de trazer a sociedade para dentro do Estado. © que ¢ exatamente o contrério do tsunami de desregulamentacSes € desintegracdes que o Brasil lem vivido. Como historiadora, nao considero util ampliar demasiadamente o alcance de conceitos, menos ainda quando eles possuem uma multiplicidace de usos politicos, Prefiro mobiliza-los para desig- nar experiéncias politicas de contextos histéricos especifices, afastando-me de riscos desneces- sarios ¢ contraproducentes. Come historiadora. considero necessario trabalhar com conceitos. desde que eles tenham efetivo valor teorico € empitico. Por essa razo, subscreva.as reflexdes de Renato Lessa, cientista politico e amigo que, emjulho de 2021, escreveu sobre 0 fendmeno do bolsonarismo,# numa enunciacao do que penso €. assim, encerro esta conferéncia. Cito Lessa (© que nomeamos como “bolsonarismo’ éum Fenomeno sem conceito. A obsessao de the atribuir um ~ fascismo, populismo. autorita- Fismo, necropoltica etc. = decotre da pertur lbacdo que sentimos diante de objetos sem forma e dotados de concentragdo incomum de negatividade Atendénciaa fabricar conceitos é um recurso de autoprotegio, pois a posse de um nome para inaudito propicia um sentimento de fa~ millaridade.(.) 0 valor psicologica do conceito por vezes excedle seu suiposte valor cognitive. Movido pela sensacdo da relativa inutilidade dos conceites para 0 conhecimento das coi- sas do mundo, penso na possibilidade ~ eno mperativo — de imaginar uma fenomenologia dda Gestruigao || Sendo assim, 0 objeto en questdo (0 bolsonarismo) nao sera aqui de- Clinado como conceito: tem mais a ver com a etiqueta afixada na gaveta para indicar que rela abrigamas uma coleco de coisas abjetas. Referéncias GOMES, Angela de Castro, 0 populismo ¢ as ciéncias sociaisno Brasil notas sobre atrajetora de um conceit, I FERREIA, Jorge (org) © populismo e sua histévia de- bate ecritica Riode Janeiro: Cnilzagie Brasilera, 2001. GOMES, Angela de Castro.A invencdo do Trabalhismo, Rio de Janeiro: Ed. FGY, 2005, (. ed, de 10886) GOMES. Angela de Castro A politica brasileira em tempos de cdlera. in Democracia em rsco? 22 Ensaios sobre 0 Brasil hole. S80 Paulo: Compania das Letras, 2019. p.175-194, 5 ALONSO, Angela Sonar & um ee eo ae le ra rE So Palos ut i Dapnieeik/Z “Acess0 om 25 ab 2022 SYEESse ferao a costucao “olson 4 paws pode e 9 cos os denooase" Bau et 178 ju aoa Osponvel em ins Zouch ul combs/mena/actescan Acesso1em 2567 2022 ‘Angela de Castro Gomes © populsme no Bras: desatos de um debate Nstoroaration 9/9 ‘GOMES, Angela de Castro. Estado Nove: debatendo nnacionalismo, autoritarismo e populisme. in: FERREIA, Jorge: DELGADO, Lucila A, Neves (org). Otempodona- ‘ional-estaismo do inicio da década de 1930 20 epogeu do Estado Novo (1930-1045). 0 BrasilRepublicano Rio de Janeiro: Civlizagéo Brasileira, 2029. v. 2, p. 173-202. GOMES. Angela de Castro, The history andlhistoriogra- phy of Populism in Brazil (1930-1045). Oxford Research Encyclopedia of Latin American, Oxford. p.1-17. 202 Angela de Castro Gomes Doutora em Ciéncia Politica pelo institute Université- Tio de Pesquisas do Rio de Janeiro (luper) no Rio de Janeiro. RJ, Brasit mestre em Historia do Brasil pela Universidacle Federal Fluminense (UFF), Professora titular de Historia do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, RU, Brasil pro- fessora emerita do Centra de Pesquisa e Documen- tagdo de Historia Contemporénea do Brasil(Cpdoc) da Fundago Getiio Vargas, no Rie de Janeiro, AJ, Brasil, pesquisadora visttante na Uniio, no Riode Janeiro. RI. Brasil pela Faper, Endereco para correspondéncia Angela de Castro Gomes Universidade Federal Fluminense Rua Marqués de Olinda. n 38. bl 2.80 505 Botafogo, 22250-040 Rio de Janeiro, Ru, Brasil, 03 textos deste artigo foram revisados pela Pod Comunicagdo e submetides para validagde da autora “antes da publicacco.

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