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A“INDUSTRIA” DO ANTICOMUNISMO Rodrigo Patte Sé Motta RESUMO A proposta do artigo € analisar uma dus manifestagées mais interessuntes do fenémeno an- Gcomunista, a “indlistria do anticomunismo”. A “industrializagio” referida diz respeilo & Thanipulagdo oportunista da medo a comumisme presente em amplos setores da sociedad, nowdamente entre os mais conservadores, um “negscie” cuja exploragac podia render div dendos politicos, eleitorais ¢ até pecunidrios. ABSTRACT ‘The aim of the utticle is te analyse the “anticommunism industry”, a quite interesting mani- festation of the anticommunist phenomenon. The “industrialization” in focus is related to the fear that communism arose among the conservative sections of society; such few was manipulated by oppertunist agents and gave bisth to a “business” thal could bring many prot its: political, electoral and even pecuniary. Q artigo é versao de um dos capitulos da tese de doutorado do au- tor (Em guarda contra o “perigo vetmelho”: o anticomunismo no Bra- sil, 1917-64), defendida em outubro de 2000 junto ao programa de pés- graduagao em Histéria da Universidade de Sao Paulo. de uma anal i i asi conjunturas em que © anticomunismo se manitestau de forma mais in- tensa no pats, tendo contribufdo para a eclosao dos golpes autoritarios de 1937 e 1964. A tese enfoca o anticomunismo em duas dimensées, entendidas como facetas cuja interaciio complexa confere significado ao fendme- no: de um lado agdes - movimentos, organizagGes e campanhas - c de outro representacdes - imagindrio, iconografia ¢ idedrio. A discussao que segue, dedicada A “industria” do anticomunismo, faz parte do esforgo Rodrigo Patto $4 Motta ¢ prolessor no Departamento de Histéria da UFMG. Anos 90, Porto Alegre, n.{5, 2001/2002 7h para compreender as agées e priticas anticomunistas no Brasii, notada- mente em seu viés oportunista ¢ manipulador. kee » Industriais do antico- munismo scriam aqueles manipuladores que tiravam proveito do temor ao comunismo. Normatmente, tal operacdo implicava em supervalo zar a influéncia real do Partido Comunista e dos supostos obdjetivos im- perialistas da URSS, criando uma imagem propositadamente deforma- da da realidade. Em certas situagGes n4o se tratava de criar, mas apenas de explorar um medo ja existente. O objetivo era aproveitar-se do pa- vor provocedo pelo comunismo, seja convencendo a sociedade da ne- cessidade de determinadas medidas, seja colocando-se na condigiio de campeiio do anticomunismo para daf auferir vantagens. O fenémeno cra tao notério que até na grande imprensa surgiram ocasionais demincias contra os exploradores do “fantasma comunista’. Em 1962, por exemplo, o Jornal do Brasil abordou o tema num editori- al de titulo “Fantasmas rendoses”. Analisando a mobilizagio anticomu- nista ocorrida durante as eleigGes daqueic ano, o editorialista comentou que © fiagrante exagero da campanha acabou por desmoralizar os res- ponsdveis. De acordo com o texto jornalistico, 0 desempenho eleitoral dos comunistas foi “(...) 40 pifio que os industriais do anticomunismo acabaram por se dominar, agora, de um panico rea!: a impossibilidade de continuarem a se nutrir do combate a um espantatho que se desmora- lizou e os desmoralizou”’, As criticas & “industrializagio” referida se davam de forma to freqtiente, que alguns lfderes anticomunistas senti- am necessidade de afirmar a sinceridade de seus compromissos. Falan- do mim encontro da TEP paulista, o Cel. Erasmo Dias, candidato a de~ putado nas eleigdes de 1978, disse o seguinte: “Nunca fui industrial do anticomunismo, Sou anticomunista por convicgao, por fé, por formagao, por ideologia e ... inclusive por jé ter pago na carne o preco de ser anti- comunista’”’, A manipulagao oportunista do medo ao comunismo assumiu carac- terfsticas diferentes ao longo do tempo e se prestou a objetives diver- sos. Varios agentes sociais exploraram o anticomunismo: 0 préprio Es- tado, a imprensa, grupos ¢ Iideres politicos, érgios de repressao ¢ me: mo a Igreja. E é interessante observar, os dividendos hauridos da indtis tria anticomunista variavam de natureza. Os ganhos podiam ser politi- cos, na forma de votos, por exemplo, ou apoio popular a medidas de 72 Anos 90 governa; num sentido genérico, crescimento do prestigio de algumas instituigdes que se colocavam como campeds na luta contra os “verme- Thos", como no caso da Igreja; ¢ As vezes havia até ganhos pecunidrios, quando alguns grupos extorquiam dinheiro dos segmentos sociais abas- tados a titulo de combaterem os comunistas. E isto para no mencionar o aspecto mais 6bvio, as manobras em- preendidas visando combater o proprio comunismo. As representagdes propositalmente deformadas do cornunismo ¢ dos perigos a ele relacio- nados foram executadas, em grande medida, para dificultar, pelo opré- brio, o proselitismo dos ideais revolucionarios. Certa feita, abordando os acontecimentos da “Intentona Comunista”, o editorialista de O Esta- do de Sao Paulo atirmou: (...) ainda se ndo apagen do espirito da nossa gente o horror da- quella tragedia. E é bom que se néio apague jamais. Esse horror precisa ser cultivade no coragéo dos brasileiros com o maior ca- rink A forma mais conhecida e, certamente, mais importante da “indt tria” foi a utilizagdo do anticomunismo para justificar intervengSes au- toritdrias na vida politica nacional. A alegacio era que as instituigdes fi- beral-democraticas nao forneceriam os meios adequados para conjurar os riscos de subversio revolucionaria, tornando urgente, portanto, a ado- cdo de medidas extraordindrias. Com algumas adaptagSes e modifica- gbes, este roteiro basico foi encenado no Brasil duas vezes, em 1937 e 1964, para nao falar de ensaios menores, que nfiv chegaram ao palco prin- cipal da politica brasileira. Em 1964, apresentou-se um argumente adi- cional A tradicional critica sobre a suposta fraqueza das instituigdes para combater o comunismo: a Lragilidade da democracia nao estaria apenas na incapacidade de prover a repressio necessdria, mas na facilidade com que permitia a infiltragao comunista no aparetho do Estado *. woe A pratica de macular a imagem de adversérios, atribuindo-lhes o y6tulo de comunista, foi uma das manifestagdes mais comuns da‘indus- trializagtio do anticomunismo. Ocorréncias deste tipo foram freqtientes notadamente apds 1935, em meio & onda anticomunista que se seguiu ao levante revoluciondrio. Como notou um observador contemporaneo: “O titulo de communista (...) hoje é um signal de ignominia e até me: mo uma arma com que o inescrupulo dos homens tenta tisnar a dignida- Anos 90 73 de dos que odeiam” 4. Intimeros homens ptiblicos foram acusados de envolvimento com o Partido Comunista por desafetos que, numa época de caga as “bruxas”, pretendiam jogé-los As “feras”. Para nos ater ao mesmo periodo histérico, ap6s 1935 varios politi- cos de projegSo receberam ataques do género, denunciados como comu- nistas. Lideres da oposigao foram os mais visados (““O ex-deputado com- munista Café Filho autorizado a regressar ao Brasil?” *),mas nao esca- param nem governadores de Estado, como 0 pernambucano Carlos de Lima Cavalcanti, que chegou a ser denunciado ao Tribunal de Seguran- ga Nacional (TSN)’, nem Ministros do préprio governo, como Agame- non Magulhiies, que foi acossado por um parlamentar cagador de comu- nistas *, Na campanha presidencial de 1937, mobilizacao em torno de um pleito que jamais aconteceria, ocorreu um fato risivel. Os dois prin- cipais candidatos, José Américo e Armando de Salles, se acusaram mu- tuamente de comunistas, no aff de livrar-se de qualquer suspeita de 1 gagiio com a “doutrina maldita” Também podemos enquadrar neste género de maniputagio a prati- ca de utilizar o rétulo comunista com “liberalidade”, aplicando-o a to- s individuos com inclinagdes esquerdistas. Durante décadas esta ma- bra foi comum no Brasil, a tatica de nomear como comunistas os an istas, Os sociaiistas moderados, os trabalhistas, os nacionalistas radi is, os populistas de esquerda, a esquerda catélica e, em determinads onjunturas, até mesmo os liberais avancados, A aplicacao indiscrir nada da expresso comunista aos individuos pertencentes aos diversos matizes da csquerda, praticada de maneira mais freqiiente pelos antico- munistas conservadores e reaciondrios, tinha como objetivo desacredi- tar todo ¢ qualquer processo de mudanga social. Denunciando A socie- dade como comunistas embugados a todos os esquerdistas, aleancava- se o cfcito de langar desconfianca sobre as propostas reformadoras Amedrontada em fungdo das sinistras representagdes do comunismo di- vulgadas ¢ cristatizadas ao longo do tempo, parte da populagiio tendia a encarar com reserva 0 discurso “progressista”. Além disso, a tatica era titil para os que almejavam criar condigées favoraveis & cfotivaciio de intervengées autoritarias na vida politica na- cional. Para atingir este propésito era interessante criar um ambiente de polarizag&o politica, uma impressdo de conflito grave e decisivo opon- do comunistas a anticomunistas. Evidentemente, a fim de tornar convin- cente tal construcdo era imprescindfvel que os “comunistas” fossem numerosos, de modo a que # sociedade aceitassc como necessdrio 0 golpe nas inslituigdes liberal-democraticas. 14 Anos 90 Nao se pode descartar, porém, a possibilidade de que alguns setores anticomunistas acreditassem realmente no suposto vinculo da esquerda moderada com 0 comunismo. Quanto mais radicais as posigdes conser- vadoras e reaciondrias, tanto maior a tendéncia a execrar qualquer mudanga como “coisa de comunista”. E 0 fato de comunistas e progress! fre determinados valores em comum, por exemplo, entusiasmo pelas propostas nacionalistas e insatisfagao com respeito ao predominio tradi- cional da Tgreja, tornava mais facil o estabelecimento de uma percepgiio que fundia num s6 corpo identidades essencialmente distintas. Mas, a motivagéo para rotular um desafeto de comunista nao pre- cisava ser necessariamente politica. Houve muitos casos em que cida- dfos “se tornaram” comunistas devido a querelas de natureza pessoal. Em 1958, 0 DOPS carioca resolveu depurar os arquivos sobre 0 PCB, que acumulara desde 1922 fichas referentes « 800.000 comunistas (1). A revisdo visava fazer uma triagem para separar os comunistas verdadei- ros das pessoas fichadas por falso (estemunho. Esperava-se limpar os nomes dos que constavam como comunistas devido a vingangas pesso- ais c chantagem, registros que aparentemente eram numerosos. Um dos casos que se pretendia corrigir dizia respeito a um guarda-civil, servi- dor publico prejudicado cm sua carreira (perdera promogées) por ter fi- cha de comunista. O homem havia sido denunciado por um policial, seu vizinho, que assim se vingara dele apds terem brigado °. Ha um outro exemplo interessante de utilizagéo do rétulo comu- nista como macula, envolvendo uma disputa entre 6rgdos da imprensa mineira dos anos 30. Havia na época um didrio catélico, por sinal muito dedicado ao anticomunismo, que disputava espago com os vefculos dos “Didrios Associados” publicados em Belo Horizonte. Nao se tratava de mera disputa comercial, pois a maior fonte do ddio devotado pela im- prensa catélica aos concorrentes provinha de motivagdes filoséficas. Os editores de O Diario nao aceitavam o “modernismo” ao estilo Assis Cha- teaubriand dos adversirios, sua pouca preocupagao com os valores tra- dicionais e com os preceitos religiosos. Daf a chamarem os concorren- tes de auxiliares dos comunistas foi um passo curto. Na edigao de 22 de marco de 1936, o jornal catélico estampou uma foto de Dario de Almei- da Magaihies, editor do Estado de Minas, coma seguinte legenda: “Di- rector dos jornaes bolchevizantes da capital”. Poucos dias depois vol- fou a carga, publicando em boxe a nota: “O ‘Estado de Minas’ ¢ 0 ‘Dia- rio da Tarde’ fazem uma sorrateira propaganda bolchevista” |". A intengao, claro, era jogar o ptiblico leitor contra os jornais ad- versdrios, num momento em que a propaganda anticomunista estava no Anos 90 75 auge. Curiosamente, alguns anos depois o mesmo jornal criticou a ma- nipulacio anticomunista operada pelos regimes fascistas, sem se dar conta do paradoxo de sua situagaio. O pecado, eles 36 0 percebiam nas atitudes dos outros |: Porque 0 comunismo, em nossa época, néo tem sido tratado ape- nas como ‘inimigo’. As vezes, 0 comunismo ndo passa de um pre- texto, Un pretexto politico. (...} A anterior campanha anti-comu- nista era um pretexto para a ascensdo ao poder. manifestou nas estratégias adotadas por algumas instituigdes, que tira- ram proveito da postura de combatentes anticomunistas. Um dos exem- plos mais candentes é a Ago Integralista, que procurou explorar ao miiximo sua condigéo de adversaria dos marxistas. Desde 0 inicio de snas atividades, a ATB se caracterizou por cnfatizar a propaganda anticomu- nista. Porém, ap6s os eventos de 1935 a utilizagao do tema se tornou mais intensa, Tratava-se de aproveitar u estado de espirito dos setores da so- ciedade aterrorizados pela “TIntentona”, colocando a AIB no papel de camped na [uta contra os comunistas. Acompanhando os principais vefculos da imprensa integralista no- tamos um fendmeno curioso e revelador. Mesmo nos momentos em que o interessc da maioria da imprensa em relagio ao assunto diminuia, os jornais integralistas continuaram a dedicar-lhe largos espacos. Detengées realizadas pela policia envolvendo meia diizia de revolucionarios eram apresentadas de forma sensacionalista, como se grandes tramas acabas- sem de ser descobertas (“Novo ‘complot’ communista em S. Paulo” ; “© communismo prepara nova jornada de sangue” "). Numa manobra que demonstra a preocupagiio em manter o tema em destaque nas man- chetes, os jornais publicavam noticias “requentadas”, ou seja, que ja t- nham saido em edigdes anteriores No decorrer do ano de 1937, a campanha aumentou de tom, em decorréncia da disputa pela sucessao presidencial. A ATB tentou a todo custo manter-se em evidéncia, fossc para concorrer as eleigdes com Pli- nio Salgado, fosse para participar com vantagem nas confabulagées gol- pistas entéio em andamento. Para este efeito, era conveniente convencer a sociedade da gravidade do perigo (“Brasileiras, alerta! Tudo indica imi- nente golpe do communismo” '), mesmo que na ocasiao o PCB se en- contrasse inteiramente incapaz de representar ameaca. A imprensa inte- gralista empenhou-se em pintar um quadro terrivel da situagio, apon- 76 Anos 90 tando que a atividade comunista aumentava e a cada momento o perigo tornava-se maior. Pois se havia um “inimigo” terrivel rondando a socie~ dade, necessdrio se faria apoiar a Gnica forga capaz de derrota-lo: communismo é um mal politico que x6 pode ser tratade com um remedio tambem politico. O communismo é uma mystica que sb pode ser efficientemente combatido por uma outra mystica. Estamos deante de um dilemma: ou temos ou ndo temos uma idéa para oppor & idéa dissolvente dos bolchevistas, Si ndo temos ndo adeantam as grades da cadea, pois ninguem consegue prender o pensamento. E por este motivo que fora do Integralismo ndo hé possibilidade de salvar o puiz.de mystica destruidora de Moscou'*. Plinio Salgado é 0 candidato do Brasil porque € a maior inimigo, talvez o unico inimigo que Moscou respeita, em nossa Patria ame: agada "7! uando o governo anunciou a “descoberta” do Plano Cohen, no inicio de outubro de 1937, os integralistas cxultaram de contentamen- to. Os fatos estariam Thes dando raz4o, j4 que vinham denunciando a iminéncia do “perigo” ha meses. Evidentemente, trataram de explorar propagandisticamente a questéo, principalmente em proveito da ima- gem do seu lider (“O Brasil deu raz4o a Plinio Salgado” ‘*), que desde agosto vinha falando na existéncia de uma grande trama comunista em preparagao ‘. Aqui temos um caso interessante de profecia auto-reali- zada, dado o envolvimento de militantes integralistas na elaboragao do Plano Cohen. Muitos anos apés o fechamento da AIB, Plinio Salgado continuou se aproveitando da bandeira do anticomunismo. No contexto da rede- mocratizagio de 1945 ele fundou um nove partido, o PRP, através do qual se elegeu para o parlamento. A imagem apresentada ao elcitorado afiangava uma continuidade em relagao aos velhos compromissos anti- comunistas (“Marcando na cedula tinica o nome do grande brasileiro ~ Presidente Nacional do PRP - vocé estara4 votando no maior lider anti- comunista do Brasil” 2%), Entretanto, neste momento a postura parecia nao passar de retérica eleitoral, uma vez que o PRP se aliou sem cons- trangimento a candidatos apoiados pelos comunistas, como Juscelino Ku- Anos 90 77 bitschek. ‘Lalvez seja por esta raziio que Salgado nao teve papel de rele- vo nas mobilizagoes anticomunistas igs sn : $8 s g 1S ta contra 0 comunismo. Nao se trata, é claro, de negar a sinceridace de seu reptidio as propostas revolucionarias, elemento que de resto também nao fallava ao anticomunismo da ATB. Mas hd fortes indicios apontando para o carater providencial, para utilizar linguagem religiosa, da emergéncie da questao comunista. 1, que implicou na redu- cdo do papel social tradicionalmente ocupado pelas inslituigdes caldli- cas, A mobilizagiio anticomunista contribuiu para que tal tendéncia de declinio fosse revertida. Apresentando-se como instituigio capaz de neutralizar as ages do proselitismo comunista entre 6 povo, a Igreja credenciava-se a merecer de novo a protegiio do Estado, ao mesmo tempo em que restabelecia o prest{gio perdido junto a parcelas das elites sociais. Numa Carta Pasto- mportancia do e1 T adverte: “Videant consules, vejam os dirigentes da Nagiio! A religiiio éacolumna mais forte da ordem e da prosperidade da patria” *!. A utili- zagao de tal tipo de argumento tornou-se mais comum depois da “Inten- tona”, como no exemplo que segue, excerto do pronunciamento publi- co de um intelectual catélico: E08 governos se convencam de que sem o auxilio da forga espiri- tual da Tereja, mais dia, menos dia, a onda vermelha a todos sub- mergird. (...) Vigiemos, pois, e oremos, para que, na segunda tentativa de revol- ta communista, a lgreja esteja, como esteve, erecta e forte, para oppor a barreira de sua doutrina e de sua fé, aos barharos que vem do Oriente”. Note-se a referéncia a uma futura segunda revolta comunista, apre- sentada como uma certeza, ¢ nav como possibilidade. Era importante afiancar que o perigo maléfico nao passara, pois de outro modo os ser- 78 Anos 90 vicos oferecidos pelas “forgas do bem” nao seriam téo necessdrios. A existéncia da “ameaga comunista’”’ nao servia somente para cobrar apoio do Estado, mas para atrair de volta ao seio da Igreja as ovelhas desgar- radas, ou seja, para chamar i responsabilidade aqueles fiéis afastados da vivncia religiosa. Afinal, diziam os propagandistas catdlicos, a presen- ca de uma comunidade crista bem estruturada e ciosa quanto a observa- cdo das praticas e valores da religifio se constitufa em barreira formida- vel ao avanco do comunismo ”?. ou- tempos. A licenciosidade de costumes, o carnaval, o desregramento da moda, os vicios em geral, eram denunciados pelo discurso religioso como a ponta de langa do trabalho de destruig&o operado pelos revoiucionari- os. Segundo essa perspectiva, combater o “relaxamento” moral era de- ver dos partiddrios da manutengao da ordem, pois estariam lutande con- tra o préprio comunismo *. Podo-se dizer que a ofensiva de “recristianizagao” operada nos anos 30, marcada pela reintrodugio do ensino religioso, aproximagao entre Es- tado e Igreja e crescimento da influéncia dos valores religiosos entre as elites sociais e intelectuais, deveu parte de seu sucesso a afirmagdo da ins- tituigdio catélica no papel de guardia da ordem contra 0 comunismo. Os grupos ligados ao aparato repressivo do Estado foram respon- sAveis pela criagao de uma modalidade especifica de indtistria do anti- comunismo. Em algumas ocasiées, policiais c militares ligados as ativ. dades de repressio fabricavam “provas” de recrudescimento das ativi- dades comunistas. Procuravam manter o tema em evidéncia na impren- sac torna-to alvo de preocupagiio constante dos governantes, mesmo em. momentos de baixa intensidade da atuagdo comunista. O objetivo alme- jado era valorizar seu papel no interior do aparelho de Estado ¢ aumen- tar seu cacife nas disputas internas de poder, ao passo que tentavam con- yencer a todos da indispensabilidade da sua presenga. Freqiientemente, tal estratégia visava também angariar vantagens materiais para as pes- soas envolvidas e/ou para suas corporagoes: Houve companheiros nossos que “cobravam", a titulo de seguran- a, favores do empresariado as suas unidades. (...} Instilavam te- mores de fatsa instabilidade, riscos de subversdo além dos reais, supostas greves. Enfim, exageravam 0 quadro e procuravam insi- nuar que as necessidades da organizacdo militar que comandavam, desde que atendidas, aumentariam sua eficiéncia. Anos 90 79 Os integralistas adotaram pratica similar, s6 que langando mao de um subterftigio mais ardiloso, Para facilitar a arrecaclagfio de fundos junto a setores arredios do empresariado, cles fabricavam evidéncias do au- mento do “perigo comunista”. © estratagema, que apresenta caracterfs- licas Upicas de extorsio, funcionava da seguinte mancira: protegidos pela escuridao da noite, militantes da AIB cobriam os muros das residéncias dos empresdrios de quem se pretendia coletar dinheiro com pichagSes “comunistas”, Amedrontados com o que tomavam por indicios da pro- ximidade do “perigo vermelho”, tais vitimas ingénuas se mostravam mais receptivas aos pedidos de ajuda [inanceira para o partido do sigma *. Em meio a documentagao da policia politica paulista ha registro de um curioso episédio de exploragiio do anticomunismo com fins pe- cunidrios, ocorrido no inicio dos anos 1950. Neste caso, ha a peculiari- dade de que o dinheiro arrecadado em nome do combate ac comunismo nao se destinava a entidades politicas, mas a forrar os holsos de esperta- IhGes decididos a lucrar com o medo alheio, Uma dupla de falsdrios, um deles se passando por Major do Exéreito, estaria se apresentando a em- presdrios como agentes da Cruzada Brasileira Anticomunista. Utilizan- do-se de credenciais forjadas, tais individuos pediam contribuigio finan- ccita para a causa ¢ depois desapareciam com o dinheiro. O golpe, um exemplar claro de extorsao, rendera Cr$ 100.000,00 sé em Belo Hor zonte. A dentincia 8 policia foi apresentada pelo chefe da Cruzada, Al- mirante Carlos Penna Botto, certamente movido pela preocupagao de preservar a imagem de sua orgunizagiio dos provaveis prejufzos que se- riam causados se os golpistas continuassem a agir 7. Vollando ao aproveitamento politico da inddstria do anticomunis mo, uma dimensio importante a analisar é a atuagio de liderangas poli- ticas que exploravam o tema em busca de notoriedade, popularidade e yotos. Sem nenhuma divida, havia anticomunistas convictos, individu- os que realmente acreditavam na existéncia do perigo e agiam em con- sonancia com esta crenga. Podem até ser chamados de tolos ou faniti- cos, mas no seu caso ndo se aplica 0 adjetivo “manipuladores”, Seu con- servadorismo era sincero, Porém, em se tratando do anticomunismo, 0 oportunismo politico foi pratica bastante corrente. Veja-se 0 caso de Ademar de Barros, lider politico de extragéo po- pulista com atuag&io cm Sao Paulo. Na primeira vez que se candidatou ao governo de seu Estado, logo apés o fim da ditadura varguisia, Barros estabeleceu alianga priblica com 0 PCB, tendo inclusive aparecido ao lado de Luiz Carlos Prestes em comicios de campanha, fato registrado em diversas fotografias. O sucesso da alianga, consagrado pela vitoria nas 80 Anos 90 urnas, levou a que fosse reeditada em outras situagSes. Uma destas aca- sides se deu no pleito de 1958, quando Ademar disputou novamente o governo de Sao Paulo com apoio dos comunistas. Desta feita, porém, o resultado foi a derrota, destruindo as expectativas de uma viléria facil) — do Sider populista. E o mais interessante: 0 anticomunismo jogou papel significativo no fiasco. Setores anticomunistas, principalmente da Igre- jae da imprensa, atacaram violentamente a candidatura Ademar, denun- ciando seu acordo com o PCB & bem provavel que Barros, apés refletir sobre as causas da der- rota, tenha chegado & conelusio que a mobilizagao anticomunista pe- sou no resultado. Tal especulagao faz sentido quando observamos seu comportamento posterior. De aliado dos comunistas, Ademar se trans- forma em seu inimigo feroz. Possive!mente, o faro do politico sentiu no ar a chegada de novos tempos, a emergéncia de uma conjuntura em que 0 caminho certo para quem almejasse o poder niio seria & es- querda. © fato é que na cleig&o seguinte ao governo estadual, trava- da em 1962, vamos encontra-lo brandindo enfaticamente a bandeira anticomunista, como se tivesse nascido enrolado nela (““Ademar de Barros promete lutar contra a comunizagio do Brasil” **). A vitoria colhida na ocasiio deve té-lo convencico do acerto da nova postura diante do comunismo, Porém, a nova roupagem de Barros reluziu com mais intensidade nacrise pré-golpe de 1964, O surgimento, em 1963-64, de poderosa onda anticomunista que arrastou parcelas expressivas da populagao, especi- almente as sempre influentes classes médias, encontrou o politico pau- lista no papel de lutador incansavel contra os “vermelhos”. Na sua posi- glio de Governador de Sao Paulo, ele participou ativamente na mobili- zacio contra Goulart e os “comunistas”. Logo apés o golpe, ele apareceu numa reportagem da revista Man- chete dedicada ao levante militar de 31 de margo. Ademar, apresentado como um dos principais lidcres da “Revolugiio” surge em destaque numa fotografia onde, ladeado de policiais, mostra documentos e publicacdes comunistas apreendidas. Em primeiro plano, sobre a mesa, um grande retrato de Stalin, para nio deixar dtividas sobre o contetido do material coletado pela policia. Explicando para o repérter a motivagdo da “Re- volacaio”, afirmou: O seu cardter foi aquéle da nossa campanha de 1962 (...): cardter ideoldgico, luta anticomunista. A grande conquista, oblida nesta primeira fase da luta, é a libertagdo nacional do jugo bolchevista. Anos 90 sl (...) @ bandeira brasileira continuard a ser auriverde ea cruz nda serd substituida pela foice e 0 marielo ™, O caso de Ademar de Barros foi observado mais detidamente por representar um exemplo cléssico de exploragfio oportunista do antico- munismo. Mas houve outros politicos que se aproveitaram do tema para alcangar notoriedade e votos. Um dos mais célebres foi Fidélis Amaral Netto, que se projetou para a politica através da organizagao do “Clube da Lanterna” * e do langamento do periédico direitista Maquis. De jor- nalista Amaral Netto passou a parlamentar, eleito deputado para a pri- meira legislatura da Assembléia da Guanabara, em 1960. Carlos Lacer- da afirmou em suas memGrias que Amaral viveu durante largo tempo da indtstria do anticomunismo *!. E cle devia saber 0 que estava falando, pois conhecia bem Amaral Netto, de quem tinha sido mentor politico. O diretor de Maguis deveu sua entrada na carreira parlamentar, em grande medida, & popularidade de Lacerda. Amaral fot eleito deputado sob o abrigo da candidatura vitoriosa de Lacerda ao governo da Guanabara. Além de ser beneficiado pelo crescimento do lacerdismo, o jornalista péde contar com © espago de propaganda proporcionado pela revista Maquis, que divulgou bastante o nome de seu diretor ®. Algado a condigao de parlamentar, Amaral Netto nao abandonou a retérica anticomunista que tinha ajudado a projeta-lo. Ao contririo, sua condig&o de adversario militante dos “vermelhos” se intensificou na pro- porgdo em que, no decorrer do governo Goulart, a radicalizagio foi se agugando. Certamente notando a emergéncia de uma forte onda antico- munista, que por sinal ajudou a criar, o deputado carioca tralou de apro- veita-la, Pode-se perceber 0 empenho de Amaral através das manchetes de jormmais simpatizantes, que reverberuram as agdes de sua campanha. Alguns exemplos: “O Hder Amaral Netto promete combate sem tréguas ao comunismo” *; “Amara! Neto enfrenta os comunistas em Recife” “1; “Comunistas agridem Amaral Neto provocando conflito na Central” *. Observe-se que nio havia espago para dtivida ou nuanga na identi ficagao dos adversarias: todos eram indistintamente comunistas, O con- texto no qual surgiu o pronunciamento mencionado na primeira manchete ajuda a elucidar o carater instrumental da bandeira anticomunista. Atu- ando como lider do Governador Lacerda na Assembléia Legislativa, Amaral aparentemente facilitara a elcigao do deputado comunista Hér- cules Correia para a Mesa da Casa. A desconcertante postura gerou de- sagrado nos circulos anticomunistas, provocando a ira do préprio Go- vernador, Na tentativa de apagar a ma impressao, Amaral tratou de fazer 82 Anos 90 © pronunciamento referido, para afiangar que secu compromisso com combate ao comunismo nao sc arrefecera. O evento mencionado na tiltima manchete proporcionou ao parla- mentar valiosa oportunidade para se apresentar como herdi anticomu- nista. Um comfcio realizado na Estacéo Central do Brasil terminou em briga quando os comunistas tentaram impedir 0 tribuno carioca de falar. A assessoria do deputado divulgou um comunicado & imprensa afirmando que ele ficara ferido na refrega com os comunistas, raz4o pela qual teria de se afastar por alguns dias das atividades ptiblicas *. Agora ele podia brandir um argumento a mais em favor de sua militancia, a imagem do sucrificio fisico. Por falar em comicios, Amaral Netto realizou varios entre 1962 € 1964, sempre explorando a tematica anticomunista. Em aigumas ocasi- Bes, tais eventos foram convocados por jornais de grande circulagaio, atra- vés de notas na forma de boxe. Eis dois exemplos: Hoje, 20 horas, Laranjciras AMARAL NETTO (proibido em TV) mesmo com chuva na Praca Ben Gurion - em defexsa do Governador - contra o golpe conuinista ¥. - Em resposta & provocagdo nazi-comunista da Central - Pela UNTAO contra o comunismo e seus cunhados - Em defesa do CONGRESSO e da FAMILIA - Porque é inarredével a candidatura AN-GB-65 Hoke Comunismo combate-se na rua. Prove que somos maioria. Va, leve a familia e seus amigos. Proteste antes que seja tarde *, Nota-se gue ha um detalhe importante distinguindo as duas con- vocagées, No primeiro caso, se prope uma mobilizagiio em torno do Go- vernador T.acerda contra 0 comunismo. Jé no segundo, encontramos Amaral Netto em franca campanha para concorrer ao governo da Gua- nabara (AN-GB-65). Ele tenta tirar proveito do clima de agitagdo anti- comunista contra 0 governo Goulart, que naquele momento eslava no Anos 90 83. auge (margo de 1964), colocando-se na posigio de defensor das insti- tuigdes democraticas e da familia. De certo, esperava que o crescente pavor ao comunismo demonstrado por segmentos expressivos da socie- dade o catapultasse para o centro do cendrio politico, pavimentando seu caminho em diregfio ao poder. Na&o & possfvel falar de Amaral Netto e omitir o papel desemmpenha- do por Carlos Lacerda, sob cuja lideranga vicejou aquele € outros tribu- nos anticomunistas. Abordar o caso de Lacerda numa discussaéo sobre a exploracao politica oportunista do anticomunismo € problema delicado. Sua polémica personalidade durante muito tempo esteve envolvida pelo véu de violentas paix6es politicas, nfio se prestando facilmente a anali- ses equilibradas. i é i tici i A se acreditar em suas memorias, ele pertenceria ao setor “ilustra- do” ou “reformador” do anticomunismo, que lutava contra os “homens de Moseou” mas nao defendia idéias conservadoras. Lacerda referiu-se ironicamente aos membros da alta sociedade (“aqueles senhores do Jo- ckey Club’ >"), que o apoiavam por verem ncle um Ider talhado para der- rotar os comunistas, mas, seriam incapazes de perceber seu objetivo reat. Segundo Lacerda, ele lulava de Cato contra os comunistas, mas nao pela manutengao do sietus quo. Seu anticomunismo nao seria reaciondrio, como muitos erroneamente acrediteram ”. Daf suas rusgas com Amaral Netto, que em sua opiniao se aproveitara da popularidade dele, Lacer- da, para se projetar como Ifder. Amaral teria usado seu nome, sem con- sulta-lo, para Jangar o “Clube da Lanterna”, uma.organizagio “fascis- t6ido”. Ainda segundo Lacerda, elementos deste tipo se aproximaram devido a sua lideranga no campo anticomunista, mas isto nao apagaria as diferengas que os separavam *!. Em que pese # complexidade da personalidade politica de Lacer~ da, nfio hé como negar que sua militancia contra o comunismo também teve cardter instrumental. Neste sentido, as eriticas feitas a Amara! Net- to, acusado de industria! do anticomunismo, scam falsas, como se ele préprio niio tivesse retirado dividendos politicos do mesmo negécio. Desde o infcio da carreira politica, como deputado federal, Lacerda se destacou por desferir alaques vigorosos contra as atividades dos comu- nistas no Brasil. Da tribuna da Camara dos Deputados denunciou as su- postas intengdes imperialistas dos soviéticos em relagao ao Brasil; criti- cou a nomeagio de militares “‘comunistas” para comandos importantes do Exército; atacou a proposta de reatamento de relagdes comerciais com 84 Anos 90 a URSS; ¢ acusou autoridades do governo Kubitschek de facilitarem a infiltragdo comunista ®, Mas foi a partir da campanha para o governo da Guanabara, em 1960, gue ele assumiu com énfase o papel de cruzado anticomunista. verdade que a hostilidade da esquerda 4 candidatura, manifestada atra~ vés de tumultos provocados em algumas atividades ptiblicas do “corvo” (como passaram a chamé-lo os adversarios), alimentou sua indisposigaio contra os comunistas. Mas, parece claro gue os seguidores de Lacerda tiraram proveito da siluagao, pois trataram de apresenta-lo como o ini- migo maior e alvo principal dos comunistas. Ao invés de tentar amainat as tensdes eles jogaram “agua na fervura”, provocando a esquerda e pro- curando galyanizar 0 apoio do eleitorado conservador, A retérica anticomunista no arrefeccu com a vitéria. Apds a divul- gacao dos resultados, arevista Maquis rouxe estumpada na capa a seguinte manchete: “Lacerda venceu o comunismo internacional” “, No momento da posse no novo cargo, Lacerda fez uma declaragao bombistica i impren- sa, num tom entre triunfalista e ameagador: “Guanabara no toleraré nem comunismo de assassinatos nem comunismo de nacionalismo” +. Oestilo agressive do Governador tornava-o ainda mais odiado pela esquerda, que o atacou sem trégua durante toda a gestao. Os setores la- cerdistas, por seu turno, encontraram na oposig%o esquerdista uma con- veniente justificativa para as diticuldades enfrentadas na gestéo da ma- guina estadual. Os comunisias foram acusados de subotar os planos do novo governo, cujo sucesso pretenderiam impedir a todo custo. Eles se- riam responsdveis por tentativas de derrubar 0 Governadar (“Plano ver- melho é éste: tirar Lacerda do govérno” 8) e estarisim por tris de mano- bras visando jogar 0 Poder Judiciario contra o governo (“Lacerda diz. que Juiz Osni é instrumento de manobra dos comunistas” “). ‘Além disso, 0 “perigo vermelho” foi usado para inibir criticas & gestéo financeira do Estado. Colovar em divida a fisura administrativa do governo Lacerda seria colaborar com os planos comunistas: “O de- puiado pessedista Augusto do Amaral Peixoto aclverte: rejeitar as con- tas de Lacerda € dar o primeiro passo para por a Nago sob 0 dominio comunista”. Tamhém se podia jogar nas costas dos “vermelhos” a res- ponsabilidade pelos insucessos politicos do Governador. Em 1962, rea- lizaram-se eleigdes para Vice-Governador da Guanabara. Lacerda, por ra7des Obvias, tinha muito interesse em eleger um aliado para 0 cargo e com este intuito langou a candidatura de Lopo Coelho. Derrotado pelo candidato das esquerdas, Eloy Dutra, ele néio besitou em encontrar os culpados do resultado adverso; “Lacerda ao embarcar: traigéio e comu- Anos 90) 85 nismo derrotaram Lopo” “, Enfim, o comunismo se prestava bem ao papel de “bode expiatério” do governo. No plano nacional, Lacerda buscou preencher espago politico se- melhante ao que ocupava no Rio de Janeiro. Ele desempenhou papel destacado na oposicdo ao Presidente Goulart, procurando chamar para si nfo s6 a fungao de principal opositor do governo federal, mas tam- bém de adversdrio maior da conspiragéo comunista supostamente em curso. Durante o perfodo 1961/64, a estratégia de Lacerda foi galvani- var a atengio do publico através da midia, efeito que era atingido com a criagio de fates politicos ¢ declaragdes bombasticas & imprensa. Acom- panhando os principais jornais da época, notadamente os mais conser- vadores, pode-se encontrar dezenas de manchetes alusivas ao empenho anticomunista do Governador carioca. Alguns exemplos: “Lacerda: a Petrobras foi assaltada pelos comunistas” ”; “Lacerda profbe o Congresso pré-Cuba” °°; “Lacerda: comunistas ja tam cabega de ponte no Pais” “Lacerda em Curitiba: quer-se a desordem para se chegar a implantar 0 comunismo” *; “Lacerda denuncia trama comunista” ** A dltima manchete faz. mengo ao fator que, provavelmenic, cx- plica grande parte do furor anticomunista do politico carioca: o pleito presidencial, previsto para 1965. A estratégia de Lacerda de ocupagiio da midia, ornamentado com uma imagem de combatente destemido dos comunistas, o credenciava a atrair votos dos setores da populagiio ame- drontados pelo crescimento da presenga da esquerda no cendrio politi- co. Neste campo, Lucerda dispatava espago com o Governador de Sao Paulo, Ademar de Barros, igualmente empenhado em explorar recursos de midia para se mostrar ao ptiblico como lutador anticomunista. Mas, nesta dispula, o Iider carioca parecia levar nitida vantagem, o que se de- via, talvez, ao fato de ser mais jovem ¢ menos desgastado que Ademar, ou quem sabe pelo fato do discurso anticomunista em sua boca parecer mais auténtico. De qualquer modo, os dois acabaram se dando mal. A onda anticomunista que ajudaram a criar terminou por se voltar contra ambos, pois 0 regime militar egresso da agitagdo antiGoulart cancelou a eleigio presidencial pela qual tanto ansiavam. Os trés lideres abordados (Amaral, Barros e Lacerda) compoem apenas uma pequena amostragem do fendmeno. Dezenas de politicos brasileiros utilizaram o discurso anticomunista em suas carreiras, com- pondo um universo muito extenso para ser tratado em detalhe aqui. Op- tou-se por analisar cusos e situagdes que pudessem fornccer um quadro. 86 Anos 90 representativo do conjunto. Deve-se ter o cuidado de evitar generaliza- GOes abusivas, que implicariam em considerar a tolalidade dos politicos anticomunistas meros manipuladores. A ressalva feita para Lacerda se aplica também a outros personagens: nem sempre € facil distinguir na atuagiio de tais liderangas os elementos manipuladores, portanto tipicos & industrializagdo referida, da motivagio propriamente ideolégica. Di- zendo de outro modo, 6 complicado saber até que ponto estes lideres agiam por convicgdo ou simplesmente exploravam politicamente o an- ticomunismo, Essa reflexdo faz lembrar o cardter complexo da manifesta¢ao an- ticomunista e a cautela que se deve observar no ender uma interpretagao acurada do fendmeno. Ceademensiie' Entretanto, parece-nos insuficiente caracterizar os anti- comunistas brasileiros como sendo compostos, de um lado, por lideres oportunistas e, de outro, por uma massa de tolos ou fan: se di xaram enganat pelas artimanhas dos primeiros. © comunisino nao se =, o medo uma visdo simplista sobre os anticomunis- tas, que tence a uniformiza-los, como se eles compusessem um 86 bio- co, Pouca atengao tem sido prestada a suas motivagdes diferenciadas, que em muitos casos s revelam, uma repulsa convicta e coerente ao comunis- o. Os comunistas de fato pretendiam destruir a Igreja e alacar scus valores essenciais, subs: tituindo-os por uma morai comunista ou “proletéria”. Embora em algu- mas conjunturas os PCs tenham estabelecido politicas de “mio estendi- da’ na direcdo dos catélicos, 4 realidade de perseguicdo aos religiosos ¢ figis nos paises sob governo comunista nao era de molde a inspirar con- fianga nos seguidores da Igreja romana **, E o mesmo raciocinie pode ser feito para os Liberais: 0 comunismo realmente significava o fim da propriedade privada e a implantagiio de clitaduras politicas. Os diversos grupos anticomunistas entendiam ter motives para re~ cusar o modelo soviético, cuja eventual implantagao no Brasil temiam sinceramente. O medo demonstrado nas conjunturas de mobilizagéio an- Anos 90 87 ios Momentos em que emergiu o “grande medo”, nem todos os alores anticomunistas estavam dissimulando, mesmo porque em tais quadras a influéncia do PC mostrava-se significativa. Por sinal, com uma certa freqiiéncia des- ferium ataques contra os que,desdenhavam ou ironizavam o “perigo co- munista”, Para os anticomunistas militantes, tolos eram os que duvida- vam do perigo: “E ingenuidade nao acreditar no perigo comunista” ©. Portanto, o temor de muitos agentes sociais ao comunismo era sin- cero, e néo instrumental. Mas teria fundamento tal medo? Qual o “grau de periculosidade” efetivamente apresentado pelos comunistas. em ou- tras palavras, em que medida sua atuagio representou ameaga real a or- dem social dominante? Tais questionamentos s6 podem ser analisados no colejamento com a dinfimica histérica, observando as conjunturas especiticas em que se defrontaram os atores politicos envolvidos. Sera necessario analisar como surgiram as ondas anticomunistas de 1935/37 e¢ 1961/64, a forma como as crises politicas decorrentes caminharam, ou foram encaminhadas para rumos autorildrios e o papel efetivamente de- sempenhado pclos comunistas nos contextos referidos. A partir da ob- servaciio dos processos histéricos concretos ser4 possivel aquilatar me- lhor o modo como se relacionaram e combinaram as diferentes dimen- sdes assumidas pela “ameaca comunista”, que teve caracteres de perigo inventado, perigo imaginado e “perigo” real. NOTAS E REFERENCIAS 1. Jornal do Brasil, 14/10/62, p.6. Nao obstante, menos de dois anos depois 0 mesmo jornal apoiou a derrubada do governo Jango, agiio justificada por argumentos anticomunistas. - 2. SOCIEDADE BRASILEIRA DE DEFESA DA TRADICAO, FAMILIA EB PROPRIEDADE, Meio século de epopéia anticomunista. 3 ed, Sio Paulo: Vera Cruz, 1980, p.396. 3. Grifos nossos. O Estado de Séo Paulo, 24/09/37, p.3. 4. Aimportancia do anticomunismo para a implantacdo dos regimes autoritd- rios nao sera analisada com a devida profundidade aqui, O tema fai aborda- do em dois capitutos da tese, os quais sao dedicados a andlise das conjuntu- ras politicas relacionadas aos golpes de 1937 e 1964. Estado de Minas, 3/09/36, p.2. Titulo de matéria publicada pelo didrio integralista, cuja intengiio certamen- te era fazer pressdo contra o retorno ao Brasil do politico potiguar. A Acgdo, 19/04/38, p.L. au 83 Anos 90 10. dk 12. 13. 14. 15. . Grifos nossos. Acedo, 8/10/37, p.L, O texto é de Plinio Salgado. 17. 18. 19, 20. 21. CAMARGO, Aspasia (org.). O golpe silencioso. As origens da Republica corporativa. Rio de Janciro: Rio Fundo, 1989, p.139. © Deputado Adalberto Correia, que se tornou célebre apés presidir a Comis- sfo Nacional de Represstio ao Comunismo, criada em janeiro de 1936 como instrumento de punigio para os implicados no levante de novembro do ano anterior. O Estado de Sao Paulo, V7/01/37, p.A. Manchete, 27/12/58, pp.88-91. O Didirio, 22/03/36, p.1 © 31/03/36, p.7, respectivamente, “‘Trata-sc de um editorial (“O inimigo ¢ 0 pretexto”) bastante interessante. Na verdade, 0 alvo a criticar era o governo Vargas. Mas, a situagao politica exi- giao tom velado e 0 estratagema sutil de referir-se & realidade européia, O Didrio, 29/11/40, p.4 A Offensive, 1/02/36, p-1. Accdo, 30/09/37, p.1. Por exemplo, numa ocasiiio publicaram matéria sobre um grupo de comu- nistas presos, acompanhada de fotografias, que j4 havia safdo cerca de um més antes. A Offensiva, 4/09/36, p.10. A Offensive, 8/06/37, p.1. A Offensiva, 28/09/37, p.3. A manipulagao do perigo vermelho propiciava um recurso adicional aos elementos da AIB, a possibilidade de inibir a agao dos adversarios, quaisquer que fossem suas posigdes polfticas, ameagando- os com a pecha ‘comunisia’: “Hostilizar o sigma € fazer em publico profis- so de fé communista”. A Offensiva, 5/06/37, p.L. A Offensiva, 3/10/37, p.l. “O documento apprehendido pelo Estado Maior do Exercito ¢ referente 20 plano baixado pelo Komintern para um golpe contra as instituigGes da Re- publica, veiu mostrar 4 Nagfo que o Integralismo 86 tinha em vista 0 hem piiblico quando alertau o paiz, em agosto ultimo, pela voz de Plinio Salga- do, denunciando as actividades communistas”. Acgdo, 1/10/37, p.1. Na ver~ dade, 0 Plano Cohen foi redigido pelo Capito do Exército e militante inte- ralista Olympio Mourio Filho. exto de propaganda eleitoral de Plinio Salgado, candidato a deputado [e- deral em 1962. O Estado de Sdo Paulo, 29/09/62, p.6. BECKER, Joao (Dom). O canmunismo russo ¢ a civilizagdo christé (19a Carta Pastoral). Porto Alegre: Centro da Boa Imprensa, 1930, p.78. Na ver- dade, esta argumentagaio vinha sendo usada pelo Vaticano desde o século anterior, quando surgiram as primeiras manifestagdes tentando convencer os poderes seculares de que o enfraquecimento da Igreja, sob influxo das idéi- as liberais, fora um erro, pois a religiio era a Gnica capaz, de derrotar o soci- alismo. Referindo-se aos cheles cle Estado afirmou Ledio XII: “(...) quando reconhccerem que, para afastar esta peste do socialismo, algreja possui uma forga como nunca tiveram nem as Icis humanas, nem as repress6es dos ma- gistrados, nem us armas dos soldados, tratarao de restituir logo 4 Igreja a Anos 90 89 condigiio ¢ liberdade tais, que possa cxercer esta forgu Gio salutar para o bem comum do toda a sociedade humana”. Ledo XIII, Papa. Carta Enefclica Quod Apostolici Muneris. (1a edigho, 1878}, Petropolis: Vozes, 1951, p.14. 22. O Diério, 27/02/37, p.4. Artigo de Oscar Mendes. 23. O argumento aparece no editorial “Persisténcia do communismo no Brasil”, O Diario, 30/06/36, p.4. 24, Ver “A campanha contra o communismo pela Boa Imprensa” (artigo de Os- car Mendes), O Didrio, 15/06/37, p.4. . Depoimento do General Gustavo Moraes Rego Reis In D’ ARAUJO, Maria Celina ef alii, Visées do golpe: a meméria militar sobre 1964. Rio de Janei- ro: Relume-Dumara, 1994, p.49. 26. TRINDADE, Helgio. Integralismo. O fascismo brasileiro na década de 30. 2 ed, Sao Paulo: Difel, 1979, p. 186 (nota 45). 27. Penna Botto enviou oficio ao Chefe de Policia de Sao Paulo, pedindo provi- déncias contra os estelionatérios, em 11/12/52, DEOPS/SP, Prontudrio no 123665, 28. O Globo, 15/10/62, p.1 29, Manchete, 18/04/64. p.66. A utilizagao da imagem de Stélin revela o cardter artificial do cendério montado para a fotografia, pois na década de 60 0 anti- go lider da URSS ja havia cafdo em desgraga e nae era mais referéncia para 0 PCB. Aentidade surgiu na esteira da campanha de Carlos Lacerda contra 0 gover- no Vargas, em 1954, mas logo foi fechada pela policia. Enfatizava a luta con- tra o legado politico de Vargas, mas também batia na tecla anticomunista (dis- tribufa pantletos anti-soviéticos). Maguis, no 14, dez./1956, pp.30¢ 31. 31, LACERDA, Carlos. Depoimento, 2 ed, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. p59. 32. As eleigdes ocorreram em outubro, mas em janciro a revista jd langava, com estardalhago, a candidatura Amaral Netto. Maquis, no 135, jan./1960. A pro- PGsito da exploragio eteitoral do anticomunismo, este periédico fornece um exemplo curioso, Nas eleigdes de 1958, apds muito empenho em atacar as candidaturas “comunistas”, a revista Maquis comemorou, euforicamente, a derrota clos candidatos apoiados pelos seguidores de Prestes. Na edig&o sub- seqitente a divulgagao dos resultados, largo espago foi dedicado a comentar O insucesso ¢ a fragitidade efeitoral dos comunistas. Mas enti, xo que pare ce notundo 0 risco de estar matando a “galinha dos ovos de ouro”, a revista publicow uma pequena nota em destaque, sem demonstra qualquer emba- rago em relacdo ao argumento paradoxal: “Prestes est liquidado como grande eleitor. Mas 0 perigo comunista estd maior do que nunca”. Maquis, no 71, out/1958, p.33. 34. O Globo, 24/08/62, p.1. 35. O Globo, 26/09/62, pL. 36. Jornal do Brasil, 29/09/62, p.3 37. O Globo, 4/10/63, p.1.33 O Globo, 14/03/62, p.1. ve a 30. 90 Anos 90 38. 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. AG, 47. Ag. 49, 50. 56. O Glabe, 17/03/64, p.7. Neste caso 0 comicio se daria no Largo do Macha- do, também &s 20 horas. LACERDA, Op.cit. (1978), p.59. Nao € uma biografia no sentido classico, mas um depoimento coletado a partir de uma entrevista a um grupo de jor- nalistas. “[louve muita gente que - tanto de um lado como de outro, dos dois lados - nfio compreendeu por que tomei uma posigio decididamente anticomunis- ta, da qual nao me ypendo um minuto e gue voltarei a tomar toda vez que for necessario. Muitos confundiram minha posig&’o com o reacionarismo, enquanto que outros acharam timo eu ser reacionario. Acho que ambos se enganaram”. LACERDA, Op.cit, (1978), p.224. LACERDA, Op.cit. (£978), pp.58 ¢ 59. Amaral teria sido integralista, en- quanto a iniciagao politica de Carlos Lacerda, ao contrario, se dera no pré- prio Partido Comunista. Por sinal, a forme como se deu 0 afastamento de Lacerda do PCB alimentou sua animosidade contra os comunistas, Ble teria sido expulso (1939) ¢ em seguida cahuniado publicamente pelo partido. LACERDA, Carlos. Discursos parlamentares. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Pp. 167, 169, 280 € 499. Os discursos foram proferidos en- tre [957 c 1959, Maquis, 00175, out./1960, capa. Maquis, no 183, dez./1960, p.18 Maguis, no 238, jan,/1962, capa. Jornal do Brasil, 2147/61, pl. O Globo, 12/11/63, p.1. Correio da Manha, (1/10/62, p.3. O Estado de Sda Paulo, 12/12/62, p.5. O alo do Governador proibindo a realizagio, na Guanabara, de um Congresso de Solidariedade a Cuba causou grande ccleuma a época. Acirrou a luta da esquerda contra 0 “corvo”, ad mesmo tempo em que mantinha seu nome em evidéncia na midia. O Globe. 26/03/63, p.1. . O Estado de Séo Paulo, 15/12/63, p.S. . O Globo, 29/04/63, p.5. O Estado de Sao Paulo, 26/03/64, p.5. . O Globo, 22/07/63, p-E. * Tampouco a qualquer outra religiio, Sobre a perseguigao religiosa nos pat- ses comunistas ver GALTER, Albert. O livre vermelho da Igreja persegui- da. Petropolis: Vozes, 1958 ¢ CURTISS, John S. The Russian Church and the Soviet Stete. Gloucester: Peter Smith, 1963. Transcrigio de discurso radiofénico de D. Jaime Camara, Cardeal do Rio de Janeiro. O Globe, 15/2/64, p.1. Anos 90 gt

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