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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

MARCELA CARDOSO LINHARES OLIVEIRA LIMA

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO OBJETO DE MITIGAÇÃO DO


SENSACIONALISMO MIDIÁTICO: REFLEXÕES SOBRE A
PRINCIPIOLÓGICA CONSTITUCIONAL E A CULTURA
SOCIOINQUISITIVA

NATAL/RN
2019
2

MARCELA CARDOSO LINHARES OLIVEIRA LIMA

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO OBJETO DE MITIGAÇÃO DO


SENSACIONALISMO MIDIÁTICO: REFLEXÕES SOBRE A PRINCIPIOLÓGICA
CONSTITUCIONAL E A CULTURA SOCIOINQUISITIVA

Monografia apresentada ao curso de


graduação em Direito, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como
requisito parcial para obtenção do título
de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da


Silva Júnior.

NATAL/RN
2019
3

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN


Sistema de Bibliotecas – SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA

Lima, Marcela Cardoso Linhares Oliveira.


A presunção de inocência como objeto de mitigação do
sensacionalismo midiático: reflexões sobre a principiológica
constitucional e a cultura socioinquisitiva / Marcela Cardoso
Linhares Oliveira Lima. - 2019.
109f.: il.

Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do


Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas,
Departamento de Direito Processual e Propedêutica. Natal, 2019.
Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior.

1. Direito Penal - Monografia. 2. Princípio da presunção da


inocência - Monografia. 3. Constituição (1988) - Monografia. 4.
Sensacionalismo midiático - Monografia. I. Silva Júnior, Walter
Nunes da. II. Título.

RN/UF/CCSA CDU 343.131.7

Elaborado por Shirley de Carvalho Guedes - CRB-15/404


4
5

Dedico esta pesquisa a todos aqueles e a


todas aquelas que tiveram as suas vidas,
profundamente, marcadas por uma
condenação prévia e injusta perante os
tribunais midiáticos, sem a chance de
presentar qualquer recurso.
6

AGRADECIMENTOS

Agradecer é, talvez, a parte mais difícil e importante deste trabalho.


Reconhecer os esforços de todos aqueles para comigo, sem os quais esta pesquisa não
estaria pronta para ser entregue à sociedade. Reconhecer o quanto fui agraciada por ter
pessoas, em minha vida, que me deram o alicerce necessário para sair de Fortaleza e
estudar em Natal, bem como aquelas que tornaram os dias da graduação mais leves.
Inicialmente, gostaria de agradecer a Deus por ser o pilar que sustenta e rege
minha vida. Deus é tão bom que me presenteou com representantes seus aqui na Terra
para me apoiar e me guiar quando os caminhos parecerem difíceis demais. Aos
primeiros deles, Alda e Marcélio. Agradeço aos meus pais por apoiarem meus sonhos,
sendo a base e a razão de tudo que faço.
Aos meus anjos da guarda, Regina e Damião, por me guiarem lá de cima e
me protegerem a cada passo que dou. A Maria Regina, Zilda, Apolo, Fabíola, Arthur e
Antônio Davi, dirijo os meus agradecimentos por me motivarem e vibrarem com as
minhas conquistas ao longo da graduação. Agradeço também aos meus amigos e
amigas, que aqui não nominarei para não incorrer em nenhuma injustiça, por ter vocês
em minha vida, contribuindo com o meu pensamento crítico sobre as mais diversas
questões da vida – não sei se sou digna de tanto.
Por falar em amizade, os meus mais sinceros agradecimentos à equipe do
escritório Flaviano Gama Advogados, pelos pouco mais de dois anos de aprendizados,
estímulos e alegrias. Obrigada pela convivência e pelas lições diárias de humanidade,
honestidade e excelência na advocacia que tornaram a minha caminhada mais agradável
e completa.
Ainda, todos os agradecimentos à minha muito amada Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, que foi a minha casa ao longo de felizes quatro anos e meio,
por ter me ensinado preciosas lições jurídicas, mas também humanísticas. Sempre me
faltarão palavras para expressar a honra e a felicidade por estudar nesta instituição.
Obrigada ao Glorioso curso de Direito por formar uma mulher ciente do seu
papel na sociedade que busca, incansavelmente, o conhecimento e o aprimoramento. Ao
longo desses anos, formei opiniões, desconstruí preconceitos, debati ideias, fiz
amizades, cresci, amadureci, vivi. E como vivi...
7

Obrigada, Glorioso, por ter me proporcionado experiências únicas em


projetos de extensão, como a In Verbis, a Sociedade de Debates e o Efetivando o
Direito à Educação, que me fizeram enxergar a imensidão que existe além dos muros da
univerdade e a necessidade de profissionais do direito que possam ser, antes de tudo,
seres humanos. Obrigada, também, pela oportunidade de encontrar grandes mestres pelo
caminho, os quais, cada um a seu modo, contribuíram para a minha formação.
Dentre os quais, destaco o meu orientador, Walter Nunes da Silva Júnior,
pelo exemplo de comprometimento e de zelo com a docência, que tive a oportunidade
de testemunhar de perto em virtude dos dois anos de monitoria nas disciplinas de
Processo Penal I e II, bem como pela inteligência e pela excelência em tudo que se
propõe a fazer. Que honra tê-lo como guia em minha vida acadêmica.
Aponto, também, o professor Morton Medeiros que, com a sua didática e a
sua sabedoria ímpares, ainda no primeiro período da graduação, serviu-me de inspiração
para enfrentar os mais diversos desafios do mundo jurídico e, por isso, detém toda a
minha admiração. Obrigada por ter, prontamente, aceitado contribuir com esta pesquisa.
Ademais, em se tratando de mestres, não posso deixar de agradecer ao
professor Cândido Albuquerque, que faz encantar pelo Direito todos aqueles agraciados
com a felicidade de tê-lo como mentor. Obrigada por ter se mostrado sempre disposto a
contribuir com o meu crescimento acadêmico, servindo, igualmente, como luz para a
minha vida profissional pela adoção de palavras e de atitudes éticas.
Não posso me esquecer de agradecer à Aparecida, sempre disposta a sanar
dúvidas em relação à Coordenação do Curso de Direito, e às bibliotecárias Shirley e
Eliane, pela atenção e pela paciência com que fizeram a revisão da normalização deste
trabalho. Lembro, ainda, dos demais funcionários das bibliotecas central e setorial do
campus, que sempre me trataram com muita cordialidade e presteza.
Por fim, mas não menos importante, agradeço a todos os brasileiros e a
todas brasileiras que custearam, por meio do pagamento de tributos, a minha graduação.
Serei, eternamente, grata por me presentearem com o estudo em uma das melhores
universidades públicas do nosso País e espero, em algum dia, recompensá-los pela
realização deste sonho.
8

Para corrigir o réu, é necessário conservar-lhe a vida.


Francesco Carnelutti
9

RESUMO

A presunção de inocência, direito fundamental contemplado pela Constituição de 1988,


eleva o homem à categoria de sujeito de direitos e o protege contra eventuais arbítrios e
excessos cometidos pelo Estado. Ocorre que, a partir dos anos 90, com a proliferação
dos meios de comunicação em massa e com o aumento da velocidade com que estes
transmitem as informações à sociedade, sobretudo pelo meio audiovisual, a presunção
de inocência vem sendo objeto constante de mitigação pelo fenômeno conhecido por
sensacionalismo midiático. A mídia influencia a opinião popular, incentivando a cultura
do punitivismo. O que é divulgado é colocado como a verdade, de modo que o
investigado ou acusado fica com o ônus, perante o tribunal midiático, de provar que é
inocente. Mediante uma análise hermenêutica da presunção de inocência desde a sua
gênese até os dias atuais, buscando amparo na perspectiva comparada, é analisada a
conformação constitucional da cláusula da presunção de inocência em nosso
ordenamento jurídico, e como ela se porta diante da colisão com outros direitos
fundamentais – notadamente, com o da liberdade de imprensa -, da cultura
socioinquisitiva e do verdadeiro espetáculo que se tornou o processo penal diante da
atual forma de manifestação da criminologia midiática. Conclui-se que
desespetacularizar o processo e efetivar a presunção de inocência não é tarefa fácil,
sendo uma responsabilidade que engloba desde os representantes dos poderes
republicanos até os leigos, passando pelos profissionais da imprensa. É preciso entender
a presunção de inocência como garantia da sociedade – e não apenas dos acusados em
um processo penal - e tratá-la como tal.

Palavras-chave: Presunção de inocência. Constituição de 1988. Sensacionalismo


midiático.
10

ABSTRACT

The presumption of innocence, a fundamental right guaranteed by the Constitution of


1988, elevates man to the category of subject of rights and protects him against any
arbitrary actions and excesses made by the State. Since the 1990s, with the proliferation
of mass media and the increasing speed through which they transmit information to
society, especially through the audiovisual media, the presumption of innocence has
been a constant object of mitigation by the phenomenon known as media
sensationalism. The media influences popular opinion by encouraging the culture of
punishment. What is disclosed is placed as the truth, so that the defendant or accused
person bears the burden in the media court of proving that he is innocent. Through a
hermeneutic analysis of the presumption of innocence from its inception to the present
day, seeking support from a comparative perspective, the constitutional conformation of
the presumption of innocence clause in our legal system is analyzed, and how its
behavior in the collision with other fundamental rights - notably with the freedom of the
press - the social and inquisitive culture and the real spectacle that has become the
criminal process before the current manifestation of media criminology. It is concluded
that disempowering the process and making the presumption of innocence effective is
not an easy task, being a responsibility that ranges from the representatives of the
republican powers to the laity, as well as the press professionals. We must understand
the presumption of innocence as a guarantee of society - and not just of the accused in a
criminal case - and treat it as such.

Keywords: Presumption of innocence. Constitution of 1988. Media sensationalism.


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LISTA DE SIGLAS

CADH Convenção Americana de Direitos Humanos


CE Ceará
ConJur Consulto Jurídico
CPB Código Penal Brasileiro
CPP Código de Processo Penal
CRFB/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
CRP Constituição da República de Portugal
DDHC Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
DEPEN Departamento Penitenciário Nacional
DJe Diário do Judiciário Eletrônico
DPP Director for Public Prosecutions
HC Habeas Corpus
IBCCRIM Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
INFOPEN Levantamento de Informações Penitenciárias
LEP Lei de Execução Penal
Min Ministro
ONU Organização das Nações Unidas
Rel Relator
Rext Recurso Extraordinário
RHC Recurso Ordinário em Habeas Corpus
SP São Paulo
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
TJDFT Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
US United States
12

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 13
2 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O SEU SUPORTE AO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A CONSEQUENTE ADAPTAÇÃO DO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL À NOVA REALIDADE................................ 16
2.1 Os direitos fundamentais: breve evolução histórica da condição do homem
enquanto sujeito de direitos....................................................................................... 19
2.2 Os fundamentos do direito (dever-poder) de punir do Estado: as balizas
existentes ao jus puniendi e ao jus persequendi estatais........................................... 27
3 A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO GARANTIA ESSENCIAL AO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO............................................................ 36
3.1 Aspectos a orientar a gênese e a influência anglo-saxônica do princípio da
presunção de inocência: a desconstituição do beyond reasonable doubt................ 41
3.2 Presunção de inocência ou presunção de não culpabilidade: escolha material do
constituinte.................................................................................................................. 47
3.3 Contrastes e confrontos da presunção de inocência em perspectiva
comparada................................................................................................................... 54
4 O ACUSADO PRESUMIDAMENTE INOCENTE ENQUANTO OBJETO DO
SENSACIONALISMO MIDIÁTICO....................................................................... 60
4.1 O reflexo das publicações midiáticas: há como explicar a origem e a evolução
da cultura socioinquisitiva no Brasil?....................................................................... 67
4.2 A presunção de inocência e a liberdade de imprensa: colisão entre direitos
fundamentais............................................................................................................... 71
4.3 A influência da criminologia midiática ante os poderes republicanos e os
julgamentos criminais................................................................................................ 81
4.4 Há meios capazes de frear a espetacularização do processo penal ocasionada
pelos tribunais midiáticos?.......................................................................................... 91
5 CONCLUSÃO................................................................................................. 99
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 103
13

1 INTRODUÇÃO

Desde os tempos mais remotos, as pessoas em geral possuem verdadeiro


fascínio em ver o semelhante que, supostamente, praticou um ato socialmente
reprovável ser punido ao final de um julgamento, mesmo que, contra ele, não haja
provas suficientes. Na condenação de Jesus Cristo, por exemplo, já se observava tal
conduta, quando Pilatos perguntou à multidão o que faria com Jesus, e o povo o
respondeu aos berros, sem qualquer demonstração de piedade: crucifica-o, crucifica-o!
Ocorre que tal comportamento, aparentemente arcaico, sobrevive nos dias
atuais. Melhor aduzindo: a partir dos anos 90, com a intensificação dos meios de
comunicação em massa ao veicularem informações superficiais e imagens exageradas, a
mídia tornou ensurdecedora a voz da acusação em detrimento dos sons solitários da
defesa, e o processo penal transformou-se em um verdadeiro espetáculo.
Não raro, a mídia sensacionaliza uma matéria criminal que, em regra, não é
tão sensacional assim, visto que o Direito Penal é ultima ratio, e o público costuma
absorver tais informações como se verdadeiras fossem. Casos de grande destaque são
transmitidos por dias consecutivos, nos mais diversos veículos de comunicação – além
do que é dito, sem qualquer cuidado, a respeito deles nas redes sociais -, o que constitui
a gênese da criminologia midiática atual e impacta a organização da sociedade, bem
como a estrutura de todo o sistema.
Instauram-se, assim, conflitos entre os valores jurídicos e midiáticos, de
forma que quem mais perde com tudo isso é a pessoa vitimada por uma sentença
midiática transitada em julgado antes mesmo da instauração de qualquer processo.
Nesse contexto, as garantias que embasam o Estado Democrático de Direito são
comprometidas fortemente, e o homem como sujeito de direitos, tal como apregoa a
nossa Constituição de 1988, cede lugar ao sujeito indesejável, o qual deve ser retirado
do convívio social o quanto antes.
Assim, a presunção de inocência, entendida como coração do Estado
Democrático de Direito e princípio macro do nosso ordenamento jurídico, é objeto
constante de mitigação pelo sensacionalismo realizado pela mídia, deixando a figura do
julgador vulnerável ao clamor popular decorrente do apelo midiático. Além disso, os
demais poderes da República não ficam isentos de tamanha influência, o que em nada
tem a ver com as diretrizes do Estado de Direito, já que este deve se pautar,
estritamente, pelo que reza a lei e não a mídia.
14

Eis que emerge o objetivo deste trabalho: analisar como a presunção de


inocência resiste e pode resistir frente à cultura socioinquisitiva e ao espetáculo que se
tornou o processo penal pela divulgação dos meios de comunicação em massa. Tendo a
consciência de que a presunção de inocência é um direito da sociedade, não só daqueles
que se encontram na posição de investigados ou de acusados ao longo da persecutio
criminis, percebe-se a urgência de o respeito a este princípio ocorrer pela sociedade e
pelas decisões dos membros dos poderes da República – sobretudo, o Judiciário -, que
se encontram pressionados ante o apelo emocional midiático e o clamor popular dele
decorrente.
Partindo do contexto geral para o particular, o primeiro capítulo analisará a
nova realidade em que a nossa sociedade emergiu após a Constituição de 1988. Por ter
sido editada e promulgada após um período de forte tolhimento de direitos e ter nítido
amparo na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e na Declaração
Universal dos Direitos do Homem de 1948, a Constituição Cidadã preocupou-se em
elencar um extenso rol de direitos e de garantias fundamentais, no sentido de conceder
ao homem dignidade e proteção frente a eventuais arbítrios e excessos estatais –
encabeçados pelo jus puniendi e pelo jus persequendi.
No segundo capítulo, o intento principal será o de examinar a presunção de
inocência enquanto direito da sociedade. Buscar-se-á aparato no direito anglo-saxônico
como forma de entender a sua gênese e a sua aplicação em terrae brasilis, inclusive, o
porquê da divergência doutrinária que persiste até os dias atuais quanto às
nomenclaturas presunção de inocência e presunção de não culpabilidade: qual seria o
mais adequado perante a redação do artigo 5º, LVII, da CRFB/88?
Ainda, o referido capítulo contemplará a principiológica constitucional em
perspectiva comparada. Como paradigma, serão utilizados alguns países europeus e sul-
americanos que possuem maior proximidade jurídica, histórica ou comercial com o
Brasil, no afã de alcançar uma melhor compreensão da disposição da presunção de
inocência em nosso ordenamento jurídico.
De posse do conteúdo estudado nos capítulos anteriores, apresentar-se-á, no
derradeiro, a preocupação central deste trabalho: o acusado presumidamente inocente
enquanto objeto do sensacionalismo midiático. Questionar-se-á a origem e a evolução
da cultura socioinquisitiva, que, aparentemente, transforma as pessoas em seres ávidos
por contemplar a desgraça alheia. Por oportuno, será necessário se debruçar sobre o que
ocorre com direitos fundamentais – in casu, a presunção de inocência e a liberdade de
15

imprensa -, de mesma hierarquia, quando estão em rota de colisão, situação,


frequentemente, presenciada em nosso ordenamento jurídico.
Ademais, uma análise sobre a criminologia midiática atual, a sua forma
principal de manifestação e as suas incontáveis influências também serão
indispensáveis, sobretudo quando essas influências estão, diretamente, vinculadas às
formas de atuação dos poderes republicanos. Por fim, o capítulo terceiro será concluído
indagando se há meios possíveis de frear a espetacularização do processo penal e o
maniqueísmo que divide a nossa sociedade, há tanto tempo, em pessoas decentes e
criminosos1, no qual serão propostas alternativas para tal cenário.
Utilizando-se de um viés garantista ao recolher informações e traçar
ponderações, o presente trabalho constitui-se a partir do método de abordagem
hermenêutico. Por meio de uma abordagem histórico-evolutiva, empregam-se técnicas
de pesquisa documental indireta, principalmente jurisprudencial e bibliográfica com a
análise de livros, artigos, monografias e dissertações de autores nacionais e estrangeiros,
bem como de entrevistas, vídeos e programas televisivos, a fim de aliar ao estudo do
impacto que os meios audiovisuais, geralmente, ocasionam na discussão de temas
cotidianos da humanidade.

1
Referência à nomenclatura cunhada por Zaffaroni no livro “A palavra dos mortos: conferências de
criminologia cautelar” (2012, p. 309), a qual será bastante utilizada ao longo desta pesquisa.
16

2 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O SEU SUPORTE AO ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO: A CONSEQUENTE ADAPTAÇÃO DO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL À NOVA REALIDADE

A compreensão da imprescindibilidade da presunção de inocência 2 , bem


como as preocupantes consequências da sua mitigação pelo sensacionalismo midiático,
requer certa digressão histórica no sentido de, efetivamente, conhecer e entender a
origem desse princípio – e, igualmente, direito fundamental - que teve o seu ápice, em
nosso ordenamento jurídico, com o advento da Constituição de 1988, também
conhecida como Constituição Cidadã.
Nesse contexto, nas palavras do Ministro Barroso (2015, p. 482), o Brasil
percorreu longo e difícil caminho até alcançar, de fato, o Estado Democrático de
Direito3. Somente em 1808, trezentos anos após o descobrimento, a família real chegou
ao Brasil, e, somente em 25 de março de 1824, o País teve outorgada a sua primeira
Constituição. A famosa Carta Imperial de 1824, elaborada pelo Conselho de Estado e
marcada pelo Poder Moderador, contemplou, timidamente, os direitos fundamentais -
até então tratados como princípios desprovidos de força normativa.
Utilizando-se, ainda, das expressões de Barroso (2002, p. 480-481), nosso
País começou a busca pela democracia tarde e mal. Afinal, mais de duzentos anos
separam a vinda da família real para o Brasil e o vigésimo quinto aniversário da
Constituição de 1988. Nesse longo caminho, diversos foram os percauços: passou-se do
status de uma colônia semiabandonada produtora de numerosas riquezas para a sua
metrópole até uma nação silenciada pelo autoritarismo da Ditadura Militar entre os anos
de 1964-1985.
Em nosso meio, a mudança de paradigma começou na metade dos anos 80,
tendo como base normativa a Constituição de 1988 e retomando-se a democracia como
ideologia política nacional. Silva Júnior (2019, p. 51) assevera que, no paradigma do
Estado Democrático-Constitucional, a Constituição é a ordem jurídica global e concreta

2
Frise-se, desde logo, que a presunção de inocência possui acepção diversa da presunção de não
culpabilidade, conforme será explicitado mais adiante em subtópico específico para tal, qual seja o 3.2.
3
Mais do que tão somente Estado de Direito, nos ensinamentos de Canotilho (2003, p. 92-93), “qualquer
que seja o conceito e a justificação do Estado – e existem vários conceitos e várias justificações – o
Estado só se concebe hoje como Estado Constitucional. [...] O Estado constitucional democrático de
direito procura estabelecer uma conexão interna entre democracia e Estado de direito”. Dessa forma, o
Estado Constitucional é de direito, mas é também democrático.
17

que define a base teórica do ordenamento jurídico, cuja essência se encontra na


declaração dos direitos fundamentais, posta em princípios.
Por meio deste sucinto relato, é possível relembrar a série de dificuldades
que marcaram a nossa trajetória constitucional rumo ao que hoje se entende como
Constituição Cidadã. Não há dúvidas de que a consagração, bem como a manutenção,
do Estado Democrático de Direito, em terrae brasilis, deve-se a muita luta, suor e
sangue derramados.
Logo, compreende-se o porquê de a Constituição de 1988 ter se preocupado
em elencar um rol extenso de direitos e de garantias fundamentais que objetivam, em
geral, proteger os cidadãos de atos arbitrários e ilegítimos do próprio Estado, bem como
garantir a todos eles a dignidade humana, a qual fora elevada ao verdadeiro fundamento
de nossa República Federativa, nos termos do artigo 1º, inciso III, da CRFB/88.
Não por acaso, como leciona Siqueira (2014, p. 104), a Constituição se
destaca, em tempos de pós-positivismo, como o documento conformador de todo o
direito, de modo que, para a continuidade da vigência de uma norma, esta deve ser
compatível, material e formalmente, com o texto constitucional. Desse modo, a análise
dos temas jurídicos públicos ou privados deve passar pelo filtro do texto constitucional.
É bem verdade, afinal Kelsen (1998, p. 263-264) já afirmava que a dinâmica
do direito nasce com a elaboração da Constituição e segue por meio da legislação e do
costume, até a decisão judicial e a execução da sanção. Esse movimento, no qual a
ciência jurídica se recria em cada momento, parte do geral (ou abstrato) para o
individual (ou concreto), constituindo-se em um processo de individualização sempre
crescente.
Nessa esteira, o Código de Processo Penal – assim como outros diplomas
legais em nosso ordenamento jurídico - precisou se adaptar à nova realidade advinda
após 1988. Melhor aduzindo, necessitou ser reestruturado e passou a ser visto sob o viés
normativo das normas constitucionais democráticas e não mais, conforme afirma Silva
Júnior (2019, p. 51), como um instrumento de força nas mãos do Estado.
Disso resultou um conjunto de transformações que afetaram o modo como
se pensa e se pratica o direito no mundo contemporâneo. Afinal, não era crível que se
continuasse adotando um sistema processual penal de forte sotaque inquisitivo diante de
uma Constituição que preza, sobretudo, pela garantia da condição do homem enquanto
18

sujeito de direitos4 e pelo respeito aos direitos fundamentais, ou seja, diante de uma
Constituição garantista em essência.
Na dicção de Silva Júnior (2019, p. 51), precisou-se alterar o modelo
ditatorial e policialesco com o qual o Código de Processo Penal de 1941 foi elaborado, a
fim de adaptá-lo ao perfil constitucional, que tem como diretrizes as garantias e os
direitos fundamentais. Mesmo em relação a dispositivos que não tiveram sua redação
alterada com a Reforma Tópica 5 , o CPP deve ser enxergado sob a perspectiva
democrática, alicerçada pelo rol de direitos fundamentais contemplados pela Carta
Magna.
Todos os homens e todas as mulheres são seres humanos e merecem ser
tratados como tal; a garantia de direitos deve se sobrepor a qualquer situação, ainda que
seja o cometimento de um delito. Nos dizeres de Carnelutti (2009, p. 26), não é possível
fazer uma clara separação dos homens entre bons e maus, pois isso resultaria de um
intelecto que não está iluminado, a priori, pelo amor.
Nesse sentido, a lei, atendendo aos anseios da Carta Constitucional, deve ser
justa, quando, então, harmonizam-se os conceitos de direito e de justiça. O homem deve
ser sujeito de direitos e cumpridor dos deveres impostos a ele, resguardando as
premissas do Estado Democrático de Direito ao tempo em que é, concomitantemente,
salvaguardado por ele.
Em consonância com o entendimento de Silva Júnior (2019, p. 43), a
densidade principiológica da Constituição de 1988, primordialmente no que se refere à
declaração de direitos fundamentais concebidos como normas jurídicas elevadas à
potência máxima, revogou diversos dispositivos do CPP e determinou uma (re)leitura e
uma (re)interpretação com esteio na nova ordem jurídica, a fim de adequá-lo ao
paradigma do Estado Constitucional que possui como meio e fim os direitos
fundamentais.

4
Segundo Siqueira (2014, p. 108), “Sujeito de direito é a expressão tradicionalmente utilizada no
universo jurídico para designar aquele que passa a ser visto pelo ordenamento como verdadeiro titular
de direitos e obrigações”.
5
Silva Júnior (2019, p. 50) explica um pouco mais do movimento reformista, aduzindo que ”A despeito
da necessidade de rearrumação das ideias a ser promovida com a edição efetiva de um novo Código de
Processo Penal, a arte da interpretação deve ser utilizada como ferramenta para contornar as
dificuldades para um olhar sistêmico e coerente do ordenamento processual criminal. [...] O sentido
nuclear da reforma global do sistema processual penal é a sua adequação à Constituição de 1988,
notadamente quanto a sua organização com base nos direitos fundamentais. Note-se que, após a
Segunda Guerra Mundial, surgiu um novo paradigma constitucional que dá suporte para falar-se
daquilo que se convencionou, entre os doutrinadores estrangeiros, denominar Estado
(neo)constitucional”.
19

2.1 Os direitos fundamentais: breve evolução histórica da condição do homem


enquanto sujeito de direitos

O artigo 5º da nossa Constituição, com seus 77 (setenta e sete) incisos,


elenca o que se denomina de “Direitos e de deveres individuais e coletivos”, ou seja, a
verdadeira declaração das liberdades públicas. Correspondem aos clássicos direitos de
liberdade, cumprindo, primordialmente, a função de direitos de defesa, ainda que
tenham sido acrescidas novas liberdades e garantias.
Como é cediço, a CRFB/88 apresenta uma significativa inovação na seara
dos direitos fundamentais, contemplando, no grau mais alto já visto em nosso
ordenamento jurídico, direitos das mais diversas dimensões em perfeita sintonia com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 19486.
É importante lembrar que o acender das luzes, no tocante aos direitos
fundamentais em nível mundial, deu-se com a Magna Carta inglesa do Rei João Sem
Terra, de 1215. Segundo Torres (2015), este documento, por tudo o que significou para
indicar um novo modelo de governo e de submissão do poder às deliberações de
representantes do povo, tornou-se o real motivo pelo qual se vive em liberdade nos dias
atuais7, quando cada homem e cada mulher se submetem à legalidade e à Constituição,
unicamente, sob a égide dos valores da igualdade e da liberdade.
Entretanto, a aparição significativa dos direitos fundamentais é fruto da
Revolução Francesa, com a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, a qual, em seu preâmbulo, já destacava, solenemente, os direitos

6
Ressalte-se que a Declaração de 1948 reafirmou os ideiais trazidos com a Declaração de 1789, que,
porventura, possam ter sido esquecidos pelo mundo pós-Guerra. Nas lições de Bonavides (2016, p.
588-589), com aquele documento, “[...] o humanismo político da liberdade alcançou seu ponto mais
alto no século XX. Trata-se de um documento de convergência e ao mesmo passo de uma síntese.
Convergência de anseios e esperanças, porquanto tem sido, desde sua promulgação, uma espécie de
carta de alforria para os povos que a subscreveram, após a guerra de extermínio dos anos 30 e 40, sem
dúvida o mais grave duelo da liberdade com a servidão em todos os tempos. Síntese, também, porque
no bronze daquele monumento se estamparam de forma lapidar direitos e garantias que nenhuma
Constituição insuladamente lograra ainda congregar ao redor de um consenso universal”.
7
Albuquerque (2017, p. 19) complementa tal linha de pensamento, aduzindo que “A Magna Carta do rei
João-sem-Terra teve em seu favor o fato relevantíssimo de não ter caído no esquecimento e, mais que
isso, considerando o momento histórico, foi difundida e marcada culturalmente, tendo migrado como
princípios constitucionais séculos depois para a América do Norte, onde encontrou acolhida nas
primeiras Constituições do Continente”.
20

naturais, inalienáveis e sagrados do homem. Positivou-se, a partir daquele instante, o


respeito aos direitos e aos deveres do povo, de modo que as reivindicações dos
cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, tivessem como
objetivo a conservação da Constituição e a felicidade geral8.
Ainda que incorporasse tais ideais, a Constituição de 1988 foi além – se
comparada às anteriores - ao destinar um conjunto importante de normas de direito
processual e, dentro dele, especificamente de normas processuais penais. Fundada na
teoria dualista clássica, abrigou, de um lado, o evidente interesse público na repressão
ao crime – isso porque há um capítulo da Carta Magna dedicado à segurança pública e
ao papel das diferentes polícias (artigo 144) - e, de outro, o interesse do indivíduo de
provar sua inocência.
O acusado - e mesmo o condenado – possui um conjunto de direitos a serem
respeitados e caberá, normalmente, ao juiz tutelá-los. Afinal, como entende Barroso
(2002, p. 91), a justiça, também no campo penal, é produto dialético do confronto entre
pretensões antagônicas. De um lado, está a pretensão acusatória do Estado; de outro,
tem-se a pretensão de liberdade do acusado em uma disputa, na qual poderes e direitos
são delimitados constitucionalmente.
Nos dizeres de Silva Júnior (2015, p. 190), desde a Constituição de 1824, a
doutrina de Beccaria, no que tange ao seu pensamento central sobre o processo penal,
vem sendo mantida, de forma que os fundamentos do direito processual penal se
confundem com os próprios direitos fundamentais. A despeito de o processo ser um
instrumento para o poder público garantir a ordem social, ele constitui meio de tutela
dos direitos fundamentais do cidadão, de forma que o dever-poder de punir do Estado
deve ser exercido na perspectiva democrática.
Importante atentar que garantias não podem – e nem devem – ser
confundidas com direitos. Isso porque as garantias funcionam em caso de
desconhecimento ou violação do direito, ou seja, existe a garantia sempre em face de
um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar. E tal distinção
possui fundamental importância, pois fazer os termos sinônimos, segundo Bonavides
(2016, p. 538), é um ato reprovável aos olhos da doutrina atual que separa os dois
institutos com nitidez.
8
Vide DDHC. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-
%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-
1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html. Acesso em: 11 out. 2019.
21

Nas lições de Bonavides (2016, p. 538), professor de todos nós, tal equívoco
ocorre sempre que a garantia é posta numa acepção em conexidade direta com o
instrumento de organização dos fundamentos e dos princípios do Estado, qual seja a
Constituição. Se tal confusão fosse aceita, seria deveras complicado fincar um conceito
preciso e prático de garantia constitucional, o que acarretaria, sem dúvidas, o
obscurecimento de uma das noções mais valiosas para o entendimento da progressão
valorativa do Estado liberal em sua passagem para o Estado social.
Compreendida a diferença entre os termos acima, resta claro que a garantia
se apresenta como requisito da legalidade, defendendo o direito contra possíveis
ameaças e é, basicamente, pelas vias doutrinária e forense que as garantias
constitucionais promovem a defesa da liberdade do cidadão contra os abusos e a
violência do Estado. Emerge, deste ponto, a condição do homem enquanto sujeito de
direitos fundamentos, digno de proteção.
Não sendo coisa, o homem possui direitos fundamentais, ou seja, direitos
vigentes que são, na pura essência, os direitos da liberdade de cada indivíduo. Tal
vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana
conduz, indubitavelmente, ao significado de universalidade inerente a esses direitos
como ideal da pessoa humana, a qual se manifestou, primeiramente, por ensejo da
célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Naquela época,
pretendia-se discutir as balizas da sociedade, mas, sobretudo, do sistema processual
penal, abalado profundamente após os tempos sombrios da Santa Inquisição9.
À época, os pensadores da nova corrente não eram apenas homens de leis e
não almejavam tão somente a substituição do procedimento penal da Inquisição. Fala-
se, em verdade, de filósofos, escritores, historiadores, diplomatas e também juristas, os
quais expunham toda a sua insatisfação com o status quo político, social, econômico e,
por conseguinte, jurídico vivido durante o período nefasto da Inquisição.
Tais pensadores, então, insurgiram-se contra o predomínio do poder central
em todos os campos e contra o seu total descomprometimento com os interesses e com
as necessidades da população. Limitando-se ao que releva como objeto deste estudo, a
maior alteração foi quanto ao novo dimensionamento que se deu ao indivíduo diante do
poder estatal central.

9
De forma objetiva, como define Reinaldo (2019, p. 12), “a Santa Inquisição foi um tribunal eclesiástico
instaurado no século XIII com o objetivo de identificar e punir hereges e feiticeiras (os)”.
22

Para a corrente filosófica inaugurada no século XVIII, pós Revolução


Francesa, o ser humano não deveria – e nem poderia - ser mais visto como inimigo do
Estado, mas sim como fonte e destino de seu poder e das suas ações. Ao lado da
consciência da necessidade de um ente supraindividual (Estado) com os deveres de
reger e de proteger a sociedade para garantir sua melhoria e aperfeiçoamento, colocou-
se, no mesmo patamar, o ser humano.
Melhor aduzindo, o ser humano passou a ser o início e o fim do agir estatal:
o início, por ser ele, como integrante do corpo social, a única fonte legítima do poder,
apenas exercido pelo Estado, e o fim, porquanto deve ser em seu favor e para sua
melhoria de condições que o Estado deve atuar.
Logo, é possível concluir que, para aquela época do pensamento humano,
qualquer agir estatal que não tivesse como objetivo a mais profícua ação em favor do
indivíduo se deslegitimaria na origem, pois o Estado agiria em interesse próprio ou
contra o indivíduo, desmerecendo o poder que a ele o cidadão conferiu.
O Estado deixa de ser fruto da força ou da hereditariedade e passa a ser fruto
da vontade (contrato) social, contexto tal em que o indivíduo ocupa papel primordial.
Em verdade, o indivíduo passa a ser valorizado, pois se retira a pressuposição da
maldade intrínseca e do pecado original que, até então, era-lhe atribuída e passando a
figurar como sujeito de direitos, na mais fiel acepção de tal expressão.
Neste cenário, as mudanças passam a ter justificativas sociais e econômicas
comuns, traduzidas, unicamente, na mudança do poder político reinante por meio não
apenas da queda de seus ocupantes, mas, principalmente – e essa foi uma característica
da Revolução Francesa –, pela mudança dos paradigmas até então vigentes.
O Estado não mais deveria ter como escopo a perpetuação e o
locupletamento por meio da força produtiva de seus súditos, mas deveria a eles servir e
voltar as suas preocupações no sentido de lhes propiciar melhores condições de vida.
Filosoficamente, portanto, os pensadores iluministas rompem com a ideia de poder
fundada em critérios religiosos, militares ou hereditários, invertendo-se a lógica até
então vigente.
A secularização estabelece a racionalidade como novo alicerce para a
construção de um novo sistema político, social, econômico e, como não poderia deixar
de ser, jurídico. A racionalidade leva à valorização do indivíduo diante do Estado e este
passa a ser justificado de forma legítima pelo contratualismo. A racionalidade, portanto,
23

coloca o indivíduo no centro de importância do Estado Iluminista, passando a ser para


quem estava voltado todo o atuar público.
As ideias revolucionárias na França, dada a conquista de espaço político na
Assembleia Francesa, têm, na lei, o seu pilar fundamental de sustentação. Dessa forma,
a lei passa a ser o meio dos revolucionários inscreverem seus ideais, e a secularização
impunha que a lei não fixasse privilégios e não reconhecesse vantagens políticas ou
sociais de um indivíduo diante do outro.
Nesse contexto, a lei deveria ser elaborada de forma abstrata, geral e sem
qualquer diferenciação entre os cidadãos, fazendo que a concepção de igualdade se
tornasse um dos fundamentos do pensamento revolucionário iluminista. Afinal, se a
finalidade do Estado é a promoção do bem comum, cabe-lhe, no entender de Silva
Júnior (2015, p. 191), efetivar a justiça com o desenvolvimento da macropolítica que
deve ser pensada para efetivar os direitos incrustados no sistema jurídico.
Dentre as revoltas do século XVIII, a mais significativa para a história é a
Revolução Francesa, da qual decorreu a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão em 1789, posteriormente promulgada em 1793. Tal documento serviu de base
para a mudança de pensamento em todo o mundo. E não é exagero falar que os reflexos
foram mundiais, afinal, a França era o grande palco das transformações daquela época,
de modo que a propagação das ideias lá nascidas não se restringia ao território europeu.
Então, o cenário das grandes transformações que atingiriam o mundo inteiro
estava firmado: território francês com as mentes brilhantes que lá habitavam. Silva
Júnior (2015, p. 143) faz questão de pontuar a diferença existente entre o movimento
francês e o norte-americano, no que atine à preocupação de cada um desses
movimentos, e, consequentemente, ao reflexo que essas preocupações ganhariam pelo
mundo afora.
A despeito de ter como contexto o mesmo pensamento filosófico, o
movimento francês guarda peculiaridade distinta do estadunidense, visto que este foi
um movimento separatista, enquanto aquele objetivou romper o sistema político do
Estado para instaurar outro, cujo poder político, embasado na premissa de que ele
emana do homem e deve respeitar os direitos naturais deste, não seria essencial apenas
ao povo francês, mas aos demais povos pelo mundo afora.
Ora, tal distinção é imprescindível para a compreensão da difusão dos
direitos fundamentais como se encontram positivados hoje. Os pensadores franceses,
diferentemente dos norte-americanos, priorizaram, com fulcro no movimento iluminista
24

que embasou a Revolução Francesa de 1789, a edição de uma declaração dos direitos do
homem em vez da edição imediata de uma Constituição10.
Tal iniciativa foi de suma importância, afinal a Constituição Francesa seria
escrita somente depois, forjada em uma gama de direitos fundamentais que fornecessem
as balizas necessárias ao Estado Democrático de Direito11. Para Silva Júnior (2015, p.
143), os revolucionários franceses acreditavam que professavam a verdade das
verdades ao contrário dos norte-americanos que estavam mais preocupados em
concretizar sua independência e criar o seu próprio regime político.
Por isso, os franceses sustentavam mais questões quanto à ordem política e
aos direitos da liberdade civil individual, visto que, segundo o entendimento de
Dimoulis e Martins (2018, p. 27), apoiando-se nas ideias ilumistas, tinham por objetivo
a fundamentação racional das decisões políticas, perseguindo ideias universalistas.
Não é por acaso que, já no artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, resta posto que “os homens nascem e são livres e iguais em direitos”, de
modo que as distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum. Tal construção,
por si só, confere o novo enfoque do pensamento daquela época: o homem como sujeito
de direitos e como centro da nova organização do Estado. A igualdade entre os homens
perante a lei foi, ainda, reforçada com o artigo 6º da supramencionada declaração12.
Ressaltada a importância inquestionável da Declaração de 1789 para a
solidificação e a positivação dos direitos fundamentais em nível mundial, é preciso
entender o processo de internacionalização desses direitos no cenário constitucional
brasileiro. Como já aduzido, a Constituição de 1988 possui papel de destaque no que se

10
“Destarte, os colonos norte-americanos não se sentiam devidamente representados no parlamento da
metrópole. Surgia historicamente um ceticismo acentuado dos colonos, vale dizer, de parte do “povo”
em relação aos órgãos de representação política do Poder Legislativo, pois um parlamento
democraticamente legitimado pode criar – eis a lição historicamente incontestável – normas que
prejudiquem minorias e indivíduos. Por isso, o documento jurídico chamado “Constituição” que
deveria fundamentar o poder soberano e legitimar o legislador, isto é, a maioria parlamentar, surgiu nos
Estados norte-americanos, declarados independentes em 1776, com o principal objetivo de garantir a
liberdade individual em face de todos os poderes estatais, ou seja, também em face do legislador
ordinário” (DIMOULIS; MARTINS, 2018, p. 27).
11
Não é de se estranhar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, já em seu artigo 2º,
verse, in litteris, que “O fim de toda a associação política é a conservação
12
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 - Art. 6º. A lei é a expressão da vontade
geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a
sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos
são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,
segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.
25

refere ao enfoque conferido aos direitos fundamentais, mas não foi só nessa
Constituição que tais direitos começaram a se revelar em nosso ordenamento jurídico.
Efetivamente, o movimento constitucionalista no Brasil teve início em
1821, como um reflexo direto das transformações que estavam ocorrendo em Portugal
no ano anterior – por influência da Independência Americana e da Revolução Francesa,
frise-se. Tais mudanças foram determinantes para o surgimento de uma nova concepção
de Estado democrático-liberal, assegurando a divisão dos poderes e os direitos dos
homens em novas Constituições para Portugal e, consequentemente, para a terrae
brasilis.
A Constituição Política do Império do Brasil, outorgada em 25 de março de
1824, estabelecia a organização dos poderes políticos e definia os direitos fundamentais.
No entender de Silva Júnior (2015, p. 150), a declaração dos direitos fundamentais
estava contemplada na Constituição de 1824, inscrita que foi nos 35 (trinta e cinco)
incisos do artigo 179, tendo como diretriz, conforme o caput do referido artigo, a
liberdade, a segurança individual e a propriedade13.
Ainda, Silva Júnior (2015, p. 151) afirma que a Constituição Imperial
destinou 15 (quinze) itens no artigo 179, plasmando garantias penais e processuais
penais, sendo que treze deles se relacionavam diretamente às questões de ordem
processual, sendo algumas dessas grandes avanços para a época – por exemplo, a
independência do Poder Judiciário (artigo 179, alínea 12, última parte).
Com o avançar do tempo, a fonte de inspiração transmudou-se da Europa
para os Estados Unidos; deixou-se um pouco de lado o modelo constitucional francês
para dar lugar, em importância, à Constituição norte-americana. Não é por acaso que o
sistema republicano e a forma federativa estabelecidos no Brasil recebem influência do
constitucionalismo estadunidense, tendo a nossa primeira Constituição republicana sido
editada sob a epígrafe de Constituição dos Estados Unidos do Brasil.
Ressalte-se que, sendo a Constituição norte-americana bastante concisa,
nossos constituintes precisaram buscar complementações nas Constituições suíça e
argentina, as quais também possuíam forte inspiração no modelo federalista
estadunidense. Entretanto, as transformações não pararam por aí, pois, com o cenário
mundial em chamas com as mudanças empreendidas pela Revolução Russa e pela

13
“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base
a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela
maneira seguinte”.
26

Primeira Guerra Mundial, os países precisaram se ajustar à nova ordem mundial


instaurada.
Afirma Silva Júnior (2015, p. 154) que, com o subterfúgio de contemplar os
homens de uma outra categoria de direitos fundamentais, o novo modelo de Estado
proposto, não obstante a manutenção da divisão dos poderes e a salvaguarda dos
direitos fundamentais, rompe com a doutrina do Estado Liberal e faz instaurar o Estado
Social, com forte viés intervencionista.
Posteriormente, em decorrência do regime autoritário imposto a partir de
1964, a Constituição de 1967 manteve, ainda que de forma modesta, a tradição de
homenagem aos direitos fundamentais. Em que pese, na prática, tais direitos estavam
bem longe do seu ideal de aplicação, restando positivados no texto contituinte,
meramente, a título pro forma meramente.
Perdendo força já no final dos anos 70, a Ditadura Militar foi cedendo lugar
ao processo de redemocratização. O Congresso Nacional produziu um texto, amplamente
debatido nos mais diversos ambientes acadêmicos e jurídicos, a fim de oportunizar a
saída de tempos tão sombrios, de limitada garantia de direitos fundamentais, para tempos
de luz, tempos de glória, em que tais direitos representassem o cerne do sistema jurídico
brasileiro, com hierarquia superior às demais normas jurídicas.
A força desses direitos está presente no Título II da Constituição de 1988,
que os elencou e os detalhou, prevendo, de forma direta e específica, quais direitos
fundamentais são tutelados pelo Estado. Não apenas foram mantidas as garantias que já
estavam positivadas nas Constituições anteriores como foram acrescidas outras que ainda
não tinham ganhado status constitucional, a exemplo da presunção de inocência e do
direito ao silêncio, contemplando, prima facie, o valor democrático-constitucional.
Os direitos fundamentais são aqueles inerentes a cada ser humano, não
necessitando que se faça nada para merecê-los ou possuí-los. São interesses considerados
imprescindíveis, integrando parte do patrimônio jurídico do Estado, que disponibilizará
os instrumentos necessários para assegurá-los.
Com o movimento constitucionalista brasileiro, o qual passou por diversas
fases, tais direitos foram, gradativamente, crescendo em importância no cenário nacional,
atingindo o seu ápice na Constituição Cidadã, passando, no entender de Silva Júnior
(2015, p. 163), à posição de espinha dorsal do sistema jurídico brasileiro, assumindo
funções hegemônica, estruturante e interpretativa de todo o sistema normativo.
27

Ainda, como aduzem Dimoulis e Martins (2018, p. 140), é possível falar em


dimensão objetiva dos direitos fundamentais quando estes atuam como critério de
interpretação e de configuração do Direito infraconstitucional. É o chamado princípio da
interpretação conforme a Constituição14 que, uma vez ignorado ou inaplicado quando
cabível, afronta, potencialmente, o texto constitucional.
A partir do reconhecimento de que possuem força normativa e hierarquia
superior às demais normas jurídicas do nosso sistema, os direitos fundamentais só podem
ser relativizados por outros direitos fundamentais quando em caso de colisão, pois aqui
se defende que eles não assumem caráter absoluto. Portanto, apenas existindo, o homem
já possui direitos fundamentais: é sujeito de direitos, e são tais direitos ditos
fundamentais - os quais devem ser respeitados e garantidos a qualquer custo - que
buscam fazer da vida do homem digna, livre e igual15.

2.2 Os fundamentos do direito (dever-poder) de punir do Estado: as balizas


existentes ao jus puniendi e ao jus persequendi estatais

De fato, os direitos fundamentais vivenciam o seu melhor momento do


constitucionalismo brasileiro, reconhecido pela ordem jurídica positiva16, em que pese
ainda esteja bem longe do ideal. O conjunto desse extenso catálogo de direitos
fundamentais regrou e limitou, mas também legitimou o direito (dever-poder) de punir
do Estado, o qual se revela por meio do jus persequendi e do jus puniendi.
Ao estudar a razão de ser do Estado, a sua concepção tem origem na
necessidade de formalização do poder político com força coercitiva suficiente para

14
De forma sintética, explicam Dimoulis e Martins (2018, p. 141): “quando o aplicador do direito está
diante de várias interpretações possíveis de uma norma infraconstitucional, deve escolher aquela que
melhor se coadune às prescrições dos direitos fundamentais”.
15
Relembrando o artigo 1º, da CRFB/88, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado
Democrático de Direito e, tem como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana (inciso
III).
16
“A Constituição de 1988, influenciada por multiplicidade de concepções jurídicas e por documentos
constitucionais diversos, terminou por acolher as duas fórmulas normalmente excludentes. Previu,
assim, no inciso LIV do art.5º, de maneira ampla: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal”. Em seguida, especificou, em normas autônomas, alguns dos significados
evidentes do princípio, como, e.g, o contraditório, a ampla defesa e o direito de recorrer, inscritos no
art. 5, LV. A este propósito, embora não haja consenso nem cláusula explícita, parece-me de melhor
inspiração o entendimento de que, ao menos no processo penal, decorre do sistema constitucional a
garantia do duplo grau de jurisdição – com pleno efeito devolutivo – implícita no princípio geral e na
regra específica do direito de recorrer” (BARROSO, 2002. p. 91).
28

garantir a segurança nas relações sociais. Com o surgimento do Estado, ainda nas suas
formas mais primitivas, revelou-se que a tarefa de distribuição da justiça, como modo
de manutenção social, teria, segundo Albuquerque (2015, p. 15), de ser ao ente estatal
confiada, passando este a perseguir e a punir quem cometesse atos ilícitos.
Com a institucionalização da persecução penal, no entender de Almeida
(2014, p. 06), o Estado se viu obrigado a criar um procedimento para a aplicação da
pena. Entretanto, sob a égide do absolutismo, este procedimento persecutório era
deveras arbitrário e invasivo. Ao ser instituído o Estado liberal, os revolucionários
cercaram-se de cuidados para que o Estado não mais voltasse a interferir em suas vidas,
de modo que as leis - e não mais o monarca – deveriam reger a sociedade e conferir
direitos aos cidadãos em todas as esferas, protegendo-os de sanções arbitrárias.
Dentre os instrumentos dos quais o Estado poderia se valer para tal, o mais
eficiente, aos olhos de Silva Júnior (2015, p. 126) – entendimento este do qual se faz
coro – é o dever-poder de punir, que se mostra como uma das funções essenciais do
Estado desde que atue em consonância com as balizas previstas na CRFB/88, quais
sejam os direitos fundamentais, em atenção ao princípio da legalidade constitucional.
Ao falar em jus persequendi, faz-se referência ao direito (dever-poder) de
ação do Estado, isto é, o Estado é incumbido de perseguir o autor do delito, o qual
advém dos direitos fundamentais na perspectiva objetiva17. O jus puniendi também se
trata de um direito (dever-poder) do Estado, onde ele tem a permissão para punir,
aplicar sanção penal, a quem pratique um ato ilícito, tipificado como crime.
Portanto, é necessário que o Estado exerça o jus persequendi (direito de
ação, de perseguir o autor do crime) para que o jus puniendi (direito de punir) possa
ser aplicado. Afinal, conforme ressalta Ferreira (2008, p. 104), a Constituição, vista
como ordem objetiva de valores, impõe normas de comportamento e de convivência
aos indivíduos, estabelecendo padrões axiológicos e éticos que incidem sobre todas as
esferas jurídicas.
Nesse contexto, os direitos fundamentais impõem uma delimitação ao
dever-poder do Estado, ou seja, delimitam o exercício do poder do ente público. No
entender de Silva Júnior (2015, p. 127), o direito de punir é poder político do Estado e

17
Consoante a doutrina de Silva Júnior (2015, p. 128), isso acontece porque “na visão moderna
decorrente de um sistema criminal pautado de acordo com o entendimento de que a teoria do processo
penal tem raiz nos direitos fundamentais, o jus persequendi é oriundo da perspectiva objetiva dessa
classe de direitos”.
29

monopólio dele, que deve ser exercido de forma legítima e em estrita observância aos
direitos fundamentais do homem. No mesmo sentir, a política criminal, justificadora do
direito de punir, deve seguir critérios que se conformem com a estrutura política do
próprio Estado, a fim de evitar rupturas com as premissas constitucionais.
Se o processo penal regula o dever-poder de punir do Estado, na perspectiva
democrática, deve, segundo Silva Júnior (2015, p. 190), ser um instrumento de tutela
essencial dos direitos fundamentais do cidadão. Logo, embora o processo sirva de
instrumento para que o poder público exercite a persecução penal com legitimidade, ele,
ao mesmo tempo, possui como principal função a de estabelecer os limites do uso da
força estatal na busca da punição do agente que infringiu a lei.
Com a secularização, os Estados deixaram de ser teocráticos, e o direito de
punir não mais encontra justificativa na religião, mas sim na representação política. Para
Silva Júnior (2015, p. 127), com o movimento democrático nascido após a Segunda
Guerra Mundial, o direito (dever-poder) de punir é resguardado como forma de defesa
social, sob uma visão moderna que tem raiz teórica nos princípios normativos que
enunciam os direitos fundamentais da pessoa humana.
Quanto a este assunto, pondera Grinover (1982, p. 13) que, no Estado
moderno, não existe razão para se debater o problema da possibilidade ou
impossibilidade de autolimitação de atribuições pelo próprio Estado, pois esta limitação
resulta de um poder superior, o constituinte, em cujo exercício se manifesta a vontade
político-institucional do povo.
Nesse contexto, a liberdade do cidadão é demarcada como limite à atividade
estatal, de modo que todas as diversas funções do Estado são limitadas pela liberdade do
indivíduo. Nesta perspectiva, portanto, o Estado, no exercício das suas funções,
encontra uma série de limites.
Tais limites, diante da posição hegemônica conferida pela Constituição de
1988, expressam, segundo Silva Júnior (2015, p. 164), a teoria constitucional do
processo penal, que possui, como uma de suas categorias, o princípio da presunção de
inocência, o qual será discutido, mais detalhadamente, a seguir.
Resta nítido que o Estado possui o papel de garantir a liberação do homem
dos obstáculos políticos, econômicos, sociais e naturais que o aflijam18. É exatamente,

18
Enriquecendo as discussões, Barroso (2002, p. 89-90) assegura que “A Constituição contém, ademais,
ainda no art. 5º, um conjunto de preceitos restritivos do poder do Estado de proceder à prisão de
30

neste ponto, que o poder estatal e a liberdade se entrelaçam como forma de garantir a
soberania dos direitos fundamentais, tal como resta prevista em nosso ordenamento
jurídico.
Oportunamente, Grinover (1982, p. 15) relembra que, no processo penal, os
direitos do acusado se colocam como limite à função jurisdicional e, de outro lado, é o
próprio processo penal que se perfaz em instrumento de tutela da liberdade jurídica do
acusado. O Estado, ao exercer a sua função, deve colocar-se frente a frente com os
direitos de liberdade daquele contra quem vai exercer o jus puniendi.
Ora, a liberdade é o bem máximo tutelado pelo Estado Democrático de
Direito, sendo esta premissa uma expressiva limitação à atuação excessiva do Estado.
Mais que punir, controlar ou prender, o Estado deve zelar pela correta aplicação dos
direitos fundamentais, de modo que a liberdade, entendida como direito inegociável do
homem, seja resguardada.
Na mesma temática, Miranda (2002, p. 510) pondera que as liberdades
individuais são direitos supraestatais do homem inorganizáveis pelo Estado. Cabe ao
Estado, apenas, protegê-los, dentro do seu território e onde quer que tenha jurisdição, de
modo que o cerne do problema deixou de ser, nos dias atuais, o da limitação às
limitações para ser o de garantia.
Binder (2003, p. 25), referindo-se ao ideal que se aspira para o processo
penal atualmente, postula que é a preocupação em estabelecer um sistema de garantias
face ao uso do poder do Estado. Neste caso, procura-se evitar que o uso deste poder
converta-se em um fato arbitrário. Seu objetivo é, na essência, proteger a liberdade e a
dignidade da pessoa humana.
O próprio Marquês de Beccaria (2013, p. 24) já afirmava que o conjunto das
pequenas porções de liberdade do homem constitui o fundamento do direito de punir e
que todo poder que se afastasse da base garantidora destas porções de liberdade seria
visto como abuso e não mais como justiça.

pessoas, estabelecendo a presunção de inocência (“LVII - Ninguém será considerado culpado até
trânsito em julgado da sentença penal condenatória”), os casos de prisão legal (“LXI – ninguém será
preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária
competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”),
o dever de relaxamento da prisão ilegal (“LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela
autoridade judiciária”) e a proibição da decretação de prisão quando a lei admitir a liberdade provisória
(“LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória,
com ou sem fiança”)“.
31

O conceito moderno de liberdade considera o cidadão na sua


individualidade. Ao longo da História, as garantias de liberdade foram estruturadas
sobre o amparo da liberdade negativa, limitando a conduta estatal para evitar abusos e
invasões por parte do Estado nos direitos individuais.
Segundo Silva (2004, p. 235), o artigo 5º, inciso II da Constituição Federal
revela duas dimensões: de um lado o princípio da legalidade e do outro o direito de
liberdade de ação. Melhor aduzindo, do referido artigo, depreende-se a ideia de que a
liberdade só pode sofrer restrições por normas jurídicas preceptivas (que impõem uma
conduta positiva) ou proibitivas (que impõem uma abstenção), provenientes do Poder
Legislativo e elaboradas segundo o procedimento estabelecido na Constituição.
Dito de forma mais nítida: a liberdade só pode ser condicionada por um
sistema de legalidade legítima. E faz todo o sentido pensar segundo o referido
doutrinador, afinal a liberdade é a regra no Estado Democrático de Direito – sendo a
prisão e todas as formas de cerceamento daquela meras exceções.
Endossando tal posicionamento, Barroso (2002, p. 89) preleciona que o
princípio da legalidade, quando aplicado ao direito penal, converte-se no princípio da
reserva legal, expresso no inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição, sendo,
indiscutivelmente, de reserva de lei formal. De parte isto, a dignidade constitucional do
direito de liberdade é incompatível com a precariedade da eficácia de tais atos
normativos oriundos do Executivo.
Ora, a Constituição é o primeiro e o mais importante documento de
superioridade jurídica de um Estado em relação aos demais. Traça a proteção jurídica
do indivíduo em face do Estado, junto aos ideários de autonomia, autodeterminação e
participação. Bonavides (2016, p. 640) assegura que “sociedade sem Constituição é
sociedade sem liberdade”, de forma que liberdade significa que ninguém deve se
submeter a qualquer vontade, mas apenas à vontade da lei quando esta for, formal e
materialmente, constituída.
Isso porque a lei no Estado Democrático de Direito é a concretização do
conteúdo capitulado na Constituição, e, nesse papel, opera a transformação da sociedade
e influencia a realidade social. Quando o Estado determina um modo de condutas de
acordo com um espírito democrático, limita a sua própria atividade em relação às
interferências junto aos indivíduos, ao passo que garante a eles os direitos fundamentais
como a vida, a liberdade e a dignidade da pessoa humana.
32

Nesse contexto, é por meio da noção de Constituição em um Estado


Democrático de Direito que deve ser realizada a nova interpretação processual penal.
Em consonância, assevera Lopes Júnior (2017, p. 34) que é por meio da consciência de
que a Constituição deve, efetivamente, constituir que se pode compreender que o
fundamento legitimante da existência do processo penal democrático se dá por meio da
sua instrumentalidade constitucional.
Melhor aduzindo, o processo penal contemporâneo somente se legitima ao
passo que se democratiza e é devidamente constituído a partir da Constituição. Logo, foi
a introdução de um sistema democrático pela Constituição de 1988 que evidenciou a
necessidade de adaptação do Código de Processo Penal – editado com forte sotaque
inquisitivo – à nova realidade, em que o agir estatal encontra, nos direitos fundamentais,
as balizas para a sua atuação.
Tal realidade clama por um processo penal que não mais se limita à busca
da verdade real como o seu fim único ou principal, mas também - ou principalmente
também - à busca e à efetivação das garantias processuais, o que não deve ser visto
como sinônimo de impunidade.
Nesta perspectiva, a democratização do processo deve refletir sobre a sua
instrumentalidade, ou seja, a sua utilização para a determinação e para a imposição da
pena, pois esta não pode ser instrumento de poder absoluto, tornando o jus puniendi e o
jus persequendi estatais ilimitados, sobretudo quando o bem jurídico tutelado é a
liberdade. O regime democrático é uma garantia geral da realização dos direitos
fundamentais, portanto.
Uma vez decorrente do direito à vida e da dignidade da pessoa humana,
consagra-se a liberdade como pressuposto para o Estado Democrático de Direito nos
moldes em que hoje se conhece. É na democracia que a liberdade encontra o seu campo
de expansão, fazendo o homem dispor da mais ampla possibilidade de controlar os
meios que conduzem à sua realização enquanto sujeito de direitos.
De forma sintética, Lopes Júnior (2017, p. 34) ressalta que o processo não
pode mais ser visto como simples instrumento a serviço do poder punitivo, visto que
desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido.
Ressalte-se que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade,
e, em momento algum, defende-se isso para a realidade social.
Defende-se, em verdade, que o agir democrático e garantista, no processo
penal, é o caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena, somente se
33

admitindo a sua existência quando ao longo desse caminho forem, rigorosamente,


observadas as garantias asseguradas pela nossa Constituição.
A jurisdição penal aparece, então, não apenas como garantia da liberdade do
indivíduo, mas também no papel de conformadora da liberdade jurídica no plano
concreto. Nesse ínterim, o Estado ao exercer a sua pretensão punitiva deve adequar-se
aos preceitos da Carta Magna, observando o due process of law, para garantir e tutelar
os direitos do indivíduo.
Portanto, é, no processo penal, que se torna necessária a imposição de
limites ao poder Estatal, como garantia da liberdade do indivíduo. Silva (2004, p. 234-
235), muito acertadamente, aduz que a liberdade não é incompatível com um sistema
coativo, de modo que ela pressupõe um sistema desta ordem, traduzido no ordenamento
jurídico.
Logo, desde que a lei, que obrigue a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa,
seja legítima, isto é, provenha de um poder legislativo formado mediante consentimento
popular e seja formada segundo o processo estabelecido em uma Constituição emanada
também da soberania do povo, a liberdade não será prejudicada.
Assim sendo, os limites a ela opostos pela lei são legítimos. Ademais, deve-
se lembrar que o Estado foi concebido com o escopo de harmonizar o convívio das mais
diferentes pessoas, mediante o desempenho de múltiplas funções. Ao assumir o
monopólio da administração da justiça, passou ao dever da prestação jurisdicional
atribuída a ele, mediante a atuação dos órgãos do Poder Judiciário.
Constituindo-se os direitos fundamentais na estrutura central do Estado, e
igualmente do sistema processual penal acusatório 19 , a concepção desse Estado é
oriunda da necessidade de formalização do poder político, com força coercitiva para
impor a ordem e a segurança nas relações interpessoais. Para alcançar tal intento
legitimamente, o Estado se vale do dever-poder de punir.

19
Como é cediço, os dois sistemas jurídicos são, constantemente, tidos como referência para o direito,
sistemas estes que denotam perspectivas, propriamente, distintas sobre a ideia de justiça. Mais que
isso, possuem uma gramática própria de produção da verdade na qual traduz a exteriorização de um
modelo de exercício de poder. São eles o sistema acusatório e o inquisitório ou inquisitivo. Segundo o
entendimento de alguns autores do direito anglo-saxão, a tradição do Civil Law é um modelo jurídico
correlacionado ao sistema inquisitório, enquanto que o Common Law se assemelha ao sistema
acusatório. O sistema acusatório é assim denominado pelo fato de que quem acusa deve fazer a prova
de suas alegações, sendo a formulação da verdade coletiva e dirigida a todos. Já no sistema
inquisitório, a verdade é determinada pela autoridade judiciária que possui também a atribuição de
conduzir a inquirição, ou seja, a verdade é descoberta por quem é “dotado” desta capacidade.
34

Nos precisos dizeres de Silva Júnior (2015, p. 127), ao praticar seus atos em
consonância com as normas que limitam o desenvolvimento dessa tarefa, balizas são
traduzidas nas garantias constitucionais, ou seja, nos direitos fundamentais, núcleo
reitor de todo sistema criminal democrático.
Nessa nova dimensão dos direitos fundamentais, o Estado deixa de ser visto
como adversário, que sofre limitações no seu agir, para ser visto como guardião, que
tem o dever de promover ações de proteção eficientes aos cidadãos. Nas lições de
Dimoulis e Martins (2018, p. 142), cabe ao Estado a proteção ativa dos direitos
fundamentais contra ameaças de violação.
O dever-poder de punir, portanto, é o poder político conferido ao Estado que
deve ser exercido de forma legítima, em estrita observância aos direitos fundamentais e
à condição dos seres humanos como sujeitos de direitos. A política criminal que orienta
o dever-poder de punir está, detalhadamente, contemplada na Constituição, sobretudo
no Título destinado aos direitos fundamentais, frise-se.
Nesse contexto, Silva Júnior (2015, p. 148) complementa, aduzindo que, do
exame dos princípios elencados nas Constituições brasileiras, sobretudo na atual,
constata-se que o maior número dos direitos fundamentais positivados objetiva o
estabelecimento da legalidade constitucional, no que tange ao exercício do direito de
punir, às limitações ao exercício do direito de punir ou, nos termos do referido
doutrinador, ao devido processo penal.
Sendo o jus puniendi e o jus persequendi necessários ao bom
funcionamento do aparato estatal, estes não podem – e nem devem - ser ilimitados. As
balizas existentes em nosso ordenamento jurídico, que garantem a liberdade como bem
jurídico primordial em um Estado Democrático de Direito, permanecem vivas e
eficientes, funcionando como profundas garantias que o ser humano enquanto sujeito de
direitos dispõe diante de eventuais excessos estatais.
Talvez o primeiro ser humano que tenha se insurgido e conseguido conter
abusos ou convencer detentores do poder, por intermédio da apresentação de um
caminho do razoável, seja o precursor da defesa de valores que hoje, para nós, são tão
caros ao Estado Democrático de Direito. Mais que isso: talvez seja o primeiro a
carregar, em seu gene, a sede pela defesa da liberdade democrática.
Depois de muito sangue derramado, temos o genuíno nascimento daquilo
que, hoje, conhece-se como presunção de inocência: substantivo feminino; pilar de
qualquer Estado que se autodenomine como Democrático de Direito. Como salvaguarda
35

da proteção de direitos e de liberdades individuais, nossos parlamentares, quando em


Assembleia Nacional Constituinte, optaram por denominar a defesa como ampla, sendo
o direito de um cidadão de presumir-se inocente pleno.
Talvez seja esse o real motivo de ter sido a nossa Constituição denominada
Cidadã, pelo saudoso Ulisses Guimarães: a intocável – segundo o deve-ser - presunção
de inocência. Intocável, explique-se, porque existem mecanismos, em nosso direito
interno, em pactos e em tratados internacionais, que a viabilizam, assegurando-a todos
os meios e os recursos a ela inerentes.
Como arremate deste capítulo e já a título introdutório do seguinte, se é
verdade que os cidadãos estão ameaçados pelos delitos, também o estão pelas penas
arbitrárias. Neste sentir, a presunção de inocência emergiu como segurança oferecida
pelo Estado Democrático de Direito ou como meio de defesa social, como assegura
Ferrajoli (2010, p. 506). Expressa-se na confiança que os cidadãos depositam na justiça,
servindo, diante da sua natureza de direito fundamental, como limitadora ao jus
puniendi e ao jus persequendi estatais.
36

3 A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COMO GARANTIA ESSENCIAL AO


ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Feito, prévia e oportunamente, um revolvimento histórico acerca dos


direitos fundamentais e da relevância destes, é hora de voltar o olhar, efetivamente, para
o núcleo deste trabalho. A presunção de inocência assume importância determinante
para a garantia da condição de sujeito de direitos que os seres humanos possuem em
nosso ordenamento jurídico atual 20 , de forma que é indispensável ao Estado
Democrático de Direito.
Afinal, segundo Santos (2019, p. 01-02), a presunção de inocência é
garantia política da sociedade contra o poder punitivo estatal, enquanto a efetividade da
jurisdição constitui interesse pragmático do Estado no que tange ao controle social. A
sua definição, na Constituição, não explicita o termo presunção de inocência, mas
insere o conteúdo empírico do juízo de culpa na forma jurídica da condenação penal
transitada em julgado. Logo, o inciso LVII, do artigo 5º, da CRFB/88 demonstra que o
conteúdo do juízo de culpa ou existe na forma de sentença transitada em julgado ou não
pode existir de nenhuma forma.
A discussão da presunção de inocência não é restritiva, não se esgotando em
si mesma, visto que este é um direito da sociedade. Ora, este direito é fundamental não
só para aqueles que ainda estão sendo investigados ou para aqueles que já sentem o peso
de um processo penal em seus ombros, mas também para os demais cidadãos, os quais,
em algum dia, em um futuro distante ou próximo, poderão sentir, em seu desfavor, a
sobrecarga de qualquer processo ou mesmo de uma injustiça.

20
Barbagalo (2015, p. 49), a fim de estudar a estruturação e o alcance do princípio no Brasil, constrói
um tracejo histórico da fórmula da presunção de inocência na CRFB/88. Após a ditadura militar, com
o retorno de um presidente civil ao poder, em 1985, foi editada a Emenda Constitucional nº 25, que
convocava o Congresso Nacional para elaborar um novo texto constitucional, mediante uma
assembleia constituída pela maioria dos parlamentares eleitos nas eleições de 1986 e por senadores
biônicos. Consequentemente, seguiu-se a elaboração de vários projetos de textos constitucionais,
dentre os quais se destacou, inicialmente, o Projeto Afonso Arinos, que previu expressamente a
presunção de inocência em seu artigo 47, cujo texto estabelecia: “presume-se inocente todo acusado
até que haja declaração judicial e sua culpa”. A despeito de ter sido arquivado posteriormente pelo
Ministério da Justiça, o Projeto serviu de base para muitos dos outros textos anteriores à CRFB/88.
Ganhou relevância, no entanto, a Emenda nº 1P11998-7, elaborada especificamente sobre o tema pelo
então senador José Ignácio Ferreira, que sugeriu, pela primeira vez na história constitucional do Brasil,
a adoção do princípio da presunção de inocência, nos moldes da fórmula da não culpabilidade. Antes
disso, seguiram-se outros trabalhos que, em geral, reproduziam a regra da presunção de inocência,
embora com nuances variadas, mas foi a fórmula introduzida pelo ex-senador que ganhou destaque e
foi aprovada para, posteriormente, figurar no texto da CRFB/88.
37

Da forma como é concebida hoje21, a presunção da inocência, assim como a


liberdade de expressão, originou-se de uma importante luta social, traçada ainda na
Revolução Francesa, o berço da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789 22 . Encabeçada com o lema “Liberté, Egualité e Fraternité”, o documento
mencionado acima foi indispensável, como já aduzido, para as transformações do nosso
ordenamento jurídico, sobretudo do sistema processual penal acusatório.
A positivação do princípio não poderia ser mais circunstanciada. Tratava-se
da consagração de valores racionalistas estabelecidos pelo Iluminismo setecentista,
cujos maiores representantes eram Rousseau, Voltaire, Montesquieu e, em matéria
penal, o Marquês de Beccaria. Considerar o acusado presumidamente inocente
significava contrapor-se a elementos integrantes do Ancien Régime, caracterizado pelos
julgamentos eivados de inquisitoriedade, pelas prisões sumárias e pelas provas taxadas
com valor legal.
Significava, além disso, conter o poder punitivo estatal, em defesa da
liberdade do indivíduo, mesmo quando acusado de um delito. Mais adiante, em
decorrência dos graves episódios ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, foi
editada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reafirmando bases ideológicas já
fixadas na Revolução Francesa, mas que podem ter sido esquecidas pelo mundo
devastado após as duas grandes guerras.
A suprareferida declaração aprovada e proclamada pela 183ª Assembleia da
Organização das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, assegurou, de forma
explícita, em seu artigo 11, a presunção da inocência até que a culpabilidade do acusado
restasse legalmente provada no decurso processual23, em um julgamento no qual todas
as garantias necessárias para a defesa fossem asseguradas.

21
A despeito de remontar ao direito romano, a presunção de inocência foi ofuscada ou, segundo Ferrajoli
(2010, p. 506), invertida completamente, em razão das práticas inquisitórias desenvolvidas na Baixa
Idade Média. Isso porque, ante a insuficiência de prova, conquanto subsistisse um mero resquício de
culpabilidade, equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e a uma
semicondenação. Somente, na Idade Moderna, portanto, é que tal princípio foi reafirmado com
firmeza. Por isso, quando referido, neste trabalho, que a origem da presunção de inocência remonta ao
final da Revolução Francesa, estar-se-á falando nesse sentido, da sua reafirmação no cenário mundial.
22
No artigo 9º da referida declaração, já se estabelecia que “Todo o acusado se presume inocente até ser
declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessários à guarda da sua
pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei”.
23
No original: “XI.1 Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido
inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no
qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”.
38

No âmbito das organizações regionais, a Convenção Europeia de Direitos


Humanos, subscrita em Roma, em 4 de novembro de 1950, em seu artigo 6.2, ao
assegurar o direito ao processo equitativo, estabeleceu, nitidamente, a garantia de o
acusado presumir-se inocente “enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente
provada”.
Em outra escala, emergiu o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, adotado e aberto à assinatura pela Resolução 2.200-A pela XXI Assembleia
Geral da ONU, em 16 de dezembro de 1966, entrando em vigor quase 10 (dez) anos
depois. O artigo 14 do Pacto faz menção à presunção de inocência como direito24 e a
coloca juntamente com outros que, para Batisti (2009, p. 40), configuram princípios ou
regras do devido processo legal. No Brasil, foi incorporado pelo Decreto 592, de 06 de
julho de 1992, ampliando direitos fundamentais e conferindo contornos mais efetivos a
vários direitos enunciados.
Na mesma linha, é importante que nos reportemos à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969, o conhecido Pacto de San José da
Costa Rica. No Brasil 25 , a Convenção foi promulgada pelo Decreto 678, de 06 de
novembro 1992. Ao tratar das garantias judiciais, o artigo 8º, nº 02, 1ª parte, já dispunha
que quem for acusado da suposta prática de um delito tem direito a que se presuma sua
inocência “enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.
Em uma rápida análise, percebe-se que o Pacto de San José da Costa Rica, o
qual assume caráter supralegal26 em nosso ordenamento jurídico, trata a presunção de

24
“Artigo 14, §2º - Qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a
sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida”.
25
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm. Acesso em: 02 out. 2019.
26
Vide BRASIL. STF, Pleno, Rext. nº 466.343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, j. 22.11.2006. Destaque-se,
ainda, que, posteriormente, em outros julgados, o STF reconheceu a que os tratados internacionais de
direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal: STF, Segunda Turma,
HC nº 90.172/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 05.06.2007, v.u. Nesse sentido, Lopes Júnior e Badaró
(2016, p. 05-06) explicam o tratamente supralegal conferido. Vejamos: “No referido recurso, decidido
pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, após o voto do Relator, Ministro Cezar Peluso, que
negava provimento ao recurso, sem adotar uma posição expressa quanto à questão da hierarquia dos
tratados internacionais de direitos humanos, votou o Ministro Gilmar Mendes, que acompanhou o voto
do relator, acrescentando aos seus fundamentos que os tratados internacionais de direitos humanos
subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação
infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação, pelo
Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica. Esse relevantíssimo precedente
significou uma mudança no posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que passou a entender que
a Convenção Americana de Direitos Humanos tem natureza supra legal (posição do Min. Gilmar
Mendes) ou materialmente constitucional (posição do Min. Celso de Mello). De qualquer forma, e este
é o ponto relevante, as leis ordinárias, anteriores ou posteriores à CADH, que com ela colidirem, não
39

inocência como uma garantia processual. Portanto, a presunção de inocência assumiu


um status universal definitivo, de modo que, nas Cartas, nos Pactos, nos Tratados ou
nas Convenções – de caráter universal ou regional -, passou a garantir novos tons ao
contexto processual.
Em terrae brasilis, como é cediço, a presunção de inocência veio a ser
inserida, efetiva e explicitamente, em âmbito constitucional, com o advento da atual
Constituição, especificamente com o inciso LVII, do artigo 5º, o qual apregoa, ipsis
verbis, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória”.
Com uma redação enxuta e forte, tem-se, pela primeira vez na história do
nosso País, um enunciado normativo cujas normas dele extraídas representam uma das
mais importantes garantias de todos os cidadãos no âmbito processual penal. O
supramencionado inciso constitucional, cuja base normativa é principiológica, traz
importantes reflexos para a esfera do cidadão e para as relações por ele traçadas.
Como princípio que é, nos dizeres de Batisti (2009, p. 111), a presunção de
inocência assume uma dimensão abstrata, não podendo ser entendido como incidindo,
exclusivamente, sobre o processo. Diante da grande abrangência e salutar importância,
tal princípio constitui garantia que, como tal, pende sobre os direitos material e
processual, em que pese seja mais fácil compreendê-la sob a ótica deste último.
Tourinho Filho (2007, p. 28-29), reconhecendo a importância do princípio
enquanto corolário maior do due process of law, ressalta sua origem no direito natural,
por ser relacionado ao estado original de inocência de todos os indivíduos, a reclamar
pelo culto à liberdade e à dignidade da pessoa humana. Embora admita não ser devida
uma interpretação ao pé da letra do princípio, assevera que seu significado real garante
a impossibilidade de tratamento do indivíduo como culpado até que seja provada a
culpa ou até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Segundo Lopes Júnior e Badaró (2016, p. 7), não é exagero considerar a
presunção de inocência como pressuposto de todas as outras garantias do processo, visto
se tratar de uma marco quanto à posição do acusado como sujeito de direitos no
processo penal. O legislador brasileiro positivou que todo cidadão, submetido ou não à

terão eficácia jurídica. Em termos práticos, qualquer norma infraconstitucional, que conflite com a
garantia da imparcialidade do juiz, assegurada expressamente na Convenção Americana de Direitos
Humanos e no Pacto internacional de Direitos Civis e Políticos, anterior ou posterior à promulgação de
tais tratados, não mais poderá ter aplicação”.
40

persecução penal, deve gozar de um estado de inocência – ou de não culpabilidade,


como consta expressamente, no texto constitucional - que só pode ser afastado depois
do trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória.
Nesse momento, o nosso constituinte busca afastar qualquer forma de
condenação antecipada e, de fato, não poderia ter agido mais acertadamente ante as
influências recebidas pelo mundo afora e os novos caminhos que nosso País haveria de
tomar rumo a um cenário garantista, tendo o homem como sujeito de direitos em seu
centro.
Em atenção a esta condição, o homem precisa estar protegido frente a
eventuais abusos cometidos pelos seus semelhantes ou pelo próprio poderio do Estado,
frutos de uma mentalidade punitivista e inquisitória, resquício de um passado não muito
longínquo. Por isso que se instituiu a presunção de inocência, em caráter constitucional,
como garantia essencial ao Estado Democrático de Direito.
Afinal, se o que está positivado em lei não é respeitado em um Estado de
Direito, estamos diante de uma realidade preocupante. Se assim fosse, o próprio Estado
Democrático de Direito, com seus preceitos e valores, vai mal e corre sério risco se os
líderes dos poderes da República – em atenção especial ao Judiciário que tem dimensão
contramajoritária27 - optem por atender ao clamor popular em detrimento da lei.
Assim sendo, em que momento da história estamos de fato? Corremos o
risco de retornar aos horrendos e reprováveis julgamentos romanos 28 sem qualquer
garantia para aquele que está sendo julgado? Não é razoável permitir tamanho
retrocesso. O direito é balança, mas também é espada, de forma que nada nos foi dado,
mas tudo foi conquistado. Atingimos um ponto do nosso amadurecimento jurídico, a
despeito de não ser o ideal, que a presunção de inocência não pode – nem deve – mais
ser dissociada da nossa realidade.

27
Embora a sensação de impunidade que acomete algumas camadas da sociedade seja “algo muito
agressivo”, o Judiciário não tem nada a fazer além de seguir o que está escrito na Constituição.
Especialmente quando o texto constitucional é claro e não dá margem a interpretações, como ao
permitir o cumprimento da pena só depois do trânsito em julgado. É o que defende o Ministro Maia
Filho (2016), do STJ. Ele reconhece que a justiça, por vezes, demora demais para dar soluções a casos
rumorosos, e que isso é um problema que deve ser combatido. “Mas não é com a antecipação da prisão
que isso vai se resolver”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-set-18/entrevista-napoleao-
nunes-maia-filho-vice-decano-stj. Acesso em: 30 set. 2019.
28
Nos dizeres de Fernandes (2017, p. 248), “A título de exemplo, têm-se os entretenimentos que ocorriam
no Império Romano, em que o público lotava o Coliseu para assistir e vibrar quando os acusados, dos
mais diversos tipos de crimes, eram jogados aos leões, que lhes destroçavam os corpos”.
41

O princípio da presunção de inocência coaduna-se com a função garantista


do Direito Processual Penal, estando prevista nas constituições dos países e nos códigos
processuais penais por influência das revoluções liberais. Os escopos processuais
penais, possivelmente, restariam inatingíveis ao se prescindir de considerar o acusado
como presumidamente inocente até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória.
De fato, a importância da presunção de inocência em um Estado
Democrático de Direito é peculiar, razão pela qual está inserida no Título II da nossa
Constituição, inerente aos “Direitos e Garantias Fundamentais”. Ora, fundamental é
aquilo considerado indispensável, sem o qual o todo não funciona e, ainda que funcione,
não funciona bem.
É, portanto, uma condição sine qua non, de forma que, sem a presunção de
inocência, o processo penal e todo o sistema não funcionam a contento, dissonante ao
sentimento de justiça inerente a um Estado Democrático de Direito. Por isso, as
tranformações sociais diárias merecem tanta atenção. Mais que uma garantia posta em
nossa Constituição, a presunção de inocência precisa sair – ainda mais – do papel e
povoar os mais diversos momentos anteriores e durante o processo até que a culpa do
acusado seja legalmente provada.

3.1 Aspectos a orientar a gênese e a influência anglo-saxônica do princípio da


presunção de inocência: a desconstituição do beyond reasonable doubt

De início, é importante lembrar que a presunção de inocência é uma


conquista, de certa forma, recente na história da humanidade, pois foi reafirmada em
1789 com a Déclaration de Droits de l’Homme et du Citoyen. Durante a Idade Média, o
indivíduo poderia ser castigado por motivos indignos de uma punição com privação da
sua liberdade, como ter má fama ou conduzir a vida de forma inadequada aos padrões
morais da época, de modo que, não raro, era enxergado como suspeito de cometer
delitos.
Assim sendo, aqueles entregues à ociosidade eram considerados
delinquentes prováveis, estado de periculosidade presumido elevado o suficiente para
carrear a imposição de uma pena arbitrária. Não muito diferente, o estado absolutista foi
omisso ao reconhecer o estado presumidamente inocente de um acusado. Segundo
42

Foucault (2002, p. 37), a culpa era constituída por cada elemento que permitia
reconhecer um culpado.
Dessa forma, uma meia-prova não tornava o suspeito inocente enquanto a
prova não restasse consolidada, mas fazia dele um meio-culpado. Pior que isso: um
indício leve de um crime grave já era o bastante para taxar alguém como um pouco
delinquente. De forma análoga, a Santa Inquisição desconsiderava, veementemente, o
princípio da presunção de inocência, de modo que Eymerich (1993, p. 124), ao tratar do
interrogatório conduzido pelos inquisidores, disciplinava que deveria ser feito “com
calma, sem irritação, e considerando sempre o acusado como culpado”.
Uma realidade totalmente repugnante e diferente dos moldes atuais,
portanto. Como já visto anteriormente, com a ascensão da burguesia e o advento do
Iluminismo, as ideias liberais ganharam envergadura, e o homem como sujeito de
direitos viu-se no centro da nova perspectiva, destacando-se obras de grande
repercussão, como “Dos Delitos e das Penas”, de Beccaria29.
A partir disso, a presunção de inocência foi arraigando-se nos sistemas
processuais das nações – em que pese os positivistas seguidores de Ferri, conforme
ressalta Silva Júnior (2015, p. 75), não terem aceitado a presunção de inocência de
forma absoluta, pois, ao passo em que é concebida como uma verdade relativa, torna-se
possível de ser eliminada. No direito anglo-saxão, a presunção de inocência (not guilty)
apresenta-se como derivada do due process of law, extraída do direito de permanecer
calado para não se autoincriminar (right to stay mute). Mas nem sempre foi assim.
Anteriormente à segunda metade do século XVIII30, quando foram editadas
as declarações de direitos norte-americana e francesa contendo a presunção de
inocência, o grau de tortura era tamanho que, muitas vezes, acusados eram mortos caso
insistissem em permanecer calados ou se se recusassem a serem julgados. Ou seja, o
que hoje é considerado como um direito fundamental, informado pelo magistrado logo

29
Atribui-se a Beccaria, com a escrita da referida obra, o pontapé inicial, do ponto de vista jurídico penal,
das ideias iluministas que caracterizaram a escola clássica. Inaugurou, portanto, a fase filosófica da
escola clássica, de afirmação teórica das novas concepções, com ênfase para a teoria do contrato
social. Para Beccaria (2013, p. 27), a referida teoria apregoa que “leis são condições sob as quais
homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em contínuo estado de
guerra e de gozar de uma liberdade inútil pela incerteza de conservá-la”.
30
Segundo Ferreira (2013, p. 45), somente na segunda metade do século XVIII, convencionou-se que,
quando um indivíduo acusado de um crime se recusava a responder as acusações que lhe eram
imputadas, uma afirmativa de “não culpabilidade” (not guilty) deveria ser exarada por um terceiro em
seu favor. Tal ato tem o mesmo efeito que se o acusado o tivesse feito, firmando-se a regra nos moldes
em que prevalece até o momento presente na jurisdição dos Estados Unidos da América e do Canadá.
Em virtude disso, no direito anglo-saxão, o processo se instaura pela presunção de inocência.
43

no início do interrogatório do acusado – o direito ao silêncio, bem como a vedação a


não autoincriminação -, já cerceou a liberdade de muitos em tempos anteriores.
Ainda, no sistema anglo-saxão de forte componente jurisprudencial,
encontrando-se a presunção de inocência estabelecida doutrinariamente como elemento
da Common Law – a qual resulta expressamente do texto legal fundamental da
constituição norte-americana -, veio a ser designada como princípio fundamental do
processo penal pela jurisprudência, pela primeira vez, respectivamente, nos Estados
Unidos e no Reino Unido pelos acórdãos Coffin v. US e Woolmington v. DPP31.
Em linhas gerais, ambos os acórdãos fazem menção à apreciação do
princípio da presunção de inocência, à análise dos indícios em contraposição com o
mesmo e às instruções a dar ao Júri sobre as conclusões a retirar dos indícios em
confronto com o princípio da presunção de inocência do acusado quando julgado em
processo penal, que considera um direito consagrado, de forma inquestionável, nos
respectivos sistemas jurídicos.
Mediante pesquisas realizadas, a despeito de terem origem comum no
direito anglo-saxão, constata-se que a presunção de inocência nos Estados Unidos não é
tão explícita como o sistema jurídico do Canadá. Tal princípio tem sido obtido por meio
da leitura do due process, previsto na Bill of Rights, na quinta e na décima quarta
emendas à constituição norte-americana.
Já no direito canadense, o dispositivo apresenta-se expresso na Carta de
Direitos, pontualmente no item nº 11, ao versar que qualquer pessoa acusada por um
crime tem o direito de ser presumida inocente até que se prove a culpa, com uma
audiência justa e pública e com um tribunal independente e imparcial32.
Para o ordenamento jurídico canadense, a presunção de inocência requer, no
entender de Ferreira (2013, p. 46-47), que seja provada a culpabilidade além da dúvida
razoável; que o Estado suporte o ônus probatório, e que a persecutio criminis esteja em

31
Em estreita síntese, no Acórdão Coffin v. US, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América
considerou que o princípio da presunção de inocência é basilar e irrefutável, sendo um pilar da
fundação do Direito Processual Penal. Consignou a presunção de inocência com um meio de prova a
favor do acusado que cabe à acusação afastar, para além de uma dúvida razoável. Já no que se refere
ao Acórdão Woolmington v. DPP, que aprecia um caso de homicídio, a Câmara dos Lordes – que atua
como revisora das leis produzidas no seio da Câmara dos Comuns, bem como possui a prerrogativa de
fiscalizar e avaliar as atividades do Primeiro-Ministro e seu governo -, concluiu que, caso a prova
apresentada pela acusação e pela defesa não seja suficiente para formar a convicção do Júri, para além
da dúvida razoável, deve o acusado ser absolvido, independentemente da gravidade do delito.
32
No original: “Any person charged with na offence has the right: [...] d) to be presumed innocent until
proven guilty according to law in a fair and public hearing”. Disponível em:
http://laws.justice.gc.ca/en/charter/#garantie. Acesso em: 30 set. 2019.
44

consonância com procedimentos legais e justos. Afinal, como complementa Ferrajoli


(2016, p. 506), a culpa - e não a inocência - deve ser demonstrada, sendo a prova da
culpa o verdadeiro objeto do juízo.
Logo, sobrevive, em terras canadenses, a ideia de que o ônus da prova que
recai sobre o Estado, o qual deve ser feito para além da dúvida razoável (beyond
reasonable doubt33), possui íntima relação com o standard da presunção de inocência. E
esta relação permanece até que seja provada a culpabilidade do acusado, aplicando a
dúvida razoável ao longo de todo o processo.
Deve-se compreender que a dúvida abordada, nesse contexto, é baseada na
razão e no senso comum. Entretanto, não envolve uma prova de certeza absoluta, não é
prova para além de qualquer dúvida nem é um imaginário ou uma incoerência. Logo,
percebe-se que os sistemas criminais nos Estados Unidos e no Canadá objetivam, por
meio de seus discursos, manter a presunção de inocência e o in dubio pro reo durante o
curso processual.
Consequente e inevitavelmente, o princípio da presunção de inocência tal
como é concebido, no cenário brasileiro, bebe da mesma fonte do direito anglo-saxão,
possuindo profundas semelhanças quanto à sua aplicação para além da dúvida razoável.
Autores consagrados na nossa doutrina, a exemplo de Tourinho Filho (2007, p. 28),
entendem a presunção de inocência como um coroamento do due process of law.
Importante atentar que, segundo Ferreira (2013, p. 50), ao mesmo tempo em
que invocam as referências do direito anglo-saxão, os doutrinadores brasileiros
aprimoram o olhar sobre a presunção de inocência de forma até contraditória em relação
a essas referências. Nesse sentido, para Tourinho Filho (2007, p. 29), não é possível que
a presunção de inocência seja levada ao pé da letra, pois, se assim o fosse, inquéritos e
processos não seriam admissíveis, pois seriam instaurados em relação a pessoas,
presumidamente, inocentes.
Por isso, Ferreira (2013, p. 52) aduz que, enquanto no direito anglo-saxão, o
processo é instaurado sob a égide da presunção de inocência, no brasileiro a presunção

33
No entender de Bergman e Berman (2015, p. 456), “the prosecution has the burden of proving beyond
reasonable doubt each and every element of the crime. This means that if the defense raises a
reasonable doubt as to any one element, the defendant must be found not guilty. This is why the
defense typically focuses its attack on one or two elements”. (Tradução livre: “A acusação tem o ônus
de provar além de qualquer dúvida razoável todo e qualquer elemento do crime. Isto significa que, se a
defesa suscitar uma dúvida razoável sobre qualquer elemento, o réu deve ser considerado inocente. É
por isso que a defesa normalmente concentra seu ataque em um ou dois elementos”).
45

que parece vigorar de forma mais frequente quando da instauração de um processo é a


da culpabilidade. É em decorrência dessa forma de pensar que surgiu a antiga - mas
sempre atual - divergência de sentido entre os termos presunção de inocência e
presunção de não culpabilidade.
Afinal, qual seria o correto? Haveria uma expressão mais adequada do que
a outra? Qual o verdadeiro sentido que o legislador constituinte quis atribuir ao
dispostivo previsto no artigo 5º, inciso LVII, da nossa Constituição? Cenas do próximo
subtópico...
De certa forma, já adiantando, para Rangel (2009, p. 24), o magistrado ao
condenar presume a culpa e ao absolver, a inocência, sendo esta presunção juris tantum,
pois o recurso interposto a essa decisão fica sujeito à reforma ou não da sentença do
tribunal, de forma que o réu pode ser presumido culpado ou inocente. Para o referido
autor, isso em nada feriria os ditames da nossa Constituição.
Ocorre que a ausência de uma tradição histórica da presunção de inocência
impõe a problemática da sua concretização em nosso ordenamento jurídico, de forma
que, para Ferreira (2013, p. 52), tal princípio se apresenta como uma ordem revelada e,
para Tourinho Filho (2007, p. 633), como um dogma de fé.
Apesar da recente reafirmação em nosso sistema constitucional, percebe-se
que a presunção de inocência é essencial e indisponível ao Estado Democrático de
Direito. Ao mesmo tempo em que dá suporte, orienta por qual estrada percorrer e a qual
destino se quer chegar. Tal princípio é porto seguro, mas também farol. É a verdadeira
luz do nosso ordenamento jurídico, positivada após 1988.
Sem ela, principalmente no âmbito processual penal, os julgamentos se
tornariam suspeitos; as penas correriam o risco de serem fixadas de forma arbitrária, e o
ser humano poderia não mais ser visto e respeitado como sujeito de direitos. Defende-se
que é a presunção de inocência que dá conformidade e legitimidade constitucional não
só aos julgamentos, mas como a todo o sistema jurídico.
A despeito de se constatar a origem do princípio no sistema anglo-saxão,
percebe-se certo antagonismo na estrutura de pensar nos sistemas canadense e
estadunidense em relação ao modelo processual penal adotado pelo Brasil. Isso porque
não existe na nossa Constituição, tampouco no Código de Processo Penal Brasileiro, a
expressão presunção de inocência tal como expressa no código canadense.
Constata-se, a partir disso, que, no Brasil, o ideal da presunção de inocência
está inserido no plano programático constitucional, sem uma existência explícita do
46

termo ipsis litteris. No entender de Lopes Júnior (2017, p. 192) – do qual se faz coro -,
isso não representa qualquer prejuízo ou mácula à sua boa e necessária aplicabilidade
em nosso sistema.
Afinal, como o próprio nome já garante, é pressuposto, não necessitando
estar positivado em lugar nenhum para ser perfeitamente aplicado. Percebe-se, assim,
que a presunção de inocência não necessita de abrigo exato na estrutura do processo
penal brasileiro, tal como ocorre no direito anglo-saxão, para ser aplicada em nosso
ordenamento jurídico – sobretudo se observada a opção garantista adotada pelo
constituinte de 1988.
Com efeito, apoiando-se na lógica do direito anglo-saxão, não recai sobre o
acusado a obrigação de produzir a prova, pois toda atividade de defesa está ligada de
forma explícita e direta à desconstituição do parâmetro do beyond reasonable doubt
exigido à acusação. Este é o ônus da prova que a acusação carrega e, caso não obtenha
êxito na desconstituição da dúvida razoável, perderá a sua causa.
Nessa esteira, no direito anglo-saxão, a evidência apenas será considerada
prova, nos dizeres de Ferreira (2013, p. 57), se passar pelo crivo das regras de evidência
em audiência preliminar processual, de forma que as provas estão sujeitas ao exame que
é feito pelas partes em audiência pública judicial.
No sistema anglo-saxônico, em razão da presunção de inocência, a defesa
tem a mera faculdade de apresentar provas, já que a principal finalidade desta é
desconstituir o padrão de prova exigido para uma condenação, para um nível inferior
não admitido na esfera criminal, capaz de gerar a absolvição do acusado. Basta a defesa,
portanto, atingir a dúvida razoável, de forma que o magistrado no Tribunal do Júri
orienta os jurados sobre a presunção de inocência e o padrão de prova que a acusação
deve alcançar.
Ressalte-se que os sistemas jurídicos anglo-saxônicos não são embasados
apenas na jurisprudência, mas também na lei e que esta impõem limites ao princípio da
presunção da inocência, mediante a criação, que terá de se adequar, digamos assim, aos
limites estritos de proporcionalidade e de necessidade e, quanto a crimes de menor
gravidade, de exceções legais à concepção geral de que o ônus da prova, no processo
pena, cabe à acusação inteiramente.
Em apertada síntese, perante o sistema jurídico anglo-saxão, nota-se que a
presunção de inocência encontra-se interligada com o princípio do processo equitativo e
ao direito a um julgamento justo, relacionada à prova e ao respectivo ônus da prova,
47

transferindo-se esta perspectiva para alguns textos internacionais, a exemplo da


Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 11; do Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos, artigo 14; da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
artigo 6º, e da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, artigo 48, possuindo, por
excelência, aplicação somente em sede de julgamento.
Logo, é notório que tal perspectiva é alheia à maneira como o suspeito é
tratado em momento prévio ao julgamento e à própria obtenção da prova, reportando-se
tão só à apreciação dos indícios reunidos em julgamento, máxime perante os jurados no
Tribunal do Júri, instruídos pelo juiz a respeitá-la, sob pena de anulação do julgamento.
Assim, destina-se a garantir ao acusado um julgamento, efetivamente, justo e a
contrabalançar o considerável poder que o Estado detém frente ao indivíduo.
Já no direito brasileiro, o júri não recebe qualquer instrução naquele sentido,
e a ausência dos padrões de verdade exige que a defesa se esforce como a acusação no
que tange à produção da verdade. Se observada a gênese da presunção de inocência no
sistema anglo-saxão, percebe-se que a forma como é aplicada no direito brasileiro
dificulta e, de certa forma, impede à sua constituição no processo judicial brasileiro,
fazendo que este princípio assuma feições teratológicas em nosso ordenamento, com um
dogma bastante sui generis em relação à sua tradição jurídica.
Em que pese tal constatação, depreendida de uma perspectiva comparada, é
notável a essencialidade da presunção de inocência em nosso ordenamento, sobretudo
como forma de evitar arbítrios e excesso do Estado. Tal princípio vigora até que seja
desconstituída a dúvida razoável com o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória, quando, então, o acusado deixa de ser presumidamente inocente, para ser
considerado, de fato, culpado.

3.2 Presunção de inocência ou presunção de não culpabilidade: escolha


material do constituinte

Ao iniciar os estudos no curso de direito, uma das primeiras constatações


feitas é a de que: em direito, quase tudo depende. Ora, quantos questionamentos
surgiram, ao longo da graduação, que permaneceram sem uma resposta definida?
Certamente, não foram poucos. Além disso, quantos colegas ou professores possuíam
entendimento divergente do que se adotava? Inúmeros, não é mesmo?
48

O direito, na sua mais pura essência, é feito de divergências, de posições


múltiplas adotadas a fim de se chegar (ou não) a um consenso sobre determinada
questão. Até mesmo, os nossos tribunais superiores são marcados por pensamentos
conflitantes, seja entre as turmas, seja, não raras vezes, entre os membros de uma
mesma turma.
Mas não há problemas em se pensar diferente. Afinal, o Brasil é um país
miscigenado, multifacetado, e o direito, à sua imagem e semelhança, também o é. Não é
por acaso que a nossa Constituição assegura, dentre outras, a liberdade de pensamento e
de expressão. Do contrário, se os pensamentos fossem sempre os mesmos, nas palavras
do nosso eterno Tom Jobim (1981), “existiria a verdade, verdade que ninguém vê, se
todos fossem no mundo iguais a você”.
Nesse contexto, o tema em que se debruçará, a partir de então, é motivo de
divergência por parte da doutrina ainda nos dias atuais. Afinal, a partir do que se
depreende da forma redacional do inciso LVII, do artigo 5º, da nossa Constituição, é
mais adequado falar em presunção de inocência ou em presunção de não
culpabilidade?
Quanto a esta temática, os posicionamentos são diversos, e o embate não é
recente. Tourinho Filho (2009, p. 63) afirma que alguns doutrinadores entendem que foi
adotada a presunção de inocência, mas para outros, o postulado acolhido pela Carta
constitucional brasileira foi o da não culpabilidade.
Ressalte-se que, sob as perspectivas jurídica e histórica, a presunção de
inocência e a presunção de não culpabilidade, na origem, não se equivalem e decorrem
de profunda divergência entre as Escolas penais italianas do século XIX e XX. Tal
embate contrapôs os partidários das chamadas Escola Clássica e Escola Positiva, com o
recrudescimento das críticas a partir do início do século XX, com os partidários da
Escola Técnico-Jurídica.
A criminologia clássica, encabeçada por Beccaria, tinha conotações com o
pensamento iluminista e adotou uma postura crítica frente ao jus puniendi estatal. Por
outro lado, o positivismo criminológico carece de raízes liberais, sobrepondo a rigorosa
defesa da ordem social frente aos direitos do indivíduo e diagnosticando o mal do delito
com atribuições a fatores patológicos que exculpa, de antemão, a sociedade.
Nessa perspectiva, não é difícil perceber que a presunção de inocência foi
adotada pela Escola Clássica, sofrendo acentuada mitigação pelos ideais da Positiva.
Beccaria (2013, p. 61), ao alvorecer da Escola Clássica, já ressaltava que um homem
49

não pode ser chamado de culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe pode
tirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais
ela foi outorgada.
Por outro lado, Ferri (s/d, p. 194), representante da Escola Positiva, defendia
que só deveria ser presumida a inocência do acusado se estivéssemos diante de meros
indícios, verificados nos denominados procedimentos de instrução ou período
preparatório do juízo. Havendo flagrante ou confissão ou se tratando de criminoso
reincidente, não deveria ser presumida a sua inocência, mas, ao revés, a sua
culpabilidade.
Inobstante essas proposições dessarazoadas, Ferri (s/d, p. 195) continuou
atacando a presunção de inocência, taxando-a de presunção ilógica contrária às razões
de justiça e de utilidade social. Inclusive, foi dele a proposta, adotada por influência do
Código de Processo Penal Italiano de 1931, do que constava da redação atual do artigo
386, VII, do nosso Código de Processo Penal, que distinguia um tipo de sentença
absolutória baseada na insuficiência probatória - como se isso alterasse a decisão do
juiz, que declara, sem ressalvas e erga omnes, a absolvição do acusado34.
Ou seja, percebe-se que nem sempre foi reconhecida a situação de
presumidamente inocente à pessoa acusada no processo penal. No entender de Binder
(2002, p. 125-126), o positivismo criminológico ou certas tendências processuais
baseadas em concepções autoritárias pretenderam limitar este status a certos imputados,
os ocasionais, não sendo possível para multirreincidentes, habituais ou simplesmente
perigosos.
Nesse contexto, a noção de não consideração prévia da culpabilidade foi
uma criação positivista do fascismo, habilmente, elaborada com o propósito de atingir a
palavra inocência mediante um ataque técnico-jurídico com o uso do termo presunção.
À época, disseminava-se a ideia de que não se podia afirmar se o imputado era culpado

34
Importante ressaltar que outros dispositivos do Código de Processo Penal Brasileiro receberam
influência do pensamento de Ferri. A ideia defendida pelo teórico de que fosse assegurado ao acusado,
em nome do princípio da presunção de inocência, o direito de recorrer em liberdade, mesmo quando a
sentença de primeira instância o tenha condenado constava, de certa forma, nas redações anteriores dos
artigos 408, §2º, e 594, ambos do CPP. Quando o juiz reconhecia, na sentença, que o acusado não
possuía bons antecedentes ou que era reincidente, poderia, desde logo, decreta-lhe a prisão,
excetuando-se no caso de crime afiançável, o qual deveria ser arbitrado o valor. A despeito de os
dispositivos em comento terem sido revogados, respectivamente, pelas Leis nºs 11.689 e 11.719,
ambas de 2008, não se pode deixar de reconhecer a origem destes nas ideias da Escola Positiva Penal,
capitaneada por Ferri.
50

nem inocente já no início da persecutio criminis, devendo ser considerado não culpado,
e nunca inocente.
No que se refere ao surgimento da expressão presunção de inocência, o
mérito incumbe, de fato, aos iluministas revolucionários que, ao lutarem pela inscrição
de vários direitos humanos em uma Carta Política de relevância mundial e histórica,
pensaram além da ciência criminal, de forma reflexa e ampla. Essa atitude de pensar
fora da caixa foi movida pelos sentimentos de transformação político-social e de
ruptura do status quo político até então institucionalizado.
Melhor aduzindo, essa forma revolucionária de enxergar o mundo, própria
do Século das Luzes, tinha mais um condão filosófico-político que jurídico. Quando
emprestada ao processo penal, a força dos iluministas buscou afirmar, naquele contexto
mundial, o ideário de que o homem, em sua essência, é honesto e não criminoso por
meio da positivação do termo presunção de inocência.
Nesse contexto, a nossa Constituição de 1988, promulgada após um cruel
período de autoritarismo e de mitigação dos direitos fundamentais, institucionalizou ser
o Brasil um Estado Democrático de Direito, constituindo um dos seus primados a
respeito da dignidade da pessoa humana. Diante desse contexto garantista segundo o
qual a nossa Constituição emergiu, poderia ser um contrassenso o nosso constituinte
ceder aos resquícios nazifascistas do termo presunção de não culpabilidade?
Ora, essa contradição nos parece, meramente, aparente, de forma que a
coerência renasce com a constatação de que o constituinte procurou elaborar o texto
normativo como se entendeu ser um melhor apuro técnico na linguagem. Cedeu, então,
aos argumentos neutros da Escola Técnico-Jurídica italiana, não se afastando, em
momento algum, de toda a extensão do preceito humanitário universal da presunção de
inocência, conforme preconizado pelo movimento revolucionário francês de 1789.
Parece que a presunção de inocência foi reafirmada, de forma que não
considerar alguém previamente culpado até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória foi, exatamente, a forma encontrada pelo nosso constituinte de proteger
aquele principio maior. Tal opção pelo valor humanista fica muito nítida já no
anteprojeto constitucional, elaborado pela Comissão presidida pelo jurista Afonso
Arinos de Melo Franco, no Capítulo II, denominado “Dos direitos e garantias”, quando
no §7º, do artigo 43, continha a proposta de que se presume inocente todo acusado até
que haja declaração judicial de culpa.
51

Instalada a Assembleia Nacional Constituinte, em 1º de fevereiro de 1987,


formaram-se oito comissões temáticas, sendo uma delas responsável pela “Soberania e
Direitos e Garantias do Homem e da Mulher”. Ante a extensão notória dos temas
abordados por esta comissão, ela foi subdividida em 03 (três) subcomissões, na qual
uma delas ficou responsável pelos “Direitos e Garantias Individuais” exclusivamente.
Em 15 de junho de 1987, a mencionada subcomissão entregou a proposta
final de redação, versando - no artigo 3º, inciso XIX, alínea “g” - que se presume a
inocência do acusado até o trânsito em julgado da sentença condenatória. A redação
que atualmente está posta na CRFB/88 resulta de alteração legislativa proposta pelo
constituinte José Inácio Ferreira, em 12 de agosto de 1987, por meio da Emenda nº
1P11998-7, com a justificativa de caracterizar, de modo mais técnico, a presunção de
inocência, sendo mantida, inteiramente, a garantia do atual dispositivo.
Depreende-se, então, que, em um primeiro momento, na fase pré-
constituinte, os termos presunção de inocência e presunção de não culpabilidade eram
vistos como sinônimos. O constituinte incorpora o ideário iluminista da presunção de
inocência, concebido após o período sombrio da Inquisição, revitalizado como primado
geral já na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.
Ressalte-se, ainda, que a Constituição é um sistema e, como tal, deve
apresentar compatibilidade entre as normas que contém e os ideais pelos quais é
embasada, de forma que, seria uma verdadeira contradição elevar à categoria de direito
ou de garantia fundamental do cidadão a consideração prévia da culpabilidade do
imputado, como percebido nos moldes da Escola Técnico-Jurídica, de influência
nazifascista.
Por ser impossível a coexistência técnica de conteúdo - constitucional
brasileiro e ideológico fascista -, em momento algum dos trabalhos constituintes foi
sugerido ou cogitado qualquer argumento violador daquele direito fundamental tão
difícil de ser conquistado. Afinal, do contrário, seria um golpe irreparável a todos que
deram suas vidas no período militar no afã de extirpar do nosso País aquela ideologia
autoritária e, em essência, desumana.
Diante da nitidez da escolha material pelo conteúdo político-ideológico da
presunção de inocência, com o passar dos anos, a doutrina e a jurisprudência se
preocuparam, em um primeiro momento, em fazer a tarefa mais complicada, qual seja:
eliminar o viés ideológico-fascista que a expressão presunção de não culpabilidade,
52

ainda, poderia conter. Era esse o intuito doutrinário quando empregou as duas
expressões como sinônimas.
Já em um segundo momento, quando restou, aparentemente, superada
aquela preocupação inicial, firmou-se a convicção de que não era juridicamente útil a
diferenciação entre os termos inocente e não culpado. A nível mundial, é bem verdade,
a correlação entre as expressões só foi possível quando a Itália subscreveu tratados de
direitos humanos e igualou os influxos políticos-ideológicos para ambas as expressões.
Diante desse contexto histórico, não poderíamos esperar que a questão da
nomenclatura fosse pacífica na nossa doutrina. Alguns doutrinadores, a exemplo de
Badaró (2003, p. 18) e de Gomes (1996, p. 22), atestaram não haver diferença
conteudística entre os dois termos, pois as expressões inocente e não culpado
constituem tão somente variantes semânticas de um mesmo conteúdo. Na perspectiva
de Badaró (2003, p. 18), seria até inútil e contraproducente tentar dissociar ambas as
ideias, devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas.
Do contrário, para o supramencionado doutrinador, estar-se-ia diante de
posturas reacionárias e de esforços vãos de retorno a um processo penal voltado,
exclusivamente, para defesa social, que não pode ser admitido em um Estado
Democrático de Direito, cujas noções de garantias são, nitidamente, ampliadas. Mas, de
fato, em um ordenamento jurídico amplo e multifacetado como se apresenta o nosso,
não faltam aqueles que escolhem apenas um lado da moeda.
Carvalho (2006, p. 156) defende a nomenclatura presunção de não
culpabilidade, sustentando que não se pode presumir a inocência do acusado se contra
ele tiver sido instaurada ação penal, pois se estaria diante de um suporte probatório
mínimo. Logo, o que se poderia presumir é a sua não culpabilidade, até que assim seja
declarado judicialmente – não sendo cogitada, propriamente, uma presunção.
Nos dizeres de Rangel (2009, p. 24), em uma visão sistemática, o disposto
no inciso LVII, do artigo 5º, da CRFB/88, não pode ser entendido como presunção de
inocência, mas como regra constitucional que inverte o ônus da prova para o Ministério
Público. Ademais, o referido autor justifica que não utiliza o termo presunção de
inocência, pois, se o acusado não pode ser considerado culpado até o trânsito em
julgado da sentença penal condenatória, também não o deve ser presumidamente
inocente.
Há ainda aqueles que, a exemplo de Silva (2004, p. 158), afirmam que a
norma constitucional em questão garante a presunção de inocência por meio de um
53

enunciado negativo universal. No entender de Delmanto Júnior (2001, p. 60-61), a


Constituição adotou tão somente o direito à desconsideração prévia de culpabilidade,
reconhecendo que o princípio da presunção de inocência restou incorporado ao texto
constitucional em decorrência do disposto no §2º, do artigo 5º 35 , da CRFB/88,
conjugado com a ratificação do Pacto de San José da Costa Rica pelo Decreto n. 678, de
06 de novembro de 1992.
Sob a ótica de Barbagalo (2015, p. 60), seja por incorporação constitucional
de diplomas internacionais dos quais o Brasil é signatário (artigo 5º, § 2º, da CRFB/88),
seja por equiparação dos institutos, é possível afirmar que a Constituição consagrou a
ideia e todo o significado histórico do termo presunção de inocência, sendo esta a
escolha material do nosso legislador constituinte. Tal entendimento coaduna-se com o
de Tourinho Filho.
Ressalte-se, ainda, a existência de doutrinadores que defendem a
coexistência pacifica e harmônica entre os princípios da presunção de inocência e da
presunção de não culpabilidade em nosso ordenamento jurídico, com incidência em
diferentes momentos da persecutio criminis – sendo, de antemão, este o entendimento
que nos parece mais coerente, em virtude da ampliação do contexto de garantias
conferidas ao acusado com a nossa Constituição.
Nesse sentido, Silva Júnior (2015, p. 387) relaciona cada um desses dois
princípios com o momento processual de sua aplicação. Para o supramencionado
doutrinador, a presunção de inocência é aplicada até a fase decisória do processo,
quando, então, cede lugar à presunção de não culpabilidade. Desse modo, a presunção
de inocência protege o cidadão contra indiciamentos arbitrários, não devendo este
responder por um processo sem que contra ele estejam presentes a materialidade e os
indícios de autoria.
Melhor aduzindo, é inadmissível, em um Estado Democrático de Direito,
que o ser humano responda a acusações desprovidas de justa causa. Mais à frente, sendo
admitida a acusação e estando a persecução penal já na fase decisória, passa a vigorar a
presunção de não culpabilidade em toda a sua plenitude, termo utilizado nas recentes
decisões do Supremo Tribunal Federal que, para Silva Júnior (2015, p. 376), parece ser
de melhor técnica.

35
CRFB/88 – Artigo 5º, §2º - Os direitos e garantias expostos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.
54

Nessa esteira, o Supremo Tribunal Federal opta pela expressão presunção


de inocência36, mas utiliza a expressão presunção de não culpabilidade37, de maneira
indistinta, em alguns momentos. Interessante registrar que, em um dos julgamentos, foi
consignado, inclusive, que a “presunção de não culpabilidade é situação jurídica ativa
ainda mais densa ou de mais forte carga protetiva do que a simples presunção de
inocência”38.
Cite-se, ainda, o posicionamento consignado pelo ministro Teori Zavascki
(in memoriam) nos autos do Habeas Corpus 126.292/SP, segundo o qual, antes de
prolatada a sentença penal, devem se manter dúvidas acerca do comportamento
contrário à ordem jurídica, o que leva a atribuição, ao acusado, do título de
presumidamente inocente. Do contrário, eventual condenação representa um juízo de
culpabilidade, decorrente da coerência dos elementos de prova produzidos mediante
contraditório no curso processual.
Ante o exposto, no nosso sentir, a despeito de a escolha positivada, ipsis
litteris, do nosso legislador constituinte não tenha sido pelo termo presunção de
inocência, percebe-se que o sentido conferido foi o de realmente considerar o ser
humano inocente até que a sua culpa esteja provada, definitivamente, pelo trânsito em
julgado. Essa presunção se manifesta por meio da presunção de inocência na fase inicial
das investigações e por meio da presunção de não culpabilidade na fase decisória.
Entende-se, dessa forma, pois, considerando o contexto de salvaguarda de
direitos fundamentais nascido com a Constituição de 1988 pós um período de forte
supressão de direitos fundamentais que foi a Ditadura Militar, a proteção aos seres
humanos deve ser a mais ampla e irrestrita possível, de forma que a coexistência
harmônica dos dois princípios constitui verdadeira baliza ao jus puniendi e ao jus
persequendi estatais e figura como fundamento maior do Estado Democrático de
Direito.

3.3 Contrastes e confrontos da presunção de inocência em perspectiva comparada

36
Vide BRASIL. STF. HC ns. 110235, 105750, 93427, 93315, 89503 e 71289.
37
Vide BRASIL. STF. HC n. 80.719 e RHC 100.913.
38
BRASIL. STF - HC n. 101909/MG, Segunda Turma, Relator Ministro Ayres Brito, data de julgamento
28/02/2012, DJe 19/06/2012.
55

Entende-se que estudar o direito, mediante uma análise comprada, é uma


das experiências acadêmicas mais ricas que se pode ter. Expandir os horizontes da
pesquisa e do saber a respeito de certo tema é, extremamente, engrandecedor e
gratificante, seja para o pesquisador, seja para o leitor daquela pesquisa ou para a
sociedade que dela se valha futuramente, pois todos saem ganhando em termos de
conhecerem melhor, não só o que dizem as normas internacionais sobre aquela
temática, como o próprio direito nacional vigente.
Por mais que existam semelhanças entre os sistemas jurídicos comparados,
é preciso ter em mente que se tratam de direitos, essencialmente, distintos, aplicáveis
em locais que se diferenciam em aspectos culturais, econômicos, sociais, políticos,
dentre outros. A despeito de a vontade de tratar do maior número de países possível seja
tamanha, o propósito deste trabalho nos limita quanto à decisão dos ordenamentos
jurídicos em que escolhemos estudar a presunção de inocência.
Como já abordado detalhada e previamente, o direito anglo-saxão
estadunidense e canadense constitui importante base da presunção de inocência para
além da dúvida razoável como conhecemos em nosso ordenamento jurídico hoje.
Observe-se, senão, como resta positivada tal temática em outros países.
A Constituição da República Portuguesa de 1976 39 , igualmente à nossa
CRFB/88, foi confeccionada após um período ditatorial e, como consequência lógica,
buscou tratar, minuciosamente, dos direitos fundamentais. Por outro lado,
diferentemente da nossa Constituição, faz menção expressa ao termo inocente ao invés
de uma não consideração prévia como culpado, mas, em ambos os direitos, exige-se o
trânsito em julgado da sentença condenatória como forma de afastar a presunção de
inocência.
Tal semelhança aproxima as formas de tratamento do referido princípio nos
dois países. Ademais, a redação adotada pelo legislador lusitano expressa a celeridade
processual como corolário do princípio da presunção de inocência. Além de garantista,
o constituinte português demonstra a sua complacência com todos os traumas deixados
em um individuo que carregou e carrega sobre si o eterno peso de um processo penal.

39
Nos exatos termos da Constituição da República Portuguesa de 1976, “Todo o arguido se presume
inocente até o trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo
compatível com as garantias de defesa” (artigo 32, nº 02, da CRP). Disponível em:
https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx. Acesso em: 04
out. 2019.
56

Quanto à legislação infraconstitucional, a matéria referente à prisão


provisória é a que sofre maior tensão entre a presunção de inocência do acusado e a
necessidade de punição dos responsáveis pelas infrações penais. Tendo como escopo o
artigo 204 do Código de Processo Penal Português, a fuga ou o perigo de fuga, as
exigências instrutórias e o perigo de continuação da atividade criminosa ou de
perturbação da ordem e da tranquilidade públicas correspondem, respectivamente, à
necessidade de assegurar a aplicação da lei penal, à conveniência da instrução criminal
e à garantia das ordens pública e econômica, nos termos do artigo 312, do Código de
Processo Penal Brasileiro.
Dessa forma, há estrita correspondência entre as disciplinas referentes à
prisão cautelar no Brasil e em Portugal, de forma que se apresenta, inequivocamente,
como corolário do reconhecimento em nível constitucional da presunção de inocência.
Tal correspondência entre os dispositivos acima mencionados, de certa forma, não nos
surpreende, haja vista a herança histórica deixada pelos lusitanos em terrae brasilis.
Igualmente como no português, no ordenamento jurídico espanhol, o tema
presunção de inocência aparece de forma expressa e inaugural no artigo 24, nº 2, da
Constituição Espanhola de 1978. Na Espanha, tal princípio não exige o trânsito em
julgado da sentença penal condenatória, mas a presunção de inocência é mantida até que
não seja destituída pela prova em contrário, constituindo, portanto, uma presunção juris
tantum, no entendimento de Pardo (1999, p. 34).
Percebe-se, então, que, uma vez presente o decreto condenatório, mesmo
sem a ocorrência do trânsito em julgado – neste ponto, vejamos a diferença singular em
relação aos ordenamentos jurídicos brasileiro e português -, desconsidera-se o estado de
presunção de inocência, podendo o condenado sujeitar-se à execução da pena, ainda que
haja recurso pendente de análise.
No ordenamento jurídico francês, igualmente como no português e no
espanhol, a palavra inocente aparece de forma expressa e, tal qual o espanhol, não há
exigência expressa do trânsito em julgado para o reconhecimento da culpa, segundo o
artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão40. Essa exigência decorre
do Code de Procédure Pénal de 1957/1958, que prevê no seu artigo 471, “o adiamento
da execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória”.

40
Os princípios da supramencionada declaração constam no preâmbulo da Constituição Francesa de
1958, de forma que possuem autoridade superior à lei geral francesa.
57

Nota-se, desde já, que, na França, apesar de a aplicação da presunção de


inocência não assumir a posição de destaque alcançada no Brasil no que tange à prisão
preventiva, depreende-se que, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, o
acusado é presumidamente inocente graças ao disposto no Código de Processo Penal
Francês. Assim, quanto à vedação da execução antecipada da pena, as legislações
francesa e brasileira possuem nítida correspondência.
Segundo o direito italiano, guardando certa semelhança com o brasileiro,
acusado não é considerado culpado até a condenação definitiva. Diferentemente da
CRFB/88 que traz, expressamente, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória
como verdadeiro limite à presunção de inocência, a Constituição Italiana no nº 02 do
artigo 27, traz implícita a mesma ideia.
Na Itália, optou-se adotar uma formula diferenciada – de certa forma, mais
tímida se comparada a outras constituições europeias -, não expressiva da presunção de
inocência, mas de uma presunão de não culpabilidade agregada ao acusado no decorrer
do processo e que só poderia ser efetivamente contrariada com o advento da
definitividade da condenação. Frise-se, por oportuno, que condenação definitiva é
diferente de sentença definitiva, pois esta é apenas a decisão que julga o mérito da
causa, ainda sujeita a recurso, e aquela seria o próprio trânsito em julgado.
Na América do Sul, a aplicação da presunção de inocência ganha uma
roupagem sui generis. Na Argentina, a Constituição, mesmo com as suas reformas
subsequentes, não previu, expressamente, a presunção de inocência em sua concepção
original, sendo recepcionada pelo artigo 31 – o qual confere aos tratados internacionais
o caráter de Lei Suprema da Nação41 – e pelo artigo 33 – segundo o qual outros direitos
e garantias não enumerados foram recepcionados, os quais nascem da soberania do
povo e da forma republicana de governo42.
Ainda assim, entende-se que não há impedimento para que os nossos
hermanos iniciem a execução penal antes do trânsito em julgado da sentença penal

41
No original: “ARTÍCULO 31.- Esta Constitución, las leyes de la Nación que en su consecuencia se
dicten por el Congreso y los tratados con las potencias extranjeras son la ley Suprema de la Nación; y
las autoridades de cada provincia están obligadas a conformarse a ella, no obstante cualquiera
disposición en contrario que contengan las leyes o constituciones provinciales, salvo para la Provincia
de Buenos Aires, los tratados ratificados después del pacto de 11 de noviembre de 1859”.
42
No original: “ARTÍCULO 33.- Las declaraciones, derechos y garantías que enumera la Constitución,
no serán entendidos como negación de otros derechos y garantías no enumerados; pero que nacen del
principio de la soberanía del pueblo y de la forma republicana de gobierno”.
58

condenatória, visto que o Código de Processo Penal argentino, nos artigos 494 e 495,
prevê que a pena privativa de liberdade seja cumprida de imediato43.
Na Constituição uruguaia 44 , a presunção de inocência não é prevista de
forma expressa, mas se entende que estaria implícita no artigo 12, pois “ninguém pode
ser punido ou preso sem o devido processo legal e sentença legal”. A constituição
chilena de 1980 também não contempla a forma tradicional da presunção de inocência,
mas alguns doutrinadores dizem que esteja prevista, implicitamente45, no artigo 19, nº 3,
inciso 6º.
Por outro lado, na Constituição peruana46, a presunção de inocência resta
posta no artigo 2º, 24, alínea “e”, segundo a qual “toda pessoa é considerada inocente
enquanto não seja declarada judicialmente sua responsabilidade”. Da mesma forma, as
constituições paraguaia47 e venezuelana48 preveem este princípio, respectivamente, no
artigo 17, nº 1, e no artigo 49, nº 2.
Igualmente, trata-se da mesma hipótese da Constituição colombiana, que,
em seu artigo 29, estabelece ser toda pessoa presumidamente inocente até que seja
declarada judicialmente culpada, sendo-lhe previstas outras garantias, de ordem

43
No original: “Pena privativa de la libertad.
ARTÍCULO 494.- Cuando el condenado a pena privativa de la libertad no estuviere preso, se ordenará su
captura, salvo que aquélla no exceda de seis (6) meses y no exista sospecha de fuga. En este caso, se le
notificará para que se constituya detenido dentro de los cinco (5) días.
Si el condenado estuviere preso, o cuando se constituyere detenido, se ordenará su alojamiento en la
cárcel penitenciaria correspondiente, a cuya dirección se le comunicará el cómputo, remitiéndosele
copia de la sentencia.
Suspensión.
ARTÍCULO 495.- La ejecución de una pena privativa de la libertad podrá ser diferida por el tribunal de
juicio solamente en los siguientes casos:
1. Cuando deba cumplirla una mujer embarazada o que tenga un hijo menor de seis (6) meses, al
momento de la sentencia.
2. Si el condenado se encontrare gravemente enfermo y la inmediata ejecución pusiere en peligro su vida,
según el dictamen de peritos designados de oficio.
Cuando cesen esas condiciones, la sentencia se ejecutará inmediatamente.”
44
No original: “Artículo 12.- Nadie puede ser penado ni confinado sin forma de proceso y sentencia
legal.”
45
In litteris: “A lei não poderá presumir responsabilidade legal”.
46
“Artículo 2º - Derechos fundamentales de la persona.
A la vida, a su identidad, a su integridad moral, psíquica y física y a su libre desarrollo y bienestar. El
concebido es sujeto de derecho en todo cuanto le favorece. [...] 24. A la libertad y a la seguridad
personales. En consecuencia: [...] e. Toda persona es considerada inocente mientras no se haya
declarado judicialmente su responsabilidad.”.
47
“Artículo 17 - DE LOS DERECHOS PROCESALES En el proceso penal, o en cualquier otro del cual
pudiera derivarse pena o sanción, toda persona tiene derecho a: 1. que sea presumida su inocencia;”.
48
“Artículo 49. El debido proceso se aplicará a todas las actuaciones judiciales y administrativas y, en
consecuencia: […] 2. Toda persona se presume inocente mientras no se pruebe lo contrario”.
59

processual e material 49 . De fato, resta patente o compromisso que tais países –


Colômbia, Peru, Paraguai e Venezuela - assumem com a presunção de inocência do
acusado, ao estabelecerem o princípio de forma expressa, ao lado de outras garantias
processuais penais em suas cartas constitucionais.
Por meio dessa análise em perspectiva comparada, é nítido que o
ordenamento jurídico brasileiro guarda maiores semelhanças com as Constituições
europeias, no que tange à garantia do direito à presunção de inocência até o trânsito em
julgado da sentença penal condenatória. Isso porque não se observou outro diploma
constitucional sul-americano que assegure, como positivado no brasileiro, a condição de
presumidamente não culpado até o julgamento definitivo do processo penal, ou seja, o
trânsito em julgado da sentença penal.

49
“Artículo 29: El debido proceso se aplicará a toda clase de actuaciones judiciales y administrativas.
Nadie podrá ser juzgado sinod conforme a leyes preexistentes al acto que se le imputa, ante juez o
tribunal competente y con observancia de la plenitud de las formas propias de cada juicio. En materia
penal, la ley permisiva o favorable, aun cuando sea posterior, se aplicará de preferencia a la restrictiva
o desfavorable. Toda persona se presume inocente mientras no se la haya declarado judicialmente
culpable. Quien sea sindicado tiene derecho a la defensa y a la asistencia de un abogado escogido por
él, o de oficio, durante la investigación y el juzgamiento; a un debido proceso público sin dilaciones
injustificadas; a presentar pruebas y a controvertir las que se alleguen en su contra; a impugnar la
sentencia condenatoria, y a no ser juzgado dos veces por el mismo hecho. Es nula, de pleno derecho, la
prueba obtenida con violación del debido proceso.”
60

4 O ACUSADO PRESUMIDAMENTE INOCENTE ENQUANTO OBJETO DO


SENSACIONALISMO MIDIÁTICO

Analisada a presunção de inocência como direito fundamental que coloca o


ser humano no patamar de sujeito de direitos, bem como normativa balizadora dos
eventuais excessos e arbítrios estatais, é preciso atentar a uma preocupação não tão
recente, mas que começou a rondar o nosso ordenamento jurídico de forma mais intensa
a partir dos anos 90: a mídia.
Conforme observa Fernandes (2017, p. 248), desde os tempos mais remotos,
a sociedade tem curiosidade pela observação e pelo desejo de conhecimento da
desgraça alheia, conhecimento este que é dado, principalmente, pelos meios de
comunicação, os quais, com o passar do tempo, evoluíram em formas e em velocidade,
por vezes, incontrolável.
A difusão de notícias – majoritariamente, pelo lado do acusador – solidifica,
no entender de Fernandes (2017, p. 248), uma espécie de crime a la carte oferecido pela
mídia diariamente. Desse modo, inevitavelmente, a investigação penal e o próprio
processo penal se transformam em verdadeiros espetáculos aos olhos do público,
composto pela sociedade em geral, que acompanha, atentamente, cada ato destes
espetáculos.
No mesmo espectro, a imprensa, ávida por atender o clamor social e por
buscar notícias que atraíam a atenção e a audiência do público, não mede esforços para
produzir conteúdo que lhe garanta ibope. Tomada por essa preocupação, não raras
vezes, a imprensa se esquece de um direito fundamental previsto em nossa Constituição,
assegurado aos cidadãos e tão caro ao Estado Democrático de Direito: a presunção de
inocência.
Ao falar em sensacionalismo midiático, busca-se referir, coadunando com o
pensamento de Angrimani (1995, p. 16), à produção de notícias que extrapolam a esfera
do real, superdimensionando o fato que se pretende noticiar. Trata-se, modus in rebus,
de sensacionalizar o que não é tão sensacional assim por meio de uma linguagem,
desnecessariamente, escandalosa. E, como consequência antecipada pelo título deste
61

capítulo, sensacionaliza-se o cidadão, esquecendo-se, frequentemente, da sua condição


de presumidamente inocente50 assegurada pela CRFB/88.
Nesse contexto sensacionalista, questiona-se para onde vai o estado de
presumidamente inocente (até o recebimento da ação penal) e de presumidamente não
culpado (até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória), dos quais os
cidadãos, constitucionalmente, fazem jus 51 ? Como ficam as balizas garantidoras do
Estado Democrático de Direito de que a lei deve ser seguida, inobstante o clamor
popular ser contrário ou favorável aos seus preceitos?
Importante ressaltar que, como norma probatória, a presunção de inocência
é analisada sob os seguintes aspectos: de quem deve provar e por meio de que tipo de
meio probatório deve fazê-lo. Inicialmente, não se pode esquecer que, em nosso sistema
processual penal, o ônus da prova cabe, inteiramente, ao órgão acusador – em regra, o
Ministério Público -, em razão de ser o titular da ação penal52.
Seria ilógico conceber, em um sistema acusatório, que alguém, acusado em
um processo penal, tivesse que provar a sua própria inocência. Tal premissa se torna
ainda mais descabida se analisada em relação ao escopo garantista trazido pela
Constituição Cidadã. O nosso sistema é todo voltado para que a acusação produza as
provas de que necessita, no afã de, ao final da persecução penal, o pedido condenatório,
por ela formulado, mereça ser julgado procedente53.

50
No entender do argentino Maier (2002, p. 491-492), “‘Presumir inocente’, ‘reputar inocente’ ou ‘não
considerar culpável’ significa exatamente o mesmo; e essas declarações formais remetem ao mesmo
princípio que emerge da exigência de um ‘juízo prévio’ para infligir uma pena a uma pessoa [...] trata-
se, na verdade, de um ponto de partida político que assume – ou deve assumir – a lei de processo penal
em um Estado de Direito, ponto de partida que constitui, em seu momento, uma reação contra uma
maneira de perseguir penalmente que, precisamente, partia do extremo contrário”. (No original:
“Presumir inocente’, ‘reputar inocente’ o ‘no considerar culpable’ significan exactamente lo mismo; y,
al mismo tiempo, estas declaraciones formales mentan el mismo principio que emerge de la exigencia
de un ‘juicio previo’ para infligir una pena a una persona. [...] Se trata, en verdad, de un punto de
partida político que asume – o debe asumir – la ley de enjuiciamiento penal en un Estado de Derecho,
punto de partida que constituyó, en su momento, la reacción contra una manera de perseguir
penalmente que, precisamente, partía desde o extremo contrario”).
51
Importante destacar que o acusado pode ser objeto da mídia sensacionalista durante o inquérito policial
e durante a ação penal propriamente dita, momentos distintos da persecução penal. Entende-se que a
observância à presunção de inocência, durante o inquérito policial, apresenta maior gravidade, isto é,
singularidade, uma vez que este é mero procedimento administrativo, desprovido de garantias como
contraditório e ampla defesa.
52
Na dicção de Badaró (2003, p. 285), cuida-se de uma disciplina do acertamento penal, uma exigência
segundo a qual, para a imposição de sentença condenatória, é necessário provar, eliminando qualquer
dúvida razoável, o contrário do que é garantido pela presunção de inocência, impondo a necessidade de
certeza.
53
Como modo de reafirmar tal entendimento, vide as hipóteses de absolvição previstas no artigo 386, do
Código de Processo Penal. Do modo como foram redigidas, é possível constatar que a absolvição está
atrelada a não comprovação – pelas provas colhidas na instrução processual – da existência do fato ou
62

Segundo Lopes Júnior e Badaró (2016, p. 07), o acusado presumidamente


inocente é sujeito de direitos, a quem a CRFB/88 assegura a ampla defesa, com o direito
de produzir provas aptas a demonstrar a versão defensiva de um lado, e sendo-lhe
assegurado, de outro, o direito ao silêncio, eliminando qualquer dever de colaborar com
a descoberta da verdade. A prova da imputação, então, cabe à acusação inteiramente.
Além de ser assegurada ao acusado a oportunidade de produzir as provas
necessárias à sustentação de seus argumentos (ampla defesa), também o são os direitos
de constituir um defensor no patrocínio de seus interesses (defesa técnica), de estar
presente nas audiências e nos demais atos processuais (autodefesa) e de conhecer os
argumentos da parte contrária e ter o direito de respondê-los (contraditório).
Tais instrumentos, por assim dizer, validam o estado de presumidamente
inocente do acusado no curso processual penal, sendo indispensáveis à concretização do
que preceitua o devido processo legal. Seguindo essa linha de pensamento, depara-se
com um segundo ponto: a presunção de inocência vista na dimensão interna, sob os
vieses de norma de juízo ou de norma de tratamento para o juiz.
Quanto ao primeiro aspecto, a presunção de inocência incide, como o
próprio nome sugere, no momento em que o julgador toma uma decisão, pois, neste
instante, será por ele analisada a suficiência das provas carreadas aos autos para adotar
alguma medida que venha a restringir o direito fundamental do cidadão ao estado de
inocência que é assegurado a ele constitucionalmente.
Enquanto norma de juízo, Moraes (2010, p. 469) assegura que a constatação
é objetiva: se a acusação produziu prova incriminadora e lícita, pouco importando se ela
é ou não suficiente. Já sob o viés de norma de tratamento, a presunção de inocência
refere-se à figura do imputado. Nesse sentido, o cidadão tem a garantia de que será
tratado como inocente antes da persecução penal e de que, durante esta, será visto como
não culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória54.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Moraes (2010, p. 427) vai além ao
afirmar que violam a presunção de inocência como norma de tratamento todos os

da concorrência do indivíduo para o fato apurado em questão, por exemplo. Dessa forma, percebe-se,
rapidamente, que todos os sete incisos do artigo 386, do CPP mencionam a palavra prova direta ou
indiretamente (VI – “[...] se houver fundada dúvida sobre sua existência”), ressaltando o ônus da prova
como responsabilidade da acusação, titular da ação penal.
54
Tal garantia é assim contemplada diante do entendimento da coexistência pacífica e harmônica da
presunção de inocência e da presunção de não culpabilidade em diferentes momentos da persecução
penal, conforme explicitado no subtópico 3.2.
63

dispositivos legais que, de forma absoluta, antecipam qualquer espécie de sanção que,
prima facie, somente adviria por força de decisão condenatória definitiva.
E não só os dispositivos legais que acarretam sanções físicas e/ou morais
antes do trânsito em julgado da condenação definitiva violam a presunção de inocência
como norma de tratamento, mas toda conduta, inclusive praticada por particulares –
aqui se confere posição de destaque à mídia – que estigmatize o acusado a ponto de
torná-lo culpado por um crime antes mesmo de qualquer análise judicial.
Já externamente ao processo, nas lições de Lopes Júnior (2017, p. 97), a
presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a
estigmatização do acusado, devendo ser utilizada como limite democrático à abusiva
exploração midiática em torno do delito e do próprio processo. Portanto, o espetáculo
encenado pelas sentenças midiáticas deve ser coibido pela eficácia da presunção de
inocência.
Diante da proposta do presente trabalho, observar-se-á que o exercício da
liberdade de imprensa, se absoluto 55 , viola exatamente o princípio da presunção de
inocência como norma de tratamento. Isso porque as publicações veiculadas de forma
descuidada e arbitrária pela mídia transformam o cidadão, que ainda será submetido à
persecução penal - ou pior: que ainda será indiciado -, em um mero objeto de
sensacionalismo, desprovido de garantias, constitucionalmente, asseguradas a ele.
Como defendido nesta pesquisa, a culpa será declarada apenas ao final da
persecução penal, com o trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória,
mas, infelizmente, desde o início, já é o acusado ou, quando não, o investigado
declarado culpado pela mídia e pela sociedade por todas as suspeitas ou as imputações
que pesam contra si.
O sensacionalismo encabeçado pela mídia faz crer que o acusado é
merecedor, desde logo, da reprimenda estatal no sentido de antecipar-lhe toda espécie
de sanção que somente poderia advir após o trânsito em julgado de eventual sentença
penal condenatória, o que é um verdadeiro absurdo ante as bases principiológicas sob as
quais o nosso sistema processual penal se encontra fundado.
E o exercício, muitas vezes, desproporcional da liberdade de imprensa, sem
que se respeite o mínimo do âmbito de proteção do princípio da presunção da inocência,

55
Neste caso, ressalte-se que a escrita do termo “se absoluto” foi proposital, visto que se entende os
direitos fundamentais como relativos e é, nesta perspectiva. que estão sendo considerados neste
trabalho.
64

ocasiona uma reação direta na população. Assustadas com o aumento da criminalidade e


com a costumeira sensação de impunidade, as pessoas, no entender de Batisti (2009, p.
9), não raro associam a própria criminalidade às garantias constitucionais, que estariam
a impedir uma política eficiente do Estado, para reprimir e impedir o crime.
Tal associação, a despeito de ser um completo absurdo, ocorre com
frequência nos mais diversos cantos do País. O cidadão comum, muitas vezes
influenciado por determinada linha editorial dos veículos de comunicação em massa ou
mesmo de perfis em redes sociais – que fomentam a ideia sob a qual os direitos
humanos e os fundamentais somente servem aos acusados de crimes –, é levado a crer
que a presunção de inocência se presta apenas à proteção individual.
Tanto isso ocorre que, aparentemente, todos os estados da Federação, a
exemplo do Ceará e do Rio Grande do Norte, possuem programas televisivos dos tipos
do Barra Pesada 56 e do Patrulha da Cidade 57 , respectivamente. São programas
consagrados entre o público em geral por se autodenominarem como reveladores da
realidade da segurança pública nos estados em que são transmitidos.
Coincidência ou não, os dois programas citados acima são apresentados por
homens que possuem um discurso inflamado, voltado ao combate da criminalidade a
qualquer custo. São apresentadores que caíram nas graças do público por dizerem o que
boa parte dos telespectadores diz ou gosta de ouvir58.
Nesse contexto, expressões das mais reprováveis – sob as óticas humanista e
garantista - são verbalizadas em tais programas: desde bandido bom é bandido morto
até direitos humanos são para defender bandidos. Aquele que, muitas vezes, sequer foi
denunciado já é visto como meliante, bandido, delinquente, aquele que tem de ser preso
mesmo para aprender. Ora, para aprender o que? Para aprender como? Aonde
queremos chegar com discursos assim?

56
A título informativo, vide: https://tribunadoceara.com.br/tv-jangadeiro/#. Acesso em: 12 out. 2019.
57
A título informativo, vide https://tvpontanegra.op9.com.br/programa/patrulha-da-cidade. Acesso em: 12
out. 2019.
58
Segundo Suzuki e Bezerra (2016, p. 03), “Nos meios de comunicação de massa é essencial a presença
de um intérprete carismático que em alguns momentos emocione e choque o telespectador e em outros
o faça rir. Este comunicador se mostra sempre preocupado com os problemas da população, profere
duras críticas contra as autoridades políticas e o poder judiciário, bem como destaca reiteradamente sua
revolta, indignação e inconformismo com a impunidade e ineficácia do sistema penal. Na maior parte
das vezes o comunicador não possui nenhum conhecimento a respeito das técnicas jurídicas de ordem
penal e processual penal, não são estudiosos do Direito e, por tal razão, não deveriam ter a liberdade
que possuem para opinar a respeito de tal matéria”.
65

Tais expressões de forte cunho caluniador, injuriador ou difamador,


veiculadas em programas jornalísticos, incitam, sobretudo no cidadão comum, um
considerável indício ou mesmo já uma certeza da culpabilidade de quem, em tese,
cometeu um ilícito. Isso acontece, não raro, antes mesmo do início do processo e bem
antes do trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória.
Quando os meios de comunicação em massa se deparam com uma notícia
que possa impactar e chocar o telespectador, esta passa a ser veiculada durante semanas
e, via de regra, em todas as emissoras, em todos os noticiários. Com as manchetes mais
escandalosas e exageradas possíveis, objetiva-se mexer com o imaginário do público,
causando uma profunda sensação de indignação e de revolta.
Segundo Batista (1990, p. 32), a imprensa tem o formidável poder de apagar
da Constituição o princípio da presunção de inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo,
reduzindo a sua importância e a sua aplicação a níveis insignificantes. Isso porque a
imprensa sensacionalista, nos dizeres de Suzuki e Bezerra (2016, p. 06), não se
preocupa com a prova dos fatos.
Na maioria das vezes, um simples rumor já é suficiente para que a notícia
seja divulgada amplamente e, como consequência, ganhe profundos contornos de
veracidade aos olhos do público, mesmo que ainda não exista conhecimento ou
comprovação da materialidade e da autoria do fato noticiado.
Não há como negar que o fenômeno do sensacionalismo na imprensa
carrega consigo interesses que ultrapassam a esfera da ética e do intuito de bem
informar. Segundo Angrimani (1995, p. 17), é na exploração de fantasias e de institutos
sádicos que o sensacionalismo se instala, mexe com o imaginário e com as convicções
das pessoas e se destaca dos informativos comuns.
É inquestionável a existência de uma acentuada conotação emocional que
influencia a população a, sem o senso crítico necessário, apreender a informação
veiculada associada ao juízo de valor imposto desde o seu nascedouro. Isso acontece
porque, segundo Silva (2000, p. 35), o crime é um tema que goza de alto prestígio
perante a população, já que o mal revigora e desperta interesse59.

59
No entendimento de Silva (2000, p. 42), os jornais que veiculam o sensacionalismo podem ser
classificados em três subcategorias: sensacionalismo criminal (a exemplo de Notícias Populares e de O
Dia), sensacionalismo social (como Caras e Manchete) e sensacionalismo por procuração ou star-
system (representados por Folha de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo).
66

Já para Vieira (2003, p. 55-56), o interesse pelos crimes e pela justiça penal
é uma prática enraizada pela mídia que encontra seu melhor representante no jornalismo
sensacionalista. Com uma linguagem impactante, ágil e coloquial, os programas
jornalísticos promovem a banalização da violência e a espetacularização do processo
penal, de forma que tais notícias não se prestam a informar – como deveriam ser -, mas
sim a produzir um entretenimento barato, reforçando o lado sádico dos seres humanos.
A força que a mídia exerce sobre a população60 é uma poderosa arma que,
em mãos erradas, pode acarretar injustiças graves e irreparáveis. Ainda que a população,
ao se deparar com a notícia, faça algum juízo de valor, é preciso que este não resulte da
intenção pessoal do jornalista – o que, do contrário, já faria cair por terra a condição de
presumidamente inocente do acusado.
É impossível medir o poder que os meios de comunicação, naturalmente,
detêm de influir no comportamento e na cultura sociais, o que, certamente pelo
conteúdo das publicações, possui maiores chances de se transformar em potencial lesivo
que em potencial de transformação positiva. Se tais informações forem veiculadas de
forma sensacionalista, as consequências são ainda mais alarmantes.
Ressalte-se, por oportuno, que o direito à informação, assegurado
constitucionalmente, não condiz com o sensacionalismo adotado por algumas
instituições da imprensa, servindo tão somente à espetacularização do processo penal e,
em uma análise macro, à desagregação social61.
Nessa linha de pensamento, a mídia se posiciona entre o processo e o
público, mas, antes disso, coloca-se entre as garantias constitucionais conferidas à
sociedade e a própria sociedade detentora dessas garantias. Parece um contrassenso, é
bem verdade, mas, lamentavelmente, é essa a situação que ocorre em nosso País, mais
intensamente, a partir dos anos 90.

60
Viera (2003, p. 52-53) descreve, com precisão, o impacto que as notícias sensacionalistas veiculadas
pela mídia causam no indivíduo, ao aduzir o seguinte: “Nada do que se vê (imagem televisiva), do que
se ouve (rádio) e do que se lê (imprensa jornalística) é indiferente ao consumidor da notícia
sensacionalista. As emoções fortes criadas pela imagem são sentidas pelo telespectador. O sujeito não
fica do lado de fora da notícia, mas a integra. A mensagem cativa o receptor, levando-o a uma fuga do
cotidiano, ainda que de forma passageira. Esse mundo-imaginação é envolvente e o leitor ou
telespectador se tornam inertes, incapazes de criar uma barreira contra os sentimentos, incapazes de
discernir o que é real do que é sensacional”.
61
“A estética da aberração e a hegemonia do vulgar implica justamente a desconstrução do cidadão em
favor do consumidor. Por que a mídia não deveria ser um ator social como todos os outros? Ela o é.
Por que a mídia deveria ser neutra? Ela não o é. Assim, não lhe cabe ser um simples espelho do
mundo. Ela não o é, mas finge ser. Aos poucos, os escrúpulos caem por terra e a grande orgia do
aberrante ocupa as telas e suscita eco nos demais meios” (SILVA, 2000, p. 58).
67

4.1 O reflexo das publicações midiáticas: há como explicar a origem e a evolução


da cultura socioinquisitiva no Brasil?

O questionamento acerca da origem de uma cultura socioinquisitiva é antigo


e difícil de ser respondido, de modo que remonta à origem dos julgamentos cruéis, o
que não é uma particularidade do cenário brasileiro. Segundo Ferrajoli (2010, p. 357), a
mais antiga resposta à questão mencionada repousa na ideia jusnaturalista de que a pena
deva igualar-se ao delito e consistir num mal de mesmas natureza e intensidade. Aqui,
vai-se além ao pontuar que a intensidade não é a mesma, mas, muitas vezes, demonstra-
se maior - e quanto maior, parece ser melhor aos olhos da sociedade em geral.
Tal concepção relaciona-se à concepção retributiva da pena, ideia antiga no
universo jurídico. Ora, o Princípio de Talião, consistente na máxima do “olho por olho,
dente por dente”, presente em conotações mágico-religiosas, fez-se presente desde o
Código de Hammurabi até a Bíblia e a Lei das XII Tábuas. Perdurou, ainda, na Idade
Média, onde filósofos como Kant e Hegel identificaram no Talião, expressamente, o
modelo ideal e normativo da sanção penal.
Para Ferrajoli (2010, p. 357), os efeitos deletérios desta concepção
naturalista e primitiva da pena são dois. Primeiro, serve para afiançar as penas corporais
e capitais correspondentes à natureza do delito, com o Princípio de Talião, de forma
direta e indireta - afinal, não há nenhum equivalente que satisfaça a justiça. Segundo, as
penas devem ter a mesma qualidade e a quantidade dos delitos, estendendo-se, pois, o
caráter repressivo da sanção penal.
Sob a ótica da mitologia processual penal, Casara (2015a, p. 253) aduz que
os principais mitos que se repercutem no processo penal brasileiro ampliam ou
eliminam os limites ao exercício do poder de punir. Surgem, então, para legitimar
práticas que não se sustentariam em um ambiente democrático por respeito à alteridade.
Nesse caso, o referido professor denomina-os de mitos autoritários, porque
fragilizam a proteção que o cidadão detém contra eventuais arbítrios no âmbito
processual penal, não mais sendo construída uma realidade dialética para o processo.
Dessa forma, a jurisdição passa a ser vista menos como saber e mais como poder,
constituindo mero exercício desenfreado do poder estatal.
Para Casara (2015a, p. 317), os mitos processuais penais autoritários
subsistem em ambiente democrático por serem úteis a determinadas finalidades estatais,
68

sendo, não raras vezes, objeto de adesão sincera dos agentes estatais e da própria
população. Serve-se, assim, à lógica utilitarista, garantindo a manutenção do status quo,
bem como a adequação social com vínculos a um passado não muito distante, em que
garantias processuais penais eram facilmente desconsideradas ou sequer existiam.
Está justificado porque, em muitos julgamentos - sobretudo naqueles de
maior repercussão midiática, em que o clamor social grita com uma voz quase
ensurdecedora em relação à das garantias processuais penais -, o acusado é visto com
repulsa por outros membros da sociedade que, naquele momento, não ocupam um
assento no banco dos réus.
Valendo-se do pensamento de Carnelutti (2009, p. 34), o imputado sente,
comumente, a aversão de muitas pessoas contra ele, sendo acolhido pela multidão com
um coro de súplicas favoráveis à sua condenação – e, de preferência, com a reprimenda
mais grave possível. Não é raro que explodam atos de violência e de ojeriza contra o
acusado, contra os quais não se torna fácil protegê-lo.
Carnelutti (2009, p. 35), ainda, alerta no sentido de que esse sentimento
repugnante que se cultiva pelo acusado ou pelo investigado pode ultrapassar a pessoa
dele, estendendo-se, não raro, à figura do respectivo defensor. Isso porque o defensor
compartilha com o imputado da necessidade de pedir e de ser julgado, estando, para o
sábio mestre, “sujeito ao juiz como o está o imputado”.
De fato, em alguns momentos, parece que a essência dos horrendos
julgamentos romanos ainda está enraizada, profundamente, em nossa sociedade,
maculando as garantias empreendidas pela Constituição e pelo modelo acusatório do
processo penal. A despeito de a sociedade ter evoluído nas suas teorias, conceitos e
comportamentos, a sede pela desforra parece continuar inabalável.
Esse tipo de sentimento ainda está muito presente no ser humano do século
XXI, que, em geral, demonstra se realizar ao ver outro ser humano, que possa ter
cometido um ilícito, ser julgado e punido publicamente - e quanto maior é a pena, maior
é o gozo. Mas por quê? Porque, por meio disso, o arcaico sentimento de vingança
privada se concretiza, mesmo que a pessoa, eventualmente, punida não possua qualquer
relação com o objeto imediato dos dissabores sofridos.
Essa sede, tão antiga e aparentemente incurável, é hoje abastecida pela
evolução dos meios de comunicação em massa, os quais difundem notícias, embalam os
costumes da sociedade do espetáculo e impactam toda a estrutura organizacional e a
constituição da própria sociedade.
69

É, particularmente, difícil precisar em que momento da história da


humanidade teve início a sede pelos julgamentos cruéis e pelas punições exorbitantes.
Talvez com as civilizações primitivas? Com o Império Babilônico? Ou seriam com os
julgamentos romanos? E a Santa Inquisição, que influência exerceu no desenvolvimento
dessa mentalidade social?
O que se pode precisar é que a sede por acompanhar os julgamentos cruéis
solidificou-se com o desabrochar das Escolas Penais Clássica e Positiva – detalhadas no
capítulo anterior. Como visto, cada uma dessas escolas possuía um método peculiar, o
qual respondia a determinados pressupostos filosófico-penais. Como muito no universo
jurídico resulta de divergências, as escolas adotavam métodos, diametralmente, opostos
no tocante às mais relevantes questões criminológicas, processuais e jurídicos penais.
Já a criminologia contemporânea, dos anos 30 do século XX em diante,
caracteriza-se pela tendência em superar as teorias patológicas da criminalidade, aquelas
baseadas em características biopsicológicas próprias da escola positiva. Deixando de
lado a ideia de diferenciar os seres humanos em criminosos dos normais, no entender de
Baratta (2002, p. 29-30), a nova criminologia considera o crime como um
comportamento definido pelo direito, repudiando o determinismo e a consideração do
delinquente como um indivíduo diferente.
Ressalte-se que a escola clássica não partia da hipótese de um determinismo
e se detinha sobre o delito, entendido como conceito jurídico. Como leciona Baratta
(2002, p. 31), o crime partia da livre vontade do indivíduo e não de causas patológicas;
consequentemente, o direito penal e a pena eram considerados como instrumento legal
na defesa da sociedade, criando uma contramotivação em face do crime.
Quando se alude à escola clássica como antecessora à moderna
criminologia, faz-se referência a teorias sobre o crime, bem como sobre o direito penal e
a pena, desenvolvidas em diversos países europeus no século XVIII e início do século
XIX. Em contrapartida, quando se afirma a criminologia positiva como a primeira fase
de desenvolvimento da criminologia, faz-se menção a teorias desenvolvidas na Europa,
entre o final do século XIX e o começo do século XX, no âmbito da filosofia e da
sociologia positivista naturalista.
Nos dizeres de Batista (2009, p. 28), a mídia, no processo de inculcação e de
utilização do medo, produz cada vez mais subjetividades punitivas. A pena torna-se
eixo discursivo da direita e de grande parte da esquerda, para dar conta da conflitividade
social que o modelo gera. Concomitantemente, os novos tempos produzem níveis de
70

encarceramento nunca vistos na história da humanidade62, de forma que o punitivismo


midiático reflete na tentativa de recrudescimento da política criminal em detrimento dos
direitos constitucionais assegurados ao acusado63.
Retornar um pouco ao passado é essencial para que se constate a real
influência exercida pela ideologia penal tradicional na formação da cultura
socioinquisitiva que se encontra enraizada em nossa sociedade ainda nos dias de hoje, e
como a busca pelo punitivismo é influenciada, sobremaneira e em pleno século XXI,
pelos meios de comunicação em massa.
Afinal, o jornalismo populista não se preocupa com a raiz do problema da
criminalidade, porque isso requereria tempo, explicação e, principalmente, estudos
aprofundados a respeito dos fatos noticiados. Por outro lado, é bem mais fácil
reproduzir uma visão simplificada e superficial da realidade social, sobretudo, por
imagens que transmitem enorme credibilidade.
Ora, é mais fácil acreditar naquilo que se vê com os próprios olhos64 do que
questionar o contexto existente por trás daquelas imagens. Segundo Fernandes (2017, p.
258), a dramatização despejada pelos meios de comunicação que veiculam notícias do
âmbito criminal gera lampejos artificiais de violência, aumentando a sensação de
insegurança e inflando o pânico social.
Na justiça midiática, não há tempo sequer para a apresentação detalhada dos
fatos, pois o que mais vale não é a verdade, mas sim a verossimilhança do conteúdo
transmitido. E quanto mais velocidade na apresentação mais verossímil se torna a
notícia, afinal tudo é sintético, e o tom preponderante é o da imagem que, para grande
parte do público, fala por si só.

62
Segundo a política de dados do DEPEN (2019), por meio do INFOPEN, “A taxa de aprisionamento é
calculada pela razão entre o número total de pessoas privadas de liberdade e a quantidade populacional
do país, a razão obtida é multiplicada por 100 mil. Entre os anos de 2000 e 2017, a taxa de
aprisionamento aumentou mais de 150% em todo país. Em junho de 2017, o Brasil registrou 349,78
pessoas presas para cada 100 mil habitantes [...]”.
63
Neste sentido, Batista (2009, p. 28), complementa, aduzindo o seguinte “O disciplinamento do tempo
livre, da concorrência desumana e da conflitividade social despolitizada vai requerer novos argumentos
“científicos”: surge o neo-lombrosianismo determinista com as neurociências e as descobertas de
novos “criminosos natos”. É importante ressaltar que os negócios do crime e da criminalidade vão
fazer parte da “nova economia” e as ações das empresas que exploram a hotelaria punitiva integram o
índice Nasdaq. A indústria do crime, a que se referiu Nils Christie, é um dos setores mais dinâmicos do
capitalismo de barbárie”.
64
“Quando confrontados com uma imagem fotograficamente/eletronicamente obtida, nada parece erguer-
se entre nós e a realidade; nada que possa capturar ou distrair nosso olhar. ‘Ver para crer’ significa ‘eu
vou crer quando vir’, mas também ‘no que eu vir, acreditarei’” (BAUMAN, 2008, p. 30).
71

Nas precisas palavras de Gomes e Almeida (2013, p. 109), o processo é


ultrassumário, tudo ocorre da forma mais acelerada possível, porque já existe, em tese,
uma certeza da culpabilidade do acusado. Com a difusão da internet a relação entre
quem produz e quem consome a notícia foi modificada profundamente, de modo que as
pessoas já não mais possuem tempo suficiente sequer para analisar os detalhes do fato
noticiado.
Assim, inevitavelmente, ao passo que a mídia potencializa a dimensão das
desgraças noticiadas, cria-se a sensação, no público, de que os delitos noticiados
ocorrem em uma frequência bem maior do que a verdadeira, de forma que os cidadãos,
embalados pelo forte apelo emocional, veem-se como personagens atuais e futuros
daquele contexto de vulnerabilidade e de insegurança.
Dessa forma, a instigação por crescimento e por recrudescimento do sistema
penal é fomentada de modo mais incisivo pelo conteúdo divulgado pelos programas
televisivos e pelas redes sociais (blogs, whatsapp, instagram, facebook, twitter, dentre
outras), refletindo toda a sede pela desforra à semelhança do que já ocorria nos
horrendos julgamentos primitivos.
Constata-se, portanto, que a vontade que o outro tem de ver o seu
semelhante – o qual ocupa, momentaneamente, uma posição no banco dos réus - ser
condenado é enorme. Está enraizada na essência do ser humano, atravessando
civilizações, costumes e crenças, portanto. A partir da década de 90, encontrou um forte
incentivador - a mídia -, solidificando a mentalidade punitivista nos cidadãos e
propagando a espetacularização do processo penal.
Tamanho desserviço prestado pela mídia ignora, completamente, a
necessidade de criação de políticas sociais e assistenciais de prevenção dos delitos,
propondo, em vez disso, estratégias meramente situacionais e irracionais, como o
aumento da intolerância, dos presídios, da exclusão e da repressão. Na prática, tais
soluções mágicas são, absolutamente, ineficazes, pois trazem meros símbolos de rigor
excessivo e de verdadeiro ódio àquele que será julgado, mas nenhuma transformação
efetiva de fato.

4.2 A presunção de inocência e a liberdade de imprensa: colisão entre direitos


fundamentais
72

A colisão entre direitos fundamentais é uma questão, de certa forma, delicada


que ocorre com frequência em nosso ordenamento jurídico. Utilizando-se do saber de
Alexy (2014, p. 61), a vida cotidiana do direito é marcada por casos difíceis que não
podem ser decididos, tão somente, com base no que foi, autoritariamente, expedido.
Não é por acaso que, segundo o entendimento de Alexy (2014, p. 71), o direito
possui uma natureza dualista. Explica-se: existem certas propriedades necessárias do
direito que pertencem à sua dimensão fática ou real – a exemplo da coerção -, assim
como outras propriedades que fazem parte da dimensão ideal ou crítica, que seria o caso
da pretensão de correção.
É, exatamente neste sentido, que se analisa o ponto nevrálgico da relação
entre a mídia e o Poder Judiciário: o embate entre a liberdade de expressão da mídia e a
presunção de inocência do acusado. Sendo ambos direitos constitucionalmente
assegurados, o equilíbrio deve se fazer presente diante de uma hipótese em que se
apresentem interesses opostos, já que, sob o entendimento aqui adotado, nenhum direito
fundamental é absoluto. Contudo, nem sempre é isso que ocorre, sobretudo se
considerada a sociedade em que vivemos65.
A ponderação de direitos, tão defendida por Alexy, a depender do caso,
torna-se complexa de ser aplicada, pois, para o desenvolvimento sadio de uma nação
democrática, é essencial que todos os cidadãos possuam o direito de poder, livremente,
expressar suas opiniões. Essa liberdade, pelo que se observa da história mundial,
configura-se como verdadeiro termômetro para se medir o viés político de um Estado.
Quanto mais livres forem os indivíduos para manifestarem as suas ideias e
os seus pensamentos por quaisquer meios de comunicação, mais se presume que
democrática é a nação em que habitam. Caso contrário, o autoritarismo impera
certamente, como imperou ao longo do Regime Militar em nosso País.

65
“Santo Agostinho escreveu a este respeito uma de suas páginas imortais; a tortura, nas formas mais
cruéis, foi abolida, ao menos no papel; mas o próprio processo é uma tortura. Até certo ponto, tem-se
dito, não se pode prescindir dela; mas a denominada civilização moderna tem exagerado de um modo
inverossímil e insuportável essa triste consequência do processo. Ao homem, quando sobre ele recai a
suspeita de ter cometido um delito, é dado ad bestias, como se dizia em um tempo dos condenados
oferecidos como comida para as feras. A fera, a indomável e insaciável fera, é a multidão. O artigo da
Constituição, em que se tem a ilusão de garantir a incolumidade do imputado, é praticamente
inconcebível com aquele outro artigo que sanciona a liberdade de imprensa. Basta apenas ter surgido a
suspeita; o imputado, sua família, sua casa, seu trabalho, são inquiridos, requeridos, examinados,
despidos, na presença de todo mundo. O indivíduo, desta maneira, é transformado em pedaços. E o
indivíduo, recordemo-nos, é o único valor que deveria ser salvo pela civilidade” (CARNELUTTI,
2009, p. 66-67).
73

A já muito citada Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948


assegurou, em seu artigo 19, a garantia de liberdade de expressão e de opinião a todo
indivíduo66, constituindo um dos marcos para a consagração positiva do direito a se
expressar. No caso específico do ordenamento jurídico brasileiro, apenas com a
elaboração da Constituição de 1988 deu-se à liberdade de expressão o merecido
prestígio e a efetiva proteção que merecia.
A confecção do texto atual se deu sob condições, fundamentalmente,
distintas daquelas que envolveram a preparação das Cartas anteriores, possuindo nos
incisos IV, V, IX, XII e XIV do artigo 5º combinado com os artigos 220 a 224, o núcleo
amplo da liberdade de expressão, que, segundo Silva (2004, p. 243), consiste em uma
gama de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam a coordenação
desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação.
Para Canotilho e Machado (2014, p. 132), a liberdade de expressão assegura
a continuidade do debate intelectual e do confronto de opiniões em um compromisso
crítico permanente. Para os mestres portugueses, essa qualidade lhe permite integrar o
sistema constitucional de direitos fundamentais, deduzindo-se do princípio macro da
dignidade da pessoa humana, bem como dos princípios gerais de liberdade e igualdade.
A liberdade de expressão é ampla e engloba, desde a liberdade mais íntima
do homem, que é a de pensamento, até a difusão de ideias, opiniões, fatos e notícias por
meio da comunicação em massa. Tal constatação é inequívoca. A Constituição enfatiza
tanto esse direito, por intermédio dos dispositivos acima expostos, que, em certos
momentos, torna-se redundante.
De fato, a liberdade de expressão é bastante abrangente, e, mais ainda, é o
seu âmbito de proteção constitucional, visto que ela representa o coração de uma
sociedade democrática. Dentre os vieses do direito à liberdade de expressão, encontra-se
a liberdade de imprensa, uma liberdade abarcada pelo aspecto externo da ampla
concepção de liberdade de expressão.
Inspirada pelo já tão falado ideário da “Liberdade, Igualdade e
Fraternidade”, consagrado pela Revolução Francesa, a liberdade de imprensa veio a ser,
expressamente, assegurada como um direito do homem por meio do documento oriundo

66
In litteris, “Artigo 19 - Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e expressão, o que implica o
direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, em consideração
de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
74

daquela importante luta social, qual seja, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, no seu artigo 11 mais precisamente67.
Já na Constituição de 1988, a liberdade de imprensa está inserida no caput
do artigo 220, ao assegurar que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e
a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não serão objeto de qualquer
restrição68. Evidente, portanto, que a liberdade de comunicação, da qual se inclui a de
imprensa, será exercida de maneira absoluta, desde que respeite os demais direitos e
princípios previstos na própria Constituição – e é, com este enfoque, que será abordada
a colisão neste tópico.
De uma maneira ampla, a liberdade de imprensa pode ser entendida como a
liberdade de divulgar fatos, notícias, ideias e opiniões por intermédio dos veículos de
comunicação em massa, e que pode atingir, ou não, uma indefinida quantidade de
indivíduos, como exemplo jornais, televisão, blogs etc. Traduz-se no direito de informar
e no direito de ser informado69.
Não é por outro motivo que a Constituição atual, após as lições advindas do
regime autoritário imposto pelos militares poucas décadas atrás, foi, acertadamente,
incisiva ao estabelecer, nos dois primeiros parágrafos do artigo 220, que nenhuma lei
conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação
jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo
5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV, e que é vedada toda e qualquer censura de natureza
política, ideológica e artística70.

67
DDHC – “Artigo 11- A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos
direitos do Homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo,
todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei”.
68
Logo em seguida, consagram os parágrafos 1º e 2º do artigo 220 da CRFB/88:
“§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação
jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII
e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
69
Nas precisas lições do ex-Ministro Delgado (2006, p. 08), “[...] a liberdade de imprensa é um bem da
sociedade, antes mesmo de ser um direito de profissionais e de empresas ligadas a essa atividade e, por
sua própria natureza, exige mobilização constante, vigilância permanente e firme posicionamento
diante de fatos que representam ameaça aos que efetivamente a atinjam. A defesa da liberdade de
imprensa certamente contribui para o fortalecimento das instituições democráticas no país”.
70
A despeito do regime ditatorial imposto no Brasil ter restringindo a liberdade de imprensa, inclusive
perseguindo os que manifestassem ideias e críticas contrárias aos interesses governamentais da época,
o regime jurídico constitucional atual impede que o poder estatal seja utilizado para proibir
previamente a livre manifestação de ideias e opiniões. Afinal, “não é o Estado que deve estabelecer
quais as opiniões que merecem ser tidas como válidas e aceitáveis; essa tarefa cabe, antes, ao público a
que essas manifestações se dirigem” (MENDES; BRANCO, 2012, p. 300).
75

Assim, não há dúvidas de que a liberdade de expressão e, com ela a de


imprensa, constitui vital direito para que a Nação possa se desenvolver da maneira mais
democrática e plural possível, tendo em vista que a democracia inexiste sem que todos
os cidadãos, de forma indistinta, possuam plena e ampla liberdade de expressão e de
imprensa, traduzidas no binômio direito de informar e ser informado71, direitos esses
inalienáveis.
Cumpre ressaltar, antes de iniciar o estudo específico do conflito
fundamental entre direitos, que a colisão de direitos fundamentais é, essencialmente,
principiológica em contraposição à simples colisão de regras. Na ocorrência de colisão
entre princípios, não se questiona a legitimidade dos direitos em debate, mas o peso ou a
importância de cada um deles no pleito.
Os princípios podem ser cumpridos em diferentes graus de consecução,
pois, como Alexy (2001, p. 112) costuma denominar, são mandamentos de otimização72
que tendem a uma realização na maior intensidade possível. Diante da perspectiva
segundo a qual os princípios são normas com alto grau de abstração, que promovem um
estado ideal de coisas a ser alcançado, e que devem ser cumpridos dentro da maior
eficácia possível, é que se inserem os conflitos entre os vários existentes no
ordenamento jurídico.
Isso porque considerando as mais diversas e complexas relações humanas,
inevitavelmente, o exercício de algum direito ocasionará violação ou restrição a algum
outro. Especial relevo ocorre, contudo, na hipótese de colisão entre dois direitos
fundamentais, como na hipótese do presente estudo, onde de um lado se está a liberdade
de divulgar, ainda que de forma tendenciosa, notícias e imagens referentes a pessoas
investigadas, acusadas ou já condenadas, e, de outro, o estado de inocência garantido a
todo cidadão, inclusive – e principalmente – a quem se encontra na posição de acusado.
Trata-se, portanto, de um autêntico caso de colisão entre direitos
fundamentais, que deve ser, detalhadamente, analisada a fim de que ambos os direitos

71
Com a perspicácia que lhe é peculiar, Canotilho (2003, p. 643) expande o tema do direito fundamental
à liberdade de expressão – e, por conseguinte, da liberdade de imprensa, salientando o seguinte: “O
direito de informação, para que seja completo no seu objeto normativo, há de contemplar três
variáveis: o de informar, o direito de se informar, e o direito de ser informado”.
72
No original, Alexy afirma que “Los princípios son mandatos de optimización com respecto a las
posibilidades jurídicas y facticas. La máxima de la proporcionalidad em sentido estricto, es decir, el
mandato de ponderación, se sigue de la relativización com respecto a las possibilidades jurídicas”.
76

possam ser exercidos com a máxima eficácia possível, não se esquecendo das condições
fático-jurídicas existentes em cada caso concreto.
Analisar a legitimidade da intervenção de determinado princípio sobre outro
é tarefa que deve ser buscada, hodiernamente, pelos operadores jurídicos, almejando-se,
na medida do possível, a conciliação entre eles, no que tange à relevância assumida no
caso em apreço, sem que um dos princípios seja excluído, totalmente, do ordenamento
jurídico por irremediável contradição com o outro.
Melhor aduzindo: estando dois princípios em colisão, ambos ultrapassam o
conflito no plano da validade, permanecendo válidos dentro do ordenamento jurídico.
Quando dois princípios refletem valores antagônicos – in casu, a liberdade de informar
e a necessidade de se garantir a presunção de inocência -, não significa que um deles
será invalidado totalmente para a superação do conflito.
Em verdade, significa que, em função das particularidades do caso concreto,
ocorrerá a prevalência de um sobre o outro, de acordo com as regras da
proporcionalidade e razoabilidade73. Para tentar solucionar o complexo conflito entre
direitos (princípios) fundamentais, a melhor doutrina tem se valido do uso do postulado
da proporcionalidade (do alemão Verhältnismässigkeit).
Silva Júnior (2015, p. 231) enfatiza que, a despeito de em matéria de colisão
de direitos fundamentais a proporcionalidade ser comumente utilizada como sinônimo
de ponderação, os dois termos não se confundem. O referido professor afirma que a
proporcionalidade é um critério de controle da conduta estatal, nascida no século XVIII
com a derrocada do absolutismo74.
Já quanto à ponderação, entende-se que não há como falar desta sem
mencionar a teoria desenvolvida por Alexy que é, em certa medida, complexa,
possibilita a aplicação da máxima da ponderação em maior grau de cientificidade. Além
de oferecer um novo caminho para a solução de colisões entre direitos fundamentais, o
professor alemão desenvolveu um método a ser observado, pautado em considerável
racionalidade.

73
Ferreira (2008, p. 95) adverte que “O princípio da proporcionalidade, que não se confunde com o da
razoabilidade, pressupõe nexo de causalidade proporcional entre o meio utilizado e o fim almejado,
porém apenas o afere se o aplicador do direito empreender exame acurado dos sub-princípios da
adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito”.
74
Na análise de Silva Júnior (2015, p. 231), “No Século XIX, na Alemanha, o princípio da
proporcionalidade passou a ser empregado, igualmente, para regrar o exercício do poder de polícia e a
discricionariedade administrativa. Na segunda metade do Século XX, o principio da proporcionalidade
ingressou no campo do direito constitucional, como parâmetro para o controle de constitucionalidade”.
77

A partir do estudo dogmático de aresto do Tribunal Constitucional Alemão


– com o qual se decidiu o caso LEBACH75 -, sob a ótica alexyana (2001, p. 112), a
ponderação se materializa em três planos76: no primeiro, há de se definir a intensidade
da intervenção; no segundo, deve-se saber e definir a importância dos fundamentos
justificadores da intervenção, e no terceiro e último plano, realiza-se a ponderação em
sentido estrito.
Para Ávila (2011, p. 173-174), o postulado da proporcionalidade não se
confunde com a ideia de proporção em suas mais variadas manifestações, visto que se
aplica tão somente a casos em que há relação de causalidade entre dois elementos
empiricamente discerníveis, um meio e um fim. De tal sorte, torna-se viável proceder
aos três exames fundamentais: 1) o da adequação ou da idoneidade; 2) o da necessidade
ou da exigibilidade, e 3) o da proporcionalidade em sentido estrito77.
Inicialmente, deve-se verificar se o agir estatal está em consonância com as
diretrizes traçadas pela Constituição de 1988 e se é o meio expedido para a proteção dos
direitos fundamentais. Posteriormente, é preciso observar se o meio escolhido pelo
Estado causa o menor dano possível à aplicação dos direitos fundamentais. Por
derradeiro, verifica-se se o direito fundamental a ser sacrificado precisa estar justificado
pela maior relevância do fim pleiteado.
Conforme pondera Ferreira (2008, p. 95), os subprincípios da adequação e
da necessidade não oferecem grandes dificuldades de aplicação, o que já não ocorre
com a proporcionalidade em sentido estrito, justamente por versar sobre a própria
ponderação entre os direitos, bens e princípios que se encontram em rota de colisão.

75
Conforme explana Júdice (2007, p. 02), “Como exemplo, o famoso caso LeBach julgado pelo Tribunal
Constitucional Alemão, onde quatro soldados do grupo de guarda de um depósito do Exército haviam
sido assassinados, e armas haviam sido subtraídas, na cidade de LeBach, e, após vários anos
cumprindo pena, um dos condenados pelo crime estava para sair da prisão quando o Programa de
Televisão alemão (ZDF) anunciou a projeção de um documento intitulado “o assassinato dos soldados
de LeBach”. O preso pretendeu uma ordem proibitória de exibição do documentário, argüindo que seu
direito individual à personalidade seria ferido, prejudicando sua ressocialização. O Tribunal
Constitucional decidiu que, diante das circunstâncias fáticas e jurídicas, o princípio da proteção da
personalidade, de índole individual, obteve melhor ponderação do que o princípio da liberdade de
informação, de índole coletiva”.
76
No original: “La máxima de proporcionalidad suele ser llamada principio de proporcionalidad. Sin
embargo, no se trata de um principio em el sentido aqui exposto. La adequación, necesidad y
proprcionalidad en sentido estricto no son ponderadas frente a algo diferente. No es que unas veces
tengan precedência y otras no. Lo que se pregunta más bien es si las máximas parciales son satisfechas
o no, y su no satisfaccion tiene como consecuencia la ilegalidad. Por lo tanto, lãs três máximas
parciales tienen que ser catalogadas como reglas”. Seguindo a lógica alexyana, a proporcionalidade é
um critério de decisão entre princípios colidentes, assim, não entra em colisão com nenhum princípio.
77
Em consonância com o lecionado por Silva Júnior (2015, p. 232) e por Ferreira (2008, p. 95).
78

É, neste último passo, no entender de Silva Júnior (2015, p. 232), que se


realiza a ponderação dos interesses e dos valores contidos nos direitos fundamentais em
rota de colisão no afã de estabelecer qual deve prevalecer e em que medida prevalece.
Aplicando o até aqui expendido à constante colisão entre os direitos (princípios)
fundamentais em análise – liberdade de imprensa e presunção de inocência –, é preciso
realizar o teste da proporcionalidade.
Adotar-se-ão por base as matérias jornalísticas veiculadas pela mídia
quando da prisão preventiva e da divulgação da imagem dos investigados sendo
algemados78. Objetiva-se, por meio deste exemplo, verificar se a liberdade de imprensa
obedece, fielmente, ao postulado da proporcionalidade e se o princípio da presunção de
inocência assegurado constitucionalmente, em algum momento, principalmente como
norma de tratamento, é desrespeitado pelos meios midiáticos.
Em resposta à adequação, o primeiro aspecto da proporcionalidade, nota-se
que a divulgação midiática de crimes e dos seus supostos agentes possui como objetivo
dar conhecimento à sociedade dos acontecimentos cotidianos que atingem os bens
tutelados no ordenamento jurídico penal. Neste ponto, vislumbra-se como adequado o
exercício da liberdade de imprensa no sentido único, frise-se, de transmitir à população
informações relevantes sobre matérias penais, para, eventualmente, colaborar na
investigação dos supostos crimes noticiados.
Passando ao exame da necessidade, no que tange à exigibilidade dos meios,
percebe-se que existem vários meios alternativos para que seja divulgada a ocorrência
de um crime e os principais suspeitos, especialmente aqueles que já foram presos como
tais. Pode ser utilizada, por exemplo, a própria imagem dos cidadãos presos suspeitos –
como ocorre mais comumente - ou somente o nome deles. Ora, ambos os meios
promoveriam igualmente o fim de informar? Certamente, sim.
Ainda quanto à necessidade, mas agora analisando o aspecto do exame de
menor restrição dos meios alternativos aos direitos fundamentais afetados, nota-se que
os dois exemplos citados no primeiro aspecto são, substancialmente, diferentes. Isso
porque a utilização da imagem do suspeito preso, inquestionavelmente, impõe maior

78
“As algemas, também as algemas são um emblema do direito; quem sabe, pensando bem, o mais
autêntico dos seus emblemas, embora mais expressivo que a balança e a espada. É necessário que o
direito nos ate as mãos. E precisamente as algemas servem para descobrir o valor do homem, o qual é,
segundo um grande filósofo italiano, a razão e a função do direito” (CARNELUTTI, 2009, p. 25).
79

restrição à presunção de inocência como norma de tratamento do que apenas a


divulgação do nome dele.
Constata-se também que o exame da proporcionalidade em sentido estrito
depende de uma avaliação com forte carga subjetiva, como assevera Ávila (2011, p.
185). Por tal razão, não é tarefa simples fixar premissas abstratas de ponderação no
conflito entre a liberdade de imprensa e a presunção de inocência em muitas situações,
sendo o momento da prisão de suspeitos de cometerem crimes apenas uma delas.
Entretanto, partindo do mesmo exemplo - as reiteradas veiculações
midiáticas de pessoas sendo algemadas quando da prisão preventiva -, questiona-se: a
importância do direito de informar a existência de um crime justifica o
acompanhamento midiático integral da transmissão de prisões, da imagem e do ato de
algemar os investigados?
Juridicamente, é impossível conceber. A utilização da imagem dos cidadãos,
no momento da prisão, não se mostra proporcional nem necessária para o intuito ao qual
se propõe a liberdade de imprensa. Ora, se a imprensa pretende informar a existência de
eventual crime, assim como os seus principais suspeitos, a exibição cinematográfica da
prisão e do ato de algemar os suspeitos apresenta-se muito mais como interesse do
público do que como próprio interesse público.
A existência de uma mera preposição na frase acima – que pode até mesmo
passar despercebida em uma leitura rápida – faz toda a diferença para vislumbrar certo
desvio de função cometido pela imprensa que dá ensejo ao espetáculo midiático. Por
esse motivo, Moraes (2010, p. 511) aduz que os meios de comunicação poderiam evitar
a divulgação de imagens, fotografias ou expressões enquanto não houvesse uma
acusação formal, com elementos mais concretos em desfavor de um indivíduo.
Como regra geral, a simples informação dos nomes dos suspeitos atenderia
o objetivo para aquele momento, divulgando a investigação de ilícitos penais,
informando a sociedade e não maculando a pessoa do investigado. Afinal, enquanto
meramente suspeitos, os cidadãos devem ter o seu estado de inocência garantido, sob
pena de serem declarados culpados pela sociedade antes mesmo da instauração do
procedimento judicial, o que configura total desrespeito à presunção de inocência como
norma de tratamento.
Ora, é inequívoco que a exposição da imagem de pessoas algemadas e
expostas de forma a representarem um verdadeiro oscar conseguido mediante o trabalho
da autoridade pública que efetuou a prisão é uma forma, absolutamente,
80

desproporcional – além de repugnante - de se exercer a liberdade de imprensa.


Tornando-se excessivo o exercício de tal direito nestes moldes, objetiva-se tão somente
conquistar a atenção e a audiência do telespectador, valendo-se, para isso, da
espetacularização do processo penal.
Não se pode esquecer que, enquanto não transitada em julgado a sentença
penal condenatória, o suspeito, o investigado, o denunciado e todo cidadão são
presumidamente inocentes e não culpados, razão pela qual a excessiva utilização das
imagens sensacionalistas da investigação, enquanto inexiste uma acusação formal,
configura violação indevida e irreparável da presunção de inocência.
Utilizando-se do método da proporcionalidade, constata-se que a
desvantagem causada pela precipitada divulgação de imagens, às quais expõem quem,
em tese, cometeu um ilícito penal, é absurdamente desproporcional à função de
informar o ilícito penal, uma vez que esta poderia ser alcançada apenas com a utilização
dos nomes dos imputados, por exemplo, ao menos enquanto não se estiver diante de
acusação formalizada.
Importante frisar que pensar diferente ou não questionar a maneira atual
como a imprensa vem noticiando as matérias processuais penais, considerando tal
assunto sem a devida importância, transforma a causa criminal em uma verdadeira
mercancia, na qual, nas precisas lições de Moraes (2010, p. 513), o que realmente
ocorreu perde a importância para o público telespectador, e os fatos se transformam no
que é dito na matéria jornalística.
Este foi apenas um exemplo dentre tantos outros que ocorrem, diariamente,
na imprensa brasileira – e, certamente, na imprensa mundial. Poderia ter sido analisado,
ainda, a cobertura midiática de pessoas indo prestar esclarecimentos na delegacia. Da
mesma forma, seria constatada a desproporcionalidade com que a imprensa vem
exercendo a sua liberdade, constitucionamente, assegurada, ao filmar o rosto dos
investigados e pressionar-lhes pela prestação de algum esclarecimento acerca do delito
que, suspostamente, praticaram.
Como consequência direta desse cenário, nega-se a máxima eficácia ao
princípio da presunção da inocência, afrontando o dispositivo consagrado em nossa
Constituição e prejudicando a sociedade, os julgamentos e, em uma análise macro, o
desenvolvimento e a permanência do Estado Democrático de Direito. Afinal, para a sua
estruturação mínima, como salienta Ávila (2011, p. 145), a eficácia dos direitos
fundamentais faz-se, completamente, necessária.
81

4.3 A influência da criminologia midiática ante os poderes republicanos e os


julgamentos criminais

Zaffaroni (2012, p. 303) afirma que existe uma criminologia midiática que
pouco – ou nada – se relaciona com aquela desenvolvida na academia, pois aquela
atende a uma criação da realidade por meio da informação, da subinformação e da
desinformação midiática, indo ao encontro dos preconceitos e das crenças enraizadas no
imaginário social.
O professor argentino alerta que sempre houve criminologias midiáticas
vindicativas, às quais variaram muito no decorrer do tempo – dependendo, sobretudo,
da tecnologia de comunicação de cada época -, mas que possuem um ponto em comum:
sempre apelaram para uma causalidade mágica. Esta estratégia foi e é utilizada para
canalizar a vingança privada contra determinados seres humanos usados, nas palavras
de Zaffaroni, como bodes expiatórios.
No final do século XIX, a força dos jornais e da sua construção da realidade
alcançou limites não vistos até então, transformando a imprensa, nas palavras de
Zaffaroni (2012, p. 304), no poder soberano dos novos tempos 79 . Dentre as
características da atual criminologia midiática, está o neopunitivismo dos Estados
Unidos como discurso, o qual se expande pelo mundo globalizado.
Como aduzem Suzuki e Bezerra (2016, p. 04), é indispensável observar que
os sentimentos desencadeados pelo discurso midiático geram, na população, uma sede
de vingança, profundamente, disfarçada de sede de justiça. Para a sociedade em geral, a
punição do acusado não deve ser restrita apenas à correção do infrator pelo ato
praticado. É preciso ir além.
É necessário provocar no criminoso o sofrimento, a dor, a desgraça e o
infortúnio merecidos como consequências necessárias ao ato delituoso praticado80. E

79
Zaffaroni (2012, p. 304), ainda, complementa, aduzindo que “[...] a imprensa é beneficiária de uma
enorme impunidade legal ou ilegal e pode publicar o assassinato, o incêndio, a espoliação, a guerra
civil, organizar uma grande chantagem, aumentar a difamação e a pornografia ao nível das instituições
intocáveis”.
80
“Durante o mais largo período da história humana não se castigou porque se responsabilizava o
delinquente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigado – e
sim como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que se
desafoga em quem causou; mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que qualquer
82

tudo isso encontra uma razão de ser muito simples: no momento em que o malfeitor é
punido, a vítima e todo o resto da sociedade passam a experimentar a sensação de
poder, de superioridade, de satisfação em ver que aquele que causou sofrimento a
outrem também está sofrendo.
Tudo isso aguça a crueldade das pessoas e minimiza os sentimentos
humanistas que possam ter, fazendo-as pensar, equivocadamente, que o sofrimento do
infrator é capaz de compensar todo o dano que ele causou. Exatamente por isso é que a
característica determinante do atual modelo de criminologia midiática reside, no
entender de Zaffaroni (2012, p. 305), no meio técnico empregado por ela: a televisão, a
qual transmite a mensagem pretendida rapidamente pelo uso de imagens.
Tais imagens, veiculadas por meio de uma linguagem empobrecida e
desprovida de contexto muitas vezes, não informam muito e se propõem mais a
impactar a esfera emocional de quem as assiste. Zaffaroni (2012, p. 307) sustenta que,
desse modo, a criminologia midiática cria um mundo de pessoas decentes frente a uma
massa de criminosos, identificada por um conjunto de estereótipos 81 e separada da
sociedade por ser composta por indivíduos diferentes e maus.
Paralelamente a esse cenário, a crítica aos poderes Judiciário e Legislativo
cresce como efeito direto da criminologia midiática. As pessoas descentes buscam
transferir aos operadores do direito a responsabilidade pelo aumento da violência, sob a
alegação de que os atores jurídicos garantistas, ou seja, aqueles que criam e aplicam as
leis de maneira proporcional ao acusado, visam, na linguagem popular, a defender
bandidos.
Não é exagero afirmar que a tendência traçada em nosso ordenamento, em
regra, é a de pessoas que abraçam, com mais frequência e sem qualquer pudor, o
punitivismo em detrimento do garantismo. Nas sábias lições de Ferrajoli (2010, p. 71),
depreende-se que tal contexto não é recente e está longe de ser alterado.
O problema do garantismo penal, para o referido autor, é elaborar técnicas
de formulação e de aplicação das leis aos fatos julgados no plano teórico, torná-las

dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor do seu
causador” (NIETZCHE, 1998, p. 52).
81
Segundo as precisas lições de Zaffaroni (2012, p. 309), “Os preconceitos que sintetizam o estereótipo
que define a diferença são muitos e variam em casa sociedade e tempo. A criminologia midiática
delimita mais o eles (entendido como um todo, uma massa criminosa de “diferentes”) quando os
identifica etnicamente, como no caso dos negros e índios, deixando-os mais abertos quando assinala
uma classe ou estamento social, como os jovens pobres de comunidades precárias ou uma categoria
política (subversivos, burgueses)”.
83

vinculantes no plano normativo e assegurar a efetividade das mesmas no plano prático.


Tal dificuldade apontada, sem dúvidas, influencia no cometimento de excessos do
direito de liberdade de imprensa em detrimento do da presunção de inocência.
No entender de Suzuki e Bezerra (2016, p. 09), o ideal seria que os poderes
Legislativo e Judiciário funcionassem com total liberdade e independência, para que as
leis fossem criadas de forma objetiva e os processos, julgados de forma imparcial tal
como prevê a lei. Percebe-se, infelizmente, que o Brasil está longe de proteger os seus
julgadores da publicidade abusiva dos meios de comunicação.
Em analogia às decisões judiciais, alguns programas jornalísticos ou posts
em redes sociais não medem esforços para irem além da sua função de informar à
semelhança do que ocorre com as decisões extra petitas. Explicando: a mídia, não raras
vezes, vai além do seu exercício funcional e informacional, divulgando, precipitada e
erroneamente, detalhes de processos que ainda estão tramitando - de provas que ainda
estão sendo produzidas, por exemplo - de forma que os julgam antecipadamente, sem
qualquer chance de contraditório ou de ampla defesa para o acusado.
Como consequência direta e imediata, ocorre a intimidação dos juízes pela
mídia e pela pressão popular para que façam uso de maneira abusiva do poder
punitivo 82 . Em razão disso, quando tal clamor não é atendido, surgem discursos
embalados pelos mais diversos clichês, do tipo a polícia prende e a justiça solta, o
crime compensa, só pobre vai para a cadeia, dentre outros tantos que podem ser
escutados em uma frequência diária83.
Não sendo passíveis de nulidade, como as decisões extra petitas, o
julgamento de casos pela mídia ocorre, a justiça não se aplica em sua forma fidedigna, e
a mídia, não raro, institucionaliza-se como o quarto poder. Fernandes (2017, p. 257)
constata que, muitas vezes, a mídia não se contenta em só criticar as instituições, mas,

82
Como reflete Carnelutti (2009, p. 65), “Cada delito desencadeia uma série de investigações, de
conjecturas, de informações, de indiscrições. Policiais e magistrados, de vigilantes se convertem em
vigiados por grupos de voluntários dispostos a assinalar cada um de seus movimentos, a interpretar
cada um de seus gestos, a publicar cada uma de suas palavras. Os testemunhos são farejados como a
lebre pelo cão. Depois, repetidamente, explorados, sugestionados, comprados. Os advogados são o
claro dos fotógrafos e dos cronistas. E, com frequência, infelizmente, nem sequer os magistrados
tentam opor a esse frenesi a resistência que requereria o exercício de seu austero ofício”.
83
Neste sentido, Reinaldo (2019, p. 70) assevera que “Os noticiários e os jornais reproduzem uma
situação de desordem, de ineficiência na atuação das autoridades, apontando como culpados imediatos
juízes (as), promotores (as) e delegados (as), que operam a máquina punitiva, e advogados (as) que
defendem pessoas acusadas de crimes”.
84

não raro, orienta a forma como determinado magistrado, tribunal, parlamento ou até
mesmo o próprio Poder Executivo deve proceder.
Um completo absurdo, não? Infelizmente, é a realidade a que nosso País
está imerso: a sociedade deixa-se conduzir pelos braços de uma mídia muito
comprometida com o autoritarismo e com seus próprios interesses e pouco
compromissada com a transmissão fidedigna dos fatos. Não há opinião pública, mas tão
somente a opinião publicada que é promovida pelos agentes da mídia.
Hoje, os três poderes da República são reféns de um quarto, a mídia, de
forma que, nos dizeres de Mascarenhas (2010), a mídia transformou-se em uma espécie
de legisladora penal. Esta sensível relação da mídia com o poder punitivo pode ser
observada no legislativo pela Lei nº 8.930, de 06 de setembro de 1994, que enrijeceu a
Lei dos Crimes Hediondos, após o assassinato brutal da filha da escritora global Glória
Perez.
Como exemplos mais recentes da influência do clamor popular, têm-se os
Projetos de Lei nº 4333/2012, de autoria do deputado evangélico Marcos Feliciano84, e
nº 5398/2013, de autoria do então deputado Jair Bolsonaro, ambos da Câmara dos
Deputados, que pretendiam recrudescer o tratamento conferido aos crimes contra os
costumes, introduzindo no ordenamento jurídico brasileiro a castração química,
impondo-a, inclusive, como condição de progressão de regime durante o cumprimento
da pena privativa de liberdade.
Medidas assim ocorrem frequente e lamentavelmente, pois, além de
estarmos inseridos em uma sociedade que alimenta a sensação de impunidade – com
ideias inaceitáveis do tipo “No Brasil, prende-se pouco” -, não existe, de fato, uma
regulamentação que venha a resguardar os poderes da República e os tribunais dos
ataques midiáticos. Nossa legislação carece de dispositivos que, de forma expressa,
penalizem posturas jornalísticas que possam influenciar a imparcialidade necessária a
todo e qualquer julgamento.
Por outro lado, no plano internacional, são encontrados exemplos de
punições expressas a posturas jornalísticas excessivas, como a contempt of court by
publication (desacato à corte mediante publicação) do direito anglo-saxão85. Se alguém

84
O Projeto de Lei 4.333/2012 foi arquivado em 25 de fevereiro de 2013, por se entender que contrariava
o disposto no artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e”, da CRFB/88 (vedação de penas de caráter cruel).
85
Vieira (2013, p. 112) explora o tema com maestria, ao inferir que “O criminal contempt of court
configura ilícito penal que engloba todo comportamento que implique atentado à administração da
85

cometer um desrespeito a um tribunal, poderá ser punido – e tal desrespeito engloba


desde a desobediência a ordens judiciais, como a divulgação de informações que
possam comprometer um julgamento justo86.
Como consequência da contempt of court, na Inglaterra, a mídia deve adotar
a máxima cautela ao noticiar processos em curso, sob pena de influenciar os resultados
destes, e, uma vez constatada tal influência, os julgamentos são passíveis de nulidade.
Tal medida, consoante o artigo 10, visa a proteger que “everyone to be a publisher”, ou
seja, que qualquer pessoa se torne um jornalista em razão da ascensão do poder das
mídias sociais com a internet, de forma que a lei seja à prova de futuro (future-proof),
isto é, para que possa atender a quaisquer problemas criados pela novas tecnologias87.
Deve-se mencionar, ainda, a Lei Orgânica que regulamenta o Poder
Judiciário da Alemanha88 que, em seu artigo 169, §2º, limita o princípio da publicidade

justiça, entre eles as publicações e comentários que suponham um juízo prévio (trial by newspaper) de
um procedimento sub judice, principalmente as divulgações que farem a presunção de inocência do
investigado ou acusado”.
86
No original: “3. Contempt of court is the area of law which deals with behaviour which might affect
court proceedings. It takes many different forms, ranging from disrupting court hearings to disobeying
court orders to publishing prejudicial information which might make the trial unfair. If someone
commits a contempt of court, they can be punished, although the procedures for deciding whether they
are guilty and for punishing them are currently different from those used for normal crimes. [...] 5.
Some of these cases show that the new media – Twitter, internet blogs, and so on – pose a challenge to
the current law on contempt of court, which dates from a time before the internet was so widely used.
The cases also show that there still 3 need to be limits on media reporting in order to protect the justice
system and the right to a fair trial”.
87
Na redação original, busca-se, ainda, proteger os jurados que atuarão em um Júri contra informações
verdadeiras ou falsas obtidas fora do plenário. Busca-se garantir a soberania dos veredictos, na medida
em que precise proteger um justo julgamento e não deve ir além do necessário para protegê-lo, a fim
de também resguardar a liberdade de expressão para que o público saiba o que ocorre no plenário.
Observe-se: “14. Contempt by publication is needed to protect the system of justice, including the right
to a fair trial. This is because, in a criminal case, the jury should reach its verdict based only on the
evidence which has been heard in court. Any information which the jury discovers from outside the
courtroom will not have been examined by the parties and the judge. This could mean that this
information which a juror relies on is mistaken or untrue. 15. On the other hand, it is also important
that the law protects the right to freedom of expression and it is especially important that the public
knows what happens in court in order to have confidence that the system works properly. 16. The law
on contempt by publication is based on the need to protect the jury from finding out information that
they should not take into account when deciding on their verdict. But the law should only do this in so
far as it needs to protect a fair trial and it should not go beyond what is needed to protect that trial”.
88
A referida lei chama-se Gerichtsverfassungsgesetz (GVG). Na versão traduzida para a língua inglesa,
tem-se: “(2) Audio recordings of the hearing, including of the pronouncement of judgments and
rulings, may be permitted by the court for academic and historical purposes if the proceedings are of
outstanding historical significance for the Federal Republic of Germany. Audio recordings may be
partially prohibited in order to safeguard interests meriting protection on the part of the participants or
of third parties or to safeguard the proper course of proceedings. The recordings shall not be put on file
and may neither be issued nor used or exploited for purposes of the recorded proceedings or of other
proceedings. Upon conclusion of the proceedings, they shall be offered by the court to the competent
Federal or Land archive which, under the Federal Archive Act or a Land Archive Act, is required to
86

das audiências judiciais, determinando a proibição de gravações e filmagens de rádio,


de televisão de cinema com fins de divulgação. Ao agir assim, o legislador germânico
objetivou manter a sobriedade da atmosfera judicial, evitando que os juízes, se expostos,
ainda que de forma inconsciente, caíssem na tentação de atender ao clamor popular,
prejudicando a imparcialidade do julgamento.
Logo, segundo Prazeres (2016, p. 44), é inquestionável que os meios de
comunicação em massa interferem, decisiva e negativamente, nos planos da
criminalização primária (produção de leis) e secundária (aplicação da lei penal) da
jurisdição criminal, causando consequências irremediáveis a todos os sujeitos
processuais, sobretudo aos acusados. Zaffaroni (2012, p. 315) ressalta que, na guerra
contra os criminosos, são os juízes os alvos preferidos da criminologia midiática.
Em verdade, Zaffaroni aduz que os ditos juízes brandos – aqueles que
possuem uma tendência garantista – constituem, aos olhos das pessoas decentes, um
obstáculo na luta contra a criminalidade, pois as garantias processuais penais seriam
para estas e não para os criminosos. Afinal, se estes não respeitam os direitos de
ninguém, também não deveriam ter direitos. Logo, como leciona Zaffaroni (2012, p.
315), os criminosos não são vistos como pessoas aos olhos daquelas que ele denominou
como decentes, mas “são a escória social, as fezes da sociedade”; o indivíduo é
transformado em pedaços, na análise de Carnelutti (2009, p. 67).
Ante toda essa influência, não raras vezes, muitos juízes se sentem
pressionados a decidir uma causa segundo a cartilha do punitivismo midiático, sendo
mais conveniente e adequado, para aquele contexto, a sobreposição ao devido processo
legal. Da mesma forma, alguns promotores se veem compelidos a requerer a
condenação de um acusado ou a fazê-lo na pena mais alta possível como forma de
corresponder aos anseios da população, ao clamor popular incessante.
Ora, a presença e a influência do poder midiático no Brasil são,
inegavelmente, muito fortes no que tange à cobrança ao deslinde de certos julgamentos,
com a imposição de que determinado caso deva ter o resultado já conduzido,
preliminarmente, junto à opinião pública. Tal situação, além de colocar em dúvida se os
julgamentos são justos e respeitosos das garantias processuais penais, vai, totalmente,

ascertain whether the recordings are of lasting value. If the Federal Archive or the respective Land
archive does not accept the recordings, they shall be deleted by the court”.
87

de encontro aos ditames do Estado Democrático de Direito, o qual encontra na Lei - e


não no clamor popular – o seu regramento.
Melhor aduzindo: a imprensa, na maioria dos casos de grande repercussão,
amplifica a voz, inicialmente, da polícia e, por conseguinte, do Ministério Público,
abatendo o som solitário da defesa. A transformação das causas penais em verdadeiros
espetáculos na busca desmedida pela audiência do público que, sadicamente, vibra com
a desgraça alheia, causa prejuízos irreparáveis ao processo penal democrático e ao
acusado, que, mesmo absolvido posteriormente, será estigmatizado para sempre.
Afinal, como pontua Suzuki e Bezerra (2016, p. 10), na tentativa de
demonstrar uma falsa eficácia da justiça e acalmar os ânimos da população, os
operadores jurídicos, sufocados pela pressão decorrente da criminologia midiática,
deixam de cumprir seu dever legal de garantir ao acusado um julgamento imparcial e
tornam-se reféns da mídia, optando pelo acolhimento do discurso de punição a todo
custo.
É inequívoco que o Judiciário é o grande berçário do espetáculo visado pela
mídia, considerando que, no âmbito penal, estão em confronto a liberdade individual e o
poder punitivo estatal. Ocorre que, quando a imprensa começa a exibir pessoas acusadas
de delitos, em um momento ainda embrionário das investigações, o faz de forma
desvirtuada, mitigando, consideravelmente, a presunção de inocência e submetendo,
desde logo, o acusado a um precoce julgamento público, em privilégio de uma
verdadeira presunção de culpabilidade.
Não é exagero dizer que o punitivismo midiático desperta na sociedade um
verdadeiro surto vingativo e que a opinião pública clama, como consequência
inevitável, por medidas de recrudescimento do processo penal – a exemplo do
encarceramento provisório como uma antecipação da pena -, as quais antecedem o fim
do processo ao seu início. A repugnância do cidadão pelo criminoso retratado nas telas
impregna de forma decisiva, ainda que inconsciente, no caso que será submetido ao
crivo do Judiciário posteriormente.
Aos olhos do público leigo e ávido por punição, a submissão à justiça89 é
mera formalidade, visto que o resultado daquele julgamento já está, antecipada e

89
Carnelutti (2018, p. 33) sintetiza a importância do devido processo legal: “O processo serve, pois em
uma palavra, para estabelecer que entre em juízo aqueles que não o tem. E, uma vez que o juízo é o
próprio homem, serve para substituir o juízo de um pelo juízo do outro ou outros, fazendo do juízo de
88

equivocadamente, definido: a condenação do acusado. Ocorre que, absorvendo uma


visão construída por conjecturas, a partir de exposições midiáticas tendenciosas, criam-
se preconceitos em face da pessoa retratada como criminosa, em um momento pré-
processual, no qual ostenta a condição de tão somente investigada.
A sentença daquele indivíduo, que muitas vezes não foi sequer indiciado, é
exarada de forma antecipada e inapagável. Mesmo que o Judiciário se manifeste de
forma diversa ao final do processo, a sentença judicial não tem força suficiente para
desbancar a sentença midiática proferida há anos-luz pelos meios de comunicação e
reiterada pelo clamor popular. Ademais, o juiz responsável por tal sandice, é visto por
parte da sociedade como fraco ou defensor de bandido, sendo lembrado pela população
dessa forma, eternamente.
Assim, sabiamente Vieira (2003, p. 55) pontua que a sentença midiática
prescinde de formalidade e transita em julgado perante a opinião pública sem que seja
oportunizado ao indivíduo que ocupa o banco dos réus a chance de se defender ou, ao
menos, de conhecer todas as acusações que lhe são imputadas. Dessa forma, a sentença
judicial é proferida pelo juiz, mas, não raras vezes, em estrita atenção aos anseios do
povo, deixando, muitas vezes, as garantias do acusado, como a presunção de inocência,
em segundo plano90.

um a regra de conduta dos outros. Quem faz entrar em juízo, quer dizer, quem prove aos outros o juízo
de que nescessitam, é o juiz”.
90
A respeito do tema, é importante verificar o que foi dito pelo Ministro Maia Filho (2016), em
entrevista a Conjur. Observe-se, in litteris:
“ConJur – Um dia, na Corte Especial, o senhor falou no julgamento de Jesus Cristo e em garantias
penais e fez uma comparação com o momento atual. O que o senhor estava querendo dizer?
Napoleão Nunes Maia Filho – Falava de quando se faz uma condenação com base no clamor popular.
É um episódio muito conhecido, os quatro evangelistas narram a prisão e o julgamento de Jesus. O
juiz, que era Pilatos, claramente não queria condenar Jesus Cristo. Disse várias vezes que não
encontrava culpa nenhuma nesse homem, que lavaria as mãos e eles que resolvessem, que ele era
inocente do sangue desse justo e que "as consequências cairão sobre a descendência de vocês". Pilatos
claramente não queria condenar. Os evangelistas falam disso com muito detalhe. É um exemplo de
como o clamor público conduz a uma solução injusta. E há outros casos famosos em que o clamor
público acaba condenando a pessoa e depois apura que ela não tinha culpa.
ConJur – Mal comparando com um evento histórico de dois mil anos atrás, o senhor acha que essa
obediência ao clamor público é fenômeno recente?
Napoleão Nunes Maia Filho – Não acho que estejam pautados pelo clamor público, mas o clamor
público frequentemente interfere no julgamento. Não é que o juiz queira atender o público, mas ele
pressiona a compreensão do juiz e de qualquer pessoa. O clamor público é algo que pesa tanto contra
como a favor.
ConJur – Mas hoje é preciso muita coragem para absolver alguém que está sendo exposto em público
diariamente como o culpado da vez, num caso de grande repercussão, não?
Napoleão Nunes Maia Filho – Os juízes são corajosos. Agora, frequentemente há situações em que a
formação da convicção do juiz fica tocada pelo tal clamor público, pela pressão da mídia, pelas redes
sociais. Os juízes do passado eram menos acossados, porque não havia redes sociais. Hoje com
televisão, jornal, rádio e redes sociais é um circo danado. É fácil achar o juiz e pressioná-lo ou deixá-
89

Assim, condenações injustas, fortemente influenciadas pelo clamor popular,


acontecem com frequência em nosso País. Ao violentar direitos e garantias em nome de
um ilusório combate ao crime, à mídia, não rara vezes, tem levado inocentes à prisão.
Além disso, vez ou outra, inocentes ou culpados — neste caso, não importa, já que a
nossa Constituição assegura o princípio da dignidade humana a todos os cidadãos —
são linchados, publicamente, em decorrência da incitação midiática à violência.
Inúmeros crimes, quando do interesse da mídia, são transformados em
verdadeiras novelas91, descritos em capítulos para o telespectador, sempre com elevada
dose de sensacionalismo para manter, igualmente, altos os índices de audiência. A título
exemplificativo, em julho do corrente ano, um homem que havia sido condenado pelo
crime de estupro e já estava preso há 05 (cinco) anos foi inocentado em novo
julgamento em Fortaleza/CE. A atuação da Defensoria Pública do Ceará (DPE/CE), em
parceria com o Innocence Project92, foi determinante para a reversão da condenação.
Antônio Cláudio Barbosa de Castro, atualmente com 35 (trinta e cinco)
anos, foi preso em agosto de 2014, suspeito de abusar sexualmente de 08 (oito)
mulheres entre 11 (onze) e 24 (vinte e quatro) anos de idade, nos bairros Maraponga,
Parangaba, Vila Peri e áreas vizinhas, na capital cearense. O suspeito era dono de uma
borracharia no Bairro Mondubim e nunca tinha sido preso ou processado.
Fortemente explorado pela mídia, ganhando as principais manchetes dos
meios de comunicação à época, o caso ficou conhecido como “Maníaco da moto”,
porque o real criminoso utilizava uma motocicleta de cor vermelha para abordar as
vítimas, além de uma faca para ameaçá-las. Na época, 04 (quatro) vítimas reconheceram
Antônio Cláudio como sendo o agressor, e um desses casos, que teve como vítima uma
criança de 11 (onze) anos, teve como resultado a condenação do então suspeito.

lo pouco à vontade para decidir. Mas em geral isso não é decisivo, não. Desconforta o juiz, claro, mas
não impede que ele decida com a consciência. É mais difícil, mas não é só o juiz, é todo mundo.
Quem não tem medo da mídia? Quem disser que não tem medo da mídia está perdendo uma grande
chance de ficar calado”.
91
Com toda propriedade, leciona Casara (2015b, p. 188) que: “O fascínio pelo crime, em um jogo de
repulsa e identificação, a fé nas penas, apresentadas como remédio para os mais variados problemas
sociais (por mais que todas as pesquisas sérias sobre o tema apontem para a ineficácia da ‘pena’ na
prevenção dos delitos e na ressocialização de criminosos), somados a um certo sadismo (na medida em
que aplicar uma ‘pena’ é, em apertada síntese, impor um sofrimento) fazem do julgamento penal um
objeto privilegiado de entretenimento”.
92
“O Innocence Project Brasil, associação sem fins lucrativos criada em dezembro de 2016, é a primeira
organização brasileira especificamente voltada a enfrentar a grave questão das condenações de
inocentes no país”. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org/innocence-brasil. Acesso em: 26
out. 2019.
90

Ocorre que, em Revisão Criminal - que contou com parecer favorável do


Ministério Público do Ceará (MPCE) -, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) verificou
que as provas que garantiram a condenação do então acusado eram mais duvidosas que
seguras. Observou-se que o reconhecimento à época foi falho, porque o real estuprador
era alto e branco, enquanto Antônio Cláudio era baixo e moreno. Ademais, após a
prisão do borracheiro, os crimes continuaram ocorrendo na capital cearense, como o
mesmo modus operandi. Mas como se o criminoso execrado pela mídia já estava preso?
Diante de apenas um exemplo, entre tantos que poderiam ser citados neste
93
trabalho – como a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal ter flexibilizado o
entendimento em relação ao caso lava-jato ou outros94 por pressão midiática -, pode-se
mensurar a influência que a mídia exerce hoje nos julgamentos criminais? Ou ainda, é
cabível afirmar que os poderes da República permanecem imunes a tais pressões?
Neste sentido, Medeiros (2011, p. 197) alerta o porquê de a sujeição dos
julgamentos do STF - e aqui se pode ampliar para os julgamentos de qualquer tribunal -
ao exame da opinião pública ser tão perigosa. O referido professor explica, de forma
objetiva, que, a partir do Welfare State, isso decorre do marketing de “manipulação
política da própria função política”, e tal reflexo de politicidade acarreta a
tendenciosidade dos magistrados ante aos anseios populares.
Ademais, resta uma questão: há como reparar o prejuízo sofrido por alguém
que teve sua vida marcada por uma prisão ou uma condenação injustas? Certamente,
não. Mesmo que, em alguns casos, sejam concedidas indenizações em vultosas quantias
financeiras, o abalo emocional de quem teve sua vida marcada por uma injustiça jamais
95
será, efetivamente, compensado . Os efeitos da condenação paralelamente ao

93
Importante pontuar a razão da escolha desse caso concreto em detrimento de tantos outros que
poderiam ter sido abordados ao longo destas linhas. Este, em específico, retrata bem o clamor popular
pela punição de um suspeito, bem como a injustiça irreparável decorrente de um julgamento midiático
prévio e irrecorrível, sem que as provas seguras e necessárias a uma condenação fossem produzidas de
fato. Retrata, pois, de forma fidegna o objeto de estudo deste trabalho e serve de alerta para que
injustiças desse tipo não se repitam.
94
Não raras são as notícias veiculadas pela mídia com esse teor: a pressão que a própria mídia cria sob
determinados resultados em julgamentos dos Tribunais Superiores. Como exemplo, cite-se Maretti
(2019): “O Supremo Tribunal Federal está sob forte pressão diante da perspectiva de julgar muito em
breve a questão relativa à prisão após condenação em segunda instância (no plenário) e também a
suspeição do juiz Sérgio Moro (na Segunda Turma da corte)”.
95
Tal realidade, lamentavelmente, não se restringe ao cenário brasileiro. Como exemplo, nos Estados
Unidos, "Um homem da Califórnia que foi injustamente condenado por matar uma ex-namorada e o
filho dela quatro décadas atrás chegou a um acordo de indenização de US$ 21 milhões (equivalente a
R$ 78 milhões) com a cidade de Simi Valley, de acordo com autoridades. Craig Coley, atualmente
com 71 anos, foi sentenciado à prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional pelo
91

julgamento irrecorrível promovido pelos tribunais midiáticos, conforme afirma Prazeres


(2016, p. 34), serão sentidos eternamente.

4.4 Há meios capazes de frear a espetacularização do processo penal


ocasionada pelos tribunais midiáticos?

Inicialmente, é necessário fixarmos uma premissa que pode não ter restado,
suficientemente, clara em tópicos anteriores: é inegável que a prática de atos criminosos
é reprovável, é chocante e é inaceitável. Isso é um fato. Da mesma maneira, são
repugnantes e inadmissíveis os discursos sensacionalistas veiculados pela mídia e a
violação aos direitos fundamentais – não só daquele que se acha na posição de acusado,
mas de toda a sociedade – por eles causada.
Nesse cenário, Moraes (2010, p. 232) adverte que não se pode mais ser
conivente com o maniqueísmo de que, no processo penal, ou se protege o imputado ou
se promove uma política repressiva estatal legítima e eficiente, na qual aquele acusado
no processo, em verdade, torna-se grande vítima das publicações midiáticas.
Atualmente, vive-se em tempos particularmente perigosos, de tentativa de
recrudescimento do processo penal, no afã de torna-lo mais efetivo. Ora, mas torná-lo
mais efetivo para quem? Certamente, não o será para os acusados e os seus, que se
encontram carregando o peso do julgamento, não só judicial, mas também - e
principalmente também – social em suas costas, nem sempre, tão largas para suportar
tamanha carga.
Nesse contexto, ao que parece, busca-se mitigar a presunção de inocência96,
que foi conquistada tão, duramente, em nosso ordenamento jurídico, por meio de um

assassinato, em 1978, da ex-namorada Rhonda Wicht e seu filho de 4 anos de idade, Donald, no
apartamento em que moravam. [..] Embora nenhuma quantia de dinheiro possa compensar pelo que
aconteceu ao Sr. Coley, encerrar este caso é a coisa certa a ser feita para o Sr. Coley e nossa
comunidade", disse uma autoridade de Simi Valley, em comunicado”. HOMEM preso injustamente por
39 anos nos EUA recebe indenização de R$ 78 milhões. Extra, 25 fev. 2019. Portal G1. Disponível em:
https://extra.globo.com/noticias/mundo/homem-preso-injustamente-por-39-anos-nos-eua-recebe-
indenizacao-de-78-milhoes-23477827.html. Acesso em: 26 out. 2019.
96
Na visão do Ministro Peluso (2016), “[...] Exatamente, três vertentes que derivam da arqueologia, do
desenvolvimento histórico do seu pensamento conceitual. Em primeiro lugar, é uma regra de
tratamento do réu no curso do processo, e cuja origem está no já citado dispositivo da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução de 1789, para significar a reação do ordenamento
jurídico revolucionário contra os excessos e arbitrariedades do processo do antigo regime. É, portanto,
uma garantia, no sentido de que o réu não pode ser tratado no curso do processo como se fosse
culpado; deve ser tratado como se fosse inocente. É neste sentido que se presume inocente o réu: para
ser tratado, pela lei, no curso do processo, como se fosse inocente! E aqui não há lugar para nenhuma
pressuposição de condição intermediária, entre inocência e culpabilidade. Trata-se de garantia
92

alargamento irracional do direito penal – que, lembre-se, é ultima ratio. Constatam-se,


amiúde, discursos apaixonados em prol do aumento de penas e da criminalização das
condutas, como se tais medidas tivessem o condão imediato de efetivar os direitos
fundamentais contidos na Constituição.
No entender de Castro (2019), tais discursos - travestidos de democráticos –
veiculados pela mídia servem, em verdade, para mascarar a incompetência estatal no afã
de fazer valer as garantias e os direitos individuais, efetiváveis por meios diversos da
criminalização. A população, aterrorizada pela constante sensação de insegurança arma-
se de argumentos científicos que possam justificar a diminuição das garantias
individuais, enquanto o contrário é que deveria ser defendido.
A verdade é que não é possível pensar em um futuro para o processo penal
sem a presunção de inocência, garantia da sociedade, posta em patamar de destaque,
como apregoa a nossa Constituição. Só assim se terá um processo penal efetivo de fato,
que sirva, sobretudo, a quem se submete a ele. Não se pode consentir que direitos e
garantias constitucionais sejam dizimados com o pretexto de uma efetivação do
processo penal que não serve, senão, para oprimir o homem.
Em outro ângulo, não se pode esquecer a figura do defensor. O defensor -
público ou particular - está ligado ora ao acusado ora ao crime que está sendo imputado
ao acusado. Aquele que atua na área criminal, com o objetivo de assegurar a correta
aplicação das garantias constitucionais, é antes de tudo um humanista incansável e não
pode ser visto ou tratado de forma diferente.
O defensor está ali para que se garanta, efetivamente, a justiça e não atua,
meramente, pro forma, mas para cumprir um papel, que, estritamente, faz valer não só

constitucional de tratamento condigno do réu, enquanto não lhe sobrevenha sentença condenatória
definitiva. Mas não é apenas regra de tratamento; é também a expressão máxima de um modelo de
processo penal, concebido primordialmente para proteger a liberdade, e não, para punir. Há muitos
anos, quando eu era ainda aqui juiz, em São Paulo, escrevi, numa pequena revista que tinha a
Associação Paulista dos Magistrados, artigo sobre a pena de morte e, ali, afirmei que o Estado, para
punir, não precisa de regra, nem de processo, como, aliás, prova a História. Como detentor do
monopólio da força institucional, se quiser punir, pune! E indaguei: para quê, então, serve o processo
penal? Metodologicamente, serve para resguardar a dignidade do réu como pessoa humana. Esta é a
finalidade metodológica do processo, como resulta da discussão em que se envolveram as escolas
italianas, as quais, nas polêmicas sobre os fundamentos do processo, deixaram nítida a diferença de
concepções a respeito do papel que deve desempenhar o processo em relação ao conflito entre as
necessidades da defesa social e as exigências de resguardo da dignidade da pessoa humana do réu. É
até mais do que isso. Tal concepção incorpora, como vamos ver logo a diante, todos os valores básicos
e predicados do chamado devido processo legal, como ingrediente ou conteúdo essencial do modelo.
Mas é também, em terceiro lugar, regra de juízo, isto é, regra de decisão e, como tal, tem reflexos
importantes no campo probatório, na distribuição do ônus da prova. E este aspecto é ressaltado pelas
ideias subjacentes à Declaração de 1948”.
93

os direitos do seu cliente/assistido ora acusado, mas também o dos membros da


sociedade que podem, em algum dia, encontrar-se em situação parecida. Dentre esses
direitos, assume papel de destaque a presunção de inocência.
É preciso se ter em mente que os direitos fundamentais são criados para a
universalidade de cidadãos, mas são efetivados e utilizados, sobretudo, quando o
cidadão, individualmente analisado, é submetido a atos persecutórios. Em que pese a
nítida proteção ao interesse do indivíduo, da presunção de inocência extraem-se direitos
de uma conscientização útil e benéfica a todos.
Afinal, como leciona Moraes (2010, p. 234), para a sociedade, em uma
análise macro, deveria ser melhor uma persecução penal mais justa e equilibrada, na
qual o Estado tem seus poderes controlados e legitimados por escolhas de consenso. A
sociedade necessita compreender que viola a Constituição tanto o cidadão que comete
crimes, quanto o Estado ineficiente, leniente, omisso e arbitrário.
Viola a Constituição não só quem ou o que não respeita os direitos
fundamentais de outrem, como aquele que faz uso excessivo dos seus próprios direitos
fundamentais ou todo ato constituído a partir disso. É, exatamente, a ideia do famoso
clichê de que “o meu direito acaba quando começa o do outro”.
É preciso enxergar que o sistema – do qual toda a sociedade é destinatária -,
se não for repensado, apresentará, segundo Moraes (2010, p. 237), uma incontrolável
tendência à brutalização e não à humanização de seus agentes para com seus
destinatários, principalmente quando a mídia transmite à população, da forma mais
enfática possível, a ideia de que o acusado já é, presumidamente, culpado das
acusações, merecendo todas as sanções estatais – enquanto, em verdade, este deveria ser
visto como presumidamente inocente ou não culpado a depender da fase da persecução
penal.
As pessoas imputadas, nesse sistema neopunitivista – utilizando-se do
entendimento de Zaffaroni -, tendem a ser coisificadas e para essas coisas, de
comportamento dissonante no nosso ordenamento jurídico, os direitos fundamentais não
parecem ser merecedores de aplicação. Conforme afirma Carnelutti (2009, p. 66), a
justiça humana está feita de modo que não só se faz sofrer os homens porque são
culpados, mas também para saber se são culpados ou inocentes.
Pelo julgamento antecipado da mídia, os imputados não são mais pessoas,
não mais merecem serem qualificadas como seres humanos; tornam-se hostis e
repugnantes aos olhos das pessoas decentes. Logo, a democratização na esfera penal –
94

de efetivação tão urgente nos dias atuais - requer que se atribua à Constituição a função
de freio à exteriorização das violências inquisitoriais, como elemento fundamental na
compreensão prévia necessária às interpretações do controle do poder penal e da
tentativa de racionalização deste.
Em estreita relação ao pensamento apregoado por Casara (2015a, p. 314-
315), a superação de uma mitologia processual penal autoritária, enraizada no
imaginário social, exige a formação de atores jurídicos conscientes da democracia e da
tradição em que estão inseridos e desejosos de transformar o status quo desumano em
que se encontram. Mais que isso: torna-se necessário falar da presunção de inocência
aos quatro cantos, de forma que a sociedade tenha conhecimento dos seus direitos e da
real dimensão deles.
Do contrário, segundo a dominante mídia, o Poder Judiciário está sendo
complacente, e a legislação apresenta-se de forma branda. Por tais razões, a sensação de
impunidade e a necessidade de espetacularizar o processo penal, mediante o
sensacionalismo midiático, somente aumentam. É uma completa subversão do princípio
da presunção da inocência e de várias normas inseridas em tratados de direitos humanos
dos quais o Brasil é signatário.
Inevitável, reconhecer, como enfatiza Moraes (2010, p. 238) que a aplicação
plena e efetiva dos direitos fundamentais constitui um interesse e um valor coletivos.
Logo, a presunção de inocência tem em sua fundamentação, concomitantemente,
interesses individuais e coletivos. Em momento algum, a presunção de inocência
objetiva tão somente a proteção dos criminosos, mas confere uma situação jurídica a
todos e quaisquer indivíduos desde antes da persecução penal e por todo o seu curso.
Desta forma, o Estado necessita pôr em prática um arcabouço jurídico e
material apto a propiciar o pleno exercício deste direito elevado à categoria de
fundamental, já que, no entender de Moraes (2010, p. 243), é de escolha axiológica de
alta relevância para a sociedade, impondo-se aos agentes e aos órgãos uma atuação no
sentido de aumentar o âmbito de proteção da norma.
O princípio da presunção de inocência, apesar de consagrado pelo
constituinte de 1988, necessita, atualmente, ser efetivado, como forma de garantir a
todos a proteção que dele resulta. Não é possível desconsiderá-lo. Mesmo em caso de
colisão com outro direito fundamental – como é o caso da liberdade de imprensa, já
apontado – necessita ser, ainda que minimamente, observado e equilibrado.
95

Para tanto, é preciso falar para os leigos a respeito da presunção de


inocência, para que não se restem dúvidas acerca da grandeza deste direito fundamental,
que se faz primordial não só para os acusados em um processo penal, mas para a
sociedade em geral. É preciso que os magistrados façam uma avaliação dos velhos
conceitos e posicionamentos.
O juiz não deve ser um mero aplicador da lei tal qual ela é, la bouche de la
loi como pregado por Montesquieu, mas precisa ser um intérprete perspicaz e
humanista, aplicando a norma, mas buscando, em sua essência, a positivação da justiça.
Para tanto, é preciso que não se deixe levar pelo clamor popular, que se faça a justiça
por meio dos caminhos apontados pela legislação adotada em nosso Estado
Democrático de Direito.
Ferrajoli (2010, p. 506) destaca que o importante é que os inocentes sejam,
sem exceção, protegidos, já que a presunção de inocência é um princípio fundamental
de civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos
inocentes, ainda que para isso se tenha que pagar o preço da impunidade de algum
culpado. Voltaire já havia positivado tal raciocínio, à época do iluminismo, ao afirmar
que “mais vale arriscar-me a salvar um culpado do que condenar um inocente”.
O princípio da presunção de inocência, reitor do processo penal, estabelece,
assim, parâmetros para que a dignidade humana seja respeitada, sendo um estado em
que se encontra o acusado até ser declarado culpado. Uma forma de tratamento que,
internamente, impõe ao juiz que a carga de provas seja, obrigatoriamente, do órgão
acusador, e, externamente, tem o importante dever de atuar como um limitador.
O acusado, necessariamente, deve ser protegido, por todos os meios
plausíveis, da publicidade que, na maioria das vezes, é abusiva. Nas lições de Alves
(2014, p. 66), é preciso romper com o discurso do outro, que embasa um paradigma
medieval excludente, estabelecendo um canal de construção dos direitos humanos por
meio de procesos comunicativos. Do contrário, a estigmatização precoce do imputado
se torna uma violação de proporções irreparáveis à pessoa e à moral deste – que, não
raro, ainda é somente indiciado.
Mesmo a condenação, com sentença penal transitada em julgado, não
autoriza a grande mídia a expor publicamente o sentenciado, conforme adverte Vieira
(2003, p. 176). Isso porque, a divulgação excessiva e com caráter de espetáculo da
sentença condenatória e da execução da pena pode influenciar, negativamente, a
reintegração digna do condenado à sociedade – preocupação não só recorrente no
96

97
ordenamento jurídico brasileiro, mas também pelo mundo afora , consoante
demonstrada pelo contempt of court by publication.
Ressalte-se que, ao noticiar um inquérito policial ou um processo a ser
submetido a julgamento, o profissional da imprensa deve redobrar o cuidado, evitando
conduzir o indivíduo à execração pública sem que este tenha chance de apresentar
elementos de prova em sua defesa. Isso evita, inclusive, que, ante a conclusão de um
inquérito policial no sentido de não autoria do crime por parte do indiciado ou de
absolvição do acusado, o indivíduo já tenha sido hostilizado pela sociedade – restando,
tão somente, pleitear uma compensação por danos morais.
Desse modo, o comunicador de uma noticia jornalística, ciente do seu real
papel enquanto também formador de opinião, deve conter os ânimos ao narrar notícias
criminais. Não se trata de transmitir os fatos com apatia, sem demonstrar a emoção
própria dos seres humanos, mas de fazer uma análise imparcial dos fatos narrados,
deixando para que o público per si estabeleça a sua opinião.
Diante disso, Roxin (1988, p. 297) sugere uma limitação das informações
referente a investigações e a inquéritos em andamento, o que, segundo o exímio autor,
deu bons frutos nos Estados Unidos. Logo, as publicações mencionariam apenas os
passos formais das averiguações, como prisões provisórias e instauração de inquéritos,
sem a divulgação de detalhes dos fatos investigados.
Isso porque, sabe-se que os elementos indiciários, segundo o artigo 155 do
CPP, não são capazes de, sozinhos, sustentar um eventual decreto condenatório, haja
vista que foram produzidos sem qualquer garantia ao contraditório e à ampla defesa,
servindo tão somente para a elaboração da denúncia. Atualmente, entretanto, ante o
punitivismo midiático, basta a veiculação de uma notícia relacionado a determinado
caso pela mídia para tais elementos serem elevados à categoria de provas.
Mais que isso: à categoria de provas seguras aptas a condenarem um
acusado antes de qualquer julgamento – quando não, antes mesmo do oferecimento da

97
Tal preocupação internacional com a influência da imprensa e do clamor popular nos julgamentos não
é recente. Como exemplo, cite-se o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, já
mencionado nesta pesquisa, ao dispor no §1º do artigo 14 o seguinte: “[...] A imprensa e o público
poderão ser excluídos de parte ou da totalidade de um julgamento, quer por motivo de moral pública,
ordem pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da
vida privada das partes o exija, quer na medida em que isto seja estritamente necessário na opinião da
justiça, em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da
justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá tornar-se pública, a
menos que o interesse de menores exija procedimento oposto, ou o processo diga respeito a
controvérsias matrimoniais ou à tutela de menores”.
97

denúncia. Desta feita, Albuquerque (2017, p. 57), aborda o sigilo no inquérito policial,
reputando como importante a mantenção, sob proteção, dos documentos, dos dados, das
informações e dos depoimentos pertinentes à investigação para preservar os interesses
sociais e proteger a investigação ou o próprio investigado.
Em que pese a publicidade ser postulado do Estado Democrático de
Direito 98 , ela não deve prejudicar a imparcialidade do julgador, bem como o
comportamento das demais pessoas que atuam no processo – testemunhas, peritos e
partes. Para Fernandes (2017, p. 257), a adoção do sigilo judicial como forma de barrar
ou pelo menos minimizar essa empreitada midiática em desfavor do Poder Judiciário
garante, concomitantemente, a proteção da honra do acusado 99 e da dignidade deste
enquanto pessoa humana na medida em que a presunção de inocência passa a vigorar
durante todo o processo.
Durante a tramitação do processo penal, a presunção de inocência tem de
encontrar proteção não só na proibição de apresentar, publicamente, uma pessoa como
culpada antes de uma sentença condenatória transitada em julgado, mas também quando
se impõem medidas cautelares, visto que a adoção de uma medida cautelar supõe, em
todos os casos, a privação de bens ou de direitos pessoais ou patrimoniais para o
investigado, que goza da presunção de inocência e se vê privado deles a partir,
precisamente, da sua acusação, o que, em alguns casos, significa impor uma medida
exatamente idêntica à pena.
Como consequência, caso algum jornalista contrarie tal orientação, poderá
ser incriminado segundo o artigo 325, do Código Penal Brasileiro100 , e punido com
detenção em até 02 (dois) anos se o fato não constituir crime mais grave. Neste caso,
ressalte-se que, segundo a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 - a conhecida Lei de
Execução Penal -, constitui direito do preso a proteção contra qualquer forma de
sensacionalismo, nos termos do artigo 41, inciso VIII, da LEP.

98
Conforme exemplifica Catena (2012, p. 107-108), “Ainda que o Tribunal reconheça que a liberdade de
expressão e comunicação implica o direito a informar sobre processos judiciais e, por isso, a
possibilidade para as autoridades de tornar públicos dados objetivos extraídos do processo, julga que
tais dados devem ser isentos de qualquer valoração ou julgamento de culpabilidade (Sentença Y.B. e
outros contra a Turquia, previamente citada, ap. 49)”.
99
“A parte não se avilta nem se humilha por integrar o todo, desde que não se permita que o todo, ao
invés de servir à sua complementação individual, reduza-a a simples e anômalo enchimento. Assim,
desonrada, não haveria mais parte, porém conteúdo. Matéria” (FALCÃO, 2004, p. 207).
100
Violação de sigilo funcional
Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou
facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.
98

Ademais, a Lei de Execução Penal assegura que é defeso ao integrante dos


órgãos da execução penal e ao servidor, a divulgação de toda e qualquer ocorrência que
perturbe a segurança e a disciplina dos estabelecimentos, bem como exponha o preso –
a honra e a dignidade deste consequentemente - à inconveniente notoriedade, durante o
cumprimento da pena, nos termos do artigo 198.
Como possível freio ao fenômeno em análise, pode-se mencionar, ainda, o
habeas data, remédio constitucional, que, nas lições de Bonavides (2016, p. 673),
cristaliza uma reação jurídica do constituinte a violações, manipulações e excessos
perpetrados em matéria informativa pessoal. Pode se impetrado por quem possui
capacidade postulatória em nome do interessado que deseja ratificar informações sobre
a sua própria pessoa – por exemplo, um suspeito que não foi denunciado ou um acusado
absolvido após terem os seus nomes, indevidamente, sensacionalizados pela mídia.
Pois bem. Como, sabiamente, apregoa Baratta (1997, p. 58), o sistema penal
é, ontologicamente, desigual, e a seletividade faz parte da sua natureza. De forma
análoga, pode-se dizer que é seletiva a mídia brasileira, no que tange ao tratamento das
notícias de conteúdo criminal em detrimentos das demais, bem de algumas notícias de
conteúdo criminal em detrimento das outras de menor repercussão.
A espetacularização do processo penal está, fortemente, enraizada na
sociedade há décadas, ganhando um viés mais intenso, a partir dos anos 90, mediante o
sensacionalismo midiático. Voltando à pergunta que intitula este capítulo, pelo exposto
nestas linhas, constata-se que, há possíveis freios à espetacularização processual penal –
alguns aqui demonstrados, encontrados em nossa legislação - no afã de contê-la
propriamente, mas não de fazê-la cessar em definitivo, visto ser uma questão de caráter
histórico-sociocultural.
Para a transformação de tal cenário, de fato, é preciso uma adesão efetiva da
população e dos meios de comunicação em massa em seguir o que resta posto em nossa
legislação. Como assinala Alves (2014, p. 65), a solução da justiça penal necessita do
questionamento de valores pela sociedade educadora. Tal medida é diretamente
proporcional à redução do processo penal do espetáculo e ao crescimento de uma
cultura garantista e respeitosa à condição de ser humano enquanto sujeito de direitos,
bem como dos seus direitos fundamentais assegurados pela Constituição de 1988,
dentre eles a presunção de inocência.
99

5 CONCLUSÃO

É inconteste o papel que a Constituição de 1988, com o seu amplo


arcabouço de garantias e de direitos fundamentais, exerce na condição de sustentáculo
do Estado Democrático de Direito. Com influência direta da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789 e da Declaração Universal dos Direitos do Homem de
1948, nenhuma outra Carta Magna brasileira protegeu tanto o ser humano, elevando-o à
categoria de sujeito de direitos, como o fez a Constituição Cidadã.
Nesta senda, os direitos fundamentais constituem diretrizes e balizas à
atuação estatal, bem como verdadeiros limites ao jus puniendi e ao jus persequendi,
evitando que se torne excessiva ou arbitrária a conduta do Estado. A política criminal
que orienta o dever-poder de punir está desenhada na nossa Constituição, especialmente
na declaração dos direitos fundamentais, arcabouço normativo que é complementado
pelos Códigos Penal e Processual Penal, os quais tiveram de se adequar ao paradigma
do Estado Constitucional que possui como meio e fim os direitos fundamentais.
Na realidade democrática advinda após 1988, a presunção de inocência,
encabeçada pela Escola Clássica de Beccaria no final do século XVIII, ocupa posição
de destaque por ser, sob a ótica apresentada neste trabalho, um direito fundamental do
cidadão, garantidor da própria essência do Estado Democrático de Direito. Mediante a
redação do artigo 5º, LVII, nossa Constituição confere à presunção de inocência a
posição de princípio básico de todo o sistema penal, na medida em que o situa entre os
parâmetros admissíveis constitucionalmente.
É nítida a influência exercida pelo direito anglo-saxão no princípio da
presunção de inocência, com o postulado do not guilty e a necessidade de
desconstituição do beyond reasonable doubt, mas as peculiaridades do nosso
ordenamento jurídico fizeram que este princípio assumisse feições teratológicas com
um dogma bastante sui generis em relação à sua tradição jurídica.
Na perspectiva do direito comparado, a Constituição brasileira guarda
maiores semelhanças com as europeias quanto à salvaguarda deste direito até o trânsito
em julgado da sentença penal condenatória. Isso porque, dos diplomas constitucionais
sul-americanos analisados, nenhum assegura, como positivado no brasileiro, a condição
de presumidamente não culpado até o julgamento definitivo do processo penal.
As expressões presunção de inocência e presunção de não culpabilidade
coexistem, a depender do momento da persecução penal, em nosso ordenamento
100

jurídico de forma pacífica. A despeito de não vir expresso o termo presunção de


inocência pelo nosso constituinte, entende-se que o sentido do dispositivo é realmente
este, por melhor se afeiçoar com o viés garantista abraçado pela CRFB/88, possuindo os
enfoques de regra de julgamento e regra de tratamento, devendo a inocência ser
presumida durante todo o processo penal.
A presunção de inocência tem de encontrar proteção não só na proibição de
apresentar, publicamente, uma pessoa como culpada antes de uma sentença
condenatória transitada em julgado, mas também quando são decretadas medidas
cautelares, visto que a adoção de qualquer destas presume a privação de bens ou de
direitos pessoais ou patrimoniais para o investigado, que goza da presunção de
inocência e se vê privado deles a partir, precisamente, da sua acusação, o que, em
alguns casos, significa impor uma medida exatamente idêntica à pena.
A partir dos anos 90, diante da intensificação do uso dos meios de
comunicação em massa e da velocidade da divulgação das informações nas suas mais
variadas formas, a acusação inicial passou a ser feita pela própria mídia, fazendo nascer
o fenômeno do sensacionalismo midiático. Por meio de um discurso rápido e
superficial, com palavras de efeito e muitas imagens, a imprensa não mais noticia os
fatos, mas os sensacionaliza, fazendo do processo penal um verdadeiro espetáculo.
A exploração das causas penais como casos jornalísticos, em algumas
situações com intensa cobertura por todos os meios de comunicação possíveis, tem
levado à constatação de que, ao contrário do processo penal tradicional, no qual o
acusado e a defesa poderão dispor de recursos para tentar resistir à pretensão de
acusação em igualdade de posições e paridade de armas com o acusador formal, o
processo difundido na mídia é superficial, emocional e, raramente, oferece a todos os
envolvidos as mesmas oportunidades para expor seus pontos de vista.
Não mais se noticia um caso criminal, mas, verdadeiramente, julga-o com
sentença midiática transitada em julgado e irrecorrível perante o veredicto do clamor
popular. Tornam-se verdadeiras novelas, em que o público, ávido por contemplar a
desgraça alheia, acompanha, intensamente, cada capítulo e pressiona por um único
resultado: a condenação e a condenação na pena mais alta possível.
Assim, é inquestionável que a presunção de inocência vem sofrendo
drástica violação e, consequentemente, a essência do Estado Democrático de Direito,
pois a imagem do acusado – quando não raro, do ainda investigado - é difundida como a
da pessoa já responsável pelo cometimento da infração penal que lhe foi imputada,
101

antes mesmo de qualquer julgamento. Constitui, portanto, um caso de colisão entre


direito fundamentais, a ser resolvido pelo postulado da proporcionalidade.
No afã de desespetacularizar o processo penal, a presunção de inocência
não deve se sobrepor à liberdade de imprensa, mas deve, com ela, buscar uma
conformação equilibrada. Afinal, como a norma constitucional é ampla e abstrata, não
gozando, em regra, de uma concretude específica capaz de abarcar determinada situação
– como ocorre costumeiramente com as normas infraconstitucionais –, torna viável que
o seu conteúdo seja harmonizado com as demais normas constitucionais, as quais
vivem, igualmente, em constante evolução.
Como alvos da mídia e do clamor popular dela decorrente, emerge a
criminologia midiática, diferente daquela estudada na academia e variante conforme a
tecnologia de comunicação de cada época. O excessivo uso de imagens, a linguagem
exagerada e a narrativa superficial dos fatos nos programas televisivos impactam a
esfera emocional, aguçam a crueldade das pessoas e minimizam os sentimentos
humanistas que possam ter, fazendo-as pensar, equivocadamente, que o sofrimento do
infrator pode compensar o dano que ele causou.
A criminologia midiática interfere, sobremaneira, no bom andamento dos
poderes republicanos, em especial o Judiciário, ao criar um mundo de pessoas decentes
frente a uma massa de criminosos, identificada por um conjunto de estereótipos e
separada da sociedade por ser composta, em tese, de indivíduos diferentes e maus. Não
raro, são criadas leis de recrudescimento do processo penal para atender aos apelos
incessantes do clamor popular e a constante sensação de insegurança alimentada pelos
programas televisivos.
Aumenta-se a cobrança pelo deslinde de certos julgamentos, com a
imposição de que determinado caso deva ter o resultado já conduzido, preliminarmente,
junto à opinião pública, sendo a submissão à justiça mera formalidade. Tal situação,
além de colocar em dúvida se os julgamentos são justos e respeitosos das garantias
processuais penais, vai, totalmente, de encontro aos ditames do Estado Democrático de
Direito, o qual encontra na lei - e não no clamor popular – o seu regramento.
Logo, o grande freio para a espetacularização do processo penal,
encabeçada pelo sensacionalismo midiático, reside na Constituição e, subsidiariamente,
nas legislações infraconstitucionais. A sociedade precisa compreender que viola a
Constituição não só quem ou o que não respeita os direitos fundamentais de outrem por
102

meio do cometimento de atos ilícitos, mas também aquele ou aquela que faz uso
excessivo dos seus próprios direitos fundamentais ou todo ato constituído a partir disso.
Em decorrência disso, não é possível pensar em um futuro para o processo
penal sem a presunção de inocência, garantia da sociedade, posta em patamar de
destaque, como apregoa a nossa Constituição. Para o alcance de tal intento, é
imprescindível falar para os leigos a respeito da presunção de inocência, para que não se
restem dúvidas acerca da grandeza desta garantia constitucional, que se faz mister não
só para quem ocupa um assento no banco dos réus, mas para a sociedade em geral.
É necessária também a elaboração de um novo regramento para a imprensa,
de acordo com o viés democrático instaurado com a atual ordem constitucional, a
exemplo do que ocorre em ordenamentos jurídicos internacionais, tal como foi
apresentado, no afã de proteger a imparcialidade dos julgamentos criminais, bem como
a lisura no exercício dos poderes republicanos.
Não bastam a veracidade e a neutralidade na veiculação da notícia, tratando
o noticiado como inocente, até que transite em julgado eventual sentença condenatória,
pois cada caso concreto ditará o ponto de equilíbrio. Deve o profissional da imprensa
não obscurecer diante da existência de direitos fundamentais, como os da presunção de
inocência e da dignidade da pessoa humana, apresentando-os como verdadeiros direitos
da sociedade, sob pena de ser punido nos termos do artigo 325 do CPB.
É essencial que os inocentes sejam, sem exceção, protegidos, visto que a
presunção de inocência é fruto de uma opção garantista do constituinte de 1988 a favor
da tutela da sua imunidade, ainda que, para isso, tenha-se que pagar o preço da
impunidade de algum culpável. Ainda assim, os presos possuem direito à proteção
contra qualquer forma de sensacionalismo, nos termos do artigo 41, inciso VIII, da LEP,
pois os direitos fundamentais são, igualmente, concedidos a todos segundo a
Constituição Cidadã.
Por fim, o maniqueísmo ainda divide a população mundial, nacional,
regional e local entre pessoas decentes e criminosos na sociedade do século XXI,
realidade nefasta que atinge todas as esferas possuidoras do mínimo contato entre seres
humanos. Eleger um freio para a espetacularização do processo penal e,
concomitantemente, para a efetivação da presunção de inocência ao nível que merece é
uma missão que perpassa, essencialmente, o conhecimento dos fundamentos da nossa
Constituição e dos valores disseminados por ela em nosso ordenamento jurídico.
103

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