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A Presunção de Inocência Como Objeto de Mitigação Do Sensacionalismo Midiático 2019
A Presunção de Inocência Como Objeto de Mitigação Do Sensacionalismo Midiático 2019
NATAL/RN
2019
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NATAL/RN
2019
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE SIGLAS
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 13
2 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O SEU SUPORTE AO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A CONSEQUENTE ADAPTAÇÃO DO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL À NOVA REALIDADE................................ 16
2.1 Os direitos fundamentais: breve evolução histórica da condição do homem
enquanto sujeito de direitos....................................................................................... 19
2.2 Os fundamentos do direito (dever-poder) de punir do Estado: as balizas
existentes ao jus puniendi e ao jus persequendi estatais........................................... 27
3 A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO GARANTIA ESSENCIAL AO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO............................................................ 36
3.1 Aspectos a orientar a gênese e a influência anglo-saxônica do princípio da
presunção de inocência: a desconstituição do beyond reasonable doubt................ 41
3.2 Presunção de inocência ou presunção de não culpabilidade: escolha material do
constituinte.................................................................................................................. 47
3.3 Contrastes e confrontos da presunção de inocência em perspectiva
comparada................................................................................................................... 54
4 O ACUSADO PRESUMIDAMENTE INOCENTE ENQUANTO OBJETO DO
SENSACIONALISMO MIDIÁTICO....................................................................... 60
4.1 O reflexo das publicações midiáticas: há como explicar a origem e a evolução
da cultura socioinquisitiva no Brasil?....................................................................... 67
4.2 A presunção de inocência e a liberdade de imprensa: colisão entre direitos
fundamentais............................................................................................................... 71
4.3 A influência da criminologia midiática ante os poderes republicanos e os
julgamentos criminais................................................................................................ 81
4.4 Há meios capazes de frear a espetacularização do processo penal ocasionada
pelos tribunais midiáticos?.......................................................................................... 91
5 CONCLUSÃO................................................................................................. 99
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 103
13
1 INTRODUÇÃO
1
Referência à nomenclatura cunhada por Zaffaroni no livro “A palavra dos mortos: conferências de
criminologia cautelar” (2012, p. 309), a qual será bastante utilizada ao longo desta pesquisa.
16
2
Frise-se, desde logo, que a presunção de inocência possui acepção diversa da presunção de não
culpabilidade, conforme será explicitado mais adiante em subtópico específico para tal, qual seja o 3.2.
3
Mais do que tão somente Estado de Direito, nos ensinamentos de Canotilho (2003, p. 92-93), “qualquer
que seja o conceito e a justificação do Estado – e existem vários conceitos e várias justificações – o
Estado só se concebe hoje como Estado Constitucional. [...] O Estado constitucional democrático de
direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de direito”. Dessa forma, o
Estado Constitucional é de direito, mas é também democrático.
17
sujeito de direitos4 e pelo respeito aos direitos fundamentais, ou seja, diante de uma
Constituição garantista em essência.
Na dicção de Silva Júnior (2019, p. 51), precisou-se alterar o modelo
ditatorial e policialesco com o qual o Código de Processo Penal de 1941 foi elaborado, a
fim de adaptá-lo ao perfil constitucional, que tem como diretrizes as garantias e os
direitos fundamentais. Mesmo em relação a dispositivos que não tiveram sua redação
alterada com a Reforma Tópica 5 , o CPP deve ser enxergado sob a perspectiva
democrática, alicerçada pelo rol de direitos fundamentais contemplados pela Carta
Magna.
Todos os homens e todas as mulheres são seres humanos e merecem ser
tratados como tal; a garantia de direitos deve se sobrepor a qualquer situação, ainda que
seja o cometimento de um delito. Nos dizeres de Carnelutti (2009, p. 26), não é possível
fazer uma clara separação dos homens entre bons e maus, pois isso resultaria de um
intelecto que não está iluminado, a priori, pelo amor.
Nesse sentido, a lei, atendendo aos anseios da Carta Constitucional, deve ser
justa, quando, então, harmonizam-se os conceitos de direito e de justiça. O homem deve
ser sujeito de direitos e cumpridor dos deveres impostos a ele, resguardando as
premissas do Estado Democrático de Direito ao tempo em que é, concomitantemente,
salvaguardado por ele.
Em consonância com o entendimento de Silva Júnior (2019, p. 43), a
densidade principiológica da Constituição de 1988, primordialmente no que se refere à
declaração de direitos fundamentais concebidos como normas jurídicas elevadas à
potência máxima, revogou diversos dispositivos do CPP e determinou uma (re)leitura e
uma (re)interpretação com esteio na nova ordem jurídica, a fim de adequá-lo ao
paradigma do Estado Constitucional que possui como meio e fim os direitos
fundamentais.
4
Segundo Siqueira (2014, p. 108), “Sujeito de direito é a expressão tradicionalmente utilizada no
universo jurídico para designar aquele que passa a ser visto pelo ordenamento como verdadeiro titular
de direitos e obrigações”.
5
Silva Júnior (2019, p. 50) explica um pouco mais do movimento reformista, aduzindo que ”A despeito
da necessidade de rearrumação das ideias a ser promovida com a edição efetiva de um novo Código de
Processo Penal, a arte da interpretação deve ser utilizada como ferramenta para contornar as
dificuldades para um olhar sistêmico e coerente do ordenamento processual criminal. [...] O sentido
nuclear da reforma global do sistema processual penal é a sua adequação à Constituição de 1988,
notadamente quanto a sua organização com base nos direitos fundamentais. Note-se que, após a
Segunda Guerra Mundial, surgiu um novo paradigma constitucional que dá suporte para falar-se
daquilo que se convencionou, entre os doutrinadores estrangeiros, denominar Estado
(neo)constitucional”.
19
6
Ressalte-se que a Declaração de 1948 reafirmou os ideiais trazidos com a Declaração de 1789, que,
porventura, possam ter sido esquecidos pelo mundo pós-Guerra. Nas lições de Bonavides (2016, p.
588-589), com aquele documento, “[...] o humanismo político da liberdade alcançou seu ponto mais
alto no século XX. Trata-se de um documento de convergência e ao mesmo passo de uma síntese.
Convergência de anseios e esperanças, porquanto tem sido, desde sua promulgação, uma espécie de
carta de alforria para os povos que a subscreveram, após a guerra de extermínio dos anos 30 e 40, sem
dúvida o mais grave duelo da liberdade com a servidão em todos os tempos. Síntese, também, porque
no bronze daquele monumento se estamparam de forma lapidar direitos e garantias que nenhuma
Constituição insuladamente lograra ainda congregar ao redor de um consenso universal”.
7
Albuquerque (2017, p. 19) complementa tal linha de pensamento, aduzindo que “A Magna Carta do rei
João-sem-Terra teve em seu favor o fato relevantíssimo de não ter caído no esquecimento e, mais que
isso, considerando o momento histórico, foi difundida e marcada culturalmente, tendo migrado como
princípios constitucionais séculos depois para a América do Norte, onde encontrou acolhida nas
primeiras Constituições do Continente”.
20
Nas lições de Bonavides (2016, p. 538), professor de todos nós, tal equívoco
ocorre sempre que a garantia é posta numa acepção em conexidade direta com o
instrumento de organização dos fundamentos e dos princípios do Estado, qual seja a
Constituição. Se tal confusão fosse aceita, seria deveras complicado fincar um conceito
preciso e prático de garantia constitucional, o que acarretaria, sem dúvidas, o
obscurecimento de uma das noções mais valiosas para o entendimento da progressão
valorativa do Estado liberal em sua passagem para o Estado social.
Compreendida a diferença entre os termos acima, resta claro que a garantia
se apresenta como requisito da legalidade, defendendo o direito contra possíveis
ameaças e é, basicamente, pelas vias doutrinária e forense que as garantias
constitucionais promovem a defesa da liberdade do cidadão contra os abusos e a
violência do Estado. Emerge, deste ponto, a condição do homem enquanto sujeito de
direitos fundamentos, digno de proteção.
Não sendo coisa, o homem possui direitos fundamentais, ou seja, direitos
vigentes que são, na pura essência, os direitos da liberdade de cada indivíduo. Tal
vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana
conduz, indubitavelmente, ao significado de universalidade inerente a esses direitos
como ideal da pessoa humana, a qual se manifestou, primeiramente, por ensejo da
célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Naquela época,
pretendia-se discutir as balizas da sociedade, mas, sobretudo, do sistema processual
penal, abalado profundamente após os tempos sombrios da Santa Inquisição9.
À época, os pensadores da nova corrente não eram apenas homens de leis e
não almejavam tão somente a substituição do procedimento penal da Inquisição. Fala-
se, em verdade, de filósofos, escritores, historiadores, diplomatas e também juristas, os
quais expunham toda a sua insatisfação com o status quo político, social, econômico e,
por conseguinte, jurídico vivido durante o período nefasto da Inquisição.
Tais pensadores, então, insurgiram-se contra o predomínio do poder central
em todos os campos e contra o seu total descomprometimento com os interesses e com
as necessidades da população. Limitando-se ao que releva como objeto deste estudo, a
maior alteração foi quanto ao novo dimensionamento que se deu ao indivíduo diante do
poder estatal central.
9
De forma objetiva, como define Reinaldo (2019, p. 12), “a Santa Inquisição foi um tribunal eclesiástico
instaurado no século XIII com o objetivo de identificar e punir hereges e feiticeiras (os)”.
22
que embasou a Revolução Francesa de 1789, a edição de uma declaração dos direitos do
homem em vez da edição imediata de uma Constituição10.
Tal iniciativa foi de suma importância, afinal a Constituição Francesa seria
escrita somente depois, forjada em uma gama de direitos fundamentais que fornecessem
as balizas necessárias ao Estado Democrático de Direito11. Para Silva Júnior (2015, p.
143), os revolucionários franceses acreditavam que professavam a verdade das
verdades ao contrário dos norte-americanos que estavam mais preocupados em
concretizar sua independência e criar o seu próprio regime político.
Por isso, os franceses sustentavam mais questões quanto à ordem política e
aos direitos da liberdade civil individual, visto que, segundo o entendimento de
Dimoulis e Martins (2018, p. 27), apoiando-se nas ideias ilumistas, tinham por objetivo
a fundamentação racional das decisões políticas, perseguindo ideias universalistas.
Não é por acaso que, já no artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, resta posto que “os homens nascem e são livres e iguais em direitos”, de
modo que as distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum. Tal construção,
por si só, confere o novo enfoque do pensamento daquela época: o homem como sujeito
de direitos e como centro da nova organização do Estado. A igualdade entre os homens
perante a lei foi, ainda, reforçada com o artigo 6º da supramencionada declaração12.
Ressaltada a importância inquestionável da Declaração de 1789 para a
solidificação e a positivação dos direitos fundamentais em nível mundial, é preciso
entender o processo de internacionalização desses direitos no cenário constitucional
brasileiro. Como já aduzido, a Constituição de 1988 possui papel de destaque no que se
10
“Destarte, os colonos norte-americanos não se sentiam devidamente representados no parlamento da
metrópole. Surgia historicamente um ceticismo acentuado dos colonos, vale dizer, de parte do “povo”
em relação aos órgãos de representação política do Poder Legislativo, pois um parlamento
democraticamente legitimado pode criar – eis a lição historicamente incontestável – normas que
prejudiquem minorias e indivíduos. Por isso, o documento jurídico chamado “Constituição” que
deveria fundamentar o poder soberano e legitimar o legislador, isto é, a maioria parlamentar, surgiu nos
Estados norte-americanos, declarados independentes em 1776, com o principal objetivo de garantir a
liberdade individual em face de todos os poderes estatais, ou seja, também em face do legislador
ordinário” (DIMOULIS; MARTINS, 2018, p. 27).
11
Não é de se estranhar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, já em seu artigo 2º,
verse, in litteris, que “O fim de toda a associação política é a conservação
12
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 - Art. 6º. A lei é a expressão da vontade
geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a
sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos
são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,
segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.
25
refere ao enfoque conferido aos direitos fundamentais, mas não foi só nessa
Constituição que tais direitos começaram a se revelar em nosso ordenamento jurídico.
Efetivamente, o movimento constitucionalista no Brasil teve início em
1821, como um reflexo direto das transformações que estavam ocorrendo em Portugal
no ano anterior – por influência da Independência Americana e da Revolução Francesa,
frise-se. Tais mudanças foram determinantes para o surgimento de uma nova concepção
de Estado democrático-liberal, assegurando a divisão dos poderes e os direitos dos
homens em novas Constituições para Portugal e, consequentemente, para a terrae
brasilis.
A Constituição Política do Império do Brasil, outorgada em 25 de março de
1824, estabelecia a organização dos poderes políticos e definia os direitos fundamentais.
No entender de Silva Júnior (2015, p. 150), a declaração dos direitos fundamentais
estava contemplada na Constituição de 1824, inscrita que foi nos 35 (trinta e cinco)
incisos do artigo 179, tendo como diretriz, conforme o caput do referido artigo, a
liberdade, a segurança individual e a propriedade13.
Ainda, Silva Júnior (2015, p. 151) afirma que a Constituição Imperial
destinou 15 (quinze) itens no artigo 179, plasmando garantias penais e processuais
penais, sendo que treze deles se relacionavam diretamente às questões de ordem
processual, sendo algumas dessas grandes avanços para a época – por exemplo, a
independência do Poder Judiciário (artigo 179, alínea 12, última parte).
Com o avançar do tempo, a fonte de inspiração transmudou-se da Europa
para os Estados Unidos; deixou-se um pouco de lado o modelo constitucional francês
para dar lugar, em importância, à Constituição norte-americana. Não é por acaso que o
sistema republicano e a forma federativa estabelecidos no Brasil recebem influência do
constitucionalismo estadunidense, tendo a nossa primeira Constituição republicana sido
editada sob a epígrafe de Constituição dos Estados Unidos do Brasil.
Ressalte-se que, sendo a Constituição norte-americana bastante concisa,
nossos constituintes precisaram buscar complementações nas Constituições suíça e
argentina, as quais também possuíam forte inspiração no modelo federalista
estadunidense. Entretanto, as transformações não pararam por aí, pois, com o cenário
mundial em chamas com as mudanças empreendidas pela Revolução Russa e pela
13
“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base
a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela
maneira seguinte”.
26
14
De forma sintética, explicam Dimoulis e Martins (2018, p. 141): “quando o aplicador do direito está
diante de várias interpretações possíveis de uma norma infraconstitucional, deve escolher aquela que
melhor se coadune às prescrições dos direitos fundamentais”.
15
Relembrando o artigo 1º, da CRFB/88, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado
Democrático de Direito e, tem como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana (inciso
III).
16
“A Constituição de 1988, influenciada por multiplicidade de concepções jurídicas e por documentos
constitucionais diversos, terminou por acolher as duas fórmulas normalmente excludentes. Previu,
assim, no inciso LIV do art.5º, de maneira ampla: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal”. Em seguida, especificou, em normas autônomas, alguns dos significados
evidentes do princípio, como, e.g, o contraditório, a ampla defesa e o direito de recorrer, inscritos no
art. 5, LV. A este propósito, embora não haja consenso nem cláusula explícita, parece-me de melhor
inspiração o entendimento de que, ao menos no processo penal, decorre do sistema constitucional a
garantia do duplo grau de jurisdição – com pleno efeito devolutivo – implícita no princípio geral e na
regra específica do direito de recorrer” (BARROSO, 2002. p. 91).
28
garantir a segurança nas relações sociais. Com o surgimento do Estado, ainda nas suas
formas mais primitivas, revelou-se que a tarefa de distribuição da justiça, como modo
de manutenção social, teria, segundo Albuquerque (2015, p. 15), de ser ao ente estatal
confiada, passando este a perseguir e a punir quem cometesse atos ilícitos.
Com a institucionalização da persecução penal, no entender de Almeida
(2014, p. 06), o Estado se viu obrigado a criar um procedimento para a aplicação da
pena. Entretanto, sob a égide do absolutismo, este procedimento persecutório era
deveras arbitrário e invasivo. Ao ser instituído o Estado liberal, os revolucionários
cercaram-se de cuidados para que o Estado não mais voltasse a interferir em suas vidas,
de modo que as leis - e não mais o monarca – deveriam reger a sociedade e conferir
direitos aos cidadãos em todas as esferas, protegendo-os de sanções arbitrárias.
Dentre os instrumentos dos quais o Estado poderia se valer para tal, o mais
eficiente, aos olhos de Silva Júnior (2015, p. 126) – entendimento este do qual se faz
coro – é o dever-poder de punir, que se mostra como uma das funções essenciais do
Estado desde que atue em consonância com as balizas previstas na CRFB/88, quais
sejam os direitos fundamentais, em atenção ao princípio da legalidade constitucional.
Ao falar em jus persequendi, faz-se referência ao direito (dever-poder) de
ação do Estado, isto é, o Estado é incumbido de perseguir o autor do delito, o qual
advém dos direitos fundamentais na perspectiva objetiva17. O jus puniendi também se
trata de um direito (dever-poder) do Estado, onde ele tem a permissão para punir,
aplicar sanção penal, a quem pratique um ato ilícito, tipificado como crime.
Portanto, é necessário que o Estado exerça o jus persequendi (direito de
ação, de perseguir o autor do crime) para que o jus puniendi (direito de punir) possa
ser aplicado. Afinal, conforme ressalta Ferreira (2008, p. 104), a Constituição, vista
como ordem objetiva de valores, impõe normas de comportamento e de convivência
aos indivíduos, estabelecendo padrões axiológicos e éticos que incidem sobre todas as
esferas jurídicas.
Nesse contexto, os direitos fundamentais impõem uma delimitação ao
dever-poder do Estado, ou seja, delimitam o exercício do poder do ente público. No
entender de Silva Júnior (2015, p. 127), o direito de punir é poder político do Estado e
17
Consoante a doutrina de Silva Júnior (2015, p. 128), isso acontece porque “na visão moderna
decorrente de um sistema criminal pautado de acordo com o entendimento de que a teoria do processo
penal tem raiz nos direitos fundamentais, o jus persequendi é oriundo da perspectiva objetiva dessa
classe de direitos”.
29
monopólio dele, que deve ser exercido de forma legítima e em estrita observância aos
direitos fundamentais do homem. No mesmo sentir, a política criminal, justificadora do
direito de punir, deve seguir critérios que se conformem com a estrutura política do
próprio Estado, a fim de evitar rupturas com as premissas constitucionais.
Se o processo penal regula o dever-poder de punir do Estado, na perspectiva
democrática, deve, segundo Silva Júnior (2015, p. 190), ser um instrumento de tutela
essencial dos direitos fundamentais do cidadão. Logo, embora o processo sirva de
instrumento para que o poder público exercite a persecução penal com legitimidade, ele,
ao mesmo tempo, possui como principal função a de estabelecer os limites do uso da
força estatal na busca da punição do agente que infringiu a lei.
Com a secularização, os Estados deixaram de ser teocráticos, e o direito de
punir não mais encontra justificativa na religião, mas sim na representação política. Para
Silva Júnior (2015, p. 127), com o movimento democrático nascido após a Segunda
Guerra Mundial, o direito (dever-poder) de punir é resguardado como forma de defesa
social, sob uma visão moderna que tem raiz teórica nos princípios normativos que
enunciam os direitos fundamentais da pessoa humana.
Quanto a este assunto, pondera Grinover (1982, p. 13) que, no Estado
moderno, não existe razão para se debater o problema da possibilidade ou
impossibilidade de autolimitação de atribuições pelo próprio Estado, pois esta limitação
resulta de um poder superior, o constituinte, em cujo exercício se manifesta a vontade
político-institucional do povo.
Nesse contexto, a liberdade do cidadão é demarcada como limite à atividade
estatal, de modo que todas as diversas funções do Estado são limitadas pela liberdade do
indivíduo. Nesta perspectiva, portanto, o Estado, no exercício das suas funções,
encontra uma série de limites.
Tais limites, diante da posição hegemônica conferida pela Constituição de
1988, expressam, segundo Silva Júnior (2015, p. 164), a teoria constitucional do
processo penal, que possui, como uma de suas categorias, o princípio da presunção de
inocência, o qual será discutido, mais detalhadamente, a seguir.
Resta nítido que o Estado possui o papel de garantir a liberação do homem
dos obstáculos políticos, econômicos, sociais e naturais que o aflijam18. É exatamente,
18
Enriquecendo as discussões, Barroso (2002, p. 89-90) assegura que “A Constituição contém, ademais,
ainda no art. 5º, um conjunto de preceitos restritivos do poder do Estado de proceder à prisão de
30
neste ponto, que o poder estatal e a liberdade se entrelaçam como forma de garantir a
soberania dos direitos fundamentais, tal como resta prevista em nosso ordenamento
jurídico.
Oportunamente, Grinover (1982, p. 15) relembra que, no processo penal, os
direitos do acusado se colocam como limite à função jurisdicional e, de outro lado, é o
próprio processo penal que se perfaz em instrumento de tutela da liberdade jurídica do
acusado. O Estado, ao exercer a sua função, deve colocar-se frente a frente com os
direitos de liberdade daquele contra quem vai exercer o jus puniendi.
Ora, a liberdade é o bem máximo tutelado pelo Estado Democrático de
Direito, sendo esta premissa uma expressiva limitação à atuação excessiva do Estado.
Mais que punir, controlar ou prender, o Estado deve zelar pela correta aplicação dos
direitos fundamentais, de modo que a liberdade, entendida como direito inegociável do
homem, seja resguardada.
Na mesma temática, Miranda (2002, p. 510) pondera que as liberdades
individuais são direitos supraestatais do homem inorganizáveis pelo Estado. Cabe ao
Estado, apenas, protegê-los, dentro do seu território e onde quer que tenha jurisdição, de
modo que o cerne do problema deixou de ser, nos dias atuais, o da limitação às
limitações para ser o de garantia.
Binder (2003, p. 25), referindo-se ao ideal que se aspira para o processo
penal atualmente, postula que é a preocupação em estabelecer um sistema de garantias
face ao uso do poder do Estado. Neste caso, procura-se evitar que o uso deste poder
converta-se em um fato arbitrário. Seu objetivo é, na essência, proteger a liberdade e a
dignidade da pessoa humana.
O próprio Marquês de Beccaria (2013, p. 24) já afirmava que o conjunto das
pequenas porções de liberdade do homem constitui o fundamento do direito de punir e
que todo poder que se afastasse da base garantidora destas porções de liberdade seria
visto como abuso e não mais como justiça.
pessoas, estabelecendo a presunção de inocência (“LVII - Ninguém será considerado culpado até
trânsito em julgado da sentença penal condenatória”), os casos de prisão legal (“LXI – ninguém será
preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária
competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”),
o dever de relaxamento da prisão ilegal (“LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela
autoridade judiciária”) e a proibição da decretação de prisão quando a lei admitir a liberdade provisória
(“LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória,
com ou sem fiança”)“.
31
19
Como é cediço, os dois sistemas jurídicos são, constantemente, tidos como referência para o direito,
sistemas estes que denotam perspectivas, propriamente, distintas sobre a ideia de justiça. Mais que
isso, possuem uma gramática própria de produção da verdade na qual traduz a exteriorização de um
modelo de exercício de poder. São eles o sistema acusatório e o inquisitório ou inquisitivo. Segundo o
entendimento de alguns autores do direito anglo-saxão, a tradição do Civil Law é um modelo jurídico
correlacionado ao sistema inquisitório, enquanto que o Common Law se assemelha ao sistema
acusatório. O sistema acusatório é assim denominado pelo fato de que quem acusa deve fazer a prova
de suas alegações, sendo a formulação da verdade coletiva e dirigida a todos. Já no sistema
inquisitório, a verdade é determinada pela autoridade judiciária que possui também a atribuição de
conduzir a inquirição, ou seja, a verdade é descoberta por quem é “dotado” desta capacidade.
34
Nos precisos dizeres de Silva Júnior (2015, p. 127), ao praticar seus atos em
consonância com as normas que limitam o desenvolvimento dessa tarefa, balizas são
traduzidas nas garantias constitucionais, ou seja, nos direitos fundamentais, núcleo
reitor de todo sistema criminal democrático.
Nessa nova dimensão dos direitos fundamentais, o Estado deixa de ser visto
como adversário, que sofre limitações no seu agir, para ser visto como guardião, que
tem o dever de promover ações de proteção eficientes aos cidadãos. Nas lições de
Dimoulis e Martins (2018, p. 142), cabe ao Estado a proteção ativa dos direitos
fundamentais contra ameaças de violação.
O dever-poder de punir, portanto, é o poder político conferido ao Estado que
deve ser exercido de forma legítima, em estrita observância aos direitos fundamentais e
à condição dos seres humanos como sujeitos de direitos. A política criminal que orienta
o dever-poder de punir está, detalhadamente, contemplada na Constituição, sobretudo
no Título destinado aos direitos fundamentais, frise-se.
Nesse contexto, Silva Júnior (2015, p. 148) complementa, aduzindo que, do
exame dos princípios elencados nas Constituições brasileiras, sobretudo na atual,
constata-se que o maior número dos direitos fundamentais positivados objetiva o
estabelecimento da legalidade constitucional, no que tange ao exercício do direito de
punir, às limitações ao exercício do direito de punir ou, nos termos do referido
doutrinador, ao devido processo penal.
Sendo o jus puniendi e o jus persequendi necessários ao bom
funcionamento do aparato estatal, estes não podem – e nem devem - ser ilimitados. As
balizas existentes em nosso ordenamento jurídico, que garantem a liberdade como bem
jurídico primordial em um Estado Democrático de Direito, permanecem vivas e
eficientes, funcionando como profundas garantias que o ser humano enquanto sujeito de
direitos dispõe diante de eventuais excessos estatais.
Talvez o primeiro ser humano que tenha se insurgido e conseguido conter
abusos ou convencer detentores do poder, por intermédio da apresentação de um
caminho do razoável, seja o precursor da defesa de valores que hoje, para nós, são tão
caros ao Estado Democrático de Direito. Mais que isso: talvez seja o primeiro a
carregar, em seu gene, a sede pela defesa da liberdade democrática.
Depois de muito sangue derramado, temos o genuíno nascimento daquilo
que, hoje, conhece-se como presunção de inocência: substantivo feminino; pilar de
qualquer Estado que se autodenomine como Democrático de Direito. Como salvaguarda
35
20
Barbagalo (2015, p. 49), a fim de estudar a estruturação e o alcance do princípio no Brasil, constrói
um tracejo histórico da fórmula da presunção de inocência na CRFB/88. Após a ditadura militar, com
o retorno de um presidente civil ao poder, em 1985, foi editada a Emenda Constitucional nº 25, que
convocava o Congresso Nacional para elaborar um novo texto constitucional, mediante uma
assembleia constituída pela maioria dos parlamentares eleitos nas eleições de 1986 e por senadores
biônicos. Consequentemente, seguiu-se a elaboração de vários projetos de textos constitucionais,
dentre os quais se destacou, inicialmente, o Projeto Afonso Arinos, que previu expressamente a
presunção de inocência em seu artigo 47, cujo texto estabelecia: “presume-se inocente todo acusado
até que haja declaração judicial e sua culpa”. A despeito de ter sido arquivado posteriormente pelo
Ministério da Justiça, o Projeto serviu de base para muitos dos outros textos anteriores à CRFB/88.
Ganhou relevância, no entanto, a Emenda nº 1P11998-7, elaborada especificamente sobre o tema pelo
então senador José Ignácio Ferreira, que sugeriu, pela primeira vez na história constitucional do Brasil,
a adoção do princípio da presunção de inocência, nos moldes da fórmula da não culpabilidade. Antes
disso, seguiram-se outros trabalhos que, em geral, reproduziam a regra da presunção de inocência,
embora com nuances variadas, mas foi a fórmula introduzida pelo ex-senador que ganhou destaque e
foi aprovada para, posteriormente, figurar no texto da CRFB/88.
37
21
A despeito de remontar ao direito romano, a presunção de inocência foi ofuscada ou, segundo Ferrajoli
(2010, p. 506), invertida completamente, em razão das práticas inquisitórias desenvolvidas na Baixa
Idade Média. Isso porque, ante a insuficiência de prova, conquanto subsistisse um mero resquício de
culpabilidade, equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e a uma
semicondenação. Somente, na Idade Moderna, portanto, é que tal princípio foi reafirmado com
firmeza. Por isso, quando referido, neste trabalho, que a origem da presunção de inocência remonta ao
final da Revolução Francesa, estar-se-á falando nesse sentido, da sua reafirmação no cenário mundial.
22
No artigo 9º da referida declaração, já se estabelecia que “Todo o acusado se presume inocente até ser
declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessários à guarda da sua
pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei”.
23
No original: “XI.1 Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido
inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no
qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
38
24
“Artigo 14, §2º - Qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a
sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida”.
25
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm. Acesso em: 02 out. 2019.
26
Vide BRASIL. STF, Pleno, Rext. nº 466.343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, j. 22.11.2006. Destaque-se,
ainda, que, posteriormente, em outros julgados, o STF reconheceu a que os tratados internacionais de
direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal: STF, Segunda Turma,
HC nº 90.172/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 05.06.2007, v.u. Nesse sentido, Lopes Júnior e Badaró
(2016, p. 05-06) explicam o tratamente supralegal conferido. Vejamos: “No referido recurso, decidido
pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, após o voto do Relator, Ministro Cezar Peluso, que
negava provimento ao recurso, sem adotar uma posição expressa quanto à questão da hierarquia dos
tratados internacionais de direitos humanos, votou o Ministro Gilmar Mendes, que acompanhou o voto
do relator, acrescentando aos seus fundamentos que os tratados internacionais de direitos humanos
subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação
infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação, pelo
Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica. Esse relevantíssimo precedente
significou uma mudança no posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que passou a entender que
a Convenção Americana de Direitos Humanos tem natureza supra legal (posição do Min. Gilmar
Mendes) ou materialmente constitucional (posição do Min. Celso de Mello). De qualquer forma, e este
é o ponto relevante, as leis ordinárias, anteriores ou posteriores à CADH, que com ela colidirem, não
39
terão eficácia jurídica. Em termos práticos, qualquer norma infraconstitucional, que conflite com a
garantia da imparcialidade do juiz, assegurada expressamente na Convenção Americana de Direitos
Humanos e no Pacto internacional de Direitos Civis e Políticos, anterior ou posterior à promulgação de
tais tratados, não mais poderá ter aplicação”.
40
27
Embora a sensação de impunidade que acomete algumas camadas da sociedade seja “algo muito
agressivo”, o Judiciário não tem nada a fazer além de seguir o que está escrito na Constituição.
Especialmente quando o texto constitucional é claro e não dá margem a interpretações, como ao
permitir o cumprimento da pena só depois do trânsito em julgado. É o que defende o Ministro Maia
Filho (2016), do STJ. Ele reconhece que a justiça, por vezes, demora demais para dar soluções a casos
rumorosos, e que isso é um problema que deve ser combatido. “Mas não é com a antecipação da prisão
que isso vai se resolver”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-set-18/entrevista-napoleao-
nunes-maia-filho-vice-decano-stj. Acesso em: 30 set. 2019.
28
Nos dizeres de Fernandes (2017, p. 248), “A título de exemplo, têm-se os entretenimentos que ocorriam
no Império Romano, em que o público lotava o Coliseu para assistir e vibrar quando os acusados, dos
mais diversos tipos de crimes, eram jogados aos leões, que lhes destroçavam os corpos”.
41
Foucault (2002, p. 37), a culpa era constituída por cada elemento que permitia
reconhecer um culpado.
Dessa forma, uma meia-prova não tornava o suspeito inocente enquanto a
prova não restasse consolidada, mas fazia dele um meio-culpado. Pior que isso: um
indício leve de um crime grave já era o bastante para taxar alguém como um pouco
delinquente. De forma análoga, a Santa Inquisição desconsiderava, veementemente, o
princípio da presunção de inocência, de modo que Eymerich (1993, p. 124), ao tratar do
interrogatório conduzido pelos inquisidores, disciplinava que deveria ser feito “com
calma, sem irritação, e considerando sempre o acusado como culpado”.
Uma realidade totalmente repugnante e diferente dos moldes atuais,
portanto. Como já visto anteriormente, com a ascensão da burguesia e o advento do
Iluminismo, as ideias liberais ganharam envergadura, e o homem como sujeito de
direitos viu-se no centro da nova perspectiva, destacando-se obras de grande
repercussão, como “Dos Delitos e das Penas”, de Beccaria29.
A partir disso, a presunção de inocência foi arraigando-se nos sistemas
processuais das nações – em que pese os positivistas seguidores de Ferri, conforme
ressalta Silva Júnior (2015, p. 75), não terem aceitado a presunção de inocência de
forma absoluta, pois, ao passo em que é concebida como uma verdade relativa, torna-se
possível de ser eliminada. No direito anglo-saxão, a presunção de inocência (not guilty)
apresenta-se como derivada do due process of law, extraída do direito de permanecer
calado para não se autoincriminar (right to stay mute). Mas nem sempre foi assim.
Anteriormente à segunda metade do século XVIII30, quando foram editadas
as declarações de direitos norte-americana e francesa contendo a presunção de
inocência, o grau de tortura era tamanho que, muitas vezes, acusados eram mortos caso
insistissem em permanecer calados ou se se recusassem a serem julgados. Ou seja, o
que hoje é considerado como um direito fundamental, informado pelo magistrado logo
29
Atribui-se a Beccaria, com a escrita da referida obra, o pontapé inicial, do ponto de vista jurídico penal,
das ideias iluministas que caracterizaram a escola clássica. Inaugurou, portanto, a fase filosófica da
escola clássica, de afirmação teórica das novas concepções, com ênfase para a teoria do contrato
social. Para Beccaria (2013, p. 27), a referida teoria apregoa que “leis são condições sob as quais
homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em contínuo estado de
guerra e de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza de conservá-la”.
30
Segundo Ferreira (2013, p. 45), somente na segunda metade do século XVIII, convencionou-se que,
quando um indivíduo acusado de um crime se recusava a responder as acusações que lhe eram
imputadas, uma afirmativa de “não culpabilidade” (not guilty) deveria ser exarada por um terceiro em
seu favor. Tal ato tem o mesmo efeito que se o acusado o tivesse feito, firmando-se a regra nos moldes
em que prevalece até o momento presente na jurisdição dos Estados Unidos da América e do Canadá.
Em virtude disso, no direito anglo-saxão, o processo se instaura pela presunção de inocência.
43
31
Em estreita síntese, no Acórdão Coffin v. US, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América
considerou que o princípio da presunção de inocência é basilar e irrefutável, sendo um pilar da
fundação do Direito Processual Penal. Consignou a presunção de inocência com um meio de prova a
favor do acusado que cabe à acusação afastar, para além de uma dúvida razoável. Já no que se refere
ao Acórdão Woolmington v. DPP, que aprecia um caso de homicídio, a Câmara dos Lordes – que atua
como revisora das leis produzidas no seio da Câmara dos Comuns, bem como possui a prerrogativa de
fiscalizar e avaliar as atividades do Primeiro-Ministro e seu governo -, concluiu que, caso a prova
apresentada pela acusação e pela defesa não seja suficiente para formar a convicção do Júri, para além
da dúvida razoável, deve o acusado ser absolvido, independentemente da gravidade do delito.
32
No original: “Any person charged with na offence has the right: [...] d) to be presumed innocent until
proven guilty according to law in a fair and public hearing”. Disponível em:
http://laws.justice.gc.ca/en/charter/#garantie. Acesso em: 30 set. 2019.
44
33
No entender de Bergman e Berman (2015, p. 456), “the prosecution has the burden of proving beyond
reasonable doubt each and every element of the crime. This means that if the defense raises a
reasonable doubt as to any one element, the defendant must be found not guilty. This is why the
defense typically focuses its attack on one or two elements”. (Tradução livre: “A acusação tem o ônus
de provar além de qualquer dúvida razoável todo e qualquer elemento do crime. Isto significa que, se a
defesa suscitar uma dúvida razoável sobre qualquer elemento, o réu deve ser considerado inocente. É
por isso que a defesa normalmente concentra seu ataque em um ou dois elementos”).
45
termo ipsis litteris. No entender de Lopes Júnior (2017, p. 192) – do qual se faz coro -,
isso não representa qualquer prejuízo ou mácula à sua boa e necessária aplicabilidade
em nosso sistema.
Afinal, como o próprio nome já garante, é pressuposto, não necessitando
estar positivado em lugar nenhum para ser perfeitamente aplicado. Percebe-se, assim,
que a presunção de inocência não necessita de abrigo exato na estrutura do processo
penal brasileiro, tal como ocorre no direito anglo-saxão, para ser aplicada em nosso
ordenamento jurídico – sobretudo se observada a opção garantista adotada pelo
constituinte de 1988.
Com efeito, apoiando-se na lógica do direito anglo-saxão, não recai sobre o
acusado a obrigação de produzir a prova, pois toda atividade de defesa está ligada de
forma explícita e direta à desconstituição do parâmetro do beyond reasonable doubt
exigido à acusação. Este é o ônus da prova que a acusação carrega e, caso não obtenha
êxito na desconstituição da dúvida razoável, perderá a sua causa.
Nessa esteira, no direito anglo-saxão, a evidência apenas será considerada
prova, nos dizeres de Ferreira (2013, p. 57), se passar pelo crivo das regras de evidência
em audiência preliminar processual, de forma que as provas estão sujeitas ao exame que
é feito pelas partes em audiência pública judicial.
No sistema anglo-saxônico, em razão da presunção de inocência, a defesa
tem a mera faculdade de apresentar provas, já que a principal finalidade desta é
desconstituir o padrão de prova exigido para uma condenação, para um nível inferior
não admitido na esfera criminal, capaz de gerar a absolvição do acusado. Basta a defesa,
portanto, atingir a dúvida razoável, de forma que o magistrado no Tribunal do Júri
orienta os jurados sobre a presunção de inocência e o padrão de prova que a acusação
deve alcançar.
Ressalte-se que os sistemas jurídicos anglo-saxônicos não são embasados
apenas na jurisprudência, mas também na lei e que esta impõem limites ao princípio da
presunção da inocência, mediante a criação, que terá de se adequar, digamos assim, aos
limites estritos de proporcionalidade e de necessidade e, quanto a crimes de menor
gravidade, de exceções legais à concepção geral de que o ônus da prova, no processo
pena, cabe à acusação inteiramente.
Em apertada síntese, perante o sistema jurídico anglo-saxão, nota-se que a
presunção de inocência encontra-se interligada com o princípio do processo equitativo e
ao direito a um julgamento justo, relacionada à prova e ao respectivo ônus da prova,
47
não pode ser chamado de culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode
tirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais
ela foi outorgada.
Por outro lado, Ferri (s/d, p. 194), representante da Escola Positiva, defendia
que só deveria ser presumida a inocência do acusado se estivéssemos diante de meros
indícios, verificados nos denominados procedimentos de instrução ou período
preparatório do juízo. Havendo flagrante ou confissão ou se tratando de criminoso
reincidente, não deveria ser presumida a sua inocência, mas, ao revés, a sua
culpabilidade.
Inobstante essas proposições dessarazoadas, Ferri (s/d, p. 195) continuou
atacando a presunção de inocência, taxando-a de presunção ilógica contrária às razões
de justiça e de utilidade social. Inclusive, foi dele a proposta, adotada por influência do
Código de Processo Penal Italiano de 1931, do que constava da redação atual do artigo
386, VII, do nosso Código de Processo Penal, que distinguia um tipo de sentença
absolutória baseada na insuficiência probatória - como se isso alterasse a decisão do
juiz, que declara, sem ressalvas e erga omnes, a absolvição do acusado34.
Ou seja, percebe-se que nem sempre foi reconhecida a situação de
presumidamente inocente à pessoa acusada no processo penal. No entender de Binder
(2002, p. 125-126), o positivismo criminológico ou certas tendências processuais
baseadas em concepções autoritárias pretenderam limitar este status a certos imputados,
os ocasionais, não sendo possível para multirreincidentes, habituais ou simplesmente
perigosos.
Nesse contexto, a noção de não consideração prévia da culpabilidade foi
uma criação positivista do fascismo, habilmente, elaborada com o propósito de atingir a
palavra inocência mediante um ataque técnico-jurídico com o uso do termo presunção.
À época, disseminava-se a ideia de que não se podia afirmar se o imputado era culpado
34
Importante ressaltar que outros dispositivos do Código de Processo Penal Brasileiro receberam
influência do pensamento de Ferri. A ideia defendida pelo teórico de que fosse assegurado ao acusado,
em nome do princípio da presunção de inocência, o direito de recorrer em liberdade, mesmo quando a
sentença de primeira instância o tenha condenado constava, de certa forma, nas redações anteriores dos
artigos 408, §2º, e 594, ambos do CPP. Quando o juiz reconhecia, na sentença, que o acusado não
possuía bons antecedentes ou que era reincidente, poderia, desde logo, decreta-lhe a prisão,
excetuando-se no caso de crime afiançável, o qual deveria ser arbitrado o valor. A despeito de os
dispositivos em comento terem sido revogados, respectivamente, pelas Leis nºs 11.689 e 11.719,
ambas de 2008, não se pode deixar de reconhecer a origem destes nas ideias da Escola Positiva Penal,
capitaneada por Ferri.
50
nem inocente já no início da persecutio criminis, devendo ser considerado não culpado,
e nunca inocente.
No que se refere ao surgimento da expressão presunção de inocência, o
mérito incumbe, de fato, aos iluministas revolucionários que, ao lutarem pela inscrição
de vários direitos humanos em uma Carta Política de relevância mundial e histórica,
pensaram além da ciência criminal, de forma reflexa e ampla. Essa atitude de pensar
fora da caixa foi movida pelos sentimentos de transformação político-social e de
ruptura do status quo político até então institucionalizado.
Melhor aduzindo, essa forma revolucionária de enxergar o mundo, própria
do Século das Luzes, tinha mais um condão filosófico-político que jurídico. Quando
emprestada ao processo penal, a força dos iluministas buscou afirmar, naquele contexto
mundial, o ideário de que o homem, em sua essência, é honesto e não criminoso por
meio da positivação do termo presunção de inocência.
Nesse contexto, a nossa Constituição de 1988, promulgada após um cruel
período de autoritarismo e de mitigação dos direitos fundamentais, institucionalizou ser
o Brasil um Estado Democrático de Direito, constituindo um dos seus primados a
respeito da dignidade da pessoa humana. Diante desse contexto garantista segundo o
qual a nossa Constituição emergiu, poderia ser um contrassenso o nosso constituinte
ceder aos resquícios nazifascistas do termo presunção de não culpabilidade?
Ora, essa contradição nos parece, meramente, aparente, de forma que a
coerência renasce com a constatação de que o constituinte procurou elaborar o texto
normativo como se entendeu ser um melhor apuro técnico na linguagem. Cedeu, então,
aos argumentos neutros da Escola Técnico-Jurídica italiana, não se afastando, em
momento algum, de toda a extensão do preceito humanitário universal da presunção de
inocência, conforme preconizado pelo movimento revolucionário francês de 1789.
Parece que a presunção de inocência foi reafirmada, de forma que não
considerar alguém previamente culpado até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória foi, exatamente, a forma encontrada pelo nosso constituinte de proteger
aquele principio maior. Tal opção pelo valor humanista fica muito nítida já no
anteprojeto constitucional, elaborado pela Comissão presidida pelo jurista Afonso
Arinos de Melo Franco, no Capítulo II, denominado “Dos direitos e garantias”, quando
no §7º, do artigo 43, continha a proposta de que se presume inocente todo acusado até
que haja declaração judicial de culpa.
51
ainda, poderia conter. Era esse o intuito doutrinário quando empregou as duas
expressões como sinônimas.
Já em um segundo momento, quando restou, aparentemente, superada
aquela preocupação inicial, firmou-se a convicção de que não era juridicamente útil a
diferenciação entre os termos inocente e não culpado. A nível mundial, é bem verdade,
a correlação entre as expressões só foi possível quando a Itália subscreveu tratados de
direitos humanos e igualou os influxos políticos-ideológicos para ambas as expressões.
Diante desse contexto histórico, não poderíamos esperar que a questão da
nomenclatura fosse pacífica na nossa doutrina. Alguns doutrinadores, a exemplo de
Badaró (2003, p. 18) e de Gomes (1996, p. 22), atestaram não haver diferença
conteudística entre os dois termos, pois as expressões inocente e não culpado
constituem tão somente variantes semânticas de um mesmo conteúdo. Na perspectiva
de Badaró (2003, p. 18), seria até inútil e contraproducente tentar dissociar ambas as
ideias, devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas.
Do contrário, para o supramencionado doutrinador, estar-se-ia diante de
posturas reacionárias e de esforços vãos de retorno a um processo penal voltado,
exclusivamente, para defesa social, que não pode ser admitido em um Estado
Democrático de Direito, cujas noções de garantias são, nitidamente, ampliadas. Mas, de
fato, em um ordenamento jurídico amplo e multifacetado como se apresenta o nosso,
não faltam aqueles que escolhem apenas um lado da moeda.
Carvalho (2006, p. 156) defende a nomenclatura presunção de não
culpabilidade, sustentando que não se pode presumir a inocência do acusado se contra
ele tiver sido instaurada ação penal, pois se estaria diante de um suporte probatório
mínimo. Logo, o que se poderia presumir é a sua não culpabilidade, até que assim seja
declarado judicialmente – não sendo cogitada, propriamente, uma presunção.
Nos dizeres de Rangel (2009, p. 24), em uma visão sistemática, o disposto
no inciso LVII, do artigo 5º, da CRFB/88, não pode ser entendido como presunção de
inocência, mas como regra constitucional que inverte o ônus da prova para o Ministério
Público. Ademais, o referido autor justifica que não utiliza o termo presunção de
inocência, pois, se o acusado não pode ser considerado culpado até o trânsito em
julgado da sentença penal condenatória, também não o deve ser presumidamente
inocente.
Há ainda aqueles que, a exemplo de Silva (2004, p. 158), afirmam que a
norma constitucional em questão garante a presunção de inocência por meio de um
53
35
CRFB/88 – Artigo 5º, §2º - Os direitos e garantias expostos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.
54
36
Vide BRASIL. STF. HC ns. 110235, 105750, 93427, 93315, 89503 e 71289.
37
Vide BRASIL. STF. HC n. 80.719 e RHC 100.913.
38
BRASIL. STF - HC n. 101909/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Ayres Brito, data de julgamento
28/02/2012, DJe 19/06/2012.
55
39
Nos exatos termos da Constituição da República Portuguesa de 1976, “Todo o arguido se presume
inocente até o trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo
compatível com as garantias de defesa” (artigo 32, nº 02, da CRP). Disponível em:
https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx. Acesso em: 04
out. 2019.
56
40
Os princípios da supramencionada declaração constam no preâmbulo da Constituição Francesa de
1958, de forma que possuem autoridade superior à lei geral francesa.
57
41
No original: “ARTÍCULO 31.- Esta Constitución, las leyes de la Nación que en su consecuencia se
dicten por el Congreso y los tratados con las potencias extranjeras son la ley Suprema de la Nación; y
las autoridades de cada provincia están obligadas a conformarse a ella, no obstante cualquiera
disposición en contrario que contengan las leyes o constituciones provinciales, salvo para la Provincia
de Buenos Aires, los tratados ratificados después del pacto de 11 de noviembre de 1859”.
42
No original: “ARTÍCULO 33.- Las declaraciones, derechos y garantías que enumera la Constitución,
no serán entendidos como negación de otros derechos y garantías no enumerados; pero que nacen del
principio de la soberanía del pueblo y de la forma republicana de gobierno”.
58
condenatória, visto que o Código de Processo Penal argentino, nos artigos 494 e 495,
prevê que a pena privativa de liberdade seja cumprida de imediato43.
Na Constituição uruguaia 44 , a presunção de inocência não é prevista de
forma expressa, mas se entende que estaria implícita no artigo 12, pois “ninguém pode
ser punido ou preso sem o devido processo legal e sentença legal”. A constituição
chilena de 1980 também não contempla a forma tradicional da presunção de inocência,
mas alguns doutrinadores dizem que esteja prevista, implicitamente45, no artigo 19, nº 3,
inciso 6º.
Por outro lado, na Constituição peruana46, a presunção de inocência resta
posta no artigo 2º, 24, alínea “e”, segundo a qual “toda pessoa é considerada inocente
enquanto não seja declarada judicialmente sua responsabilidade”. Da mesma forma, as
constituições paraguaia47 e venezuelana48 preveem este princípio, respectivamente, no
artigo 17, nº 1, e no artigo 49, nº 2.
Igualmente, trata-se da mesma hipótese da Constituição colombiana, que,
em seu artigo 29, estabelece ser toda pessoa presumidamente inocente até que seja
declarada judicialmente culpada, sendo-lhe previstas outras garantias, de ordem
43
No original: “Pena privativa de la libertad.
ARTÍCULO 494.- Cuando el condenado a pena privativa de la libertad no estuviere preso, se ordenará su
captura, salvo que aquélla no exceda de seis (6) meses y no exista sospecha de fuga. En este caso, se le
notificará para que se constituya detenido dentro de los cinco (5) días.
Si el condenado estuviere preso, o cuando se constituyere detenido, se ordenará su alojamiento en la
cárcel penitenciaria correspondiente, a cuya dirección se le comunicará el cómputo, remitiéndosele
copia de la sentencia.
Suspensión.
ARTÍCULO 495.- La ejecución de una pena privativa de la libertad podrá ser diferida por el tribunal de
juicio solamente en los siguientes casos:
1. Cuando deba cumplirla una mujer embarazada o que tenga un hijo menor de seis (6) meses, al
momento de la sentencia.
2. Si el condenado se encontrare gravemente enfermo y la inmediata ejecución pusiere en peligro su vida,
según el dictamen de peritos designados de oficio.
Cuando cesen esas condiciones, la sentencia se ejecutará inmediatamente.”
44
No original: “Artículo 12.- Nadie puede ser penado ni confinado sin forma de proceso y sentencia
legal.”
45
In litteris: “A lei não poderá presumir responsabilidade legal”.
46
“Artículo 2º - Derechos fundamentales de la persona.
A la vida, a su identidad, a su integridad moral, psíquica y física y a su libre desarrollo y bienestar. El
concebido es sujeto de derecho en todo cuanto le favorece. [...] 24. A la libertad y a la seguridad
personales. En consecuencia: [...] e. Toda persona es considerada inocente mientras no se haya
declarado judicialmente su responsabilidad.”.
47
“Artículo 17 - DE LOS DERECHOS PROCESALES En el proceso penal, o en cualquier otro del cual
pudiera derivarse pena o sanción, toda persona tiene derecho a: 1. que sea presumida su inocencia;”.
48
“Artículo 49. El debido proceso se aplicará a todas las actuaciones judiciales y administrativas y, en
consecuencia: […] 2. Toda persona se presume inocente mientras no se pruebe lo contrario”.
59
49
“Artículo 29: El debido proceso se aplicará a toda clase de actuaciones judiciales y administrativas.
Nadie podrá ser juzgado sinod conforme a leyes preexistentes al acto que se le imputa, ante juez o
tribunal competente y con observancia de la plenitud de las formas propias de cada juicio. En materia
penal, la ley permisiva o favorable, aun cuando sea posterior, se aplicará de preferencia a la restrictiva
o desfavorable. Toda persona se presume inocente mientras no se la haya declarado judicialmente
culpable. Quien sea sindicado tiene derecho a la defensa y a la asistencia de un abogado escogido por
él, o de oficio, durante la investigación y el juzgamiento; a un debido proceso público sin dilaciones
injustificadas; a presentar pruebas y a controvertir las que se alleguen en su contra; a impugnar la
sentencia condenatoria, y a no ser juzgado dos veces por el mismo hecho. Es nula, de pleno derecho, la
prueba obtenida con violación del debido proceso.”
60
50
No entender do argentino Maier (2002, p. 491-492), “‘Presumir inocente’, ‘reputar inocente’ ou ‘não
considerar culpável’ significa exatamente o mesmo; e essas declarações formais remetem ao mesmo
princípio que emerge da exigência de um ‘juízo prévio’ para infligir uma pena a uma pessoa [...] trata-
se, na verdade, de um ponto de partida político que assume – ou deve assumir – a lei de processo penal
em um Estado de Direito, ponto de partida que constitui, em seu momento, uma reação contra uma
maneira de perseguir penalmente que, precisamente, partia do extremo contrário”. (No original:
“Presumir inocente’, ‘reputar inocente’ o ‘no considerar culpable’ significan exactamente lo mismo; y,
al mismo tiempo, estas declaraciones formales mentan el mismo principio que emerge de la exigencia
de un ‘juicio previo’ para infligir una pena a una persona. [...] Se trata, en verdad, de un punto de
partida político que asume – o debe asumir – la ley de enjuiciamiento penal en un Estado de Derecho,
punto de partida que constituyó, en su momento, la reacción contra una manera de perseguir
penalmente que, precisamente, partía desde o extremo contrario”).
51
Importante destacar que o acusado pode ser objeto da mídia sensacionalista durante o inquérito policial
e durante a ação penal propriamente dita, momentos distintos da persecução penal. Entende-se que a
observância à presunção de inocência, durante o inquérito policial, apresenta maior gravidade, isto é,
singularidade, uma vez que este é mero procedimento administrativo, desprovido de garantias como
contraditório e ampla defesa.
52
Na dicção de Badaró (2003, p. 285), cuida-se de uma disciplina do acertamento penal, uma exigência
segundo a qual, para a imposição de sentença condenatória, é necessário provar, eliminando qualquer
dúvida razoável, o contrário do que é garantido pela presunção de inocência, impondo a necessidade de
certeza.
53
Como modo de reafirmar tal entendimento, vide as hipóteses de absolvição previstas no artigo 386, do
Código de Processo Penal. Do modo como foram redigidas, é possível constatar que a absolvição está
atrelada a não comprovação – pelas provas colhidas na instrução processual – da existência do fato ou
62
da concorrência do indivíduo para o fato apurado em questão, por exemplo. Dessa forma, percebe-se,
rapidamente, que todos os sete incisos do artigo 386, do CPP mencionam a palavra prova direta ou
indiretamente (VI – “[...] se houver fundada dúvida sobre sua existência”), ressaltando o ônus da prova
como responsabilidade da acusação, titular da ação penal.
54
Tal garantia é assim contemplada diante do entendimento da coexistência pacífica e harmônica da
presunção de inocência e da presunção de não culpabilidade em diferentes momentos da persecução
penal, conforme explicitado no subtópico 3.2.
63
dispositivos legais que, de forma absoluta, antecipam qualquer espécie de sanção que,
prima facie, somente adviria por força de decisão condenatória definitiva.
E não só os dispositivos legais que acarretam sanções físicas e/ou morais
antes do trânsito em julgado da condenação definitiva violam a presunção de inocência
como norma de tratamento, mas toda conduta, inclusive praticada por particulares –
aqui se confere posição de destaque à mídia – que estigmatize o acusado a ponto de
torná-lo culpado por um crime antes mesmo de qualquer análise judicial.
Já externamente ao processo, nas lições de Lopes Júnior (2017, p. 97), a
presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a
estigmatização do acusado, devendo ser utilizada como limite democrático à abusiva
exploração midiática em torno do delito e do próprio processo. Portanto, o espetáculo
encenado pelas sentenças midiáticas deve ser coibido pela eficácia da presunção de
inocência.
Diante da proposta do presente trabalho, observar-se-á que o exercício da
liberdade de imprensa, se absoluto 55 , viola exatamente o princípio da presunção de
inocência como norma de tratamento. Isso porque as publicações veiculadas de forma
descuidada e arbitrária pela mídia transformam o cidadão, que ainda será submetido à
persecução penal - ou pior: que ainda será indiciado -, em um mero objeto de
sensacionalismo, desprovido de garantias, constitucionalmente, asseguradas a ele.
Como defendido nesta pesquisa, a culpa será declarada apenas ao final da
persecução penal, com o trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória,
mas, infelizmente, desde o início, já é o acusado ou, quando não, o investigado
declarado culpado pela mídia e pela sociedade por todas as suspeitas ou as imputações
que pesam contra si.
O sensacionalismo encabeçado pela mídia faz crer que o acusado é
merecedor, desde logo, da reprimenda estatal no sentido de antecipar-lhe toda espécie
de sanção que somente poderia advir após o trânsito em julgado de eventual sentença
penal condenatória, o que é um verdadeiro absurdo ante as bases principiológicas sob as
quais o nosso sistema processual penal se encontra fundado.
E o exercício, muitas vezes, desproporcional da liberdade de imprensa, sem
que se respeite o mínimo do âmbito de proteção do princípio da presunção da inocência,
55
Neste caso, ressalte-se que a escrita do termo “se absoluto” foi proposital, visto que se entende os
direitos fundamentais como relativos e é, nesta perspectiva. que estão sendo considerados neste
trabalho.
64
56
A título informativo, vide: https://tribunadoceara.com.br/tv-jangadeiro/#. Acesso em: 12 out. 2019.
57
A título informativo, vide https://tvpontanegra.op9.com.br/programa/patrulha-da-cidade. Acesso em: 12
out. 2019.
58
Segundo Suzuki e Bezerra (2016, p. 03), “Nos meios de comunicação de massa é essencial a presença
de um intérprete carismático que em alguns momentos emocione e choque o telespectador e em outros
o faça rir. Este comunicador se mostra sempre preocupado com os problemas da população, profere
duras críticas contra as autoridades políticas e o poder judiciário, bem como destaca reiteradamente sua
revolta, indignação e inconformismo com a impunidade e ineficácia do sistema penal. Na maior parte
das vezes o comunicador não possui nenhum conhecimento a respeito das técnicas jurídicas de ordem
penal e processual penal, não são estudiosos do Direito e, por tal razão, não deveriam ter a liberdade
que possuem para opinar a respeito de tal matéria”.
65
59
No entendimento de Silva (2000, p. 42), os jornais que veiculam o sensacionalismo podem ser
classificados em três subcategorias: sensacionalismo criminal (a exemplo de Notícias Populares e de O
Dia), sensacionalismo social (como Caras e Manchete) e sensacionalismo por procuração ou star-
system (representados por Folha de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo).
66
Já para Vieira (2003, p. 55-56), o interesse pelos crimes e pela justiça penal
é uma prática enraizada pela mídia que encontra seu melhor representante no jornalismo
sensacionalista. Com uma linguagem impactante, ágil e coloquial, os programas
jornalísticos promovem a banalização da violência e a espetacularização do processo
penal, de forma que tais notícias não se prestam a informar – como deveriam ser -, mas
sim a produzir um entretenimento barato, reforçando o lado sádico dos seres humanos.
A força que a mídia exerce sobre a população60 é uma poderosa arma que,
em mãos erradas, pode acarretar injustiças graves e irreparáveis. Ainda que a população,
ao se deparar com a notícia, faça algum juízo de valor, é preciso que este não resulte da
intenção pessoal do jornalista – o que, do contrário, já faria cair por terra a condição de
presumidamente inocente do acusado.
É impossível medir o poder que os meios de comunicação, naturalmente,
detêm de influir no comportamento e na cultura sociais, o que, certamente pelo
conteúdo das publicações, possui maiores chances de se transformar em potencial lesivo
que em potencial de transformação positiva. Se tais informações forem veiculadas de
forma sensacionalista, as consequências são ainda mais alarmantes.
Ressalte-se, por oportuno, que o direito à informação, assegurado
constitucionalmente, não condiz com o sensacionalismo adotado por algumas
instituições da imprensa, servindo tão somente à espetacularização do processo penal e,
em uma análise macro, à desagregação social61.
Nessa linha de pensamento, a mídia se posiciona entre o processo e o
público, mas, antes disso, coloca-se entre as garantias constitucionais conferidas à
sociedade e a própria sociedade detentora dessas garantias. Parece um contrassenso, é
bem verdade, mas, lamentavelmente, é essa a situação que ocorre em nosso País, mais
intensamente, a partir dos anos 90.
60
Viera (2003, p. 52-53) descreve, com precisão, o impacto que as notícias sensacionalistas veiculadas
pela mídia causam no indivíduo, ao aduzir o seguinte: “Nada do que se vê (imagem televisiva), do que
se ouve (rádio) e do que se lê (imprensa jornalística) é indiferente ao consumidor da notícia
sensacionalista. As emoções fortes criadas pela imagem são sentidas pelo telespectador. O sujeito não
fica do lado de fora da notícia, mas a integra. A mensagem cativa o receptor, levando-o a uma fuga do
cotidiano, ainda que de forma passageira. Esse mundo-imaginação é envolvente e o leitor ou
telespectador se tornam inertes, incapazes de criar uma barreira contra os sentimentos, incapazes de
discernir o que é real do que é sensacional”.
61
“A estética da aberração e a hegemonia do vulgar implica justamente a desconstrução do cidadão em
favor do consumidor. Por que a mídia não deveria ser um ator social como todos os outros? Ela o é.
Por que a mídia deveria ser neutra? Ela não o é. Assim, não lhe cabe ser um simples espelho do
mundo. Ela não o é, mas finge ser. Aos poucos, os escrúpulos caem por terra e a grande orgia do
aberrante ocupa as telas e suscita eco nos demais meios” (SILVA, 2000, p. 58).
67
sendo, não raras vezes, objeto de adesão sincera dos agentes estatais e da própria
população. Serve-se, assim, à lógica utilitarista, garantindo a manutenção do status quo,
bem como a adequação social com vínculos a um passado não muito distante, em que
garantias processuais penais eram facilmente desconsideradas ou sequer existiam.
Está justificado porque, em muitos julgamentos - sobretudo naqueles de
maior repercussão midiática, em que o clamor social grita com uma voz quase
ensurdecedora em relação à das garantias processuais penais -, o acusado é visto com
repulsa por outros membros da sociedade que, naquele momento, não ocupam um
assento no banco dos réus.
Valendo-se do pensamento de Carnelutti (2009, p. 34), o imputado sente,
comumente, a aversão de muitas pessoas contra ele, sendo acolhido pela multidão com
um coro de súplicas favoráveis à sua condenação – e, de preferência, com a reprimenda
mais grave possível. Não é raro que explodam atos de violência e de ojeriza contra o
acusado, contra os quais não se torna fácil protegê-lo.
Carnelutti (2009, p. 35), ainda, alerta no sentido de que esse sentimento
repugnante que se cultiva pelo acusado ou pelo investigado pode ultrapassar a pessoa
dele, estendendo-se, não raro, à figura do respectivo defensor. Isso porque o defensor
compartilha com o imputado da necessidade de pedir e de ser julgado, estando, para o
sábio mestre, “sujeito ao juiz como o está o imputado”.
De fato, em alguns momentos, parece que a essência dos horrendos
julgamentos romanos ainda está enraizada, profundamente, em nossa sociedade,
maculando as garantias empreendidas pela Constituição e pelo modelo acusatório do
processo penal. A despeito de a sociedade ter evoluído nas suas teorias, conceitos e
comportamentos, a sede pela desforra parece continuar inabalável.
Esse tipo de sentimento ainda está muito presente no ser humano do século
XXI, que, em geral, demonstra se realizar ao ver outro ser humano, que possa ter
cometido um ilícito, ser julgado e punido publicamente - e quanto maior é a pena, maior
é o gozo. Mas por quê? Porque, por meio disso, o arcaico sentimento de vingança
privada se concretiza, mesmo que a pessoa, eventualmente, punida não possua qualquer
relação com o objeto imediato dos dissabores sofridos.
Essa sede, tão antiga e aparentemente incurável, é hoje abastecida pela
evolução dos meios de comunicação em massa, os quais difundem notícias, embalam os
costumes da sociedade do espetáculo e impactam toda a estrutura organizacional e a
constituição da própria sociedade.
69
62
Segundo a política de dados do DEPEN (2019), por meio do INFOPEN, “A taxa de aprisionamento é
calculada pela razão entre o número total de pessoas privadas de liberdade e a quantidade populacional
do país, a razão obtida é multiplicada por 100 mil. Entre os anos de 2000 e 2017, a taxa de
aprisionamento aumentou mais de 150% em todo país. Em junho de 2017, o Brasil registrou 349,78
pessoas presas para cada 100 mil habitantes [...]”.
63
Neste sentido, Batista (2009, p. 28), complementa, aduzindo o seguinte “O disciplinamento do tempo
livre, da concorrência desumana e da conflitividade social despolitizada vai requerer novos argumentos
“científicos”: surge o neo-lombrosianismo determinista com as neurociências e as descobertas de
novos “criminosos natos”. É importante ressaltar que os negócios do crime e da criminalidade vão
fazer parte da “nova economia” e as ações das empresas que exploram a hotelaria punitiva integram o
índice Nasdaq. A indústria do crime, a que se referiu Nils Christie, é um dos setores mais dinâmicos do
capitalismo de barbárie”.
64
“Quando confrontados com uma imagem fotograficamente/eletronicamente obtida, nada parece erguer-
se entre nós e a realidade; nada que possa capturar ou distrair nosso olhar. ‘Ver para crer’ significa ‘eu
vou crer quando vir’, mas também ‘no que eu vir, acreditarei’” (BAUMAN, 2008, p. 30).
71
65
“Santo Agostinho escreveu a este respeito uma de suas páginas imortais; a tortura, nas formas mais
cruéis, foi abolida, ao menos no papel; mas o próprio processo é uma tortura. Até certo ponto, tem-se
dito, não se pode prescindir dela; mas a denominada civilização moderna tem exagerado de um modo
inverossímil e insuportável essa triste consequência do processo. Ao homem, quando sobre ele recai a
suspeita de ter cometido um delito, é dado ad bestias, como se dizia em um tempo dos condenados
oferecidos como comida para as feras. A fera, a indomável e insaciável fera, é a multidão. O artigo da
Constituição, em que se tem a ilusão de garantir a incolumidade do imputado, é praticamente
inconcebível com aquele outro artigo que sanciona a liberdade de imprensa. Basta apenas ter surgido a
suspeita; o imputado, sua família, sua casa, seu trabalho, são inquiridos, requeridos, examinados,
despidos, na presença de todo mundo. O indivíduo, desta maneira, é transformado em pedaços. E o
indivíduo, recordemo-nos, é o único valor que deveria ser salvo pela civilidade” (CARNELUTTI,
2009, p. 66-67).
73
66
In litteris, “Artigo 19 - Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e expressão, o que implica o
direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, em consideração
de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
74
daquela importante luta social, qual seja, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, no seu artigo 11 mais precisamente67.
Já na Constituição de 1988, a liberdade de imprensa está inserida no caput
do artigo 220, ao assegurar que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e
a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não serão objeto de qualquer
restrição68. Evidente, portanto, que a liberdade de comunicação, da qual se inclui a de
imprensa, será exercida de maneira absoluta, desde que respeite os demais direitos e
princípios previstos na própria Constituição – e é, com este enfoque, que será abordada
a colisão neste tópico.
De uma maneira ampla, a liberdade de imprensa pode ser entendida como a
liberdade de divulgar fatos, notícias, ideias e opiniões por intermédio dos veículos de
comunicação em massa, e que pode atingir, ou não, uma indefinida quantidade de
indivíduos, como exemplo jornais, televisão, blogs etc. Traduz-se no direito de informar
e no direito de ser informado69.
Não é por outro motivo que a Constituição atual, após as lições advindas do
regime autoritário imposto pelos militares poucas décadas atrás, foi, acertadamente,
incisiva ao estabelecer, nos dois primeiros parágrafos do artigo 220, que nenhuma lei
conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação
jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo
5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV, e que é vedada toda e qualquer censura de natureza
política, ideológica e artística70.
67
DDHC – “Artigo 11- A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos
direitos do Homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo,
todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei”.
68
Logo em seguida, consagram os parágrafos 1º e 2º do artigo 220 da CRFB/88:
“§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação
jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII
e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
69
Nas precisas lições do ex-Ministro Delgado (2006, p. 08), “[...] a liberdade de imprensa é um bem da
sociedade, antes mesmo de ser um direito de profissionais e de empresas ligadas a essa atividade e, por
sua própria natureza, exige mobilização constante, vigilância permanente e firme posicionamento
diante de fatos que representam ameaça aos que efetivamente a atinjam. A defesa da liberdade de
imprensa certamente contribui para o fortalecimento das instituições democráticas no país”.
70
A despeito do regime ditatorial imposto no Brasil ter restringindo a liberdade de imprensa, inclusive
perseguindo os que manifestassem ideias e críticas contrárias aos interesses governamentais da época,
o regime jurídico constitucional atual impede que o poder estatal seja utilizado para proibir
previamente a livre manifestação de ideias e opiniões. Afinal, “não é o Estado que deve estabelecer
quais as opiniões que merecem ser tidas como válidas e aceitáveis; essa tarefa cabe, antes, ao público a
que essas manifestações se dirigem” (MENDES; BRANCO, 2012, p. 300).
75
71
Com a perspicácia que lhe é peculiar, Canotilho (2003, p. 643) expande o tema do direito fundamental
à liberdade de expressão – e, por conseguinte, da liberdade de imprensa, salientando o seguinte: “O
direito de informação, para que seja completo no seu objeto normativo, há de contemplar três
variáveis: o de informar, o direito de se informar, e o direito de ser informado”.
72
No original, Alexy afirma que “Los princípios son mandatos de optimización com respecto a las
posibilidades jurídicas y facticas. La máxima de la proporcionalidad em sentido estricto, es decir, el
mandato de ponderación, se sigue de la relativización com respecto a las possibilidades jurídicas”.
76
possam ser exercidos com a máxima eficácia possível, não se esquecendo das condições
fático-jurídicas existentes em cada caso concreto.
Analisar a legitimidade da intervenção de determinado princípio sobre outro
é tarefa que deve ser buscada, hodiernamente, pelos operadores jurídicos, almejando-se,
na medida do possível, a conciliação entre eles, no que tange à relevância assumida no
caso em apreço, sem que um dos princípios seja excluído, totalmente, do ordenamento
jurídico por irremediável contradição com o outro.
Melhor aduzindo: estando dois princípios em colisão, ambos ultrapassam o
conflito no plano da validade, permanecendo válidos dentro do ordenamento jurídico.
Quando dois princípios refletem valores antagônicos – in casu, a liberdade de informar
e a necessidade de se garantir a presunção de inocência -, não significa que um deles
será invalidado totalmente para a superação do conflito.
Em verdade, significa que, em função das particularidades do caso concreto,
ocorrerá a prevalência de um sobre o outro, de acordo com as regras da
proporcionalidade e razoabilidade73. Para tentar solucionar o complexo conflito entre
direitos (princípios) fundamentais, a melhor doutrina tem se valido do uso do postulado
da proporcionalidade (do alemão Verhältnismässigkeit).
Silva Júnior (2015, p. 231) enfatiza que, a despeito de em matéria de colisão
de direitos fundamentais a proporcionalidade ser comumente utilizada como sinônimo
de ponderação, os dois termos não se confundem. O referido professor afirma que a
proporcionalidade é um critério de controle da conduta estatal, nascida no século XVIII
com a derrocada do absolutismo74.
Já quanto à ponderação, entende-se que não há como falar desta sem
mencionar a teoria desenvolvida por Alexy que é, em certa medida, complexa,
possibilita a aplicação da máxima da ponderação em maior grau de cientificidade. Além
de oferecer um novo caminho para a solução de colisões entre direitos fundamentais, o
professor alemão desenvolveu um método a ser observado, pautado em considerável
racionalidade.
73
Ferreira (2008, p. 95) adverte que “O princípio da proporcionalidade, que não se confunde com o da
razoabilidade, pressupõe nexo de causalidade proporcional entre o meio utilizado e o fim almejado,
porém apenas o afere se o aplicador do direito empreender exame acurado dos sub-princípios da
adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito”.
74
Na análise de Silva Júnior (2015, p. 231), “No Século XIX, na Alemanha, o princípio da
proporcionalidade passou a ser empregado, igualmente, para regrar o exercício do poder de polícia e a
discricionariedade administrativa. Na segunda metade do Século XX, o principio da proporcionalidade
ingressou no campo do direito constitucional, como parâmetro para o controle de constitucionalidade”.
77
75
Conforme explana Júdice (2007, p. 02), “Como exemplo, o famoso caso LeBach julgado pelo Tribunal
Constitucional Alemão, onde quatro soldados do grupo de guarda de um depósito do Exército haviam
sido assassinados, e armas haviam sido subtraídas, na cidade de LeBach, e, após vários anos
cumprindo pena, um dos condenados pelo crime estava para sair da prisão quando o Programa de
Televisão alemão (ZDF) anunciou a projeção de um documento intitulado “o assassinato dos soldados
de LeBach”. O preso pretendeu uma ordem proibitória de exibição do documentário, argüindo que seu
direito individual à personalidade seria ferido, prejudicando sua ressocialização. O Tribunal
Constitucional decidiu que, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas, o princípio da proteção da
personalidade, de índole individual, obteve melhor ponderação do que o princípio da liberdade de
informação, de índole coletiva”.
76
No original: “La máxima de proporcionalidad suele ser llamada principio de proporcionalidad. Sin
embargo, no se trata de um principio em el sentido aqui exposto. La adequación, necesidad y
proprcionalidad en sentido estricto no son ponderadas frente a algo diferente. No es que unas veces
tengan precedência y otras no. Lo que se pregunta más bien es si las máximas parciales son satisfechas
o no, y su no satisfaccion tiene como consecuencia la ilegalidad. Por lo tanto, lãs três máximas
parciales tienen que ser catalogadas como reglas”. Seguindo a lógica alexyana, a proporcionalidade é
um critério de decisão entre princípios colidentes, assim, não entra em colisão com nenhum princípio.
77
Em consonância com o lecionado por Silva Júnior (2015, p. 232) e por Ferreira (2008, p. 95).
78
78
“As algemas, também as algemas são um emblema do direito; quem sabe, pensando bem, o mais
autêntico dos seus emblemas, embora mais expressivo que a balança e a espada. É necessário que o
direito nos ate as mãos. E precisamente as algemas servem para descobrir o valor do homem, o qual é,
segundo um grande filósofo italiano, a razão e a função do direito” (CARNELUTTI, 2009, p. 25).
79
Zaffaroni (2012, p. 303) afirma que existe uma criminologia midiática que
pouco – ou nada – se relaciona com aquela desenvolvida na academia, pois aquela
atende a uma criação da realidade por meio da informação, da subinformação e da
desinformação midiática, indo ao encontro dos preconceitos e das crenças enraizadas no
imaginário social.
O professor argentino alerta que sempre houve criminologias midiáticas
vindicativas, às quais variaram muito no decorrer do tempo – dependendo, sobretudo,
da tecnologia de comunicação de cada época -, mas que possuem um ponto em comum:
sempre apelaram para uma causalidade mágica. Esta estratégia foi e é utilizada para
canalizar a vingança privada contra determinados seres humanos usados, nas palavras
de Zaffaroni, como bodes expiatórios.
No final do século XIX, a força dos jornais e da sua construção da realidade
alcançou limites não vistos até então, transformando a imprensa, nas palavras de
Zaffaroni (2012, p. 304), no poder soberano dos novos tempos 79 . Dentre as
características da atual criminologia midiática, está o neopunitivismo dos Estados
Unidos como discurso, o qual se expande pelo mundo globalizado.
Como aduzem Suzuki e Bezerra (2016, p. 04), é indispensável observar que
os sentimentos desencadeados pelo discurso midiático geram, na população, uma sede
de vingança, profundamente, disfarçada de sede de justiça. Para a sociedade em geral, a
punição do acusado não deve ser restrita apenas à correção do infrator pelo ato
praticado. É preciso ir além.
É necessário provocar no criminoso o sofrimento, a dor, a desgraça e o
infortúnio merecidos como consequências necessárias ao ato delituoso praticado80. E
79
Zaffaroni (2012, p. 304), ainda, complementa, aduzindo que “[...] a imprensa é beneficiária de uma
enorme impunidade legal ou ilegal e pode publicar o assassinato, o incêndio, a espoliação, a guerra
civil, organizar uma grande chantagem, aumentar a difamação e a pornografia ao nível das instituições
intocáveis”.
80
“Durante o mais largo período da história humana não se castigou porque se responsabilizava o
delinquente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigado – e
sim como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que se
desafoga em quem causou; mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que qualquer
82
tudo isso encontra uma razão de ser muito simples: no momento em que o malfeitor é
punido, a vítima e todo o resto da sociedade passam a experimentar a sensação de
poder, de superioridade, de satisfação em ver que aquele que causou sofrimento a
outrem também está sofrendo.
Tudo isso aguça a crueldade das pessoas e minimiza os sentimentos
humanistas que possam ter, fazendo-as pensar, equivocadamente, que o sofrimento do
infrator é capaz de compensar todo o dano que ele causou. Exatamente por isso é que a
característica determinante do atual modelo de criminologia midiática reside, no
entender de Zaffaroni (2012, p. 305), no meio técnico empregado por ela: a televisão, a
qual transmite a mensagem pretendida rapidamente pelo uso de imagens.
Tais imagens, veiculadas por meio de uma linguagem empobrecida e
desprovida de contexto muitas vezes, não informam muito e se propõem mais a
impactar a esfera emocional de quem as assiste. Zaffaroni (2012, p. 307) sustenta que,
desse modo, a criminologia midiática cria um mundo de pessoas decentes frente a uma
massa de criminosos, identificada por um conjunto de estereótipos 81 e separada da
sociedade por ser composta por indivíduos diferentes e maus.
Paralelamente a esse cenário, a crítica aos poderes Judiciário e Legislativo
cresce como efeito direto da criminologia midiática. As pessoas descentes buscam
transferir aos operadores do direito a responsabilidade pelo aumento da violência, sob a
alegação de que os atores jurídicos garantistas, ou seja, aqueles que criam e aplicam as
leis de maneira proporcional ao acusado, visam, na linguagem popular, a defender
bandidos.
Não é exagero afirmar que a tendência traçada em nosso ordenamento, em
regra, é a de pessoas que abraçam, com mais frequência e sem qualquer pudor, o
punitivismo em detrimento do garantismo. Nas sábias lições de Ferrajoli (2010, p. 71),
depreende-se que tal contexto não é recente e está longe de ser alterado.
O problema do garantismo penal, para o referido autor, é elaborar técnicas
de formulação e de aplicação das leis aos fatos julgados no plano teórico, torná-las
dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor do seu
causador” (NIETZCHE, 1998, p. 52).
81
Segundo as precisas lições de Zaffaroni (2012, p. 309), “Os preconceitos que sintetizam o estereótipo
que define a diferença são muitos e variam em casa sociedade e tempo. A criminologia midiática
delimita mais o eles (entendido como um todo, uma massa criminosa de “diferentes”) quando os
identifica etnicamente, como no caso dos negros e índios, deixando-os mais abertos quando assinala
uma classe ou estamento social, como os jovens pobres de comunidades precárias ou uma categoria
política (subversivos, burgueses)”.
83
82
Como reflete Carnelutti (2009, p. 65), “Cada delito desencadeia uma série de investigações, de
conjecturas, de informações, de indiscrições. Policiais e magistrados, de vigilantes se convertem em
vigiados por grupos de voluntários dispostos a assinalar cada um de seus movimentos, a interpretar
cada um de seus gestos, a publicar cada uma de suas palavras. Os testemunhos são farejados como a
lebre pelo cão. Depois, repetidamente, explorados, sugestionados, comprados. Os advogados são o
claro dos fotógrafos e dos cronistas. E, com frequência, infelizmente, nem sequer os magistrados
tentam opor a esse frenesi a resistência que requereria o exercício de seu austero ofício”.
83
Neste sentido, Reinaldo (2019, p. 70) assevera que “Os noticiários e os jornais reproduzem uma
situação de desordem, de ineficiência na atuação das autoridades, apontando como culpados imediatos
juízes (as), promotores (as) e delegados (as), que operam a máquina punitiva, e advogados (as) que
defendem pessoas acusadas de crimes”.
84
não raro, orienta a forma como determinado magistrado, tribunal, parlamento ou até
mesmo o próprio Poder Executivo deve proceder.
Um completo absurdo, não? Infelizmente, é a realidade a que nosso País
está imerso: a sociedade deixa-se conduzir pelos braços de uma mídia muito
comprometida com o autoritarismo e com seus próprios interesses e pouco
compromissada com a transmissão fidedigna dos fatos. Não há opinião pública, mas tão
somente a opinião publicada que é promovida pelos agentes da mídia.
Hoje, os três poderes da República são reféns de um quarto, a mídia, de
forma que, nos dizeres de Mascarenhas (2010), a mídia transformou-se em uma espécie
de legisladora penal. Esta sensível relação da mídia com o poder punitivo pode ser
observada no legislativo pela Lei nº 8.930, de 06 de setembro de 1994, que enrijeceu a
Lei dos Crimes Hediondos, após o assassinato brutal da filha da escritora global Glória
Perez.
Como exemplos mais recentes da influência do clamor popular, têm-se os
Projetos de Lei nº 4333/2012, de autoria do deputado evangélico Marcos Feliciano84, e
nº 5398/2013, de autoria do então deputado Jair Bolsonaro, ambos da Câmara dos
Deputados, que pretendiam recrudescer o tratamento conferido aos crimes contra os
costumes, introduzindo no ordenamento jurídico brasileiro a castração química,
impondo-a, inclusive, como condição de progressão de regime durante o cumprimento
da pena privativa de liberdade.
Medidas assim ocorrem frequente e lamentavelmente, pois, além de
estarmos inseridos em uma sociedade que alimenta a sensação de impunidade – com
ideias inaceitáveis do tipo “No Brasil, prende-se pouco” -, não existe, de fato, uma
regulamentação que venha a resguardar os poderes da República e os tribunais dos
ataques midiáticos. Nossa legislação carece de dispositivos que, de forma expressa,
penalizem posturas jornalísticas que possam influenciar a imparcialidade necessária a
todo e qualquer julgamento.
Por outro lado, no plano internacional, são encontrados exemplos de
punições expressas a posturas jornalísticas excessivas, como a contempt of court by
publication (desacato à corte mediante publicação) do direito anglo-saxão85. Se alguém
84
O Projeto de Lei 4.333/2012 foi arquivado em 25 de fevereiro de 2013, por se entender que contrariava
o disposto no artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e”, da CRFB/88 (vedação de penas de caráter cruel).
85
Vieira (2013, p. 112) explora o tema com maestria, ao inferir que “O criminal contempt of court
configura ilícito penal que engloba todo comportamento que implique atentado à administração da
85
justiça, entre eles as publicações e comentários que suponham um juízo prévio (trial by newspaper) de
um procedimento sub judice, principalmente as divulgações que farem a presunção de inocência do
investigado ou acusado”.
86
No original: “3. Contempt of court is the area of law which deals with behaviour which might affect
court proceedings. It takes many different forms, ranging from disrupting court hearings to disobeying
court orders to publishing prejudicial information which might make the trial unfair. If someone
commits a contempt of court, they can be punished, although the procedures for deciding whether they
are guilty and for punishing them are currently different from those used for normal crimes. [...] 5.
Some of these cases show that the new media – Twitter, internet blogs, and so on – pose a challenge to
the current law on contempt of court, which dates from a time before the internet was so widely used.
The cases also show that there still 3 need to be limits on media reporting in order to protect the justice
system and the right to a fair trial”.
87
Na redação original, busca-se, ainda, proteger os jurados que atuarão em um Júri contra informações
verdadeiras ou falsas obtidas fora do plenário. Busca-se garantir a soberania dos veredictos, na medida
em que precise proteger um justo julgamento e não deve ir além do necessário para protegê-lo, a fim
de também resguardar a liberdade de expressão para que o público saiba o que ocorre no plenário.
Observe-se: “14. Contempt by publication is needed to protect the system of justice, including the right
to a fair trial. This is because, in a criminal case, the jury should reach its verdict based only on the
evidence which has been heard in court. Any information which the jury discovers from outside the
courtroom will not have been examined by the parties and the judge. This could mean that this
information which a juror relies on is mistaken or untrue. 15. On the other hand, it is also important
that the law protects the right to freedom of expression and it is especially important that the public
knows what happens in court in order to have confidence that the system works properly. 16. The law
on contempt by publication is based on the need to protect the jury from finding out information that
they should not take into account when deciding on their verdict. But the law should only do this in so
far as it needs to protect a fair trial and it should not go beyond what is needed to protect that trial”.
88
A referida lei chama-se Gerichtsverfassungsgesetz (GVG). Na versão traduzida para a língua inglesa,
tem-se: “(2) Audio recordings of the hearing, including of the pronouncement of judgments and
rulings, may be permitted by the court for academic and historical purposes if the proceedings are of
outstanding historical significance for the Federal Republic of Germany. Audio recordings may be
partially prohibited in order to safeguard interests meriting protection on the part of the participants or
of third parties or to safeguard the proper course of proceedings. The recordings shall not be put on file
and may neither be issued nor used or exploited for purposes of the recorded proceedings or of other
proceedings. Upon conclusion of the proceedings, they shall be offered by the court to the competent
Federal or Land archive which, under the Federal Archive Act or a Land Archive Act, is required to
86
ascertain whether the recordings are of lasting value. If the Federal Archive or the respective Land
archive does not accept the recordings, they shall be deleted by the court”.
87
89
Carnelutti (2018, p. 33) sintetiza a importância do devido processo legal: “O processo serve, pois em
uma palavra, para estabelecer que entre em juízo aqueles que não o tem. E, uma vez que o juízo é o
próprio homem, serve para substituir o juízo de um pelo juízo do outro ou outros, fazendo do juízo de
88
um a regra de conduta dos outros. Quem faz entrar em juízo, quer dizer, quem prove aos outros o juízo
de que nescessitam, é o juiz”.
90
A respeito do tema, é importante verificar o que foi dito pelo Ministro Maia Filho (2016), em
entrevista a Conjur. Observe-se, in litteris:
“ConJur – Um dia, na Corte Especial, o senhor falou no julgamento de Jesus Cristo e em garantias
penais e fez uma comparação com o momento atual. O que o senhor estava querendo dizer?
Napoleão Nunes Maia Filho – Falava de quando se faz uma condenação com base no clamor popular.
É um episódio muito conhecido, os quatro evangelistas narram a prisão e o julgamento de Jesus. O
juiz, que era Pilatos, claramente não queria condenar Jesus Cristo. Disse várias vezes que não
encontrava culpa nenhuma nesse homem, que lavaria as mãos e eles que resolvessem, que ele era
inocente do sangue desse justo e que "as consequências cairão sobre a descendência de vocês". Pilatos
claramente não queria condenar. Os evangelistas falam disso com muito detalhe. É um exemplo de
como o clamor público conduz a uma solução injusta. E há outros casos famosos em que o clamor
público acaba condenando a pessoa e depois apura que ela não tinha culpa.
ConJur – Mal comparando com um evento histórico de dois mil anos atrás, o senhor acha que essa
obediência ao clamor público é fenômeno recente?
Napoleão Nunes Maia Filho – Não acho que estejam pautados pelo clamor público, mas o clamor
público frequentemente interfere no julgamento. Não é que o juiz queira atender o público, mas ele
pressiona a compreensão do juiz e de qualquer pessoa. O clamor público é algo que pesa tanto contra
como a favor.
ConJur – Mas hoje é preciso muita coragem para absolver alguém que está sendo exposto em público
diariamente como o culpado da vez, num caso de grande repercussão, não?
Napoleão Nunes Maia Filho – Os juízes são corajosos. Agora, frequentemente há situações em que a
formação da convicção do juiz fica tocada pelo tal clamor público, pela pressão da mídia, pelas redes
sociais. Os juízes do passado eram menos acossados, porque não havia redes sociais. Hoje com
televisão, jornal, rádio e redes sociais é um circo danado. É fácil achar o juiz e pressioná-lo ou deixá-
89
lo pouco à vontade para decidir. Mas em geral isso não é decisivo, não. Desconforta o juiz, claro, mas
não impede que ele decida com a consciência. É mais difícil, mas não é só o juiz, é todo mundo.
Quem não tem medo da mídia? Quem disser que não tem medo da mídia está perdendo uma grande
chance de ficar calado”.
91
Com toda propriedade, leciona Casara (2015b, p. 188) que: “O fascínio pelo crime, em um jogo de
repulsa e identificação, a fé nas penas, apresentadas como remédio para os mais variados problemas
sociais (por mais que todas as pesquisas sérias sobre o tema apontem para a ineficácia da ‘pena’ na
prevenção dos delitos e na ressocialização de criminosos), somados a um certo sadismo (na medida em
que aplicar uma ‘pena’ é, em apertada síntese, impor um sofrimento) fazem do julgamento penal um
objeto privilegiado de entretenimento”.
92
“O Innocence Project Brasil, associação sem fins lucrativos criada em dezembro de 2016, é a primeira
organização brasileira especificamente voltada a enfrentar a grave questão das condenações de
inocentes no país”. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org/innocence-brasil. Acesso em: 26
out. 2019.
90
93
Importante pontuar a razão da escolha desse caso concreto em detrimento de tantos outros que
poderiam ter sido abordados ao longo destas linhas. Este, em específico, retrata bem o clamor popular
pela punição de um suspeito, bem como a injustiça irreparável decorrente de um julgamento midiático
prévio e irrecorrível, sem que as provas seguras e necessárias a uma condenação fossem produzidas de
fato. Retrata, pois, de forma fidegna o objeto de estudo deste trabalho e serve de alerta para que
injustiças desse tipo não se repitam.
94
Não raras são as notícias veiculadas pela mídia com esse teor: a pressão que a própria mídia cria sob
determinados resultados em julgamentos dos Tribunais Superiores. Como exemplo, cite-se Maretti
(2019): “O Supremo Tribunal Federal está sob forte pressão diante da perspectiva de julgar muito em
breve a questão relativa à prisão após condenação em segunda instância (no plenário) e também a
suspeição do juiz Sérgio Moro (na Segunda Turma da corte)”.
95
Tal realidade, lamentavelmente, não se restringe ao cenário brasileiro. Como exemplo, nos Estados
Unidos, "Um homem da Califórnia que foi injustamente condenado por matar uma ex-namorada e o
filho dela quatro décadas atrás chegou a um acordo de indenização de US$ 21 milhões (equivalente a
R$ 78 milhões) com a cidade de Simi Valley, de acordo com autoridades. Craig Coley, atualmente
com 71 anos, foi sentenciado à prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional pelo
91
Inicialmente, é necessário fixarmos uma premissa que pode não ter restado,
suficientemente, clara em tópicos anteriores: é inegável que a prática de atos criminosos
é reprovável, é chocante e é inaceitável. Isso é um fato. Da mesma maneira, são
repugnantes e inadmissíveis os discursos sensacionalistas veiculados pela mídia e a
violação aos direitos fundamentais – não só daquele que se acha na posição de acusado,
mas de toda a sociedade – por eles causada.
Nesse cenário, Moraes (2010, p. 232) adverte que não se pode mais ser
conivente com o maniqueísmo de que, no processo penal, ou se protege o imputado ou
se promove uma política repressiva estatal legítima e eficiente, na qual aquele acusado
no processo, em verdade, torna-se grande vítima das publicações midiáticas.
Atualmente, vive-se em tempos particularmente perigosos, de tentativa de
recrudescimento do processo penal, no afã de torna-lo mais efetivo. Ora, mas torná-lo
mais efetivo para quem? Certamente, não o será para os acusados e os seus, que se
encontram carregando o peso do julgamento, não só judicial, mas também - e
principalmente também – social em suas costas, nem sempre, tão largas para suportar
tamanha carga.
Nesse contexto, ao que parece, busca-se mitigar a presunção de inocência96,
que foi conquistada tão, duramente, em nosso ordenamento jurídico, por meio de um
assassinato, em 1978, da ex-namorada Rhonda Wicht e seu filho de 4 anos de idade, Donald, no
apartamento em que moravam. [..] Embora nenhuma quantia de dinheiro possa compensar pelo que
aconteceu ao Sr. Coley, encerrar este caso é a coisa certa a ser feita para o Sr. Coley e nossa
comunidade", disse uma autoridade de Simi Valley, em comunicado”. HOMEM preso injustamente por
39 anos nos EUA recebe indenização de R$ 78 milhões. Extra, 25 fev. 2019. Portal G1. Disponível em:
https://extra.globo.com/noticias/mundo/homem-preso-injustamente-por-39-anos-nos-eua-recebe-
indenizacao-de-78-milhoes-23477827.html. Acesso em: 26 out. 2019.
96
Na visão do Ministro Peluso (2016), “[...] Exatamente, três vertentes que derivam da arqueologia, do
desenvolvimento histórico do seu pensamento conceitual. Em primeiro lugar, é uma regra de
tratamento do réu no curso do processo, e cuja origem está no já citado dispositivo da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução de 1789, para significar a reação do ordenamento
jurídico revolucionário contra os excessos e arbitrariedades do processo do antigo regime. É, portanto,
uma garantia, no sentido de que o réu não pode ser tratado no curso do processo como se fosse
culpado; deve ser tratado como se fosse inocente. É neste sentido que se presume inocente o réu: para
ser tratado, pela lei, no curso do processo, como se fosse inocente! E aqui não há lugar para nenhuma
pressuposição de condição intermediária, entre inocência e culpabilidade. Trata-se de garantia
92
constitucional de tratamento condigno do réu, enquanto não lhe sobrevenha sentença condenatória
definitiva. Mas não é apenas regra de tratamento; é também a expressão máxima de um modelo de
processo penal, concebido primordialmente para proteger a liberdade, e não, para punir. Há muitos
anos, quando eu era ainda aqui juiz, em São Paulo, escrevi, numa pequena revista que tinha a
Associação Paulista dos Magistrados, artigo sobre a pena de morte e, ali, afirmei que o Estado, para
punir, não precisa de regra, nem de processo, como, aliás, prova a História. Como detentor do
monopólio da força institucional, se quiser punir, pune! E indaguei: para quê, então, serve o processo
penal? Metodologicamente, serve para resguardar a dignidade do réu como pessoa humana. Esta é a
finalidade metodológica do processo, como resulta da discussão em que se envolveram as escolas
italianas, as quais, nas polêmicas sobre os fundamentos do processo, deixaram nítida a diferença de
concepções a respeito do papel que deve desempenhar o processo em relação ao conflito entre as
necessidades da defesa social e as exigências de resguardo da dignidade da pessoa humana do réu. É
até mais do que isso. Tal concepção incorpora, como vamos ver logo a diante, todos os valores básicos
e predicados do chamado devido processo legal, como ingrediente ou conteúdo essencial do modelo.
Mas é também, em terceiro lugar, regra de juízo, isto é, regra de decisão e, como tal, tem reflexos
importantes no campo probatório, na distribuição do ônus da prova. E este aspecto é ressaltado pelas
ideias subjacentes à Declaração de 1948”.
93
de efetivação tão urgente nos dias atuais - requer que se atribua à Constituição a função
de freio à exteriorização das violências inquisitoriais, como elemento fundamental na
compreensão prévia necessária às interpretações do controle do poder penal e da
tentativa de racionalização deste.
Em estreita relação ao pensamento apregoado por Casara (2015a, p. 314-
315), a superação de uma mitologia processual penal autoritária, enraizada no
imaginário social, exige a formação de atores jurídicos conscientes da democracia e da
tradição em que estão inseridos e desejosos de transformar o status quo desumano em
que se encontram. Mais que isso: torna-se necessário falar da presunção de inocência
aos quatro cantos, de forma que a sociedade tenha conhecimento dos seus direitos e da
real dimensão deles.
Do contrário, segundo a dominante mídia, o Poder Judiciário está sendo
complacente, e a legislação apresenta-se de forma branda. Por tais razões, a sensação de
impunidade e a necessidade de espetacularizar o processo penal, mediante o
sensacionalismo midiático, somente aumentam. É uma completa subversão do princípio
da presunção da inocência e de várias normas inseridas em tratados de direitos humanos
dos quais o Brasil é signatário.
Inevitável, reconhecer, como enfatiza Moraes (2010, p. 238) que a aplicação
plena e efetiva dos direitos fundamentais constitui um interesse e um valor coletivos.
Logo, a presunção de inocência tem em sua fundamentação, concomitantemente,
interesses individuais e coletivos. Em momento algum, a presunção de inocência
objetiva tão somente a proteção dos criminosos, mas confere uma situação jurídica a
todos e quaisquer indivíduos desde antes da persecução penal e por todo o seu curso.
Desta forma, o Estado necessita pôr em prática um arcabouço jurídico e
material apto a propiciar o pleno exercício deste direito elevado à categoria de
fundamental, já que, no entender de Moraes (2010, p. 243), é de escolha axiológica de
alta relevância para a sociedade, impondo-se aos agentes e aos órgãos uma atuação no
sentido de aumentar o âmbito de proteção da norma.
O princípio da presunção de inocência, apesar de consagrado pelo
constituinte de 1988, necessita, atualmente, ser efetivado, como forma de garantir a
todos a proteção que dele resulta. Não é possível desconsiderá-lo. Mesmo em caso de
colisão com outro direito fundamental – como é o caso da liberdade de imprensa, já
apontado – necessita ser, ainda que minimamente, observado e equilibrado.
95
97
ordenamento jurídico brasileiro, mas também pelo mundo afora , consoante
demonstrada pelo contempt of court by publication.
Ressalte-se que, ao noticiar um inquérito policial ou um processo a ser
submetido a julgamento, o profissional da imprensa deve redobrar o cuidado, evitando
conduzir o indivíduo à execração pública sem que este tenha chance de apresentar
elementos de prova em sua defesa. Isso evita, inclusive, que, ante a conclusão de um
inquérito policial no sentido de não autoria do crime por parte do indiciado ou de
absolvição do acusado, o indivíduo já tenha sido hostilizado pela sociedade – restando,
tão somente, pleitear uma compensação por danos morais.
Desse modo, o comunicador de uma noticia jornalística, ciente do seu real
papel enquanto também formador de opinião, deve conter os ânimos ao narrar notícias
criminais. Não se trata de transmitir os fatos com apatia, sem demonstrar a emoção
própria dos seres humanos, mas de fazer uma análise imparcial dos fatos narrados,
deixando para que o público per si estabeleça a sua opinião.
Diante disso, Roxin (1988, p. 297) sugere uma limitação das informações
referente a investigações e a inquéritos em andamento, o que, segundo o exímio autor,
deu bons frutos nos Estados Unidos. Logo, as publicações mencionariam apenas os
passos formais das averiguações, como prisões provisórias e instauração de inquéritos,
sem a divulgação de detalhes dos fatos investigados.
Isso porque, sabe-se que os elementos indiciários, segundo o artigo 155 do
CPP, não são capazes de, sozinhos, sustentar um eventual decreto condenatório, haja
vista que foram produzidos sem qualquer garantia ao contraditório e à ampla defesa,
servindo tão somente para a elaboração da denúncia. Atualmente, entretanto, ante o
punitivismo midiático, basta a veiculação de uma notícia relacionado a determinado
caso pela mídia para tais elementos serem elevados à categoria de provas.
Mais que isso: à categoria de provas seguras aptas a condenarem um
acusado antes de qualquer julgamento – quando não, antes mesmo do oferecimento da
97
Tal preocupação internacional com a influência da imprensa e do clamor popular nos julgamentos não
é recente. Como exemplo, cite-se o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, já
mencionado nesta pesquisa, ao dispor no §1º do artigo 14 o seguinte: “[...] A imprensa e o público
poderão ser excluídos de parte ou da totalidade de um julgamento, quer por motivo de moral pública,
ordem pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da
vida privada das partes o exija, quer na medida em que isto seja estritamente necessário na opinião da
justiça, em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da
justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá tornar-se pública, a
menos que o interesse de menores exija procedimento oposto, ou o processo diga respeito a
controvérsias matrimoniais ou à tutela de menores”.
97
denúncia. Desta feita, Albuquerque (2017, p. 57), aborda o sigilo no inquérito policial,
reputando como importante a mantenção, sob proteção, dos documentos, dos dados, das
informações e dos depoimentos pertinentes à investigação para preservar os interesses
sociais e proteger a investigação ou o próprio investigado.
Em que pese a publicidade ser postulado do Estado Democrático de
Direito 98 , ela não deve prejudicar a imparcialidade do julgador, bem como o
comportamento das demais pessoas que atuam no processo – testemunhas, peritos e
partes. Para Fernandes (2017, p. 257), a adoção do sigilo judicial como forma de barrar
ou pelo menos minimizar essa empreitada midiática em desfavor do Poder Judiciário
garante, concomitantemente, a proteção da honra do acusado 99 e da dignidade deste
enquanto pessoa humana na medida em que a presunção de inocência passa a vigorar
durante todo o processo.
Durante a tramitação do processo penal, a presunção de inocência tem de
encontrar proteção não só na proibição de apresentar, publicamente, uma pessoa como
culpada antes de uma sentença condenatória transitada em julgado, mas também quando
se impõem medidas cautelares, visto que a adoção de uma medida cautelar supõe, em
todos os casos, a privação de bens ou de direitos pessoais ou patrimoniais para o
investigado, que goza da presunção de inocência e se vê privado deles a partir,
precisamente, da sua acusação, o que, em alguns casos, significa impor uma medida
exatamente idêntica à pena.
Como consequência, caso algum jornalista contrarie tal orientação, poderá
ser incriminado segundo o artigo 325, do Código Penal Brasileiro100 , e punido com
detenção em até 02 (dois) anos se o fato não constituir crime mais grave. Neste caso,
ressalte-se que, segundo a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 - a conhecida Lei de
Execução Penal -, constitui direito do preso a proteção contra qualquer forma de
sensacionalismo, nos termos do artigo 41, inciso VIII, da LEP.
98
Conforme exemplifica Catena (2012, p. 107-108), “Ainda que o Tribunal reconheça que a liberdade de
expressão e comunicação implica o direito a informar sobre processos judiciais e, por isso, a
possibilidade para as autoridades de tornar públicos dados objetivos extraídos do processo, julga que
tais dados devem ser isentos de qualquer valoração ou julgamento de culpabilidade (Sentença Y.B. e
outros contra a Turquia, previamente citada, ap. 49)”.
99
“A parte não se avilta nem se humilha por integrar o todo, desde que não se permita que o todo, ao
invés de servir à sua complementação individual, reduza-a a simples e anômalo enchimento. Assim,
desonrada, não haveria mais parte, porém conteúdo. Matéria” (FALCÃO, 2004, p. 207).
100
Violação de sigilo funcional
Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou
facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.
98
5 CONCLUSÃO
meio do cometimento de atos ilícitos, mas também aquele ou aquela que faz uso
excessivo dos seus próprios direitos fundamentais ou todo ato constituído a partir disso.
Em decorrência disso, não é possível pensar em um futuro para o processo
penal sem a presunção de inocência, garantia da sociedade, posta em patamar de
destaque, como apregoa a nossa Constituição. Para o alcance de tal intento, é
imprescindível falar para os leigos a respeito da presunção de inocência, para que não se
restem dúvidas acerca da grandeza desta garantia constitucional, que se faz mister não
só para quem ocupa um assento no banco dos réus, mas para a sociedade em geral.
É necessária também a elaboração de um novo regramento para a imprensa,
de acordo com o viés democrático instaurado com a atual ordem constitucional, a
exemplo do que ocorre em ordenamentos jurídicos internacionais, tal como foi
apresentado, no afã de proteger a imparcialidade dos julgamentos criminais, bem como
a lisura no exercício dos poderes republicanos.
Não bastam a veracidade e a neutralidade na veiculação da notícia, tratando
o noticiado como inocente, até que transite em julgado eventual sentença condenatória,
pois cada caso concreto ditará o ponto de equilíbrio. Deve o profissional da imprensa
não obscurecer diante da existência de direitos fundamentais, como os da presunção de
inocência e da dignidade da pessoa humana, apresentando-os como verdadeiros direitos
da sociedade, sob pena de ser punido nos termos do artigo 325 do CPB.
É essencial que os inocentes sejam, sem exceção, protegidos, visto que a
presunção de inocência é fruto de uma opção garantista do constituinte de 1988 a favor
da tutela da sua imunidade, ainda que, para isso, tenha-se que pagar o preço da
impunidade de algum culpável. Ainda assim, os presos possuem direito à proteção
contra qualquer forma de sensacionalismo, nos termos do artigo 41, inciso VIII, da LEP,
pois os direitos fundamentais são, igualmente, concedidos a todos segundo a
Constituição Cidadã.
Por fim, o maniqueísmo ainda divide a população mundial, nacional,
regional e local entre pessoas decentes e criminosos na sociedade do século XXI,
realidade nefasta que atinge todas as esferas possuidoras do mínimo contato entre seres
humanos. Eleger um freio para a espetacularização do processo penal e,
concomitantemente, para a efetivação da presunção de inocência ao nível que merece é
uma missão que perpassa, essencialmente, o conhecimento dos fundamentos da nossa
Constituição e dos valores disseminados por ela em nosso ordenamento jurídico.
103
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