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Norberto R.

Keppe

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Norberto R. Keppe

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Capa e Artes Gráficas:
Nelson Coletti
Ângela Stein

Revisão:
João Leo Pinto Lima
José Ortiz Camargo
Neto Regina Pacheco

Gráfica Energética Ltda


Rua Pirajussara 413 - Butantã - 05501-020 SP

ISBN 978-85-7072-084-9
Todos os direitos reservados
Copyright @2009 Proton Editora Ltda

Tiragem:
2º Edição, 2009 (1.000 exemplares)
Sumário
Apresentação........................................................................................13

A - Civilização Antiga..........................................................................15

Capítulo I
A civilização oriental permaneceu atrasada por causa
de sua filosofia de vida...........................................................................17

Capítulo II
Os pensadores pré-socráticos organizaram a base de
nossa civilização....................................................................................21

Capítulo III
Sócrates (470 a.C. — 399 a.C.) o maior pensador/
psicólogo da história da humanidade.....................................................25

Capítulo IV
Platão: o grande filósofo da irrealidade (do mundo idealizado)............27

Capítulo V
Aristóteles: o reinado do raciocínio na história da civilização..............31

Capítulo VI
Epicurismo: o mesmo fenômeno freudiano na antiguidade...................35

Capítulo VII
A verdadeira civilização (grega) foi difundida na humanidade
através do Império Romano, permanecendo invariável
até o tempo atual....................................................................................37

Capítulo VIII
O judaísmo foi a manifestação direta da primeira
pessoa divina (o Pai) dentro da humanidade..........................................41

Capítulo IX
A descida da segunda pessoa da trindade à terra: o
Verbo, Jesus Cristo................................................................................49
Capítulo X
Patrística: os primeiros quatro séculos (d.C.) foram
o período áureo da espiritualidade cristã 65
...............................................

Capítulo XI
Aurélio Agostinho: um dos maiores pensadores da humanidade, 75
que fortaleceu uma de suas maiores patologias ....................................

Capítulo XII
A civilização “dialética” platônica em seu apogeu, ou seja,
a era mais obscura da humanidade, organizada pela psicopatologia 81
humana (de 430 a 553) ..........................................................................

Capítulo XIII
Os últimos estertores da civilização mais patológica que
existiu, revestida com uma máscara de cristianismo (de 87
553 a 800)
..............................................................................................

Capítulo XIV 93
O islamismo surgiu como decorrência natural da decadência
do cristianismo ......................................................................................

Capítulo XV 97
Morte da civilização dialética “platônica cristã” e nascimento
de uma nova civilização racionalista, pseudamente cristã ....................

Capítulo XVI 101


A escolástica constituiu-se na tentativa de construir uma
(quase conseguida) filosofia perene para a humanidade .......................

Capítulo XVII 109


Tomás de Aquino constituiu o apogeu do terrível racionalismo
que inundou grande parte da civilização ...............................................
Capítulo XVIII
O rumo da civilização foi determinado neste final da
Idade Média, através de uma orientação racionalista e
outra voluntarista
............................................................................... 117

Capítulo XIX
A Renascença e a Reforma Constituiram o Início da
Conscientização da Psicopatologia na História da Humanidade ...... 123

Capítulo XX
A Contrarreforma é o Mesmo Processo de Contrarrenascimento
que os Países Meridionais da Europa Realizaram para Eliminar a
Consciência, Alienando-se ................................................................ 131

Capítulo XXI
O Mundo Ocidental, no Século XVII, Dividiu-se em Dois Grupos
Opostos: o Nórdico, Interessado no Desenvolvimento da
Consciência, da Ciência e, o Latino, Dominado pelos Grupos
Reacionários, que Abafaram o Seu Progresso .................................. 139

Capítulo XXII
O Século XVIII, Chamado da Luz (Iluminismo), foi o Mais Belo
Capítulo da História, Devido a Sua Luta Pela Consciência; Dentro
desse Ideal, Nasceram os Estados Unidos da América ..................... 149

Capítulo XXIII
O Século XX viu Crescer o Idealismo Germânico, que possui Duas
Ramificações: Rumo a Um Desenvolvimento Incrível, ou no
Sentido de Uma Destruição Total ..................................................... 163

Capítulo XXIV
A Civilização que se Encaminhara para o Norte, Dividiu-se em
Dois Grupos: o Anglo-Saxônico, Liberal e Otimista e o Germânico,
Idealista e Teomânico ao Máximo; no Sul, a Psicopatologia
Grassava cada vez com Maior Intensidade ..................................... 173
D - Período Contemporâneo

Capítulo XXV
Para Compreender Nossa Situação Atual, Temos de Analisar os
Pensadores, Sociólogos e Cientistas do Final do Século XIX:
Primeiramente os Germânicos e os Norte-Americanos (Que Entraram
em Cena), Depois os Ingleses e Finalmente os Demais (Franceses,
Russos, Dinamarqueses) ....................................................................... 185

E - Pensamento Atual

Capítulo XXVI
A Incrível Civilização do Terceiro Milênio Só Será Possível
Através da Conscientização de Todos os Erros Cometidos
pela Humanidade .................................................................................. 201
F - A Trilogia Analítica (Psicanálise Integral)

1 - Histórico da Trilogia Analítica ...................................................... 228


2 - Etiologia da Neurose ..................................................................... 230
3 - Teomania e Megalomania 233
..............................................................
234
4 - Inversão e Inveja
235
............................................................................
236
5 - Fantasia e Realidade ......................................................................
238
6 - Alienação ou Inconscientização ....................................................
240
7 - Censura ..........................................................................................
241
8 - Libido ............................................................................................
244
9 - Metodologia: A Dialética
246
...............................................................
247
10 - Conscientização e Interiorização ...................................................
249
11 - A Vontade .......................................................................................
251
12 - O Pensamento ................................................................................
253
13 - O Sentimento .................................................................................
14 - A Liberdade ...................................................................................
15 - A Ação ...........................................................................................
CIÊNCIA FILOSOFIA TEOLOGIA
EXPERIMENTAÇÃO PENSAMENTO SENTIMENTO

PRIMEIRA PARTE

Capítulos de 1 a 18

Este é um Estudo Psicopatológico da História da Civilização, ou melhor, uma análise dos motivos
porque teólogos, filósofos, economistas, sociólogos, pedagogos organizaram sistemas contrários ao
verdadeiro bem estar para o ser humano e para a humanidade.
A única maneira de o homem salvar a cultura e a civilização é através da consciência de seus erros
e este livro procura mostrar como as veredas que ele tem escolhido estão ao contrário de sua sanidade
e existência de vida autêntica.

SEGUNDA PARTE

Capítulos de 19 a 26

Esta segunda parte de O Reino do Homem constitui um esclarecimento sobre o motivo pelo qual a
civilização atual não consegue chegar a um período de paz e grande desenvolvimento.
As pessoas que têm interesse em saber qual a psicopatologia de Freud, Marx, Darwin, Nietzsche,
Schopenhauer, Hegel, Kant, da Contrarreforma (Loyola, Tereza D’Ávila, João da Cruz, Francisco de
Sales) e do Contrarrenascimento (países latinos) irão encontrar, neste livro, as causas psicossociais do
progresso de algumas nações e pessoas e do atraso de outras (inclusive do Brasil).
A Descida da Cruz, Peter Paul
Rubens
APRESENTAÇÃO
E stamos chegando ao final do Reino do
Homem sobre a Terra, para substituí-lo pelo Reino
sempre temos a menor ideia do grau de inveja, ódio

Divino, que
é o nosso verdadeiro lugar, desde que somos filhos de
Deus. O primeiro (Reino) foi a tentativa do ser
humano de substituir o Criador e realizar uma
civilização atra- vés de sua imaginação, querendo
acreditar que pudesse ser um novo criador; e esta
atitude invertida nos levou à elaboração de um sistema
social (político, econômico e religioso) contrário à
nossa natureza; evidentemente, não poderia ter um
bom resultado. Assim sendo, pouco a pouco vamos
retornando ao Ser Divino (do qual vie- mos), para
encontrar nele o verdadeiro motivo de nossa
existência, não mais de um modo passivo, dependente,
mas pela realização trilógica, isto é, englobando a vida
em sua totalidade: afeto (amor), verdade (realidade) e
consciência (realização).
Este livro fornece um novo enfoque à História da
Civilização, tomando por base o que realmente deter-
mina a conduta do ser humano: sua maneira de pen-
sar, que tem origem em seus sentimentos — é o que
se convencionou chamar de filosofia, ou concepção de
vida (Weltanschauung). Deste modo, podemos ver que
o raciocínio é fundamentado diretamente na crença,
porque pertence ao domínio afetivo — se predominar
uma conduta de amor, tudo o que se pensar e fizer,
será certo; mas se for a inveja, o ódio, a megalomania
e prin- cipalmente a teomania que comandar, a história
indivi- dual e coletiva terá um rastro de sangue e
abominação ao redor.
A História da Humanidade foi organizada basi-
camente, não pelo que o ser humano pensa, mas pelo
que sente; se não fosse assim, já teríamos resolvido to-
dos os problemas; o mais importante ainda é que nem
13
e raiva de que estamos possuídos. A Trilogia
Analítica descobriu que geralmente reprimimos a
consciência de tais atitudes, organizando uma
censura atroz contra a visão de qualquer
“sentimento” menos nobre, tentando inconscientizá-
lo. Ora, o resultado desta conduta é uma divisão
interna, podendo-se chegar à uma esquizofrenia
— exatamente o que aconteceu com toda a
sociedade, dividida em sistemas políticos,
econômicos, religiosos e até raciais.
Se o leitor perceber, estamos tentando fornecer
os elementos para o advento de uma nova, ou
melhor, da verdadeira civilização — porque a atual
já esgotou todos os seus recursos. Um exame crítico
dos erros passados não é suficiente, se não for
acompanhado por uma con- duta de entusiasmo
frente à incrível realidade que se nos apresenta;
estou dizendo que não pode haver conscien- tização
dos enganos, se não houver concomitantemente
interesse pelo próprio desenvolvimento, ou vice-
versa: pessoa alguma aceitará ver sua patologia, se
não estiver escudada no bem real e na verdade e
beleza agradáveis.
Vou dar um exemplo histórico desse
fenômeno: o Renascimento, a partir do século XV,
veio em decor- rência da aceitação de elementos
superiores de uma ci- vilização antiga, helênica, que
tornou possível um sério exame de consciência das
barbaridades cometidas na Idade Média contra a
cultura e o ser humano. Idêntico fenômeno está em
vias de acontecer devido à esperan- ça de haver um
desabrochar incrível da ciência e bem- estar, pela
aceitação da verdadeira realidade.
É importante avisar o leitor que decididamente
já entramos em um novo período da História da
Humanida- de, tendo uma nova visão de todos os
fenômenos, sendo a mais fundamental a aceitação
da percepção dos erros que, no passado, nos
levaram a tantas guerras e atritos,
O Pensador, Rodin

devido ao esforço que fizemos para escondê-los. No meu nidade: a primeira foi rea- lizada pelo povo judeu, em
livro A Consciência, publicado no mês de abril de seu contato com Deus Pai; a segunda foi realizada pelo
1978, mostrei a diferença entre perceber e ser: assim próprio Filho de Deus (Jesus Cristo) e a terceira e defi-
como a vista não pode se confundir com o que vê, a nitiva é a que está se dando agora através do processo de
visão de um engano não nos leva a nos enganar, mas à conscientização, ou melhor, de espiritualização — devi-
correção do erro; até agora, temos escondido tudo o do a volta do ser humano para o seu interior, que é a
que fizemos de errado, inclusive atacando o próximo fonte de todas as dificuldades e, igualmente, do bem
(e um país ao outro), querendo acreditar que somos que se possa realizar nesta existência.
prejudicados pela visão das falhas que ele (o Este livro tem a finalidade de estabelecer compara-
semelhante) nos mostra. Este é o principal motivo de ção entre o Reino que o ser humano organizou na
tantas guerras e agressões entre pessoas e nações, que Terra (através de todos os tempos conhecidos) e o que
só serão resolvidas pela aceita- ção total da deveria ser o Reino de Deus, segundo as descobertas da
consciência; é o grande papel que nos está destinado Trilogia Analítica. As informações da ciência trilógica
pelas descobertas científicas, que assumem possibili- tam uma visão abrangente, não só do aspecto
avassaladoramente sua função primordial dentro da ci- prático da existência, como do filosófico e até mesmo
vilização. Este livro poderia ser chamado Uma Visão do teológico
Psicopatológica da Civilização, porque foi baseado — atingindo o antigo ideal de unificação da humanidade,
nas descobertas da Trilogia Analítica, uma ciência que, que Hegel pensava estar em uma síntese geral.
ten- do origem na Psicanálise tradicional (Freud, Gostaria de mostrar a falácia do Reino do Homem,
Melanie Klein e W. R. Bion), foi coadjuvada pelos que tentamos penosamente construir durante tantos
eventos da teologia e da filosofia (não podemos nos séculos — sem que apresente um bom resultado —
esquecer da psiquiatria e psicologia). Pois bem, a pelo único motivo que este é o Reino de Deus, que está
Psicanálise Inte- gral foi sendo formada lentamente (a todo aí, bastando aceitá- lo, para que renda mil por um.
posteriori), anali- sando-se individualmente e Estou apenas começando esta incrível revolução; os
coletivamente (grupos) as grandes teses que a que seguirem tais descober- tas irão, dentro de pouco
humanidade dispôs teoricamente e que só agora estão tempo, renovar a face da Terra, pela neutralização do
podendo ser verificadas adequada- mente. As que nos perturba (inclusive os de- mônios) e aceitação
descobertas da Trilogia Analítica mostram- nos que da incrível realidade dentro da qual estamos inseridos.
estamos iniciando a maior revolução da huma-

15
14 Guerra do Golfo
O Partenon, em Atenas
A- Civilização Antiga

A civilização perde-se na noite dos tempos e não


temos os meios para verificar como foi o planeta há
pouco mais de quatro mil anos. Alguns pesquisadores
pelas Três Pessoas Divinas, só poderemos chegar ao
apogeu, quando elas três estiverem entre nós.
Se o leitor observar bem, verá que o período mais
têm tentado formular hipóteses, as mais diversas, ba- brilhante que houve foi o antigo, porque foi lá é que
seando-se ou nos fósseis dos animais gigantescos, na se deram os fatos mais importantes na História da Hu-
união que havia entre os continentes, ou nos indícios manidade: não apenas a formidável civilização grega,
arqueológicos das culturas passadas. Porém, um fato como a egípcia, a chinesa e a hindu, mas acima de
de que não podemos de modo algum duvidar é que a tudo a aquiescência do Criador, ao entrar em contato
sa- bedoria, que nos chegou dos antigos, constitui até direto com um povo (hebreu) e a vinda de seu Filho à
hoje toda a base de nossa civilização. Terra.
Na época anterior ao cristianismo, predominou Tudo o que realizamos na Idade Moderna foi uma
uma conduta acentuada de teomania, onde os homens cópia mais ou menos disfarçada da filosofia de vida
se confundiam com os deuses; basta ler um pouco a ela- borada até o final da Idade Média — sem nada de
mi- tologia desses povos, gregos e egípcios novo na face da Terra. Porém, neste momento estamos
principalmente. No entanto, no ano 0, deu-se o fato em condições de realizar a maior revolução que já
mais importante da humanidade, com a descida da houve, por causa desse fenômeno único, o da
Segunda Pessoa da Trin- dade à Terra — levando até o conscientização. Assim sendo, podemos dividir a
século IV o predomínio de uma atitude cristã nos seus História da Humanida- de em três períodos: 1) Antigo,
adeptos; mas, a partir desse tempo, voltamos a viver o que atingiu o século IV, depois de Cristo; 2) Período
platonismo, isto é, uma filosofia de vida que vê a Intermediário, que vigorou do século V até agora; 3)
humanidade dividida entre o bem e o mal, algo Período Final, Parusia, que se inicia no Terceiro
totalmente fora da verdadeira men- sagem divina, pois Milênio e irá até o fim dos tempos. Nossos netos
tudo o que existe é bom e divino, sendo o erro apenas bendirão esta empreitada que iniciamos
a sua privação (negação, omissão ou deturpação do — e as gerações futuras farão tudo para esquecer este
bem). Até o século X, a Idade Média seguiu tal mundo demoníaco em que vivemos.
orientação (platônica); daí em diante, voltou- se muito
para o racionalismo aristotélico — para depois seguir
outros pensadores que, de uma maneira ou de outra,
deram ênfase, ou a um filósofo ou a outro, todos eles
da Grécia Antiga.
Durante esse longo período, houve dois fatos fun-
damentais: a manifestação de Deus, através do povo
judeu, e a revelação direta do Criador, através da Se-
gunda Pessoa da Trindade. E, se ainda não encontra-
mos a verdadeira paz e desenvolvimento, certamente
foi porque faltava-nos a atuação da Terceira Pessoa, o
Espírito Santo, que só agora tem condições para des-
cer aos homens, devido ao grau de desenvolvimento e
conscientização a que estamos chegando. E tal expli-
cação é muito lógica: desde que a criação foi realizada
1
Capítulo
1

Taj Mahal

A CIVILIZAÇÃO ORIENTAL
PERMANECEU ATRASADA POR CAUSA
DE SUA FILOSOFIA DE VIDA
Buddha Sarnath Estupa, local onde ficam os restos mortais de Buda

devoção, todos os sintomas da doença mental paranóia”. (A


Grande parte da civilização veio da Ásia; e os dois Índia Secreta – pág. 243).
países que mais contribuíram para isso foram a Índia e
a China – e o fator mais importante que se nota no
pensa-
mento oriental é a união inseparável entre sua “religião”
e a filosofia.
Na Índia houve o bramanismo e o budismo, dos
quais derivaram, mais tarde, todas as maneiras de viver e
a própria filosofia do povo hindu que foi conservada
até hoje, sem muita alteração. Por exemplo, os
famosos gu- rus modernos (Rajneesh, Maharichi,
Sadguru Baba e até mesmo Krishnamurti) seguem com
poucas modificações as ideias fundamentais do
bramanismo e do budismo, le- vando os seus adeptos a
um desprezo muito grande pelo aspecto material da
existência (teomania e platonismo), causando-lhes
maior marginalização ainda. Paul Brunton diz claramente
que “tais místicos apresentam, ao lado da meiguice e

1
Bramanismo
A Trilogia Analítica descobriu que toda
realidade, por si, é boa, bela e verdadeira; nota-se
no bramanismo tal fenômeno, com toda clareza,
pensando-se por vezes estar diante da mais pura
percepção científica. Ele (o bramanismo) tem a
noção de um Criador: um ente su- premo,
indivisível, incriado e eterno, do qual originou- se
toda a criação, inclusive os sacerdotes, que vieram
da cabeça do brâmane; os militares, do peito e a
casta servil, dos pés. Observe-se aqui o leitor que,
sem o au- xílio de uma melhor revelação, os hindus
condenaram grande parte da humanidade à miséria
e, partindo dessa ideia megalômana, construíram
um sistema social que, até hoje, conserva sua
população na maior carência.
Os hindus elaboraram o mais perfeito
platonismo, ao pretender que o mundo fenomenal
fosse uma ilusão,
Buda

algo indigno de existir, como se a matéria não fizesse


jus a nós, seres “divinais”. E, continuando nessa linha
de pensamento, atribuem ao físico a existência da dor,
o grande mal. É por esse motivo que agem de modo a
anular o material, através de punições ao corpo, pelo
uso de cilícios.
A finalidade do bramanismo seria a libertação da
dor (do físico), através da imersão no Átman, por um
processo de purificação, para pouco a pouco se en-
deusar; para chegar a isto, recomenda uma série de
práticas, que se constituem em um amálgama de fi-
losofia, religião, mitologia, disciplina, liturgia e, atu-
almente, psicologia: é o Mimânsâ-Purvâ, o Vedanta,
o Samphya, o Yoga, o Nyaya, a Vaisheshika. Não é
difícil notar que o chamado hinduísmo constitui um
incentivo ao narcisismo individual, ou melhor, à psi-
copatologia, motivo pelo qual o país permanece em
grande atraso, atraindo preferentemente as pessoas
mais doentes psiquicamente.
Não há dúvida de que existem pontos de encontro
entre o bramanismo, religiosidade e filosofia ocidentais
— principalmente em relação ao cristianismo nascente,
pois ele também desprezava o corpo e via na
concupiscência a causa de todos os males; o próprio
freudismo segue idên- tica linha de pensamento, ao
considerar que a frustração da libido é o motivo
principal da psicopatologia. Um nihang, seguidor do guru Gobind Singh

2 19
Confúcio
Pensador chinês Lao-Tse

Budismo
O budismo foi criado por Çakya-Muni, um nobre conhecidos foram Lao-Tse e Confúcio (Kong-futse), que
pertencente à casa Siddharta, tendo seus fundamentos fundaram
no próprio bramanismo. Sua principal preocupação era
também a questão da dor, pois dizia: 1) tudo o que
exis- te é dor; 2) sua origem está nas paixões e nos
desejos;
3) o fim da dor seria conseguido pela extinção
completa do ser; 4) através da prática da contemplação
universal e da mortificação dos apetites. Veem-se de
modo evi- dente o desprezo do budismo pela vida e a
sua crença em um processo evolutivo, dentro do qual o
ser humano caminharia para uma identificação com a
divindade, re- velando sua forte teomania.

Filosofia Chinesa
O pensamento chinês foi menos psicopatológico
do que o hindu; “se pelos frutos conhecereis a quali-
dade da árvore” (conforme disse Cristo), a civilização
chamada amarela teve um notável desenvolvimento,
só atrasando-se quando o ocidente a sobrepujou, por
força dos dados mais perfeitos da revelação (direta e
indireta). Os dois grandes pensadores chineses

2
seitas opostas. Lao-Tse é autor do livro Razão
Primor- dial, onde mostrava a existência de uma
Razão Supre- ma, criadora de todos os seres e da
ética — mostrando aqui a sua atitude humilde, de
submissão a Deus e à Consciência. Confúcio
percorreu a China conhecida, aperfeiçoamento de si
mesmo; o tempo todo pregava como se fosse um
grande santo, advertindo sobre a ne- cessidade de
amor ao próximo, a piedade filial e o des- prezo às
riquezas e às honras.
Por estes dados, o leitor já poderá ter notado a
cau- sa do enorme desenvolvimento da civilização
chinesa, que deixou Marco Polo e os primeiros
europeus que se aventuraram aquele país,
estupefatos de admiração. Foi de lá que vieram a
bússola, o papel e iguarias de mesa, que inundaram
todo o mundo conhecido e uma concep- ção de vida
extremamente sábia.

BIBLIOGRAFIA:
De Groot, J.M.: The Religions Systems of China, Leyden, Krishnan,
Radna S.: Indian Philosophy, 2 vols. London. Müller, Max: The Six
Systems of Indian Philosophy, London. Wiegen, L.: Histoire des
Croyances Religieuses et des Opinions Philosophiques in Chine.
Capítulo
2

Tales de Mileto

OS PENSADORES PRÉ-SOCRÁTICOS
ORGANIZARAM A BASE DE
NOSSA CIVILIZAÇÃO

2
Anaximandro de Mileto e Pitágoras de Samos

O Criador é o dono por excelência de todo o


universo e nós somos participantes e coadjuvantes;
problema do dialetismo, tratado depois por quase todos

assim sendo,
tudo tem de caminhar conforme foi predeterminado —
não havendo possibilidade de funcionar corretamente
se não cumprir sua função — sua finalidade original
possui tal dimensão cuja extensão jamais poderíamos
aquilatar; é por este motivo que só as pessoas
humildes, sábias e afetivas é que alcançam os melhores
resultados. O campo mais propício para se ver esse
fenômeno de luta dos indivíduos invejosos e soberbos
contra a verda- deira criação é o da filosofia, no qual é
fácil notar os dois grandes grupos em que se divide a
humanidade: aqueles que trabalham para a
implantação do Reino de Deus e os que fazem tudo
para criar o seu próprio reinado; esse fenômeno pode
ser constatado hoje, como já foi perce- bido em outras
idades, porque o ser humano de todos os tempos tem a
mesma intenção, pois foi criado pelo mesmo Ser,
conforme sua semelhança fundamental.
Durante o período grego, que deu as bases para
toda a civilização que houve posteriormente, já pode-
mos observar tal fato. Iniciando com os primeiros fi-
lósofos conhecidos, vemos na Escola de Mileto uma
tentativa séria de explicar os mistérios do mundo atra-
vés dos elementos da experiência sensível: os milesia-
nos acreditavam que o universo era um conjunto, ou
um campo, no qual se contrapunham pares de opostos:
frio-quente, pesado-leve etc.. O leitor pode perceber o
2
os pensadores — observem o sentido exato que essa
orientação filosófica deu, ao trabalhar com dois
elemen- tos reais — chamada por nós de dialética
socrática, ou cristã. O mais interessante, ainda, é a
origem do pensa- mento filosófico: a
experimentação; aliás, Tales de Mi- leto era
matemático e conhecedor de ciências orientais.
Temos de convir que o fundamento da verdadeira
cul- tura e civilização está no processo científico
trilógico, exatamente como acontece agora com a
Trilogia Ana- lítica, que está podendo compreender
melhor, tanto a filosofia, como a religião e a própria
ciência.
O segundo filósofo pré-socrático mais
conhecido é Anaximandro, que aperfeiçoou o
relógio de sol e foi perito geógrafo. Ele afirmou
sobre a existência de um princípio ilimitado que deu
origem a tudo; estava fa- lando claramente no
Criador e, exatamente, como o en- tendemos
atualmente. Em um único fragmento de sua obra,
afirma que, “ao longo do tempo, os opostos pa- gam
entre si as injustiças reciprocamente cometidas”.
Verifiquem a sua noção perfeita da criação e,
inclusive, uma metodologia para lidar com ela: a
dialética real. Anaxímenes foi o último
representante da escola mi- lesiana. Ele verificou a
técnica de fabricação do feltro, produzido por
aglutinação de materiais dispersos e afir- mou que
“todas as coisas seriam o resultado do proces- so
mecânico duplo da rarefação e condensação do ar
infinito”. Observem a junção que fez entre o
material e o espiritual.
Tenho a nítida impressão que tudo que foi reali- mento de esclarecer que o dialetismo, que
zado de importante pela humanidade, esteve de acordo praticamente deu origem aos primeiros núcleos de
com os planos divinos naquilo que, mais tarde, Agos- filosofia, foi muito desenvolvido pela Escola de Eleia,
tinho denominou de Cidade de Deus — e a civilização formada por Parmê- nides, Zenão, Melisso, Xenófanes
da Idade Antiga que mais se aproximou do Criador, e Górgias. Tal fenô- meno indica-nos a única via para
sem dúvida alguma, foi a grega. Não sabemos exata- chegar à verdade: o diálogo — processo natural do
mente como conseguiu atingir tão alto grau de sabe- espírito e que cada um de nós realiza
doria; a verdade é que, até agora, somos guiados pelo espontaneamente.
seu pensamento e arte. À medida que vou O criador do eleatismo foi Parmênides, o
esclarecendo a coincidência muito grande entre primeiro pensador grego a deixar um sistema
aspectos da Trilogia Analítica e a cultura da Antiga filosófico. Escre- veu um poema dividido em três
Grécia, o leitor poderá observar que podemos chegar partes, no qual coloca duas vias: uma, que seria o
novamente a um apogeu de civilização. caminho da verdade — dan- do significativamente o
Durante o século V a.C., houve um afervoramen- nome de revelação, denomi- nando-a de “via da
to da vida religiosa; nessa ocasião surgiu Pitágoras de verdade” — em oposição à “via da opinião”; a
Samos que fundou uma confraria científicoreligiosa, primeira seria dominada pela razão e a se- gunda pelos
que via a presença de Deus em tudo, identificando o sentidos. Nota-se claramente a inversão do pensador
ao supervalorizar o raciocínio, em detrimen- to dos
sentidos. Aliás, esta ideia foi compartilhada por todos
os outros pensadores, que sempre confundiram o
sentimento (o amor) com as “paixões”, isto é, com
atitudes de ódio, ira e inveja — que a ciência trata
agora no campo da psicoterapia.
Aristóteles atribuiu a criação da dialética no seu
sentido erístico, platônico, hegeliano, falso (como diz
a Trilogia Analítica) a Zenão, devido a seu método de
de- monstração pelo absurdo. Xenófanes (580 a 475
a.C.) foi um crítico sobre a vulgarização do
conhecimento do divino. Disse que “um Deus é o
supremo entre os deuses e os homens; nem em sua
forma, nem em seu pensamento, é igual aos mortais”.
O filósofo estava fa- lando de nossa teomania.
Heráclito de Éfeso constitui o pensador mais obs-
curo da Antiguidade, parecendo uma pessoa muito
neu- rótica, pois usava uma linguagem ferina e sibilina
Heráclito de Éfeso sobre os seus semelhantes: “é em vão que eles se
purificam sujando-se de sangue, como um homem que
ser humano com o divino — processo de megalomania
estivesse andando na lama e quisesse lavar os pés aí”.
e principalmente de teomania. Ele fez também o uso
A contri- buição mais original é o que chamou de
do dialetismo, ao estabelecer uma tábua dos opostos
Unidade de Tensões Opostas, revelando claramente o
que esclareceriam a oposição fundamental: 1. finito e
seu platonis- mo: “existe uma harmonia oculta nas
infinito, 2. ímpar e par, 3. unidade e multiplicidade, 4.
forças opostas, como a do arco e da lira”, disse ele.
à direita e à esquerda, 5. macho e fêmea, 6. repouso
Mais adiante, fala: “Deus é dia-noite, inverno-verão,
e movimento, 7. reto e curvo, 8. luz e obscuridade, 9.
guerra-paz, super abundância-fome”.
bem e mal, 10. quadrado e retângulo.
Empédocles era um pensador de muita riqueza
Notem a confusão que realizou entre a dialética
psíquica: foi o primeiro a tentar uma conciliação entre
certa, isto é, o uso de duas realidades (unidade-multi-
a razão e os sentidos — denominou sua contribuição
plicidade, macho-fêmea), com a errônea (bem e mal),
mais original de princípio de isonomia, uma compen-
pois não tinha tal consciência ainda. Gostaria neste
sação cíclica entre as ações do amor e do ódio, saúde e
mo-
doença — em uma clara atitude platônica de
2
considerar

23
o bem e o mal como duas entidades (existentes por si). homem é a medida de todas as coisas” — como mais
Só mais tarde, com as descobertas dos primeiros sécu- tarde lmannuel Kant procurou demonstrar em seu
los de cristianismo, é que tal dificuldade foi elucidada, idea- lismo. Observem uma clara luta do Reino dos
primeiro por Taciano, seguido por Tertuliano, Agosti- Homens contra o de Deus e o predomínio vagaroso,
nho e Tomás de Aquino. mas firme, deste último.
Anaxágoras trouxe de Jônia para Atenas algumas A humanidade, em todos os tempos e lugares, re-
concepções revolucionárias, que causaram sua pete invariavelmente a mesma conduta psicopatológi-
expulsão da cidade. Foi contrário ao pitagorismo, que ca, descoberta pela Trilogia Analítica, como a
via a ex- tensão dotada de unidades indivisíveis, teomania e megalomania, a fantasia e imaginação em
explicando que a matéria é divisível e o movimento e oposição à realidade, o processo de inconscientização
a diferenciação surgem pela interferência do Espírito (aliena- ção), o dialetismo (platônico, ou o socrático,
(Nous). O leitor poderá imediatamente ver a noção de cristão) e a conscientização, com todas as suas luzes.
um Criador, que desgostou a teomania e megalomania Um fato muito revelador sobre o nascimento da
dos atenienses. Leucipo e Demócrito concluíram que, filosofia na Gré- cia é a sua origem localizada nos
se o movimento existe, o não corpóreo existe; dados da experiência sensível, que Tales de Mileto
introduziram em Atenas noções sobre os átomos e iniciou — demonstran- do a secundariedade do
seus movimentos. Demócrito contribuiu para formular intelecto, que só viria a exis- tir, após a montagem da
o atomismo físico, dando ao mesmo tempo uma base afetiva — que, depois de se manifestar no
resposta ao relativismo dos sofistas, como seu raciocínio, terminaria na realização. No entanto, tal
conterrâneo Protágoras, que afirmava que “o percepção só está sendo conscientizada agora, com o
advento da ciência (trilógica).
O leitor pode ter percebido facilmente que os pri-
meiros pensadores gregos (à semelhança dos israelitas
e os egípcios) partiram sempre da comparação entre
fatores dialéticos, às vezes, em total oposição um ao
outro, para chegar a alguma compreensão — porque é
o fenômeno mais aberrante para o ser humano; basta
um sentido mais acurado de observação, para notar tal
fato. Desde Tales de Mileto, passando por Anaximan-
dro, Anaxímenes, Pitágoras de Samos, com sua Tábua
dos Opostos, a Escola de Eleia, claramente dialética,
formada por Parménides, Zenão, Melisso, Xenófanes
e Górgas, Heráclito de Éfeso, com a sua teoria das
Tensões dos Opostos e Empédocles com o seu Princí-
pio de Isonomia.
O próprio conhecimento é proveniente de fatores
comparativos: para se saber o que é quente, temos de
sentir o que é frio; para conhecer o doce, devemos ex-
perimentar o salgado. O leitor poderá notar em todos
esses primeiros filósofos da Antiga Grécia um grande
amor pela verdade; por vezes, opiniões opostas em um
pensador e outro — mas na base de todos eles a mani-
festação do Criador — o Reino Divino espelhando-se
no interior de cada pessoa e manifestando-se em tão
extraordinária civilização.
Zenão de Eléia

BIBLIOGRAFIA:
Brun, J.: Les Présocratiques, Paris.
Burnet, J.: L’Aurore de La Pensée Grecque, Paris.

2
Capítulo
3

Sócrates

SÓCRATES (470 A.C. 399 A.C.)


O MAIOR PENSADOR/PSICÓLOGO
DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
D e repente, no final do século IV a.C., surgiu em
Atenas, provavelmente a maior figura da humanidade
do período anterior a Cristo — que se tornou famosa
atrás, já tivesse percebido este fenômeno que a
Trilogia Analítica mostra com tanta clareza: a
sociedade e tudo o que ela contém vêm em
por um hábito: o dialogar, como se fosse investido por decorrência da atitude do ser humano, que a forma e
uma missão divina. Esta pessoa foi Sócrates, que der- lhe transmite o que tem de valor
rubava com enorme facilidade preconceitos e ideias — notem o processo de inversão já percebido por ele.
que vigoravam na ocasião, provocando pavor em Mas o trabalho mais importante de Sócrates foi
todos aqueles que se julgavam sábios e doutos. O seu a técnica que usava, conseguindo abrir os olhos dos
traba- lho principal era o de despertar a consciência de homens (de seu tempo) para a realidade. Certo de que
cada um, como o verdadeiro psicanalista faz, cada um possui a verdade, era de opinião que o seu
mostrando os empecilhos que a ignorância tra- balho deveria ser idêntico ao de um médico
(megalomania, dizemos nós) causa — seria o parteiro, que ajudava a mulher a dar à luz o que já
verdadeiro renascimento através da conscientização de possuía — no campo intelectual haveria o mesmo
si mesmo. fenômeno — de- pois que a pessoa sofresse uma
Muitas vezes, fico em dúvida se a Trilogia Analí- catarse de suas ideias, é que permitiria o afloramento
tica está mais perto da Psicanálise Tradicional do que da verdade, algo ineren- te à própria personalidade.
de Sócrates — e inclino-me para este último. Com Somente com os trabalhos posteriores de Platão e
toda certeza, este incrível filósofo percebeu que o principalmente Aristóteles, é que ficamos conhecendo
homem conservava apagada a luz do seu interior e melhor tal processo — este último afirmou que o
pretendia acordá-lo. É exatamente a descoberta que fiz conhecimento vem pelos senti- dos, e a Trilogia
a respeito da verdadeira causa da neurose; não como Analítica completa, dizendo que ele precisa da
disse Freud, mais tarde, devido a um inconsciente, aceitação do sentimento. Foi Sócrates quem, pela
mas, justamente pelo contrário, é uma atitude de negar primeira vez, colocou cada elemento em seu lu- gar,
o que se conhece, não apenas no sentido positivo, mas inclusive dando nome à vida psicológica de psique,
principalmente a psicopatologia que são os erros, os algo inerente ao ser humano. Mostrou que tanto a
sentimentos de cul- pa, os descontroles. cons- ciência, como o caráter tinham morada nesse
O grande filósofo grego pretendia um renasci- aspecto interior, devendo ser o principal objeto de
mento da alma, primeiramente através da conscienti- atenção de toda a humanidade.
zação da própria ignorância, pois as pessoas se julgam Em Sócrates são mais evidentes os fenômenos
na posse de “verdades”. Nós dizemos que cada um de que eu descobri dentro da Trilogia Analítica, porque
nós se acha o dono da verdade, devido à megalomania ele foi um pensador-psicólogo, por excelência. Sua
e à teomania, rejeitando a percepção do que existe de preocu- pação fundamental era o ser humano que,
mais belo, bom e verdadeiro. Pelo que podemos no- sabia muito bem, se sofresse uma boa conscientização,
tar, Sócrates abriu as portas do próprio interior do ser traria paz para toda a Terra. Foi por esta razão que
humano, mostrando que tudo e todas as coisas partem identificou vir- tude com conhecimento; hoje,
do homem: “a virtude não provém da riqueza, mas é sabemos que mesmo a pessoa sabendo o que é certo,
a virtude que causa a riqueza, ou qualquer outra coisa não pratica, porque está invertida, sendo que este
útil aos homens, quer na vida pública, quer na vida último processo é ligado a um elemento mais básico:
pri- vada” (Victor Brochard: L’Oeuvre de Socrate). ao sentimento, que comanda to- dos os movimentos do
Parece incrível que um pensador, dois mil e homem. Porém, esta descoberta só poderia ser
quatrocentos anos realizada com um trabalho científico, ex- perimental,
como hoje é possível.

BIBLIOGRAFIA:
Guardini, Romano: La Mort de Socrate, Paris,
1956 Mondolfo, Rodolfo: Sócrates, Ed. Mestre

2
Capítulo
4

Platão

PLATÃO: O GRANDE FILÓSOFO


DA IRREALIDADE
(DO MUNDO IDEALIZADO)
A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio

de Aquino refutaram-na
P latão viveu durante o apogeu da civilização de
seu país, quando a Grécia se tornou democrata e
atingiu o
mais alto nível de desenvolvimento. Tanto assim que,
juntamente com Aristóteles (seu aluno) e Sócrates (seu
mestre), forneceu ao mundo todas as bases de sua cul-
tura e desenvolvimento, até os dias de hoje. Por este
motivo, podemos afirmar que tudo o que foi realizado
posteriormente, de uma forma ou de outra, está ligado
aos trabalhos desses três filósofos.
O que mais caracteriza o platonismo é o processo
de dualidade, no qual ele via o mundo sob o domínio
de duas forças opostas e igualmente poderosas: a som-
bra e a luz, a opinião (doxa) e a ciência (episteme), ou
melhor, o mundo sensível, em oposição ao inteligível
(o mundo dos sentidos em oposição ao das ideias), —
que sugere o processo de inversão, que, viemos
descobrir só agora (1977). Vamos dizer que esse
famoso filóso- fo denunciou o que realizamos
continuamente, ou seja, o que pensamos sobre a vida
— como se ela tivesse um eterno princípio do bem e
outro do mal. Tal ideia sempre foi do agrado geral dos
seres humanos, motivo pelo qual, Aristóteles e Tomás

2
e a humanidade pouca atenção quis prestar a isso.
Mais uma vez vemos o psicológico predominando
sobre os demais campos — daí a minha ideia de
que a humani- dade só atingirá seu pleno
desenvolvimento e paz defi- nitiva, quando o
psiquismo sofrer um trabalho correto. O ponto
culminante da psicopatologia humana foi quando
Platão considerou o ser e o não-ser como dois
gêneros supremos dentro da hierarquia das ideias
e, o mais importante ainda, renovando a noção do
não-ser, entendendo-o, não como um nada, um
vazio, mas como se o não-ser fosse o outro, a
alteridade que sempre com- pleta o mesmo, a
identidade. Com essa atitude, o filóso- fo estava
concedendo ao ser humano total licença para
elaborar toda fantasia e acreditar em toda a
imaginação que fizesse — inaugurando
oficialmente o reino da lou-
cura sobre a Terra.
Aristóteles afirmou que seu mestre adotou as
ideias de Heráclito de Éfeso (através de Crátilo) que
dizia da impossibilidade de qualquer conhecimento
es- tável e, em seguida, tomando as palavras de
Sócrates (no Fédon), diz: “admitamos pois — o que
me servirá de ponto de partida e da base — que
existe um Belo em
si e por si, um Bom, um Grande e assim por diante”. O em querer comparar o universo humano, físico, ao
filósofo estava admitindo a existência da Verdade, em espiritual. Penso que esta foi a causa de tanta para-
si, ao lado de nossa atitude de não atingi-la nóia no Período Medieval, com a perseguição que
corretamen- te; porém, o seu erro foi o de pensar sempre foi empreendida contra as pessoas que não
que o verdadei- ro universo seria o chamado Mundo rezavam pela cartilha dos que possuíam o domínio
das Ideias, como se fôssemos deusinhos expulsos social. Temos de convir que o grande pensador tinha
provisoriamente para uma vida terrena (teomania). razão, quando realizou suas descobertas, mas falhou
Durante muitos séculos, tal concepção foi do na elaboração do seu sistema filosófico, devido a tê-
agra- do dos cristãos, que viram aí a possibilidade de lo baseado em sua teomania.
se cons- tituírem em um clã especial, escolhido pela O platonismo foi a inauguração oficial do reino
divindade da fantasia sobre a terra, quando o ser humano
— exatamente como se consideravam os sacerdotes do acreditou que poderia viver conforme o que pensava,
bramanismo, que se achavam oriundos da cabeça do denominan- do-o “mundo das ideias”. E o período
brâmane, e o próprio Cristo os censurou afirmando mais doentio en- tre todos foi o Medieval, quando a
que “as prostitutas e os publicanos vos passarão à sociedade procurou viver com todas as suas forças a
frente” (Mateus, cap. 21, vers. 31). Platão dizia idealização que ima- ginava sobre a existência.
expressamen- te que a alma humana, antes do Evidentemente, tal conduta existe até hoje, devendo
nascimento (antes de prender-se ao cárcere do corpo), ser conscientizada, para que os absurdos do passado
teria contemplado as ideias enquanto seguia o cortejo não retornem e o presente seja mais agradável. E o
dos deuses — notem que o filósofo colocava todos na único modo de afastar o perigo das guerras e
mesma condição do Criador. Ele pôs no intelecto, o corrupções é através da percepção dos erros que
Mundo das Ideias, do Bem, enfim, o Universo cometemos.
Divino. É evidente que, nes- te caso, poderíamos O platonismo é a manifestação dos enganos que reali-
manejar como quiséssemos tudo o que existe. E a zamos e que devem ser conscientizados, ao contrário
consequência de tal engano foi o siste- ma político do que fizemos até hoje: tentar inconscientizá-los, para
totalmente utópico que Platão sugeriu, onde não vê-los. Este é o caminho para o encontro com a
aconselhava que a sociedade política fosse dirigida por rea- lidade existente por si e que não precisamos criar,
filósofos; os filhos imediatamente separados dos pais, como imaginaram tantos pensadores
por ocasião do nascimento, para que não se tornassem megalomanicamente.
egoístas e a família deveria desaparecer.
O famoso pensador notou que a sociedade era
formada de acordo com o modo de raciocinar do ser
humano, ou melhor, com a sua filosofia — a ponto de
ser chamado pelo monarca de Siracusa, Dionísio II, BIBLIOGRAFIA:
Cornford, F.M.: Plato’s Theory of Knowledge,
para orientar a vida política de seu império. No seu li- Londres. Ross, David: Plato’s Theory of ldeas,
vro República, diz que só o indivíduo que se liberta Oxford.
das ilusões e se eleva à visão da realidade, é que pode
e deve governar, para libertar os outros prisioneiros
das sombras: o filósofo-político, aquele que realiza
com sua sabedoria um instrumento de libertação de
consciências e de justiça social, que faz da procura da
verdade uma arte de desprestidigitação, um
desilusionismo.
Neste momento, uma pergunta ocorre: desde que
Platão notou todo esse processo psicossocial, por que
motivo a Idade Média (que foi inteiramente inspirada
nesse modelo), teve um resultado tão negativo? Pri- Platão
mordialmente, Platão desenvolveu a ideia de que este
mundo seria uma prisão para o homem, desprezando
todo elemento material, como se nos fosse inadequa-
2 deixou-nos uma concepção muito megalômana,
do;
29
Capítulo
5

Aristóteles

ARISTÓTELES:
O REINADO DO RACIOCÍNIO NA
HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO
Pascal Papa Leão XII

A ristóteles, contrariamente ao seu mestre de


Atenas, Platão, voltava-se para as ciências naturais;
seu pai Ni- cômaco era médico e ele se interessava
É principalmente na metodologia que aparece com
mais evidência a grande diferença entre Aristóteles e

pela biologia. Era o filósofo por excelência do


raciocínio, dotado de uma cultura muito ampla,
colocando todas as coisas su- bordinadas ao
conhecimento humano — a tal ponto que sua
orientação foi chamada mais tarde de racionalista.
O grande pensador estabeleceu padrões para
tudo: a maneira mais acertada de raciocinar (a Lógica);
os ele- mentos do discurso, para verificar a exatidão da
lingua- gem (as Categorias); o trato com o juízo e a
proposição (Sobre a Interpretação); um método de
argumentação geral (os Tópicos) e a maneira de refutar
os sofismas (as Refutações). Sem dúvida alguma, seu
trabalho cons- titui um maravilhoso tratado sobre o
intelecto — mas não poderia conter tudo sobre o ser
humano, levando um famoso filósofo moderno a dizer:
“o coração tem razões que a própria razão
desconhece” (Pascal). Mais tarde, Tomás de Aquino
endossou as teses aristotélicas (dentro da filosofia
escolástica) sendo recomendado pelo papa Leão XII,
como o mentor intelectual da Igre- ja Católica — e
sabemos que tal orientação não foi sufi- ciente para
evitar os cismas, as divisões e o afastamento do povo
— o intelectualismo está definitivamente con- denado
(veja nos mecanismos de defesa da psicanálise o que
representa o intelectualismo).

3
os dois maiores mestres que o antecederam: Platão
e Sócrates. Enquanto este último fizera um diálogo
extre- mamente humano, levando o seu interlocutor
a mani- festar a verdade que existe no próprio
interior (psicoló- gico), Platão tentava unir tudo o
que imaginava existir, inclusive o sim e o não,
deturpando o processo de seu professor. Mais tarde,
Cristo fez a verdadeira dialética, ao demonstrar que
todos nós temos perfeita consciência dos erros e
acertos e de quase toda a verdade. A filoso- fia
sempre alimentou a ideia de que o intelecto seria o
principal motor do universo, identificando, por
vezes, o próprio Criador com ele. Neste sentido,
Aristóteles foi o pensador por excelência,
acreditando que a verdade estava no raciocínio — e
nós dizemos que (o raciocí- nio) pode se
transformar em um simples jogo de pala- vras,
podendo-se criar argumentos quase sem fim. Por
exemplo, Kant falou que a argumentação do
Primeiro Motor Imóvel, para provar a existência de
Deus, não era válida, porque necessariamente não é
preciso admi- tir um fim na sequência dos motores,
ou melhor, aceitar a existência de um Motor Inicial.
Se o leitor estiver percebendo, o problema da
ver- dade não é atinente primordialmente ao
raciocínio, mas ao sentimento. A famosa frase de
Aristóteles “nihil est in intelectus quod prius non
fuerit in sensus”, deveria ser modificada: nada
chega ao intelecto, se não passar primeiro pelo
sentimento. Vamos dizer que o processo do
conhecimento inicia-se nos sentidos e sofre a atu-
ação do sentimento; se houver aí muito ódio, inveja e Aristóteles e os racionalistas pretenderam nos ensinar
arrogância, evidentemente o indivíduo (cognoscente) a pensar; porém, o fato mais importante seria analisar
realizará grande deturpação e até omissão, ou negação por que não pensamos adequadamente; e esta pesquisa
aos seus conhecimentos. A dificuldade básica do ser pertence ao campo científico trilógico.
humano é de caráter emocional e não intelectual; te- Outro erro fundamental de Aristóteles foi o de
mos que voltar ao processo psicológico socrático, que colocar o conhecimento sob base só do sensível, algo
visava mais a vida afetiva, purgando a pessoa de sua localizado no mundo exterior — deixando de lado o
megalomania, para que aceitasse a verdade. Este é o sentimento (o afeto), que justamente trabalha com as
grande valor da ciência trilógica, que conseguiu sensações, dando-lhe uma orientação certa (quando
deslin- dar o motivo por que um sistema filosófico (ou predomina o amor) e errada (quando a inveja e o ódio
teológi- co), por mais perfeito que seja, não atinge os falam mais alto).
resultados esperados. Antes do conhecimento e de toda Para Aristóteles, a finalidade da filosofia seria re-
realização, existe a psicopatologia que, enquanto não solver o problema do ser e não o da vida, uma atitude
for cuidada satisfatoriamente, o ser humano não totalmente teórica; ele considerava o inteligível ante-
atingirá paz e ple- no desenvolvimento. Este fenômeno rior ao sensível, colocando o raciocínio como a função
demonstra que a ciência tem que se utilizar de toda a primordial da existência — erro que depois Tomás de
realidade (em to- dos os setores) para chegar à Aquino endossou, encaminhando grande parte da ci-
unificação — e não ten- tar realizar uma síntese vilização à uma conduta visionária. Aliás, o estagirita
(impossível) entre o certo e o errado, como Hegel admitia a existência de escravos, justamente por con-
preconizou mais tarde. Aristóteles disse que, para se siderar o trabalho inferior — em clara oposição à sua
atingir a verdade científica e construir um conjunto de própria tese de potência e ato. O Criador (Puro Ato)
conhecimentos seguros, era necessário possuir normas estaria em uma conduta de menor valor, frente aos
de pensamento, que permitissem de- monstrações seus filósofos racionalistas, “contemplativos”? De sua
corretas e irretorquíveis. A Trilogia Analí- tica fala filo- sofia à teomania existe só um passo, para cada
que é necessário cuidar da conduta psicopato- lógica, pessoa se imaginar um deus.
para que a verdade e o conhecimento exato (que
deveriam brotar espontaneamente em nós) não sejam BIBLIOGRAFIA: Tomás de Aquino
prejudicados. Não se trata de uma questão intelectual, Smith, J.A. e Ross, W.D.: The Works of
Aristotle. Moreau, Joseph: Aristotle et son
mas emocional — mesmo admitindo que o estagirita Ecole.
foi mais realista que o seu mestre Platão. Um exemplo
de seu equilíbrio é a tese evolucionista, ao afirmar que
o mais não pode vir do menos, o superior, do inferior.
Por esse motivo, Alberto Magno e principalmente
Tomás de Aquino endossaram suas teses, tendo este
último chegado a uma Suma Teológica, graças a ele.
Por si mesmo, o ser humano tem a noção
suficien- te para saber da existência dos elementos
fundamentais, que Aristóteles denominou de primeiros
princípios. O mínimo de sensação existe (até nos
aleijados), para que todo homem tenha no seu íntimo
o que Sócrates chamou de verdade (realidade). De
maneira que não é pelo raciocínio que “faremos” a
verdade, mas através da conscientização da inveja, é
que a deixaremos exis- tir no raciocínio — ela ( a
verdade) não é algo para ser construído, mesmo no
pensamento; ela é somente para ser aceita. Não é
necessário raciocinar para fazer filo- sofia; e, sim, é
necessário deixar de atrapalhar a elabo- ração do
pensamento, com atitudes de inveja, para que a
autêntica filosofia exista nele (como o peixe na água).
3
33
Capítulo
6

Epicuro

EPICURISMO:
O MESMO FENÔMENO
FREUDIANO NA ANTIGUIDADE
Epicuro Freud

O
epicurismo está para a filosofia grega antiga, assim — a mesma intenção
como o freudismo para a ciência européia moderna,
de- vido a um fenômeno curioso: quando um país
inicia um período de desenvolvimento, os grandes
talentos se realçam, mas quando entra pela senda da
decadência, predomina o desequilíbrio, mesmo dos
indivíduos ge- niais. Freud era um remanescente do
colossal Império Austro-Húngaro que possuía, dentro
de suas fronteiras, mais de oitenta milhões de
habitantes e pouco a pouco transformou-se em um
diminuto país de seis. Hoje, a cultura européia se
expande por todo o universo, assim como (na
antiguidade) a civilização grega se difundiu por todas
as nações conhecidas e principalmente dentro do
Império Romano, que a levou por todo o restante da
humanidade, daquele tempo.
O último pensador do período áureo grego foi
Plo- tino, que reviveu o platonismo, afirmando que os
seres emanam do Um, transcendente e inefável —
mostrando uma influência da religiosidade oriental.
Notem a mes- ma ideia do bramanismo sobre a origem
das pessoas, em forma panteísta, em uma clara atitude BIBLIOGRAFIA:
de teomania. E o filósofo mais famoso desse período Mondolfo, R.: O Pensamento Antigo, Ed. Mestre Jou, São
Paulo, 1964.
de decadência foi Epicuro, que fez na filosofia o que
Freud realizou, mais tarde, no campo científico. Sua Bignone, E.: Epicuro; Opere, Frammenti,
Testimonianze Bari, 1920.
preocupação pri- mordial era a de fornecer ao ser
humano a felicidade, no sentido de retirá-la do prazer Brochard, V.: La Théorie du Plaisir d’après Épicuro e La Morale
d’Épicuro in Études de Philosophie Ancienne et Moderne, J. Vrin, Paris,

3
que existe em todas as pessoas egocêntricas, ao
tentar fazer o mundo girar ao redor de seus desejos
e, exata- mente, como pensam a psicanálise
tradicional e quase todas as formas de
psicoterapias, levando seus clientes a desenvolver
ao máximo seu narcisismo (ler o livro
Psicoterapias Alienantes, Proton Editora Ltda.,
1980). Outra semelhança entre Epicuro e Freud é o
ma- terialismo. A filosofia epicurista baseava-se
nas ideias atomistas, querendo crer que o ser
humano fosse cons- tituído por átomos, igual a
todos os outros elementos, com uma única
ressalva: sua possibilidade de arbítrio. De modo
geral, o conhecido filósofo grego considerava que
toda a felicidade viria pelo prazer corpóreo — exa-
tamente como a psicanálise freudiana vê, em
relação à libido, tendo construído uma percepção
de vida muito
restrita, pessimista e inadequada ao homem.
Capítulo
7

Cícero

A VERDADEIRA CIVILIZAÇÃO (GREGA) FOI


DIFUNDIDA NA HUMANIDADE ATRAVÉS
DO IMPÉRIO ROMANO, PERMANECENDO
INVARIÁVEL ATÉ O TEMPO ATUAL

3
Sêneca, desenhado por Rubens Marco Aurélio

À medida que a Grécia Antiga entrava em decadên-


cia, os romanos começaram a construir seu império
no ano 49 a.C., conquistando o Egito, o Oriente e es-
reo era semelhante a um ser vivo, no qual existiria o

tendendo seu domínio até a Espanha. Assim como os


gregos voltaram-se para o epicurismo, ao perder todas
as reservas de força e valor (cedendo facilmente seu
país), os romanos eram estóicos, construindo um dos
maiores impérios que já houve. Geralmente, coloca-se
a causa do declínio de um país em fatores econômicos
e políticossociais; no entanto, verificando-se bem, ve-
mos que primeiramente ocorre uma queda psicológica
(no íntimo, no interior do povo), para depois sua vida
econômica, política e social entrar também em
debacle. Quando Epicuro surgiu, os gregos já se
haviam voltado ao princípio do prazer, enquanto que
os romanos procu- ravam o estoicismo, aparecendo
famosos nomes, como Cícero, Sêneca e Marco
Aurélio, que erigiram seu Im- pério ensinando um tipo
de existência espartana.

Cícero
O mesmo fenômeno atual, quando os Estados
Uni- dos da América desenvolveram sua civilização
baseada na européia, os romanos realizaram,
antigamente, a res- peito da Grécia. E, até na maneira
de raciocinar, usaram os pensadores gregos; por
exemplo: o estoicismo (a primeira manifestação do
pensamento romano) foi fun- dado por Zenão de Cicio
(336-264 a.C.) e continuada por Cleanto de Assos
(331-232 a.C.) e Crisipo de Solis (280-210 a.C.), todos
eles gregos.
Tal filosofia acreditava que todo elemento corpó-
3
sopro vital (pneuma), cuja tensão explicaria a
junção e interdependência das partes; o universo
teria uma pró- pria alma, que Zenão identificou à
razão. Herdeiros do pensamento de Heráclito de
Éfeso, os estóicos conce- beram a existência como
uma sucessão de fases, culmi- nando na absorção de
tudo pelo Logos (que é o Fogo e Zeus); em
seguida, recomeçaria tudo. Como o mundo é
regido pelo Logos, a natureza seria mista e divina,
devendo o ser humano agir de acordo com a
prudência e demais virtudes.
Um fator interessante foi a união que o
estoicismo realizou com os sentidos — sem que
conseguisse colo- cá-los na base do conhecimento
(como fez Aristóteles)
— pelo contrário, acreditou que até o aspecto
sensível seria penetrado pela razão, o fenômeno
mais constante de toda a filosofia. Por último,
elaborou uma lógica e a formação dos juízos
(hipotético, conjuntivo, disjuntivo, causal e a ideia
de mais ou menos). Notem os leitores que os
romanos, para chegar ao pleno desenvolvimento,
escolheram uma filosofia responsável e dinâmica,
motivo pelo qual atingiram um período de incrível
progresso.

Sêneca (4 a.C. — 65 d.C.)


Estamos mostrando que o tipo de civilização é
pro- duto da cultura humana, formada pelo
pensamento e prin- cipalmente pelo sentimento dos
seres humanos: o amor pela realização, o entusiasmo
pela vida e principalmente a humildade para ver que
é necessário grande força de vontade, para
conseguir o próprio desenvolvimento.
O primeiro filósofo nascido dentro do Império
Ro- mano e que construiu um sistema de
pensamento pró-
prio foi Lucius Annaeus Sêneca, nascido em Córdoba que deu origem à Alma do Mundo, da qual derivavam
(Espanha). Ele foi sobretudo um moralista, vendo a as almas individuais, que produzem a matéria e os
filosofia como sendo uma medicina da alma e uma pe- seres corpóreos e sensíveis.
dagogia para o exercício da virtude; colocava no Em seguida, indicou o processo de desenvolvi-
centro da reflexão a ética — a física e a lógica seriam mento, através do qual a alma humana passa por três
os seus prelúdios. À semelhança da Trilogia Analítica, estágios: a) purificação, no qual ela se desprende de
este filó- sofo percebeu o elemento fundamental, no ser tudo o que é sensível, unindo-se à Alma do Mundo,
humano, isto é, sua vida afetiva (ética), elaborando um b) dialética, quando ela se eleva à contemplação das
sistema filosófico profundamente terapêutico. ideias, e, c) êxtase ou contemplação, quando ela perde
O trabalho de Sêneca mostra bem a sua humilda- o sentimento da própria personalidade, para abismar-
de e a necessidade de basear toda realização no que já se na Unidade Suprema — este seria o fim da
existe, caso pretendamos ter um real progresso. Estou filosofia, a suprema felicidade do homem.
dizendo que qualquer desenvolvimento, não apenas no O leitor poderá notar que Plotino retomou o tema
campo científico, como no filosófico e até no de Platão, aliás muito em voga entre os próprios cris-
religioso, tem que ser fundamentado no que a tãos da época, pois a concepção de vida até hoje é
humanidade já pos- sui; é uma ilusão querer começar muito mais grega do que propriamente cristã, no seu
uma ciência, filosofia, ou qualquer atividade humana sentido social; e não é difícil perceber o motivo disto:
do nada, como se fosse um passe de mágica — se bem a men- sagem de Cristo foi muito deturpada,
que esse seja o desejo da maior parte dos homens, incompreendi- da, omitida e negada em sua essência
devido à sua forte teomania. Cada pesquisador, pelos grupos e instituições religiosas. O Reino de
filósofo ou cientista sempre imagi- na criar um sistema Deus reúne tudo o que é bom, verdadeiro e belo, e o
novo de trabalho e de pensamento, julgando-se um povo, quando não é impedido, volta-se
outro deus criador. espontaneamente para ele, como a abelha para o
néctar das flores. Plotino teve vários seguidores, como
Marco Aurélio Porfírio, Jâmblico, Juliano Apóstata, Proclo e
Simplício.
(121 d.C. — 180 d.C.) Ele foi o último grande representante (no Império
Romano) da formidável civilização grecorromana, que
O segundo representante do estoicismo romano deu as bases para a formação de todas as culturas
foi Epicteto (50-130), escravo e posteriormente poste- riores, inclusive a sociedade cristã nascente. O
professor de filosofia. O imperador Marco Aurélio mundo estava em um estertor provisório, mas
Antonino foi seu grande admirador; aos onze anos, carregando ainda tão grande luz, que se acendeu em
conheceu o estoicis- mo e adotou um hábito austero de um pequeno país lo- calizado no sul da Europa, com o
vida. Escreveu o li- vro Meditações, em grego, no qual nome de Grécia.
expôs sua maneira de encarar a vida, para que se
consiga viver bem; homem profundamente
espiritualista, vacilava entre sua convic- ção religiosa e BIBLIOGRAFIA
o materialismo — revelando uma atitude platônica, ao Bridoux, A.: Le Stoicisme et son Influence, J. Vrin, Paris,
1966. Arnold, E.V.: Roman Stoicism, Londres, 1958.
querer dividir a sociedade em um setor bom
(religiosidade) e outro aspecto negativo (o material).

Plotino (205 d.C. — 270 d.C.)


O mundo romano sofreu a influência do ecletis-
mo, que adveio de uma união do pensamento grego
com concepções religiosas do Oriente. Podemos citar
Plutarco, Celso e Apuleu que tentaram conciliar suas
ideias ao gênese de Moisés, mas o filósofo mais im- Plotino
portante desta época foi Plotino, que considerou acima
39
dos seres humanos, a existência do Uno (ou Unidade
Absoluta),
4 o Ser Supremo, dotado de grande bondade,
Capítulo
8

Moisés

O JUDAÍSMO FOI A
MANIFESTAÇÃO DIRETA DA
PRIMEIRA PESSOA DIVINA
(O PAI) DENTRO DA HUMANIDADE
FOT

A travessia do Mar Vermelho cristianismo, a cultura grega, todas as artes, ciência e


sabedoria e, agora, mais uma vez, está

E nquanto na Grécia era desenvolvida a mais bela


filosofia que jamais houve, no Oriente Médio havia
um povo, eleito pelo Pai (primeira Pessoa da
Trindade), para trazer melhor a luz divina ao mundo.
No lugar de filósofos, os judeus tiveram profetas,
homens que se caracterizavam pelas virtudes, que
admoestavam o se- melhante mostrando-lhes os erros
e anunciavam cons- tantemente o que iria acontecer.
Sabemos que o mais importante de todos foi Moisés,
que tirou o seu povo do Egito e perambulou quarenta
anos pelo deserto — já em forma de prenunciar o
jejum de Cristo por quarenta dias. Recebeu das mãos
de lahweh as tábuas com os Dez Mandamentos,
passando por peripécias incríveis, como a passagem
pelo Mar Vermelho (que se abriu pelo poder de Deus)
e a revolta dos israelitas, ao adorar um bezerro de
ouro. Durante todo esse tempo, o Cria- dor proveu seu
povo de tudo o que precisava, fazendo jorrar água de
uma rocha, ou chovendo maná do céu. Tudo o que
aconteceu está disposto em quarenta e seis livros,
divididos no Pentateuco, em Livros Históricos,
Poéticos e Sapienciais e Livros Proféticos.
Para compreender o cristianismo, temos que
enten- der o judaísmo que se desenvolveu no Oriente
Médio, dentro de uma filosofia de vida estranha para
os demais povos — mas dotada de uma força incrível
pois, até hoje, o povo judeu tem conseguido impor
seus hábitos e pensamentos para o mundo — basta
considerar, no sé- culo XX, Sigmund Freud, Carl
Marx e Albert Einstein. Toda a força que possuía na
Antiguidade está presente; podemos dizer que o
mesmo Deus, que criou a nação judaica, deu-nos o

4
Moisés com as Tábuas da Lei

em vias de descer definitivamente através da


Terceira Pessoa (o Espírito), a fim de realizar a
união de todos os homens, raças, crenças, política e
vida social em um mesmo tipo de existência, de
enorme desenvolvimento
—é a espiritualização, ou melhor, a
conscientização que a ciência trilógica está
percebendo.
Para verificar tal fato, basta notar a
coincidência entre as descobertas dos grandes
pensadores passados com tal orientação.
Exemplificando: Platão foi o autor preferido até o
século X, para depois ser substituído em grande
parte por Aristóteles — voltando todo o anti- go
esplendor da Grécia a ser revivido por ocasião do
Renascimento. O mais incrível ainda, foi a atitude
de grande sabotagem ao trabalho do Criador, tanto
por parte dos judeus, como pelos cristãos; creio que
só pre- sentemente estamos chegando à condições
de entender melhor a grandeza do verdadeiro
cristianismo e judaís- mo, vendo-os pelo prisma da
ciência.
Ao ler os cinco primeiros livros do Pentateuco,
denominado Torá, entramos em contato com as leis
ju- daicas, que seguem o princípio “olho por olho,
dente por dente” — caracterizadas por um rigorismo
incrível: “todo aquele que tocar um morto... e não se
purificar... será eliminado de Israel “ (Números
19,11).” Durante seis dias far-se-á o trabalho, mas o
sétimo dia será para vós um dia santo. . . Todo
aquele que trabalhar nesse dia será punido com a
morte “ (Êxodo, 3, 5, 1) — assim como no Novo
Testamento, o povo judeu misturava a lei do lahweh
com suas próprias ideias, o mesmo fenô- meno
acontecendo no cristianismo; Deus não foi bem
entendido, tanto em um, como em outro, e a maioria
das pessoas via-o censurador e intransigente. Tal
con-

4
cepção de vida não foi considerada com muito entu- filosofia; Sartre, na literatura.
siasmo pelo mundo, em geral, sofrendo grande No livro dos Salmos, em sua maior parte
rejeição pelas pessoas mais equilibradas. atribuído a Davi (73 salmos), notamos com grande
A ciência lida com a realidade e esta última iden- clareza a filo- sofia de vida do povo judeu. Basta este
tifica-se com Deus — de maneira que estamos chegan- trecho inicial:
do à uma era muito feliz da humanidade, podendo ter
um conhecimento e contato com quem é o verdadeiro
Criador. Ainda hoje, depois de tantos anos, o judaísmo Salmo 1 — Os Dois Caminhos
continua na “crista da onda”, como se diz — e, verifi-
cando-se o motivo, encontraremos a explicação em 1. Feliz o homem que
sua concepção de vida; enquanto outras nações até não segue o conselho dos ímpios,
desapa- receram da face da terra, este povo conserva não pára no caminho dos
uma união de propósito e interesses incríveis. Se o pecadores, nem se assenta na roda
judaísmo e o cristianismo sobreviveram às piores dos
crises, é porque possuem uma constituição mais [zombadores.
verdadeira que todos os outros sistemas de vida. 4. Não são assim os ímpios! Não são
Gostaria de dar alguns exemplos: o primeiro [assim!
dos Livros Poéticos e Sapienciais trata da vida de Jó, Pelo contrário:
um homem amoroso a Deus, que o demônio tentou, São como a palha que o vento
de toda maneira, demover disso (com permissão de [dispersa...
lahweh), levando-o a perder sucessivamente tudo o Por isso os ímpios não ficarão de pé no
que tinha: fazendas, filhos e mulheres, apresentando [Julgamento,
finalmente o próprio corpo coberto de feridas. Apesar Nem os pecadores no conselho dos
disto, sempre dizia: Justos.

“Nu saí do ventre de minha mãe


e nu voltarei para lá.
O leitor poderá notar como havia uma noção de
lahweh o deu, lahweh o tirou,
perigo em relação à consciência — como indica o ver-
bendito seja o nome de
so número um (não pára no caminho dos pecadores),
lahweh.”
dando-nos a entender que o contato com o erro seria
um prejuízo. Aliás, nas leis do Pentateuco (Torá), for-
(Jó, 1,21)
necidas por Moisés, existe o mesmo engano — a pon-
to de Cristo, mais tarde, ter dito que não veio para os
Vendo que nada tirava Jó de seu amor a Deus, o
bons, mas para os pecadores (Mateus, cap. 8, vers. 13).
demônio desistiu de tal intento — e lahweh concedeu
É necessário ver mais o espírito de um fenômeno,
a Jó, novamente, tudo o que havia perdido, em dobro:
prin-
filhos e filhas, propriedades e esposas.
Uma série de percepções poderemos retirar de
tal fato: a) Deus é o Senhor de todas as riquezas; b)
quer seus filhos usufruindo do que criou; c) doenças e
dificuldades existem em pessoas que se opõem à ver-
dade e ao bem (ao Criador) — uma maneira de pensar,
de acordo com as descobertas de Taciano no século II
(d.C.) e aceita pela maioria dos pensadores posteriores
(malum, privatio boni, ou seja, “o mal é a privação
ao bem”). É por este motivo que, até hoje, os judeus
têm sucesso em quase todos os setores da existência:
Mendelssohn, na música; Einstein, Freud, nas ciên-
cias; Karl Marx na sociologia; Husserl e Bergson, na

4

4
O leitor poderá notar neste trecho um altíssimo
nível de compreensão psíquica — mostrando-nos uma
sabedoria que ultrapassa o conhecimento comum de
um povo. Os judeus tiveram contato com civilizações
antigas (assim como os gregos), que lhe transmitiram
incríveis conhecimentos. Por exemplo: o autor da Sa-
bedoria viveu em Alexandria, sendo um judeu
heleniza- do; não era nem exclusivamente filósofo
nem teólogo, mas um sábio — que é uma união entre
o pensamento e o sentimento. Notem estes escritos:

A Sabedoria é radiante, não fenece,


facilmente é contemplada por aqueles
que
[a amam
e se deixa encontrar por aqueles que a
[buscam.
(Sabedoria, 6,12)

Rei Salomão
cipalmente no livro “inspirado por Deus” (como falam A vida segundo os ímpios.
sobre a Bíblia), para reconhecer sua verdadeira mensa-
gem — e esse aspecto só está sendo possível analisar Que nossa força seja a lei da justiça,
agora, com o desenvolvimento da ciência trilógica. pois o fraco, com certeza, é inútil.
Gostaria agora de mostrar alguns provérbios de Cerquemos o justo, porque nos
Salomão que, como diz o histórico, pediu sabedoria incomoda e se opõe às nossas ações...
a lahweh (e não riquezas, ou uma vida longa), sendo
agraciado de tal modo que, “nem antes, ou depois Assim raciocinam, mas se enganam
dele, houve quem fosse mais sábio”: porque sua maldade os cega.
Eles ignoram os segredos de Deus,
não esperam o prêmio pela santidade,
O Insolente e o Sábio não crêem na recompensa das vidas puras.
Quem corrige o insolente atrai insultos, (Sabedoria, Cap. 2, Vers. 11, 12, 21,
quem repreende o ímpio, desonra, 22)
Não repreendas o insolente porque te
[odiará, A vida dos justos está nas mãos de Deus,
repreendas o sábio e ele te agradecerá. nenhum tormento os atingirá.
Dá ao sábio e será mais sábio, Aos olhos dos insensatos pareceram
ensina o justo e aprenderá ainda mais. [morrer;
Se fores sábio, o serás para o teu Sua partida foi tida como uma desgraça,
proveito; se te tornas insolente, somente tu sua viagem para longe de nós como um
o [aniquilamento,
[pagarás. mas eles estão em paz.
Mas os ímpios serão castigados segundo
[os seus raciocínios;
desprezaram o justo e se afastaram do
[Senhor.

4
(Sabedoria, Cap. 3, Vers. 1.3.10)

4
Vemos com certa facilidade uma união da filosofia Contra a Hipocrisia
grega antiga com uma concepção de vida espiritual. Basta de trazer-me oferendas vãs:
Foi por este motivo que, mais tarde, os cristãos elas são para mim um incenso abominável.
encontra- ram uma grande relação entre o que Cristo ...
falou e o pensamento filosófico. Tenho a impressão de não posso suportar iniqüidade e
que a ver- dade (racional) constitui um tipo de [solenidade!
encontro do indi- víduo com a realidade podendo As vossas luas novas e as vossas festas,
depois ser completado pela ciência, que realiza o a minha alma as detesta:
fecho geral, pela junção do pensamento com o elas são para mim um fardo.
sentimento (através da conscienti- zação). É ...
impossível compreender o cristianismo sem o ainda quando multipliqueis a oração
judaísmo — assim como não é possível captar uma Não vos ouvirei.
verdadeira espiritualidade sem a percepção dos dois ...
— o mesmo fenômeno podemos distinguir entre Cessai de praticar o mal,
teologia, filosofia e ciência: esta última não pode aprendei a fazer o bem!
existir sem o sentimento (amor) e a verdade (o verbo) Buscai o direito, corrigi o opressor!
reunidos, por- que é simplesmente a consciência Fazei justiça ao órfão, defendei a causa
desses dois anterio- res; isto é o que eu chamo de da viúva!
Trilogia Analítica. (lsaías, Cap. 1, 10, 13, 14, 15, 16, 17)
Notamos que as duas forças mais poderosas da
hu- manidade são o cristianismo e o judaísmo —
podería- mos ainda incluir o islamismo, criado por
Maomé, que reuniu ideias cristãs, judaicas e orientais.
Mesmo que tenha havido restrição e incompreensão à
Mensagem de Cristo, à medida que ela for sendo
desvendada (em sua realidade), toda a Terra será
inundada por um senti- mento de ternura e paz.
Israel teve um grande número de profetas, sen-
do os mais importantes lsaías, Jeremias, Ezequiel e os
profetas posteriores. Moisés é considerado o maior de
todos, por ter conhecido lahweh face a face. E o assun-
to básico de todos foi o monoteísmo (em oposição ao
politeísmo dos outros povos), o valor moral da
conduta (certa) e a ideia da salvação.

Isaías (765 a.C.)


É considerado herói nacional e um poeta genial;
tem uma ideia triunfal de Deus. Notem a incrível filo-
sofia de vida de Isaías, quando mostrou a situação de
Israel, que é exatamente a nossa:

Ouvi, ó céus, presta atenção, ó terra,


porque lahweh está falando:
Criei filhos e fi-los crescer,
mas eles se rebelaram contra mim.
(lsaías, cap. 1, 2)
Isaías

4
O grande profeta fez uma descrição perfeita do
fenômeno moderno da neurose, que a Trilogia Analí-
tica descobriu que reside basicamente no afastamento
ao Criador, devido ao desejo do ser humano de ser ele
mesmo um deus (teomania). A partir deste fato, lsaías
mostrou todo o desastre por que vem passando a hu-
manidade, devido à atitude desonesta de rezar (chamar
pelo nome do Senhor) e, ao mesmo tempo, praticar a
injustiça, roubar, explorar e agredir o próximo —
como se tivesse feito um verdadeiro tratado de
psicopatologia.

Jeremias (630 a.C.)


Este grande profeta viu o aspecto interior do ho-
mem: Deus sonda os rins e os corações (11,20);
retribui a cada um segundo seus atos (31, 29-30); a
amizade com Deus (2,2) rompe-se pelo pecado, que
provém do coração mau (4,4; 17,9; 18,12). O leitor
poderá notar imediatamente a honestidade do profeta,
a sua capacida- de psicológica, como se fosse o
famoso filósofo grego Sócrates falando. As famosas
lamentações de Jeremias revelam o alto conhecimento
que tinha da alma humana. Jeremias abordou como
tema principal o afasta-
mento do ser humano do Criador.

Ouvi isto
Povo insensato e sem inteligência:
Eles têm olhos mas não vêem,
tem ouvidos mas não ouvem.
(Jeremias, Cap. 5, vers. 21)

O profeta mostra claramente o problema da teoma-


nia ou da megalomania e as consequências funestas
que acarreta.

O coração é falso como ninguém,


ele é incorrigível; quem poderá
[conhecê-lo?

Eu, lahweh, perscruto o coração,


sondo os rins,
para retribuir ao homem
conforme o seu caminho,
conforme o fruto de suas obras.
(Jeremias, Cap. 17, vers.
9,10)
4
Jeremias

5
Notem a atenção que o profeta concede à consciência, uma estátua, que tinha a cabeça de ouro, o peito e os
mostrando-a como uma ligação direta com o Criador.

Ezequiel
Este profeta era um sacerdote que se preocupa-
va com a pureza do Templo; de outro lado, era muito
visionário e imaginativo, quando descreveu os quatro
animais do carro de lahweh, a sarabanda cultural, a
pla- nície dos ossos que se reanimam, etc.. No começo
de seu livro, Ezequiel se mostra extremamente
censurador, ameaçando o povo eleito; na segunda
parte, lança mal- dição aos infiéis; somente depois
consola os israelitas, prevendo o seu restabelecimento
futuro na Palestina. No capítulo 20, discorre sobre o
afastamento do Cria- dor — em uma atitude de
desobediência pura e simples, sem necessidade
alguma, a não ser uma grave teomania, megalomania e
inveja à lahweh. Este comportamento continua até
hoje, tendo o cristianismo desviado a aten- ção mais
ainda para uma questão de concupiscência,
desprezando o aspecto orgânico (físico) do ser
humano, naquilo que eu denominei de platonismo.
Qualquer pessoa poderá notar que a grande men-
sagem judaica é a do estabelecimento do Reino de
Deus sobre a Terra. Para chegar a isso, pensavam na
vinda de um rei poderoso (materialmente), que
reuniria todas as nações sob seu poder social (político
e econômico)
— não havia ainda a noção sobre a maior de todas as
forças: a espiritual, que está surgindo de forma avassa-
ladora atualmente, porque o Criador é Puro Espírito e
é o espírito que dirige tudo.
Quando Cristo mostrou que o seu reino não era
deste mundo, quis dizer que não era rei de um império
apenas humano — mas de tudo o que existe, anjos, ho-
mens e galáxias, muito mais amplo do que um grupo
de países em um só planeta. Só muito tempo depois,
ou melhor, após o período Antigo e o Medieval é que
estamos tendo condições de entender melhor o Cria-
dor — eliminando nossas ideias patológicas (censura,
repressão), que colocamos nele. O mesmo Deus dos
ju- deus é o dos cristãos, dos cientistas e de todos os
povos, religiões, raças e pessoas.
Existem ainda Baruch e Daniel, que os israelitas
não consideram dentro de seus livros sagrados. Daniel
tornou-se famoso pelas desavenças com Nabucodono-
sor. Conseguiu interpretar o sonho do rei, onde havia

5
Oséias era um profeta psicólogo: ensinou uma
ati- tude de convicção, inspirada na vida afetiva;
fustigou as

Ezequiel

braços de prata, o ventre e as coxas de bronze, as


pernas de ferro e os pés de ferro e argila,
prenunciando o fim de seu império, por causa de
um reino que jamais se- ria destruído —
provavelmente, o de lahweh (judaico- cristão). Mais
tarde, os companheiros de Daniel foram colocados
em uma fornalha, nada lhes acontecendo e, o
próprio profeta, atirado em uma cova com leões fa-
mintos, saiu ileso. São imagens sobre a perenidade
das pessoas que aceitam a verdade.
Baruch foi secretário de Jeremias e combateu
os ídolos do seu tempo. Os doze profetas
posteriores fo- ram: Amós, Oséias, Miquéias,
Sofonias, Naum, Haba- cuc, Ageu, Zacarias,
Malaquias, Abdias, Joel e Jonas.
Amós era um pastor que deixou seu trabalho,
para denunciar (durante o reinado de Jeroboão), a
cor- rupção e as injustiças sociais. Por este motivo,
foi ex- pulso de Israel, retornando a sua ocupação
anterior; este é um fenômeno que acontece com
toda a pessoa que fale a verdade.

5
injustiças e violências; condenou ainda mais a rejeição uma era messiânica,
a lahweh (à verdade, ao bem e ao belo). Jeremias e o
Novo Testamento foram profundamente influenciados
por ele. Convém alertar o leitor para este fenômeno:
toda a cultura e civilização são provenientes da condu-
ta, principalmente daqueles que se voltam para a
verda- deira realidade interna, psicológica.
Miquéias fustiga os ricos açambarcadores, os
credores sem compaixão, os comerciantes fraudu-
lentos, as famílias divididas, os sacerdotes e profetas
gananciosos, os chefes tirânicos e os juízes venais;
exorta a prática da justiça, o amor misericordioso e
o procedimento humilde perante lahweh. Prenunciou
o nascimento de Cristo, do Rei pacífico (Cap. 5, ver.
1-5). O judaísmo é inseparável do cristianismo e, com
ele, forma a base de toda a espiritualidade moderna.
Sofonias mostra claramente que os desastres, que
acontecem em um país, são consequências da atitude
de desobediência do povo para com o Criador. Mateus
cita-o, ao dizer da atitude diabólica dos que praticam
a iniqüidade (Mateus, Cap. 13, vers. 41).
O povo escolhido sempre teve a intenção de
cons- truir na Terra o Reino de Deus, que só agora está
sendo possível haver, com o desenvolvimento da
verdadeira espiritualidade (que é bem diversa da
religiosidade). Na Idade Antiga, o judaísmo era a
forma de espiritualida- de mais elevada que existia e
que deveria seguir um desenvolvimento progressivo,
através do cristianismo. No entanto, o filho de Jeová
não foi aceito e o povo israelita deslocou-se no tempo
e espaço permanecendo em uma situação estranha
perante as outras nações. No momento em que, tanto
os judeus, como os cristãos (e as outras formas de
religiosidade) passarem de uma ati- tude ritual, para
outra interna, isto é, de interiorização, vendo o Criador
através do sentimento de amor e da verdade que
existem no próprio interior, será possível a realização
do Reino de Deus na Terra.
Naum retorna ao mesmo tema do profeta ante-
rior, mostrando o poder de Deus sobre Israel e todos
os povos (Naum, Cap. 3, vers. 1-7). Habacuc afirma
que Deus onipotente prepara a vitória final do direito e
o justo viverá por sua fidelidade (à realidade, dizemos
nós) (Habacuc, Cap. 2, Vers. 4). Ageu e Zacarias usam
mais de uma linguagem de consolação; este último
anuncia a vinda de um Rei Messias, humilde e
pacífico (Zacarias, Cap. 9, vers. 9-10). Malaquias
lembra Oséias ao se referir à necessidade de uma
religião interior (es- piritualidade); fala do advento de

5
que culminará no sacrifício perfeito (Malaquias,
Cap. 1, vers.11). Abdias exalta a justiça e o poder
de lahweh. Joel foi chamado por Pedro o profeta do
Pentecostes (Atos, cap. 2, vers. 16-21). Jonas é o
mais estranho en- tre todos, usando um estilo
jocoso, para falar de seu relacionamento com
lahweh. O grande valor de seu tra- balho foi o de
esclarecer a igualdade de todos os ho- mens perante
Deus, ao mostrar a atitude agradável dos
marinheiros do navio (que sofreu um naufrágio),
per- manecendo depois de três dias na barriga de
um peixe monstruoso — imagem que Cristo usou,
para designar os três dias de sepultamento, antes
que subisse ao céu com o próprio corpo. (Mateus,
Cap. 22, vers. 4).
Por este final, é possível notar que havia uma
pas- sagem perfeita entre o judaísmo e o
cristianismo, assim como, no momento, a Trilogia
Analítica vê a unidade que existe entre o campo da
Teologia (sentimento) e da filosofia (verdade) na
consciência de todos os povos — e qualquer
desunião é proveniente da rejeição ao amor.

Profeta Daniel

5
Capítulo
9

Jesus Cristo

A DESCIDA
DA SEGUNDA PESSOA
DA TRINDADE À
TERRA: O VERBO, JESUS
CRISTO
Pietá de Michelangelo

constitui a etio- logia das moléstias. Todas as pessoas


N o princípio era o Verbo e o Verbo estava com
Deus e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por meio dele
que o aceitarem,

e sem
ele nada seria feito. Nele estava a vida e a vida era a
luz dos homens e a luz brilha nas trevas, mas as trevas
não a apreenderam (compreenderam).
Ele estava no mundo e o mundo foi feito por
meio dele, mas o mundo não o conheceu. Deu a todos
os que o receberam o poder de se tornarem filhos de
Deus: aos que creem em seu nome, que não nasceram
do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade
do homem, mas de Deus.
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós; e nós
vimos a sua glória, como a glória do Unigênito do Pai,
cheio de graça e de verdade (João, Cap. 1, vers. 1, 3,
4,
5, 10, 12, 13, 14).
O evangelista indicou-nos que Cristo não só es-
tava em Deus, mas era também Deus — tendo criado
tudo o que existe; portanto, a essência da própria vida,
que é Luz — e nós não o aceitamos, por termos
fechado os olhos, caindo nas trevas. Tal atitude
5
isto é, que admitirem a luz, a verdade, o bem e o
belo, tornar-se-ão filhos de Deus — o que advém
pela acei- tação de tal consciência, que é a
verdadeira espirituali- dade. Termina o evangelista
afirmando que nós vimos a glória de Cristo, o Filho
Unigênito de Deus — e que ninguém pode ter a
desculpa de dizer que não o sabe — pois o
fenômeno da Trindade Santíssima repete-se no ser
humano, tendo-o entranhado em sua vida psíquica.

Anunciação
O anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma
cidade da Galiléia, chamada Nazaré, para anunciar
à uma vir- gem que ela iria ser mãe do Filho do
Altíssimo. Maria falou: — Como é que irá ser isso,
se eu não conheço ho- mem algum? O anjo
respondeu-lhe: — O Espírito Santo virá sobre ti e o
poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra, por
isso o Santo que nascer será chamado Filho de
Deus. Disse Maria: — Eu sou a serva do Senhor; faça-
se em mim segundo a tua palavra. E o anjo retirou-
se.

5
A Anunciação, de Peter Paul Rubens

É fácil notar o trabalho de co-redentora realizado


pela mãe de Cristo que, sendo um ser humano alto e mostrando-lhe todos os reinos do mundo com o
(descen- dente da casa de Davi), colocou-se à inteira seu esplendor, disse-lhe: — Tudo isto te darei se, pros-
disposição do Criador, para que toda a humanidade trado, me adorares. Aí, Jesus lhe ordenou: — Vai-te
terrestre fosse salva — não apenas em seu sentido Sa- tanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus
eterno, mas nesta própria vida terrena. Sabemos que as adorarás e a ele só prestarás culto. Com isto, o diabo o
grandes realiza- ções e o progresso foram oriundos deixou e os anjos se aproximaram para servi-lo
quase inteiramen- te dos povos banhados pela Boa (Mateus, Cap. 4, vers. 1 a 11).
Nova (Lucas, Cap. 1, Vers. 26, 27, 31, 34, 35, 38). Esta atitude de Cristo denuncia o pacto da huma-
nidade com o erro, a vaidade, a mentira e a megaloma-
nia: a) ao valorizar quase que inteiramente o material
A Tentação (o pão), afastando-se do principal, o espiritual (a pa-
lavra de Deus); b) ao induzir o próximo à teomania,
Cristo dirigiu-se ao deserto, jejuando por sugerindo-lhe que faça o que quiser e nada lhe aconte-
quarenta dias. Aproximou-se dele o tentador e disse: cerá (atirar-se do alto do Templo); c) e principalmente
— Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se a ideia invertida de que toda a riqueza e esplendor
transformem em pães. Ao que o Salvador respondeu: per- tenceriam ao mal, ao demônio — espírito
— Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra esquizofrê- nico, pobre, projetivo e agressivo, que
que sai da boca de Deus. desprezou toda glória e poder do Criador, por causa da
Em seguida, o demônio o levou à Cidade Santa, inveja. De outro lado, tal acontecimento esclarece-nos
colocou-o no cimo do Templo e disse-lhe: — Se és Fi- qual é a atitude dos espíritos malignos: a) primeiro, ao
lho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: assumirem uma conduta só de crítica aos outros; b)
Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito e eles te segundo, de acentu- ada inveja (sugerindo que Cristo
tomarão pelas mãos, para que não tropeces em alguma era o príncipe de Deus Pai, que cuidaria com todo
pedra. Respondeu-lhe Cristo: — Também está escrito: desvelo, para que não se machucasse); c) terceiro:
— Não tentarás ao Senhor teu Deus. uma ousadia e falta de respei- to incríveis, ao querer a
Novamente, satanás levou-o a um monte muito adoração do próprio Deus; d) deslavadas mentiras, ao
dizer que o mundo seria sua obra, esquecendo que não

5
tem poder algum de criação

5
As Bem-Aventuranças
Cristo subiu a uma elevação e pôs-se a ensinar,
dizendo:

Bem-aventurados os pobres em
espírito, porque deles é o Reino dos
Céus.
Bem-aventurados os mansos,
porque herdarão a terra.
Bem-aventurados os
aflitos, porque serão
consolados,

Bem-aventurados os que têm fome


Galilee, Delacroix
e sede de justiça,
— só de destruição. O que eu acho interessante é que a porque serão saciados.
maior parte dos seres humanos endossou tal tese Bem-aventurados os misericordiosos,
demo- níaca, a ponto de Goethe ter escrito um porque alcançarão misericórdia.
romance, onde narra os benefícios que um homem Bem-aventurados os puros de coração,
encontrou, após vender sua alma ao diabo (Fausto). porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a
Acredito que a maior lição do Filho de Deus foi paz. porque serão chamados filhos de
sobre o modo que deveríamos tratar o demo: a) obser- Deus.
vando sua teomania, megalomania e mentira; b) cons- Bem-aventurados os que são perseguidos
cientizar que ele jamais nos poderá dar qualquer coisa por causa da justiça,
de bom — mesmo que ele acredite nisso; c) afastá-lo porque deles é o Reino dos Céus
energicamente, desde que fomos escolhidos pelo Cria-
dor, como seus filhos — e o chamado Príncipe deste Bem-aventurados sois, quando vos injuria-
mundo é apenas um grave doente mental, que julga ser rem e perseguirem e, mentindo, disserem
poderoso e bom, como só Deus pode ser. todo o mal contra vós por causa de mim.
Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será
grande a vossa recompensa nos céus, pois
foi assim que perseguiram os profetas,
que vieram antes de vós (Mateus, cap. 5,
vers. 1 a 12).

Este trecho constitui uma explicação perfeita de


todo o cristianismo: os pobres em espírito são as pes-
soas que têm mais apego ao espiritual, colocando o
material em plano secundário; os mansos, os aflitos, os
que procuram a justiça, os misericordiosos, puros de
coração, pacíficos, os que são perseguidos e
injuriados, por defenderem a verdade, o bem e o belo,
são as cria- turas amadas por Deus, porque aceitaram a
Cristo condição de filhos eleitos — colocando-se em

5
oposição ao chamado Reino dos Homens, onde
cada indivíduo quer impor to- dos os seus desejos,
contra toda justiça e amor.

5
Promulgação do Reino de Deus cuidado com os falsos profetas porque estão disfarçados
de ovelhas e
Cristo falou claramente que as pessoas boas (es-
piritualizadas) são o sal da terra e a luz do mundo, que
não se deve escondê-las debaixo de um móvel, mas
dei- xar que brilhem para todos os homens, a fim de
que glorifiquem o Pai que está nos céus (Mateus, Cap.
5, vers. 13 a 16). Depois mostrou que o cristianismo é
uma continuação do judaísmo, ao dizer que não veio
revogar a Lei e os Profetas, mas dar-lhes pleno
cumpri- mento (Mateus, cap. 5, vers. 17). Porém,
deixou claro que a nova justiça (que apresentou) era
superior à anti- ga, substituindo o “olho por olho,
dente por dente”, por uma atitude de grande caridade,
devendo-se amar até os inimigos — para alcançarmos
a perfeição, à semelhan- ça do Pai Celeste (Mateus,
Cap. 5, vers. 38, 43, 48).
O Verbo Divino referiu-se à necessidade de agir
com amor e não pelas aparências, tanto ao realizar
algum bem ao próximo (dar esmolas), como ao orar,
fazendo-o ocultamente; mas, acima de tudo, recomen-
dava o perdão, como única forma de também sermos
perdoados pelos nossos delitos (Mateus, cap. 6, vers.
1, 4, 14, 15). A conduta mais importante de todas é a
de acumular tesouros no céu, onde nenhum ladrão po-
derá roubar; Cristo mostrou o valor da consciência, ao
dizer que os olhos são a lâmpada: se eles forem
correta- mente usados, toda a pessoa ficará iluminada
(aceitação da consciência) — caso contrário, cairemos
nas trevas (alienação): advertiu ainda que ninguém
pode servir a dois senhores: ou atende a Deus, ou ao
que é mau ( Ma- teus, cap. 7, vers. 19, 20, 22, 23, 24).
Uma das revela- ções mais incríveis foi o cuidado que
Deus tem conos- co, ao explicar que os lírios do
campo não tecem e nem fiam, porém nem Salomão
com todo o seu esplendor se vestiu como um deles;
aconselhou a procurar, em pri- meiro lugar, o Reino de
Deus (a justiça) e todo o resto nos será dado. (Mateus,
Cap. 6, vers. 28, 29, 33).
Cristo fez um estudo perfeito sobre a psicopato-
logia, quando discorreu sobre a atitude do hipócrita,
ao pretender tirar o cisco do olho do irmão, tendo ele
mesmo uma trave no seu — recomendando para não
atirar pérolas aos porcos, para que eles não as pisem e
se voltem contra vós, estraçalhando-vos. Diz para en-
trar pela porta estreita, isto é, para viver a realidade
que parece pequena e acanhada — enquanto a
fantasia dá a impressão de total largueza; deu-nos a
mais perfeita lição de psicologia ao falar para tomar
5
por dentro são lobos ferozes e, para saber o que é dependência. Quando o tempo tiver passado, seremos
uma pessoa, basta ver o que ela faz, pois uma semelhantes aos anjos, dotados de um corpo
árvore boa dá bons frutos. Assim sendo, não imperecível, radioso e transpor- tável para qualquer
adianta clamar pelo Senhor, mas fazer a vontade do região do espaço, inundado pelo amor e verdade
Pai (de Deus) que está no céu; todos os que ouvem infinitos de Deus. Ao ser criticado por
a verdade e a põem em prática são semelhantes ao
homem que construiu sua casa sobre a rocha:
vieram os ventos e as tempestades e nada lhe
aconteceu (Mateus, Cap. 7, vers. 3, 4, 6, 13,
15, 18, 21, 24).

A Pregação do Reino de Deus


Cristo curou inúmeras pessoas de uma maneira
in- crível, para provar sua origem divina. Por
exemplo: es- tendeu a mão a um leproso, curando-o
instantaneamen- te; tirou as dores atrozes do criado
de um centurião; foi até a casa de Pedro, eliminando
a febre da sogra deste; ao entardecer do mesmo dia,
curou todos os enfermos que vieram procurá-lo
(Mateus, Cap. 8, vers.3, 6, 13,
14, 15, 16).
Uma das indicações mais perfeitas do que seja
o Reino do Céu foi a resposta que ele deu a um
escriba:
— Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus
mor- tos (Mateus Cap. 8, vers. 22) — esclarecendo
que Deus é a vida, a beleza, a maravilha e só ele
deve ser procu- rado. Logo em seguida, vemos o
Filho de Deus dormin- do tranquilamente, dentro de
uma barca, durante forte tempestade — bem ao
contrário do indivíduo acentua- damente neurótico,
que cria uma tempestade dentro de um copo de
água ( Mateus, Cap. 8, vers. 24). Uma das cenas
mais significantes foi quando dois endemoniados se
aproximaram dele, dizendo: — Que existe entre nós
e ti, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar
antes do tempo? Eles projetavam na pessoa de
Cristo todo o tormento que se fizeram —
exatamente como faz o doente mental mais grave ao
recusar , omitir ou detur- par o bem e a verdade.
(Mateus, cap. 8, vers. 29).
Certo dia, Cristo foi para Cafarnaum e, quando
lhe trouxeram um paralítico deitado no catre, disse-
lhe: — Tem ânimo, meu filho; os teus pecados te
são perdoados — querendo mostrar a todos a
importância fundamental do aspecto psíquico
(espiritual), inclusi- ve colocando o físico sob sua

5
estar participando de uma refeição com os publicanos ele diante dos homens, ele também se declarará por tal
e pecadores, Cristo avisou que não são os que têm pessoa diante do Pai que está nos Céus; não veio para
saúde, que precisam do médico, mas sim os doentes, trazer a paz à Terra, mas a espada, dividindo o homem
completando: — Eu não quero sacrifício e sim mise- e seu pai, a filha e sua mãe, a nora e sua sogra — os
ricórdia; não vim chamar os justos, mas os pecadores. ini- migos do homem são os seus próprios familiares.
Não é difícil notar aqui sua ironia, ao dar a entender Não é difícil notar que a verdade, o bem e a beleza são
que estaria chamando justamente os fariseus de san- muito mais importantes do que o relacionamento
tos. Aliás, deixou mais claro o seu pensamento, quan- familiar que, em sua maioria, constitui um pacto de
do respondeu-lhes que seus discípulos não jejuavam, alienação contra a realidade — na psicoterapia vê-se
porque não estavam de luto — e pessoa alguma coloca que a maior parte das pessoas se une para combater a
vinho novo em odre velho, para não o estourar; ele consciência (Ma- teus Cap. 10, vers. 7, 17, 24, 32, 34,
trazia algo excepcional para a humanidade, que não 35, 36, 37).
poderia ser misturada com qualquer outra coisa (Ma-
teus, Cap. 9, vers. 2, 11, 13, 15, 17).
Cristo agia como o mais incrível terapeuta, seja
no aspecto orgânico, mas principalmente no O Mistério do Reino do Céu
psicológico; ressuscitou a filha de um dos chefes daquela
região, ten- do espontaneamente curado uma O Reino do Céu sofre violência dos que querem
hemorroíssa; restituiu a visão para dois cegos e entrar e os violentos se apoderam dele; está evidente
expulsou o demônio de um mudo, que voltou a falar aqui o sentido que Cristo deu à violência: algo que
(Mateus, Cap. 9, vers. 18, 20, 21, 29, 33). Chamou exi- ge pulso e coragem, pois o Criador gosta dos
muitos discípulos, anunciando que o Reino dos Céus corajosos. Depois, esclarece que somente os
estaria próximo, não sem antes haver grande indivíduos simples têm melhor conhecimento de Deus,
perseguição, por causa do nome de Deus; o dis- cípulo porque possuem a chave da sabedoria. E os que
poderá se tornar um mestre e o servo um senhor, escolherem a ele sentir-se- ão tranquilos, porque o seu
porque é necessário revelar a verdade à luz do dia e do jugo é suave e o seu fardo leve — mostrando aqui uma
alto dos telhados, pois nada há de encoberto que não das mais incríveis mani- festações do amor, que só
venha a ser revelado. Todo aquele que se declarar por uma divindade poderia ter, ao dizer que nós é que
suportaríamos quem verdadeira- mente nos suporta e
sustém. Cristo fala claramente que ele é maior do que
o Templo e o sábado, por ser o Filho de Deus (a
Segunda Pessoa da Trindade); prova isso ao curar
instantaneamente a mão atrofiada de um homem na
sinagoga e a doença de muitos que o seguiram — no
entanto, os fariseus tomados pela inveja e ódio trama-
ram a sua morte (Mateus, Cap. 11, vers. 12, 25, 30 e
Cap. 12, vers. 6, 10, 14).
Ao curar um endemoninhado cego e mudo, os
fariseus disseram que ele expulsava os demônios por
Belzebu; sabendo seus pensamentos, Cristo
respondeu- lhes que, se Satanás está dividido contra si
mesmo, não poderá subsistir — mas se é pelo Espírito
de Deus que ele expulsa os demônios, o Reino de
Deus já chegou a vós. Neste momento, lembrou que se
alguém for contra o Espírito Santo, não será perdoado,
nem neste mundo, nem no vindouro — porque seria
negar a própria cons- ciência, a percepção do evidente,
do óbvio. Disse ainda que a boca fala daquilo que o
coração está cheio, pois pelas próprias palavras
Evangelistas seremos justificados, ou conde- nados. Todo aquele
5
que fizer a vontade de meu Pai que está nos Céus,
esse é meu irmão, irmã e mãe (Mateus,

5
Cap. 12, vers. 22, 24, 26, 28, 31, 34, 50). Notem a riqueza, por um punhado de miçangas e refugos — um
união que Cristo fazia entre ciência (psicologia), processo bastante incons-
filosofia e teologia: uma pessoa, ou entidade não
persiste, se está dividida; quem nega o óbvio à sua
consciência jamais poderá chegar a alguma coisa; e a
ciência e o coração (afeto) é que produzem uma
maneira de pensar: correta, através do amor, e falsa e
mentirosa, se predominarem a inveja e o ódio.
O Filho de Jeová falava muito através de pará-
bolas porque era um ser eminentemente espiritual — e
só as pessoas espiritualizadas podem captar bem toda
a extensão de seus discursos. O exemplo mais frisante
foi a parábola do semeador: uma parte das sementes
caiu à beira do caminho e as aves vieram e comeram;
outra parte caiu em lugares pedregosos onde não havia
muita terra — logo brotou, mas, ao surgir o sol,
queimou-se; uma terceira parte caiu entre os espinhos,
que cresce- ram e a abafaram; e finalmente uma quarta
parte caiu em terra boa e produziu fruto à razão de
cem, sessenta e trinta por um. Explicação: o que ouve
a palavra do Reino de Deus e não a entende, aceita
facilmente a insi- nuação do Maligno, que arrebata o
que foi semeado no seu coração; os lugares
pedregosos são as atribulações que surgem e as
pessoas se permitem sucumbir; os es- pinhos são os
cuidados do mundo e a riqueza pela qual muitos se
deixam seduzir. Finalmente, a terra boa é o indivíduo
que aceita ao Criador (Mateus, Cap. 13, vers. 4,5,
6,7,19,20,21,22,23).
Para chegar ao Reino dos Céus é necessária a
con- vivência com a percepção dos erros — fenômeno
relata- do em sua parábola do joio, que foi semeado no
meio do trigo, devendo-se esperar que cresçam juntos,
até a co- lheita, para então serem arrancados: o trigo
para ser apro- veitado e o joio para ser queimado. Na
Trilogia Analítica, dizemos que temos de conviver com
a consciência da pa- tologia, como único meio de
corrigi-la. Cristo falou ain- da que o Reino dos Céus é
como o grão de mostarda que, sendo a menor das
sementes, torna-se a maior de todas as árvores —
indicando aqui a grandeza da simplicidade, modéstia e
humildade que são o que de maior existe, pois o que
vem do Criador parece ser o que de menor existe
(Mateus, Cap. 13, vers. 25.30,31,32). O Reino dos
Céus está diante de nós, como uma pérola de grande
valor; ele é como uma grande pescaria, onde se
escolhe o que é bom — deitando-se fora o que não
presta. Notem os leitores como está clara aqui nossa
atitude de inversão, quando trocamos a verdadeira

6
cientizado, porque é ligado à atitude de inveja, ódio
e ciúme (Mateus, Cap. 13, vers. 45, 46, 47, 48).

Prelúdio do Reino dos Céus


Cristo dirigiu-se à sua cidade natal e pôs-se a
en- sinar aos que estavam na sinagoga, que o
criticavam (por inveja), dizendo que ele era o filho
do carpintei- ro — levando-o a citar Jó (Cap. 4,
vers. 44): “Não há profeta sem honra, exceto em
sua pátria e em sua casa”
— revelando o pacto de alienação que as famílias e
os grupos mais achegados realizam e a respectiva
neces- sidade de quebrá-lo, para que o ser humano e
a sua so- ciedade progridam. O Filho de Deus
alimentou cinco mil pessoas, usando apenas cinco
pães e dois peixes, para demonstrar sua enorme
riqueza. No mesmo dia, foi ao encontro dos seus
discípulos que haviam parti- do de barco e estavam
há vários estádios de distância; andava por sobre as
águas do mar, provocando gritos

José, Nossa Senhora e Menino Jesus

6
Cristo com discípulos

de medo; Pedro quis ir ao seu encontro (com sua au- sua filha endemoniada; diante da explicação de que
torização) mas começou a afundar, sendo repreendido: tinha sido enviado para a
— Homem fraco na fé, por que duvidaste? Mas, assim
que subiram no barco, o vento amainou e todos se
pros- traram diante dele, dizendo: —
Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus (Mateus, Cap.
14, vers. 54, 55, 57, 17,
21, 24, 25, 29, 31, 32, 33).
Cristo mostrou claramente que a pior de todas as
atitudes era a hipocrisia, lembrando o que lsaías falou
(Cap. .29, 13): “ este povo me honra com os lábios,
mas o coração está longe de mim; em vão me prestam
culto, pois o que ensinam são mandamentos
humanos”. Ele falou: “Não é o que entra pela boca que
torna o homem impuro, mas o que sai da boca, isto
sim o torna impuro”. “Toda planta que não foi
plantada por meu Pai celeste será arrancada. Deixai-os.
São cegos conduzindo cegos! Ora, se um cego conduz
outro cego, ambos acabarão caindo no abismo”. “Com
efeito, é do coração que pro- cedem as más intenções,
assassínios, adultérios, prosti- tuições, roubos, falsos
testemunhos e difamações”. Este trecho elucida a
necessidade de viver a verdadeira vida interior de
amor e verdade — não substituindo-a por desejos
desonestos; caso isto não seja feito, todo o res- tante
foi desnecessário (Mateus, Cap. 15, vers. 7, 8, 9,
11, 13, 14, 19). E é justamente esta atitude de
coerência e honestidade com a realidade o que mais
prende Deus ao ser humano no ato de fé (que é a
fidelidade com a verdade). Assim aconteceu na região
de Tiro e Sidô- nia, quando uma mulher cananéia
corria ao encalço de Cristo, implorando que curasse
6
casa de Israel, a mãe aflita continuou em sua atitude
de solicitação, sendo atendida: “Mulher, grande é a
tua fé! Seja feito como queres”. (Mateus, Cap. 15,
vers. 21, 22, 24, 25, 28). Este fato mostra que toda
pessoa é atendida, quando insiste com o Criador.
Cristo continuou curando coxos, cegos,
aleijados, mudos e outros doentes; novamente
alimentou mais quatro mil pessoas, com apenas sete
pães e alguns pei- xes. Repreendeu os fariseus e os
saduceus, que lhe pe- diam um sinal vindo do céu,
chamando-os de geração má e adúltera;
recomendou aos seus discípulos que se
acautelassem do fermento de tais pessoas.
Depois perguntou-lhes quem ele era e Pedro
res- pondeu-lhe: “Tu és o Messias, o Filho de Deus
Vivo”, levando Cristo a afirmar que fora o seu
próprio Pai quem fez tal revelação, indicando que
as forças do mal jamais poderiam prevalecer sobre
esta “pedra” de fir- meza. Acredito que a grande
comunidade (ekklesia, significa assembléia) de
Deus repousa na força de to- dos aqueles que são
fiéis à verdade, ao amor e ao bem, seja ele um
operário, estudante, profissional liberal, ou Papa.
Inclusive, a ligação com o Reino dos Céus é re-
alizada por essas pessoas (Mateus, Cap. 15, vers.
30, 34, 38; Cap. 16, vers. 1, 11, 13, 16, 18, 19). O
Verbo
Divino, logo em seguida, repreende Pedro,
chamando-o de Satanás, quando ele quis ir de
encontro aos seus pla- nos; por este dado, não é
difícil concluir que o apoio de Deus é só pela
verdade e bondade e não pelos erros — ele fala
claramente que virá na glória do seu Pai, com os
seus anjos, para retribuir a cada um de acordo com
o seu comportamento. Notem a questão da conduta,
que é

6
fundamental no processo psicopatológico (Mateus, profundo sobre Deus e a eternidade: os discípulos
cap. 16, vers. 23, 27), conforme têm provado as queriam saber quem seria maior no Reino
descobertas da Trilogia Analítica.
Seis dias depois Cristo foi com Pedro, Tiago e
João ao alto de uma elevação e transfigurou-se diante
deles: seu rosto resplandeceu como o sol, e a suas
vestes tor- naram-se alvas como a luz; uma nuvem
luminosa co- briu-os com sua sombra, e uma voz
disse: “Este é o meu Filho amado, em quem me
comprazo, ouvi-o sempre”. Os discípulos, muito
assustados, caíram com o rosto no chão. Este pequeno
prenúncio do que será a existência com Deus, levou
Pedro a dizer: “Senhor, é bom estar- mos aqui; se
queres, levantarei três tendas; uma para ti, outra para
Moisés e outra para Elias”. Aliás, assim deveria ser
nossa existência na terra, conforme expus
detalhadamente no livro A Glorificação; basta aceitar
a conscientização (do bem e dos erros que fazemos),
para que o Espírito de Deus habite novamente este
planeta (Mateus, cap. 17, vers. 1 2, 4, 5, 6). Ao
chegarem junto da multidão, um homem pediu que
curasse seu filho, já que os discípulos não o
conseguiram, levando Cristo a mostrar a atitude de
infidelidade dos que o acompa- nhavam: “Se tiverdes
fé como um grão de mostarda, direis a este monte:
transporta-te daqui para lá e ele se transportará e nada
vos será impossível”. Este deveria ser o
comportamento de todos nós, se não fizéssemos
oposição ao amor, à verdade e à beleza de que estamos
inundados; o Filho de Deus procurou sempre mostrar
que tudo é possível para o homem que se une ao seu
Criador — e que dificuldade alguma, do Reino Huma-
no, seria empecilho para os que o amam se desenvol-
verem com toda a sua capacidade e dons (Mateus,
Cap. 17, vers. 14, 15, 16, 20).
Gostaria agora que o leitor prestasse bem atenção
para este trecho: os coletores de imposto se aproxima-
ram de Pedro reclamando que Cristo não pagava a di-
dracma; este, reconhecendo o pensamento de seu
discí- pulo, perguntou-lhe: de quem recebem os reis da
terra tributos e impostos, dos seus filhos ou dos
estranhos? Como ele respondesse que era dos
estranhos, Cristo completou: “Logo, os filhos estão
isentos; mas, para que não os escandalizemos, vai ao
mar, joga o anzol, pega o primeiro peixe que subir,
abre sua boca e acharás aí um estáter, para pagá-los”.
Notem que atitude incrível do dono e criador de tudo o
que existe: pagar o que perten- ce a ele (Mateus, Cap.
17, vers. 24, 25, 26, 27). Estamos no trecho mais

6
dos Céus; Cristo chamou uma criança, colocou no “não separe o homem o que Deus uniu.” E acrescentou
meio deles e disse: “Se não mudardes e não vos que todo aquele que repudiar sua mulher exceto por
tornardes como as crianças, de modo algum motivo de fornicação — que, no sentido espiritual
entrareis no Reino dos Céus. Não desprezeis (psicológi- co), significa ausência, oposição ao amor
nenhum desses pequeninos, porque eu vos digo que — e procurar
os seus anjos nos céus veem continuamente a face
de meu Pai que está nos céus”. O Verbo de Deus o
tempo todo insistia na necessidade de ser simples
— ao contrário do que nos acostumamos a pensar
que o complexo seria o mais importante (Ma- teus,
Cap. 18, vers. 1, 2, 3, 10). Ao comparar seus elei-
tos a ovelhas, Cristo diz que nenhuma deve se
perder, como deseja o Pai que está nos céus. E
aconselha a cor- rigir os que erram, não apenas a
sós com ele, mas junto a outras pessoas e até em
assembléia, ou seja, os grupos que se dedicam ao
bem — tudo o que ligardes na terra será ligado no
céu e tudo quanto desligardes na terra será
desligado no céu; neste ponto, o leitor poderá ver o
contato que Deus estabelece com todas as pessoas
que o amam, fazendo através delas a ligação com o
mundo (Mateus, Cap. 18, vers. 12, 14, 15, 16). De
tal modo Deus está próximo que “bastam duas
pessoas, reunidas no mesmo propósito que,
qualquer coisa, que peçam, será concedida pelo Pai
que está no céus”. “Onde dois ou três estiverem
reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”
(Mateus, Cap. 18, vers. 19, 20). Como vemos, cada
ser humano tem o extremo privilégio de estar
elevado à mesma categoria de Cristo (O Filho de
Deus), diante do Pai. Mas, para que entremos no
Rei- no dos Céus, é necessário ter uma grande
capacidade de perdão — Cristo afirmou a Pedro
que dever-se-ia perdoar não apenas sete vezes, mas
setenta vezes sete, dando-nos a entender que não há
pessoa alguma imune ao pecado; temos que
desculpar aqueles que têm dívi- das conosco, para
que sejamos perdoados dos grandes erros que
cometemos com o Pai Celeste (Mateus, Cap. 18,
vers. 22, 35).

O Advento do Reino dos Céus


Este período começa com uma lição sobre a
vida afetiva, quando os fariseus perguntaram se era
lícito re- pudiar a própria mulher por qualquer
motivo que seja
— em uma atitude de total desprezo pela pessoa do
ou- tro — recebendo a seguinte resposta de Cristo:
6
outra, comete adultério, isto é, adultera, deturpa a ver- futura e de todos os que aceitam a vida, o belo, a bon-
dade, o bem, o amor. No entanto, tais palavras sempre
foram tomadas em seu significado social (casamento,
divórcio), distorcendo o seu aspecto real (afetivo).
Em seguida, o Filho de Deus exaltou uma exis-
tência de total continência dizendo que há eunucos
que nasceram assim, outros foram feitos pelos homens
e um terceiro grupo se faz eunuco por amor ao Rei-
no dos Céus. Pelas descobertas da Trilogia Analítica,
sabemos que a chamada vida sexual está muito mais
ligada à fantasia e imaginação e, aceitando uma séria
abstinência, a pessoa terá uma melhor vivência dentro
da realidade. De outro lado, Cristo avisou que seria
mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agu-
lha do que um rico entrar no Reino de Deus — enten-
dendo-se que este rico é aquele que vive em função do
dinheiro e não o indivíduo que o usa em proveito so-
cial — a riqueza, em si, é um bem (como tudo o que
exis- te), o seu modo de usá-la depende inteiramente da
atitude do homem (Mateus, Cap. 19, vers. 3, 6, 9, 12.
23).
Para entender melhor o Criador, temos de veri-
ficar que o Filho de Deus usou uma linguagem qua-
se rudimentar, como único meio de ser entendido.
Exemplificando: Pedro tomando a palavra perguntou:
“Nós que deixamos tudo e te seguimos, o que iremos
receber?” Pergunta incrível, pois demonstra que não
tinham a menor percepção de quem era aquele ser. Só
mais tarde, quando tomaram consciência no Cenáculo,
através do Espírito Santo, é que perceberam a dimen-
são de Cristo. O mesmo fenômeno permanece ainda
hoje, havendo premente necessidade de uma conscien-
tização geral (espiritualização), para que a humanida-
de acorde para esse maravilhoso universo divino, que
já existe aqui (Mateus, Cap. 19, vers. 27).
O Filho de Deus deu-nos a conhecer a existência
de um chamado constante do Criador por suas
criaturas, ao explicar aos discípulos que ao homem era
impossível a salvação, mas a Deus seria possível; que
muitos dos primeiros serão últimos e muitos dos
últimos, primei- ros; que ele pagaria o mesmo, tanto
aos que foram cha- mados na primeira hora, como os
que vieram na tercei- ra, na sexta e na undécima. No
entanto, jamais afirmou que as pessoas, que se
recusam ao chamamento, seriam admitidas no céu (
Mateus, Cap. 19, vers. 26 e 30, Cap. 20, vers. 2, 3, 4,
6). Em seguida, Cristo transmitiu-nos a mais
esperançosa, a mais bela de todas as mensagens ao
falar de sua ressurreição — como prenúncio da nossa

6
dade, procurando se assemelhar cada vez mais ao quando funcionários religiosos procuram impedir, a
seu Criador (Mateus, Cap. 20, vers. 19). todo custo, que o povo se relacione com o seu Criador
Notem agora um fenômeno que aconteceu — o Filho de Deus disse mais ainda, que os
naque- le tempo e continua hoje exatamente da publicanos e as prostitutas os precederiam no Reino
mesma forma: sabeis que os governadores das de Deus. Logo depois, relatou
nações os dominam e os grandes as tiranizam, mas
entre vós não deverá ser as- sim: aquele que quiser
tornar-se grande, seja aquele que serve — assim
como o Filho do Homem não veio para ser servido,
o que significa que o maior de todos os se- res,
Deus, é o que mais serve. Este fato tem um alcance
psicossocial incrível, pois elucida com grande
clareza o fenômeno do relacionamento humano, que
é baseado em um pacto de alienação: os que estão
em um cargo so- cialmente importante usam-no
para se aproveitar e agre- dir o semelhante,
enquanto que os seus subordinados os incensam,
“adorando” a fantasia em que vivem os seus
“superiores”. (Mateus, Cap. 20, vers. 25, 26, 28).
De- pois de restituir instantaneamente a visão aos
dois cegos de Jericó, Cristo montou em uma
jumenta e entrou em Jerusalém; a cidade inteira
agitou-se dizendo: este é o profeta Jesus, de Nazaré
da Galiléia. Depois, entrou no templo e expulsou
todos os compradores e vendedores, dizendo-lhes: a
minha casa é de oração e vós fazeis dela um covil
de ladrões. Depois, curou os cegos e coxos que se
aproximaram; ao ver tais prodígios, os sacerdo- tes
e escribas ficaram indignados — fechando os olhos
de inveja e impedindo a consciência de enxergar
que estavam diante do próprio Deus. Este é o
grande erro da humanidade, que o Filho de Deus
chamou de pecado contra o Espírito Santo, isto é,
fechar os olhos, negar, omitir, ou deturpar o que é
óbvio, evidente, a verdade, a realidade, o Criador.
Aliás, na manhã seguinte, Cristo sentiu fome e
dirigiu-se a uma figueira à beira do cami- nho, mas,
não encontrando fruta alguma, secou a árvore no
mesmo instante — mostrando-nos como ele espera
que rendamos bons resultados em nossa vida
(Mateus, Cap. 20, vers. 30, 34; Cap. 21, vers. 8,
11, 12, 13, 14,
15, 18, 19).
Quando Jesus pôs-se a ensinar no Templo, os
che- fes dos sacerdotes e os anciãos exigiram-lhe
satisfação, perguntando por que realizava tais coisas
— como se só eles tivessem o poder de falar sobre
Deus (que es- tava ali, diante deles) em uma clara
atitude de teoma- nia. Tal fato continua ainda hoje,

6
Essa imagem é formada pela união de dois lados esquerdos, (Tomada do Sudário), que foram menos deformados, antes de
sua morte; em minha opinião, retrata melhor a verdadeira fisionomia de Cristo. (foto elaborada por Marco Szankowski).

6
vos e não dos mortos; em seguida, resumiu todos os
mandamentos em um só: amarás ao Senhor teu Deus
de todo o coração, de toda a alma e ao próximo como
a ti mesmo (Mateus, cap. 22, vers. 30, 37, 39).
Todo o capítulo 23 discorre sobre o terrível enga-
no que o ser humano vem cometendo com respeito a
sua existência; chegamos aqui ao ponto culminante da
mensagem do Messias, quando ele faz uma exposição
sucinta sobre a causa de todos os males que afligem a
humanidade terrestre: fazei o que os escribas e fariseus
(hoje, podemos dizer, os governantes e muitos fun-
cionários religiosos) vos disserem, mas não imiteis as
suas ações, pois dizem mas não fazem; amarram
fardos pesados e os põem sobre os ombros dos
homens, mas eles mesmos nem com um dedo se
dispõem a movê- los.A ninguém na terra chameis Pai
(Abba), pois um só é o vosso Pai, o celeste; nem
permitais que vos cha- mem Guias, pois um só é o
vosso Guia, Cristo. Ai de vós, escribas e fariseus,
porque bloqueais o Reino dos Céus; vós mesmos não
entrais nem deixais entrar os que querem fazê-lo. Ai
Emmaus, Rembrant de vós, condutores cegos que dizeis: se alguém jurar
pelo altar, não é nada, mas se jurar pela oferta que está
sutilmente o que acontece em nosso planeta: um pro- sobre o altar, fica obrigado. Que é maior, a oferta ou o
prietário arrendou a sua vinha e partiu para o estran- altar que santifica a oferta? Ai de vós, hipócritas, que,
geiro; chegada a época da colheita, enviou seus servos pagais o dízimo da horte- lã, do endro e do cominho,
para receberem os frutos. Os arrendatários espancaram mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça,
um, mataram outro e apedrejaram o terceiro. Por fim, a misericórdia e a fideli- dade. Ai de vós que limpais o
enviou-lhes seu filho, que foi lançado fora da vinha e exterior do corpo e do prato, mas por dentro estais
morto também. Quando vier o proprietário, o que irá cheios de rapina e de in- temperança. Sois semelhantes
fazer com tais pessoas? Notem que a terra em que mo- a sepulcros caiados, que por fora parecem bonitos,
ramos, foi-nos dada para ser cuidada — não sendo mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de
nos- sa, conseqüentemente; o mais importante ainda é toda imundície; vós pareceis justos por fora, mas por
o fato do seu Criador nos tê-la entregado para ser dentro estais cheios de hipo- crisia e iniqüidade. Ai de
tratada cor- retamente, isto é, de acordo com a vós, hipócritas, que edificais os túmulos dos profetas e
finalidade com que foi criada, um prolongamento do enfeitais os sepulcros dos justos e dizeis: se
seu Reino (Mateus, Cap. 21, vers. 23, 31, 33, 34, 35, estivéssemos vivos nos dias dos nos- sos pais, não
37, 39, 40). Cristo re- teríamos sido cúmplices seus no derramar o sangue
torna ao mesmo tema dizendo que todos os indivíduos dos profetas; com isto testificais contra vós, que sois
que não aceitarem o seu Reino serão destruídos — e filhos daqueles que mataram os profetas. Ser- pentes!
não adianta querer participar, se não estiver de acordo Raça de víboras. Eu envio profetas, sábios e escribas.
com ele, agindo hipocritamente (Mateus, cap. 22, vers. A uns matareis e crucificareis, a outros açoi- tareis em
1, 5, 7, 11). Na cena seguinte, o Filho de Deus lembra vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade.
mais uma vez a diferença entre o Reino do Homem e Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a
o de Deus, mandando dar a César o que é de César e a galinha recolhe os seus pintinhos debaixo das suas
Deus o que é de Deus (Mateus, cap. 22, vers. 21). Fa- asas e não o quiseste! Todo este capítulo é um espelho
lou claramente que, após a ressurreição, não teremos do que tentamos realizar na Trilogia Analítica: na
os problemas de agora, porque viveremos de maneira percepção da conduta hipócrita, fundamento de toda
semelhante à dos anjos no céu, porque Deus é dos vi- decadência, corrupção e insanidade — que, caso não

6
seja conscientizada, a humanidade perecerá (Mateus, (Mateus, Cap. 23, vers. 2, 3, 5, 6, 7, 9, 12, 14).
Cap. 23, vers. 3, 4, 9, 10, 13, 16, 18, 19, 23, 25, 27, 28, Acredito que estamos justamente neste período,
29, 30, 31, 33, 34, 37). quando haverá uma grande paz e felicidade entre os
ho- mens, para depois acontecer uma perturbação
cósmica, que se estenderá a todas as outras
Revelação Sobre a Parusia humanidades do es- paço. Cristo falou claramente que
haverá uma grande tribulação, como não houve desde
Cristo sempre mostrou claramente que um dia ha- o princípio do mun- do até agora, nem tornará a haver
veria um Reino seu aqui na Terra, que os cristãos dos jamais. Então, apare- cerá o sinal do Filho do Homem
primeiros séculos chamaram Parusia. Ao contemplar o vindo sobre as nuvens do céu com poder e grande
magnífico templo de Jerusalém, falou que não ficaria glória; seus anjos reunirão os eleitos dos quatro
ali pedra sobre pedra; em seguida, relatou os futuros ventos, de uma até a outra extre- midade. Passarão o
acontecimentos, dizendo que viriam falsos Messias, céu e a terra, mas as suas palavras não passarão.
guerras e rumores de guerra, fome e terremotos; have- (Mateus, cap. 24, vers. 21, 30, 31, 35).
ria muito ódio mútuo, crescimento da iniqüidade e o
amor de muitos esfriaria — e o Reino de Deus seria
proclamado em todo o mundo — só depois, viria o fim Revelação Sobre o Reino dos Céus
O Reino dos Céus é arrebatado pelas pessoas sen-
satas, que conservaram sua consciência acesa para o
bem e a verdade, como as virgens prudentes fizeram
com suas lâmpadas, quando estavam à espera do
noivo; o Reino dos Céus é semelhante ao servo que
recebeu talentos e trabalhou com eles, causando
alegria e satis- fação ao seu Senhor. Assim sendo, no
final dos tempos, o Filho de Deus virá em sua glória e
porá as ovelhas à sua direita, dizendo-lhes: Vinde,
benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino que
foi preparado para vós desde a fundação do mundo,
porque saciastes a fome e sede, inclusive da verdade,
do amor e da beleza de seus irmãos; porque ensinastes
o caminho certo e ame- nizastes a angústia e o
sofrimento do próximo; porque aliviastes a doença e a
solidão e, toda vez que fizestes isto a um desses meus
irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.
Praticamente, nossa verdadeira função é fa- zer desta
Terra também o Reino de Deus, dentro do qual
viveremos eternamente — e os que não o aceitarem,
evidentemente terão de participar do chamado Reino
das Trevas que não é aqui, mas onde haverá choro e
ranger de dentes (Mateus, Cap. 25, vers. 1, 21, 33, 34,
35, 36, 40, 46).

Paixão e Ressurreição
Iniciamos agora a contemplação do fato mais
Pintura baseada no Santo Sudário maravilhoso que está para vir: o encontro direto com
o Criador, através do encerramento dos tempos, junta-
7
mente com o processo da ressurreição —
exatamente

7
Cristo que Ressurge, de Tintoretto

7
como o Filho de Deus mostrou. Ele avisou os discípu- mente por este motivo que sofremos. A coroa de espi-
los a respeito da sua crucificação, bem como da traição nhos, a capa escarlate que puseram no Messias, para
de Judas Iscariotes; instituiu a Eucaristia, estabelecen- escarnecê-lo, as caçoadas, batidas, açoites, a injúria e
do uma aliança entre ele e o ser humano, através do a cruz representam o comportamento que assumimos
seu corpo e sangue e, inclusive, advertindo sobre o com a própria vida, estraçalhando-a e trucidando-a.
escânda- lo que todos sentiriam diante de sua morte na Esta é a principal consciência que temos de ter, se qui-
cruz. Des- ta maneira, ele se dirigiu a um horto, para sermos continuar com a vida neste planeta e alcançar
orar, onde se entristeceu e angustiou-se profundamente toda a felicidade possível (Mateus, Cap. 27, vers. 2,
dizendo: “A minha alma está triste até a morte”. “Meu 16, 18, 28, 29, 30, 35).
pai, se é pos- sível, que passe de mim este cálice;
contudo, não seja como eu quero, mas como tu
queres” — revelando-nos o seu aspecto humano de A Grande Ressurreição
pavor à morte, solidarizando- se conosco. Judas
chegou com grande número de pes- soas, portando Desde o meio-dia até as quinze horas, houve tre-
espadas e paus, prendendo-o. Diante do Sumo va em toda a Terra quando Cristo entregou o espírito.
Sacerdote Caifás, Cristo foi acusado de poder destruir Nesse momento, o véu do Santuário rasgou-se em
o templo de Deus e edificá-lo depois de três dias; em duas partes, a terra tremeu e as rochas se fenderam;
seguida, confirmou sua divindade, dizendo: “Eu vos abriram- se os túmulos e muitos corpos dos santos
digo que, de ora em diante, vereis o Filho do Homem falecidos res- suscitaram e foram vistos por muitos —
sentado à direita do Poderoso e vindo sobre as nuvens em uma clara amostra dos fatos dos últimos tempos,
do Céu”; o Sumo Sacerdote, cheio de inveja, rasgou quando todos nós voltaremos a ter um corpo
suas vestes, gritando: — Blasfemou — e os ou- tros novamente, para viver eternamente assim.
cuspiram-lhe no rosto, esbofetearam-no e deram- lhe José de Arimatéia doou o seu túmulo novo, onde
bordoadas. Neste momento, Pedro negou três vezes o Messias foi depositado. Ao raiar o primeiro dia da
que conhecia Cristo (Mateus, cap. 26. vers. 20, 21, 26, semana, houve um grande terremoto: o Anjo do Se-
27, 31, 36, 38, 39, 47, 63, 64, 65, 67, 72). nhor removeu a pedra e sentou-se sobre ela; os guar-
O governador notou a fúria daquelas pessoas das tremeram de medo e ficaram como mortos. Cristo
devi- do à inveja, colocando Barrabás, um famoso apareceu ressuscitado para as mulheres, depois para os
criminoso, ao seu lado, para que os presentes vissem a onze seguidores, dizendo-lhes: Toda a autoridade
diferença e não matassem um inocente; este é o sobre o céu e sobre a terra me foi entregue. Ide,
momento culmi- nante do processo de inversão portanto, e fazei que todas as nações se tornem
(ocasionado pela inveja e teomania), quando os discípulos, batizan- do-as em nome do Pai, do Filho e
fariseus investiram contra o autor e senhor da vida, do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo
dando toda liberdade para a fantasia, agressividade e quanto vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos
insolência, acreditando que tal atitude fosse uma os dias, até a consumação dos séculos (Mateus, cap.
grande vantagem. Exatamente o que fizemos com 27, vers. 45, 50, 51, 52,
Cristo, realizamos com a própria existência, des- 53, 59, 60; Cap. 28, vers. 1, 2, 4, 9, 16, 18, 19, 20).
truindo toda a sua beleza, bondade e verdade. É unica-

7
7
Capítulo
10

PATRÍSTICA: OS PRIMEIROS QUATRO


SÉCULOS (D.C.) FORAM O
PERÍODO ÁUREO
DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
Inácio de Antioquia Hermes Clemente de Alexandria

E
m minha opinião, o legítimo cristianismo só vi- Teodoro de Mopsuesto, João Crisóstomo, Ambrósio,
gorou até o século IV, quando a sociedade aceitava Jerônimo, Cassiano e o
suas contradições e os indivíduos sentiam necessidade
de viver de acordo com a própria concepção de
existência
— predominando uma atitude cristã no sentido psico-
lógico — e não social (de máscara) que veio a existir a
partir desse tempo. O Edito de Milão (313), promulga-
do por Constantino levou o cristianismo a ser a
religião oficial do Estado, sob Teodósio — passando-
se a con- fundir o Reino de Deus com o dos homens,
sempre em detrimento do primeiro. Acredito que, a
partir de então, foi inaugurado um período forte de
teomania, que se tornou uma das épocas mais
obscuras. Do século IV ao XIV, a humanidade sofreu
toda espécie de intransi- gência e morbidez, dentro de
uma filosofia de vida, de intolerância e desamor ao
próximo.
As pessoas que mais se distinguiram durante os
quatro primeiros séculos foram; no século 1: Clemen-
te de Roma, Inácio de Antioquia, Policarpo e Hermes;
no século II: Aristides, Justino, Taciano, Atenágoras,
Teófilo, Marcos Minúcio Feliz e Irineu; no século III:
Clemente de Alexandria, Orígenes, Hipólito, Tertulia-
no; no século IV: Eusébio de Cesarea, Atanásio,
Hilário de Poitiers, Cirilo de Jerusalém, Efrem,
Epifânio, Dídi- mo, Basílio, Gregório de Nanziano,
Gregório de Nissa, Apolinário, Deodoro de Tarso,
6
maior de todos, Aurélio Agostinho.
Este tempo caracterizou-se por uma alta
espiritua- lidade; a maior de toda a História do
Cristianismo. No entanto, os compêndios modernos,
mesmo os escritos pelos cristãos pouca atenção
deram a este fato, por dois motivos: 1) porque
houve muitos erros sobre a doutri- na cristã, 2) e
principalmente por ter se referido direta- mente ao
Criador. Analisando-se a atitude extremamen- te
simples dos autores desse tempo, como Clemente
de Roma (bispo de Roma de 92 a 101), que
recomendava a obediência e a humildade, vemos
como foi sabotado o verdadeiro cristianismo. Aliás,
o primeiro documen- to cristão é a Didaqué, escrito
entre 70 a 90, que mos- tra dois caminhos: um, da
vida e, outro, da morte. O da vida, comportando
quatro espécies de deveres: 1) o fundamental, do
amor a Deus e ao próximo, bem como ao inimigo e
a necessidade da caridade; 2) os deveres pessoais,
evitando-se o mal, especialmente a voluptu-
osidade, a crueldade e a superstição —
procurando-se a prática da virtude; 3) os deveres
sociais: paz entre os fiéis, generosidade com os
pobres, educação das crian- ças e o uso de uma
autoridade benigna com os servi- dores; 4) o dever
da confissão dos pecados. A visão da morte seria
acompanhada pelos trabalhos precedentes (sobre a
visão da vida) e mais um exame de consciência
sobre todos os erros (H. Hemmer, Les Pères
Apostoli- ques, Paris).

6
Além dos dogmas e sacramentos do batismo, da mas como Deus; este entendimento que é a perfeição da
confissão e da eucaristia, os primeiros cristãos espera- fé, os místicos
vam ardentemente o retorno de Cristo, para inaugurar
o seu reino eterno, dando-lhe o nome Parusia — o que
está acontecendo justamente agora, com a espirituali-
zação que está em seu pleno curso. Este fato explica-
nos porque os cristãos, ao chegar o século IV,
voltaram para o Reino Humano, cansados de esperar o
Divino, ou melhor, eles não entenderam que a
verdadeira re- alidade é o tal evento esperado,
bastando aceitá-la e vivê-la corretamente — tudo o
que existe faz parte do mesmo Reino de Deus, que se
estende a nós também em forma material; basta o
homem aceitá-lo, que já estaremos na Parusia.
Inácio de Antioquia, perseguido por Trajano no
ano 107 e sacrificado no Coliseu de Roma, dizia:
“faça- mos todas as ações com o pensamento que
Deus habi- ta em nosso interior; assim seremos seus
templos e ele mesmo será nosso Deus, residindo em
nós”. “Deus se

Coliseu
manifesta aos que ama, frutos da fé e caridade, que são
o princípio e o fim da vida; a fé está no princípio, a ca-
ridade na perfeição; a união dos dois é o Deus
mesmo”; (Eph. XV, 3, IX e XIV). “A Morte seria uma
transfigu- ração: perecer seria o cessar do simples ver,
para chegar ao Verbo; morrer seria ainda o eclipsar do
mundo para se elevar a Deus, tornando-se criança para
uma vida nova, chegando à pura luz, assimilando
Cristo” (Eph. II, V, VI, VII). “A base de todas estas
disposições, apa- rentemente contraditórias, é um alto
conhecimento de Cristo, não somente como homem,

6
chamaram de contemplação” (Eph. 1). Pelo que se meiros séculos, foi a humildade que vigorou, tendo as
vê, Inácio não construiu teorias (como Agostinho e suas maiores figuras dado ênfase a uma concepção de
Cle- mente de Alexandria), dedicando-se ao estudo vida mais lata — jamais permanecendo em uma visão
do es- piritual e favorecendo a eclosão de uma vida unilateral, no sentido social, como aconteceu depois.
perfeita. Não é difícil localizar a manifestação
incrível de sua vida afetiva, que lhe dava uma
percepção direta da ver- dade (intuição), não
recorrendo a teorias filosóficas — demonstrando
que a realidade, o bem e o belo são só uma questão
de aceitação. Inácio mostrou como somos uma
morada do Criador, quando o admitimos (J. Chap-
man, Saint lgnace D’Antioche et I’EgIise Romaine).
Os dois primeiros séculos de cristianismo
foram os mais valorosos, porque as pessoas
aceitavam o en- sinamento de Cristo, que estava em
total oposição à hipocrisia social; os primeiros
cristãos contavam com um universo de
conhecimentos totalmente diferente e superior ao
que se sabia — dando resposta à todas as dúvidas
que havia na mente. Por este motivo todos os
indivíduos que entendiam o cristianismo ofereciam
a própria vida em holocausto, caso fosse necessário,
de tal modo estavam encantados com a mensagem
divina. Este foi o caso de Policarpo, queimado vivo
no estádio de Smirna a 23 de fevereiro de 156; um
fenômeno ex- traordinário ocorreu: as chamas não
ocasionavam mal ao santo, tendo sido necessário
matá-lo antes, com um punhal, para que seu físico
fosse depois consumido pelo fogo. Barnabé
mostrou a diferença entre o judaísmo e o
cristianismo, eximindo os cristãos das práticas
judai- cas. Hermes escreveu o Canon de Muratori,
onde revela uma grande preocupação com as
questões da concupis- cência — que invadiu os
séculos seguintes, através do platonismo —
causando depois enormes problemas no
desenvolvimento da civilização. (Text. Docum.
dans la Collection de A. Le-long: L’Introduction).
Os historiadores da patrística geralmente
come- çam a escrevê-la a partir do segundo e
terceiro séculos, devido a ser uma ocasião de grande
brilho apologéti- co, onde realçaram nomes de
grande valor: Aristides tornou-se conhecido por ter
mostrado o valor da mo- ral cristã, que colocava
tanto o escravo como a mulher no mesmo plano de
igualdade dos outros seres. Justino mostrou Cristo
como o Logos, a razão, que os filósofos procuravam
— comparando o cristianismo à uma ver- dadeira
filosofia. O grande mérito no trabalho dos pri-

6
Taciano (120), de origem síria merece um registro es- do politeísmo romano, concluindo “cohibeatur
pecial, porque foi a primeira pessoa a dar uma resposta superstitio, impietas expietur,
exata ao problema do mal, quando afirmou: Omni bo-
num ab Deo, omni malum ab homine (todo bem vem
de Deus, todo mal do homem) — tema que foi aceito
pelos pensadores posteriores, como Orígenes,
Agostinho e Tomás de Aquino; de outro lado, ele foi
muito intransi- gente ao dizer que até no casamento
existia fornicação. O leitor poderá notar que havia
liberdade de pensamen- to e os erros não tinham
consequência social mais séria (M. J. Lagrange, Saint
Justin, Paris; A. Puech, Recher- ches sur te Discours
aux Grecs de Tatien, Paris).
A Trilogia Analítica captou nessa descoberta de
Taciano todo o principal fundamento de seu trabalho,
pois ele apresentou uma concepção de vida ampla,
como só a verdade, a bondade e a beleza poderiam ser.
O Deus do cristianismo é o mesmo de todas as outras
religiões e raças — que deverão conscientizar a
mesma realidade, que todos vivemos — uma atitude
(interna) de aceitação e não um comportamento
puramente social que, na maioria das vezes, não tem
nada a ver com o que sentimos, e pensamos.
Atenágoras: “l’auteur d’une des plus belles et des plus
anciennes apologies de la religion chrétienne, était
athénien, philosophe chrétien”, falou Bossuet sobre
ele. O leitor poderá notar imediatamente a união
entre o pensamento grego e o cristianismo
nascente. Gostaria de citar o que ele falou sobre a
ressurreição dos corpos: 1) que tal fato não repugna,
nem a ciência de Deus, nem ao seu poder, nem a sua
justiça; 2) a ressurreição terá lugar, porque é realmente
necessária, pois a) o ser humano foi criado para viver
sempre; b) sua natureza compreende dois elementos
unidos, ou seja, a alma e o corpo; c) o julgamento
(juízo) que se deverá aplicar ao composto humano,
tanto ao corpo, como à alma; d) o fim último, que não
pode ser conseguido nesta vida. Ele diz expressamente
que a razão confirma os dados da fé (La raison
confirme donc les données de la foi) (L. Arnould, De
Apologia Athenagore, Paris).
Teófilo é um filósofo apologista que se tornou
conhecido por mostrar o estreito relacionamento
“entre a pureza de coração e a fé” — exatamente o que
dizemos sobre a necessidade do sentimento (o amor),
para aceitar a verdade, sendo o seu principal
fundamento. Marcos Minúcio Feliz, autor de Octavius
foi o primeiro apologeta a escrever em latim,
demonstrando a unidade de Deus, o caráter irracional

7
vera religio reservetur”. Ele se caracterizou por um
estilo elegante e uma harmonia digna dos mais
belos modelos
— como se fosse a manifestação da própria beleza
divina. Irineu é considerado o fundador da teologia
cristã, praticamente o primeiro a instituir um
corpo de doutrina que, pouco a pouco, foi se
organizando dentro da comunidade. Clemente de
Alexandria continuou nessa linha, dirigindo uma
famosa escola catequética, tendo como um de seus
alunos o famoso Orígenes. Fez distinção entre fiéis
comuns e gnósticos, chamando a estes últimos de
sábios, perfeitos. Notem a forte megalomania que
se manifestava entre os cristãos. Por este motivo,
não devemos nos admirar da intransigência que
havia tanto em Orígenes, como em Tertuliano e,
principalmente, em toda a Idade Média, onde reinou
a patologia humana, à semelhança de outros
impérios da unilateralidade.(J. Tixeront, Hist.

7
des Dogmes, pág. 83 e F. Vernet, Saint Inénée, dans filosofia, procurando até ignorá-la, concentrando toda a
Dict. Théol., col. 2394-2533). sua atenção na
Orígenes (185-254), discípulo de Clemente en-
frentou os maiores perigos durante o tempo da perse-
guição religiosa promovida por Septímio Severo,
subs- tituindo seu mestre na direção da Escola de
Alexandria. Interpretando errôneamente (socialmente)
as palavras de Cristo, “dos que se fazem eunucos por
amor do reino dos céus” (Mateus, Cap. 19, vers. 12),
deixou-se cas- trar. Ordenado sacerdote pelos bispos
de Casaréia e de Jerusalém, de volta à pátria foi
impedido de trabalhar pelo superior, que estava
invejoso de seu talento. Vol- tou para a Palestina,
onde fundou nova escola (que su- perou a de
Alexandria) lecionando por vinte anos. Ele foi o
primeiro a organizar um sistema de teologia, mos-
trando a relação entre a verdade primordial (filosófica)
e a revelada. Cometeu muitos erros de interpretação,
não apenas no setor do pensamento, como também no
da revelação — no entanto, era um espírito livre, isto
é, não tinha receio da verdadeira realidade, motivo
pelo qual encantava todos os que o ouviam; mas,
acima de tudo, não tinha medo de errar, conseguindo
produzir um número incrível de trabalhos escritos,
talvez quase três mil; procurou mostrar sempre a
transcendência di- vina, a criação e a liberdade do ser
humano (J. Denis, La Philosophie d’Origine, Paris).
O cristianismo nascente vivia com todas as suas
contradições, mas como não era ainda um sistema po-
líticossocial, também não prejudicava a sociedade
com os seus erros — o que aconteceu a partir do
século IV pelo fato de os cristãos se identificarem com
o Criador, colocando-se na condição de
determinadores da vida e morte do próximo
(teomania). Hipólito (170-222), em sua conduta de
santo, procurava um meio termo para trabalhar com
o rigorismo que havia de um lado e, de outro, com o
excesso de liberalismo. Parece que a cen- sura está em
proporção direta com o grau de neurose; em todos os
tempos, os indivíduos chamados de santos
conseguiram atenuar os rigores da sociedade em que
viviam — e esse fenômeno nota-se com evidência no
início do cristianismo, diante das pessoas mais exalta-
das — os verdadeiros transmissores da verdade, do
bem e do belo são aqueles que possuem maior
equilíbrio. (E. Amann, Hippolyte, dans Dict. Théol.,
col. 2487-2511). Tertuliano (150-222), à semelhança
de Orígenes, mostrou-se também extremamente
intransigente em suas ideias; deu pouca atenção à

7
sobre as pessoas melhores, vendo-as excessivamente
perfeitas, ou de condenação total aos mais errados (P.
Godet., Cyprien, dans Dict. Théol., col. 2459-2470).
Os últimos escritores ocidentais do século III fo-

Discípulo Mateus

teologia. Teve três períodos em sua vida: a) cristão,


quando produziu catorze trabalhos, b) semi-
montanista, quando escreveu onze e c)
montanista, quando fez só cinco — este fato
equivale a dizer que, na medida em que ele se
tornava mais censurado (mais doente), menos
produzia. Podemos afirmar que a concepção da
humanidade (cristã) sobre o Criador veio dessa
época, principalmente de Orígenes, Tertuliano e
Agostinho — mais tarde, Tomás de Aquino
conseguiu realizar a sua famosa Suma Teológica,
que completou tal percepção. O leitor pode
estranhar o fato de estar me estendendo sobre esta
época da História; minha intenção é esclarecer
como foi organizada a concepção da vida cristã,
que se tornou depois a maior força de nossa
civilização (A. D’Alés, La Theólogie de Tertullien,
Paris).
Cipriano, como todo santo, tinha uma visão
ex- tremamente agradável da realidade dizendo:”lés
har- monies du monde visible et du monde
invisible, de la nature et de la grâce, l’inspirent
heureusement, et le sentiment jaillit de source”.
Recomendava sobretudo a caridade ensinando um
tipo de vida perfeita, revelando sua preocupação
com a consciência dos erros, levan- do os
indivíduos a dois tipos de atitude: de idealização

7
ram Comódio, Arnóbio, Latâncio , Retício e Vitorino; Casarea, filho de pais ricos e pagãos; após terminar seus
o primeiro caracterizou-se pela humildade, estudos literários e jurídicos, co-
denominan- do-se o mendicante de Cristo (medicus
Christi); o se- gundo, usava da ironia (à semelhança de
Sócrates) em relação aos seus delatores pagãos.
Latâncio foi chama- do de Cícero cristão, devido à
capacidade literária; seu trabalho mais importante foi
As Instituições Divinas, considerado a primeira
propedêutica religiosa, na qual mostra o absurdo do
politeísmo e a superioridade da teologia sobre a
filosofia. Retício foi citado, mais tarde, por Agostinho
sobre uma concepção especial do peca- do original —
infelizmente perdida. Vitorino realizou um tratado
Contra Todas as Heresias (Freppel: Com- modien,
Arnobe, Lactance, Paris).
Os últimos escritores orientais do século III
foram: Denys de Alexandria, seguido por Teognóstio,
Piério, Pedro de Alexandria, Júlio Africano, Panfílio
Marcos Luciano de Samosato, Firmino de Cesarea,
Gregório, o Taumaturgo. Durante a perseguição de
Valério, Denys de Alexandria escreveu sobre a
Trindade Divina (um assunto em pauta, no tempo da
patrística), referindo- se à distinção substancial entre
as pessoas divinas e da subordinação de uma à outra
— lembrando-nos da ne- cessidade de uma união e
dependência também ao Pai, como foram o Filho e o
Espírito Santo, para que parti- cipemos de seu Reino,
aqui e na eternidade. Mais tarde, Denys de Roma
corrigiu alguns erros de Denys de Ale- xandria,
afirmando sobre a eternidade das três pessoas divinas.
Sextus Júlio Africano escreveu sobre toda sorte de
assunto: guerra, medicina, agricultura, magia, etc..
Panfílio desenvolveu um trabalho de Apologia para
Orígenes, depois que foi encarcerado por Maximiano
morrendo mártir no ano 309. Marcos foi professor de
retórica de uma escola helênica de Antioquia. Lucia-
no de Samosato dedicou-se ao estudo da Bíblia, tendo
preferência pelo aristotelismo. Firmino de Cesarea era
bispo da Capadocia, exercendo muita influência em
Ci- priano; seus escritos foram perdidos (J. Tixeront,
Hist. Dogm., pág. 485-486).
O que se pode notar, nestes quatro primeiros
sécu- los de cristianismo, é a incrível convicção das
pessoas que o aceitavam, movidas por um profundo
desejo de viver tal verdade e não em busca de um
benefício so- cial, ou mesmo uma posição
profissional, como procu- raram mais tarde os
funcionários religiosos. Gregório, o Taumaturgo, foi
mais um destes casos típicos: nasceu em 213 em Neo-

7
nheceu Orígenes, entusiasmando-se pela
profundidade de sua doutrina. Escreveu Sobre a
Vida e a Sabedoria, exortando as pessoas a usar os
bens deste mundo para conquistar os futuros. Era
platônico, vendo no corpo (na carne) um empecilho
para a própria realização. (V. Ryssel, Gregorius
Thaumaturgus, sein Leben und seine Schriften,
Leipzig).
O século IV é denominado a grande época da
pa- trística, principalmente por causa de Agostinho.
Pode- mos considerá-lo o período áureo do
cristianismo — até que o Edito de Milão (313)
concedeu licença para uma total fuga da verdade,
do bem e da justiça, inaugu- rando o reinado da
intolerância; o que era psicológico (da comvicção
pessoal), passou para o campo social, colocando-o
como causa de todas as atitudes — o que equivale a
dizer, deu o maior incentivo à paranóia. Tal
fenômeno foi chamado de: a) cesaropapismo, pois o
mesmo indivíduo que exercia função religiosa,
tinha o poder temporal — o bispo era governador,
o papa, rei;
b) a instituição religiosa transformou-se em
instrumen- to dos interesses sociais — vivendo em
função deles. E, de tal maneira este fato se impôs
que, mais tarde, Marx chamou as igrejas de “ópio
do povo”, porque estavam na mesma situação das
organizações econômicas que exploravam o povo;
c) como última consequência, o que deveria ser
regido por santos e pessoas honestas, passou à
direção de príncipes e nobres, que visavam

Cipriano

7
unicamente a suas vantagens materiais. Justamente um. Atanásio disse o seguinte sobre a Trindade: “O Filho
por causa dessa nova situação, surgiu uma série de he- procede do Pai, pela geração e não
resias, como o arianismo, que negava a divindade de
Cristo; os pneumatômacos, que negavam a divindade
do Espírito Santo; os sabelianos, que afirmavam que
as pessoas divinas não eram pessoas, mas
modalidades; os apolinários, que diziam ser
incompleta a humanida- de do Salvador; os
nestorianos, que negavam a unidade pessoal de Cristo;
os origenistas, que afirmavam o ca- ráter temporal das
pessoas no Inferno; os maniqueus, partidários da
existência de dois princípios eternos, um do Bem e
outro do Mal (platonismo); os donatistas, que falavam
da dependência dos sacramentos à santidade de quem
os recebia; os pelagianos, que atribuíam todo poder à
vontade humana; os priscilianistas, que asso- ciaram o
sabelianismo ao maniqueísmo e ao origenis- mo.
Observando-se bem, manifestava-se nessa época a
pleno vapor a teomania, porque toda a intenção era de
diminuir as pessoas divinas e de conceder grande
poder ao ser humano. Neste último tempo surgiu
Euzébio de Cesarea, que não era um espírito muito
profundo, che- gando mesmo a omitir aspectos e fatos
muito impor- tantes desses primeiros séculos — mas
deixou-nos um documento importante sobre a História
Eclesiástica. No Oriente, Alexandre de Alexandria
afirmou peremptoria- mente que “o Verbo não tinha
sido criado, ele é Deus; ele não é inferior ao Pai, pelo
seu caráter de engendrado; ele tem o seu ser do mesmo
ser do Pai” (Epístola para Alexandre de
Constantinopla). Eustáquio de Alexan- dria também
refutou os arianos e Orígenes, iniciando o grande
século de polêmicas (J. B. Lightfoot, Dictionary of
Christian Biography, pág. 308-348).
No ocidente apareceram Ósios de Cordo e
Eusébio de Vorceil, que se caracterizaram mais pelo
trabalho, do que pelos escritos. Mário Vitorino, Zenon
e Fabade dedicaram-se à luta contra as heresias.
Lúcifer de Ca- gliari foi um espírito pouco culto e
violento (é curioso o nome que tinha); Libero era um
papa corajoso que lutou contra o poder imperial (P.
Monceaux, Hist. Litt. de L’Afrique Chrét., III, pág.
373 e 59). Atanásio era dotado de grande equilíbrio,
por ser muito santo, fato que se manifestava em sua
capacidade intuitiva: era um homem de doutrina, um
grande teólogo. Pelas desco- bertas da Trilogia
Analítica sabemos que uma pessoa equilibrada, isto é,
que permita a existência do amor em seu íntimo,
consegue pensar acertadamente e pro- duzir cem por

7
pela criação; ele pertence ainda à substância do Pai, Efrem deu ênfa- se à liberdade humana: 1) porque o
do qual é também, a imagem viva — é o jorrar da homem foi criado segundo a imagem de Deus, 2)
força, o brilho inseparável da luz”. “De seu lado, o recebeu os dons do seu Criador, 3) e principalmente
Espírito pertence à substância do Filho, do qual é a porque seu espírito pôde conceber e se aplicar a tudo.
imagem”. “Existe na Trindade uma união Notem idêntica afirmação
misteriosa de nature- za, dentro de uma substância
comum, produzindo uma operação comum”
(Discours Contre les Ariens et Traité des Synodes).
Atanásio fala que “a saúde do homem é uma
divinização, comportando a filiação divina, a se-
melhança com Deus e a imortalidade corporal;
nessa deificação, em Jesus Cristo, é ao Pai, ao
Espírito Santo, que nós nos unimos”. (G. Bardy,
pág. 150-151 — ver também páginas 8 e 9).
Finalmente, quero lembrar uma advertência, que ele
fez, assinalada no livro de P. Pour- rat, La
Spiritualité Chrétienne: “os demônios ocupam um
grande lugar, mas qualquer excesso deve ser atribu-
ído à imaginação” — antecipando, em vários
séculos, o grande perigo que varreu a Idade Média,
na qual se viam todas as pessoas doentes totalmente
possuídas pe- los espíritos diabólicos (como se elas
não agissem mais por si).
Hilário de Poitiers ocupou-se principalmente
com a Trindade afirmando a consubstancialidade
entre o Pai o Filho, distinguindo as pessoas (contra
os sabelianos): “unum sunt, non unione personae,
sed substantiae uni- tate” (De Trinitate IV, pág. 42).
Devido à frase segundo a qual a existência do Filho
foi devida à vontade do Pai
— sendo que o Espírito Santo recebeu do Filho sua
na- tureza. Essa preocupação em conhecer Deus é o
princi- pal sinal da enorme espiritualidade que
vigorou durante os quatro primeiros séculos do
cristianismo — poden- do, com toda razão, chamar
a este tempo de teocêntrico
— e não o período medieval, que se caracterizou
pela predominância da maior patologia social de
todas as épocas após Cristo.
Cirilo de Jerusalém (313) participou da visão
de uma grande cruz luminosa, que apareceu no céu
no dia sete de maio de 351, narrando-a em uma
carta dirigi- da ao imperador Constantino, no
mesmo ano. Tinha especial atenção aos
sacramentos do batismo, da con- firmação e da
eucaristia. Não havia ainda a preocupa- ção social
de vigiar os fiéis (através da confissão) como
aconteceu nos anos negros de perseguição
inquisitorial; o que era são dirigia ainda o doentio.

7
necessários dois elementos: uma conduta prática, su-

São Gerônimo

que fazemos na Trilogia Analítica, ao dizer que adoe-


cemos, por recusar os dons que vieram de Deus, por
causa da teomania. Efrem considera a existência
huma- na como um combate espiritual; foi um dos
primeiros a valorizar a mãe do Salvador, chegando a
compará-la ao seu Filho. Foi chamado de doutor
universal, coluna da Igreja, boca eloquente, profeta
dos sírios, harpa do Espírito Santo. Epifânio afirmou
que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (a Patre
Filioque) — nós di- zemos que o Espírito é a
consciência tanto da verdade (o Filho) como do amor
(o Pai) — um fenômeno que se realiza em nosso
próprio interior que, quando aceito (conscientizado),
vivemos em perfeito equilíbrio, mas rejeitado, caímos
nas doenças (Le Bachelet, Cirille de Jérusalem, dans
Dict. Théol., 2527-2577; Rubens Du- val, La
Littérature Syriaque, Paris).
Dídimo, o Cego, nasceu em 313; seguindo as
ideias de Orígenes, coloca a sabedoria em primeiro lu-
gar, considerando-a a virtude mais necessária e dando-
lhe o nome de irmã; para chegar à perfeição, seriam

7
pondo como fundamento o conhecimento (a gnose) Apollinarisme; Lourain; J. Tixeront, Hist. Dogm. II,
e a bondade, com a renúncia aos prazeres. pág. 94 - III). João Crisóstomo nasceu em Antioquia
Observem que o autor já via a necessidade da união em 347 dedicando-se ao cristianismo, de um modo
do sentimento (amor) com o pensamento intenso, almejando que tudo fosse subordinado a ele
(verdade), mesmo vendo- os de maneira invertida, e não o vendo como a luz mais intensa no cami-
colocando a filosofia na base. Dídimo definia o
cristão, como sendo o indivíduo que possuía um
verdadeiro conhecimento sobre as relações do Pai,
do Filho e do Espírito Santo (G. Bardy, pág. 157).
Estes dados dos primeiros séculos do cristianismo
são muito importantes, porque esclarecem a razão
de ser de tal grupo, que conseguiu uma difusão de
seus co- nhecimentos em todas as regiões do
universo — inun- dando a Terra com eles. No
momento, estamos sendo obrigados a conscientizar
a sua real mensagem, porque entramos em um novo
período científico (no seu senti- do trilógico), de
captação do que é verdadeiro e o que é redundante,
ou falso. De maneira que iniciamos uma época de
espiritualismo (não confundir com religiosi- dade),
que é a vivência na verdade e no amor.
Basílio nasceu em Cesarea da Capadócia em
330, filho de pais cristãos. Percebeu a igualdade das
três pes- soas divinas, substituindo a sentença: a
glória ao Pai, pelo Filho e no Espírito Santo, por
glória ao Pai, com o Filho e o Espírito Santo.
Gregório de Naianzo mostrou claramente o
platonismo que vigorava na época, falan- do sobre
as tendências perigosas da alma, como se fos- se
um psicanalista freudiano. Gregório de Nissa
nasceu em 335, era irmão de Gregário de Nazianzo,
sendo o mais especulativo de todos os padres
gregos; na filoso- fia, era neo-platônico e na
teologia seguia Orígenes (P. Allard, Saint Basile,
Paris; A. Benoit, S. Gregoire de Nazianze, Sa Vie,
Ses Oeuvres et son Époque, Paris).
Apolinário nasceu no ano 310 em Laodicea,
um porto sírio, ao sul de Antioquia. Não
reconheceu que Cristo tivesse uma alma humana,
dando origem a uma heresia (apolinarismo).
Deodoro de Tarso e Teodoro de Mopsuesto: o
primeiro nasceu em Tarso em 330 e o segundo no
ano 350; Deodoro foi um grande comen- tador da
Bíblia — sua maior preocupação foi refutar
Apolinário, defendendo a integridade da natureza
hu- mana de Cristo. Teodoro falava da dupla
personalidade de Cristo: uma natureza divina
completa e outra huma- na — tese aceita mais tarde
por Tomás de Aquino (G. Voisin, L ‘

7
nho da verdade. Por este motivo, pouco a pouco, tipos de atitude: a) de perdão pelos pecados cometidos,
vamos entrando por um beco sem saída, de b) oferta de boas resoluções a Deus, c) a oração que
intransigência, a ponto de Agostinho ter afirmado que procura a saúde para a alma e d) finalmente, de ação
tudo o que estava fora da Bíblia era supérfluo. O de graças pelos bens recebidos (gratidão). Ele dizia
islamismo (que apareceu mais tarde) inspirou-se nesse que a verdadeira penetração no pensamento divino só
aspecto rígido do cristia- nismo, ao obrigar, até pelas era possível pela pureza, silêncio, humildade, paz,
guerras, todos os indiví- duos a pertencerem às suas medita- ção assídua, caridade e sobretudo pelo
hostes. O cristianismo saía de seu verdadeiro aspecto, Espírito Santo (J. Lombard, Gean Cassien, Sa Vie, Ses
psicológico (de convicção), para o social (paranóico) Écrits, Sa Doc- trine, Strasbourg).
(E. Martins, Saint Jean Chry- sostome, Paris). O que chamamos de período da patrística, pode
Ambrósio nasceu em Treves em 330, ocupando- ser caracterizado por um interesse muito grande pelas
se intensamente com a ação política, tendo escrito os coisas de Deus — de tal maneira que, apesar da
seus últimos grandes discursos para dois imperadores: grande intolerância vigente, foi um tempo feliz de
Valentino III e Eugênio. Dizia sobre a Trindade que “o acentuada espiritualidade. Findou-se quando o erro
Pai era a força e a raiz do Filho e, este, a força do predominou, herdado mais da filosofia, iniciando-se a
Espí- rito Santo” — sem falar que o último procede do época de obs- curidade. Não podemos ignorar que
Filho (De Spiritus Santus, I, Cap. IX, pág. 119); Platão foi antes de tudo um político, que visava a um
distinguia em Cristo duas naturezas distintas: humana determinado tipo de sociedade (descrita no seu livro A
e divina. A enorme grandeza e bondade do Criador foi República) e que não funcionou no reinado de
sendo colo- cada de maneira muito restrita — dentro Dionísio II. Como poderia dar certo na Idade Média?
de uma visão estreita e unilateral, impedindo que a Mais tarde, Tomás de Aquino deu uma orientação
humanidade pu- desse ver a sua infinita magnitude. diferente, mostrando o erro do platonis- mo, mas
(A. Baunard, Histoi- re de S. Ambroise, Paris). inaugurando o período do mais acentuado ra-
Jerônimo foi um dos últimos grandes nomes do século cionalismo (aristotélico-tomista). Acredito que somen-
IV. Tinha pena dos demônios e das pessoas te agora, com o desabrochar da ciência (no seu sentido
condenadas, querendo acreditar que o so- frimento trilógico), é que temos condição de entender melhor,
deles não seria eterno. Cassiano falava que a tanto a teologia, como a filosofia, unindo-as em um só
finalidade da vida religiosa seria a perfeição interior, corpo de compreensão, intuição e conhecimento.
exercida através da caridade perfeita — chegando à Diante de pessoas tão intransigentes do tempo da
comtemplação, uma antecipação da beatitude, que é o patrística, perguntamos, como era possível haver um
reino de Deus interior. “Este reino, que terá sua plena bom cristianismo? E o que podemos notar é que elas
perfeição na outra vida, é possível neste mundo para as não tinham poder social, para impor suas ideias, tendo
almas justas; assim como as almas dos justos já gozam de conviver com pagãos e toda espécie de pensamento
aqui, do Espírito Santo, pela contemplação”. (Conf. e crença. Deste modo, os cristãos tinham de convencer
IX, cap. 13, 15). Mas o que aconteceu de mais pelo seu tipo de existência, e não pela força política.
interessan- te foi um estudo que fez sobre os oito Na prática, estou dizendo que a sociedade humana tem
vícios capitais (naquele tempo eram oito), omitindo de viver com os seus acertos e, principalmente, com a
inteiramente a in- veja, em uma clara atitude de medo consciência de seus erros — porque o “ideal de perfei-
à consciência dos problemas (J. Forget, Jerôme, dans ção” frequentemente se confunde com megalomania.
Dict. Théol., col. 894-983). Cassiano realizou um O caminho para este objetivo é o dialético, no qual é
trabalho um tanto pa- recido com o nosso, inclusive no pos- sível reconhecer a realidade e a fantasia — que
tipo de interesse que demonstrava. Por exemplo: em devem ser conscientizadas da maneira mais ampla
um estudo que fez so- bre a oração, procurou possível, para que vivamos em um universo (social) de
demonstrar que existem quatro paz.

8
8
Capítulo
11

Aurélio Agostinho

AURÉLIO AGOSTINHO:
UM DOS MAIORES PENSADORES DA
HUMANIDADE QUE FORTALECEU
UMA DE SUAS MAIORES
PATOLOGIAS
A) Vida e Obras
Agostinho dizia que a alma, criada por Deus para

A gostinho pode ser considerado, sem dúvida algu-


ma, um dos maiores gênios de toda a humanidade;
tanto assim que a conduziu através de seus trabalhos
duran- te vários séculos e, até hoje, exerce enorme
influência em todas as pessoas mais sensíveis. Nasceu
no norte da África, na cidade de Tagaste, Numídia, em
354, tendo escrito os seguintes livros: De vera
religione, Confes- sionum libri XIII, Soliloquiorum
libri ll, Liber de im- mortalitate animae, De libero
arbitrio e as suas duas obras-primas: De Civitate Dei e
De Trinitate.
O primeiro problema que focalizou foi o do
conhe- cimento: refutando Arcesilau (315-241 a.C.) e
Carnéa- des (214-129 a.C.), que afirmavam ser o
entendimento limitado ao verossímil, ele disse que o
erro é prove- niente dos juízos que se fazem sobre
as sensações e não delas próprias, que jamais são
falsas. Antecipando Descartes em doze séculos,
explicou: se me engano, eu sou, pois aquele que não é,
não pode ser enganado — atingindo assim, a certeza
da própria existência. Nes- te momento, podemos
perceber a grandeza da verdade filosófica que, de
modo algum, poderia estar separada da teológica,
assim como da científica, que é a cons- cientização da
realidade que existe nas duas anteriores (filosofia e
teologia), em um novo tipo de consideração, que é
trino: a consciência (ciência) só pode captar o que é
real, porque ela não é nem intelecto e nem sentimento
— mas um “tertio” que só aceita o que é.
Agostinho adotou Platão como o ideal do pen-
samento, seguindo todas as suas ideias: a) a alma se
servindo de um corpo (inadequado a ela); b) o conhe-
cimento ser fornecido através de um iluminismo, dado
diretamente por Deus; c) o homem, como se fosse um
réprobo e miserável, que só poderia ser salvo pela
inter- ferência divina; d) a civilização, de modo geral,
como sendo a Cidade do Mal, em oposição à de Deus.
Este grande pensador exerceu ampla influência por
oito sé- culos levando a sociedade daquele tempo a se
fechar dentro de quatro paredes, tentando eliminar
todos os que não aceitassem inteiramente seus
princípios. A grande vantagem que possuímos, no
momento, é o uso da experimentação, que nos
possibilita mudar de rumo, imediatamente, ao perceber
uma trilha errônea que es- távamos seguindo.

76
podemos criticar o Criador, por ter preferên- cia pelas
pessoas que o aceitam, porque sabia, antes do
nascimento de cada uma, aquelas que o iriam acatar. O
que chamamos de predestinação e livre arbítrio é um
reger o corpo, pode inverter tal relação, só fenômeno, que dividimos em dois, só para efeito de
subordinando o espírito ao corpo, caindo na
concupiscência e na igno- rância. Notem bem que
ele julgava o físico como sendo algo essencialmente
mau e o psicológico um bem. Não é de estranhar
que, durante um longo período, a huma- nidade não
desenvolvesse valor algum, tanto no setor das
ciências, como das artes, aliás, em tudo. Digam-me
se com essas ideias poderíamos ter uma noção
agradá- vel do cristianismo?
Esse filósofo tinha a opinião que somente os
in- divíduos eleitos poderiam se salvar; era a
doutrina de predestinação, que condenava grande
parte dos homens à perdição. Um santo pode
elaborar uma doutrina er- rônea, que redunde em
prejuízo — por este motivo, é melhor procurar a
ciência no cientista, a filosofia no filósofo e só a
santidade no santo. De outro lado, ele foi um
extraordinário pensador que conseguiu uma boa
união do pensamento com a teologia — sendo até
hoje profundamente admirado por todos aqueles
que têm amor pela verdade. Não é difícil notar que
a orientação agostiniana coloca a maior parte da
criação humana sob suspeita — como se fosse uma
obra do demônio. Esta é a causa mais forte do
desenvolvimento do materialis- mo, que é
incentivado, justamente ao se negar o valor do
material, que é fundamental na natureza humana.
No século XII, Tomás de Aquino (apoiando-se em
Aristó- teles) mostrou que formamos uma união
substancial de alma e corpo; porém, deslocou todo
valor do homem para o raciocínio desprezando
novamente o orgânico.
Agostinho subestimou o esforço do ser
humano no caminho da salvação que, mais tarde,
foi acentuado por Molina, um teólogo jesuíta,
dizendo que a caminhada para Deus dependia quase
que exclusivamente de nós; assim como os
demônios, cada um de nós tem disponí- vel um
período (que é toda a existência) para decidir se
aceita a verdade, o bem e o belo, que são
provenientes do Criador — se não o acatamos,
como Lúcifer e seu séquito o fizeram,
evidentemente não poderemos habi- tar a casa de
Deus. É uma escolha de cada um; de outro lado, não

7
compreensão. Neste momento, devemos refletir como imaginar um sistema de arquétipos no inconsciente
é perigoso para a humanidade viver em um sistema coletivo; Agos-
políti- cossocial que impeça o ser humano de divergir
e pensar como quiser. Infelizmente, houve um
crescimento muito grande da intolerância nos
primeiros representantes do cristianismo, induzindo a
humanidade a viver, não con- forme o ensinamento de
Cristo mas, muito mais ainda, de acordo com as ideias
do famoso filósofo grego. A ci- vilização atual foi
formada por uma junção do cristia- nismo (sua força
mais forte), do judaísmo, pelo pensa- mento grego e,
principalmente, pela filosofia e ciência modernas. Não
preciso dizer que o Deus dos cristãos é o dos judeus —
assim como, um índio, ao adorar a luz, ou o Sol, está
manifestando amor, exatamente pelo mesmo Criador
de todos nós.

b) Enganos Fundamentais
No seu livro Solilóquios à Razão, Agostinho faz
uma indagação: — Que desejais conhecer?
Responden- do: — Deus e a alma, nada mais, dando
uma ideia de restrição a todo o restante que foi criado,
como se não fosse também proveniente do Criador. Em
seguida, afir- mou que o diálogo do homem para
consigo mesmo é o diálogo com Deus — ideia muito
perigosa, de incentivo a teomania (o encontro do
homem com o homem é o encontro de todo homem
com Deus).
Outra afirmação de Agostinho: “o mundo externo
passa através da interioridade do homem e da interio-
ridade do homem a Deus, pelo qual o próprio homem
é o intermediário (mediador) entre Deus e a natureza
(M.F. Sciacca, História da Filosofia, pág. 181). É fácil
notar aqui a colocação extremamente megalômana do
pensador. Sendo platônico, dizia que a vida do ser hu-
mano na terra era uma prova, não o seu fim, que está
algures — como se fôssemos deuses alijados do
mundo paradisíaco das ideias. Era de opinião que
filosofia era o diálogo da alma com Deus — querendo
eliminar toda a realidade exterior criada.
Estou mostrando os erros do grande santo, para
ajudar o leitor a compreender o fenômeno da Idade
Média e de todos os grupos religiosos, que praticaram
tantos desmandos nesse grave período da História da
Humanidade. E um dos elementos mais explorados, no
campo da psicoterapia moderna, é a questão das ideias
inatas (platônicas), que a psicanálise chamou de
impul- sos (Trieb, em alemão), chegando Jung a
78
tinho pensou desnecessariamente em uma
iluminação direta de Deus — na verdade, tudo o
que existe é uma realidade e o homem está fincado
no bem, bastando aceitá-lo. Não é algo inconsciente
(escondido), que se deve tornar consciente, mas
uma enorme luz que existe diante dos olhos,
iluminando tudo o que devemos sim- plesmente
aceitar.
Agostinho afirmava que algumas verdades têm
características da eternidade e nós dizemos que to-
das elas são uma só manifestação do eterno. Notem
agora esta frase que pode dar margem a um grande
alimento ao próprio narcisismo: quem ama a
Deus, não pode desgostar de si mesmo (non enim
fieri ut seopsum qui Deum diligat non diligat) e
quem ama a si mesmo, não pode desgostar de Deus
(que ergo se diligere novit, Deus diligat). É fácil
neste pensamen- to confundir-se com o Criador na
atitude doentia que eu denominei de teomania.

Agostinho, de Botticelli

7
Ao mesmo tempo que o pensador subestima, Agostinho mostrou que a alma tem em abundância
supe- restima o físico, ao dizer que a alma está unida
ao seu corpo, nele encarnada — dando-nos uma ideia
de supe- rioridade deste último. Fala que Adão foi
abandonado por Deus quando cometeu o pecado — e
não que foi o homem quem se afastou do Criador. No
entanto, sua influência mais negativa foi na distinção
que realizou entre a cidade terrena e a celeste, como se
fossem ini- migas; a imagem do Império Romano
ruindo, frente à invasão dos bárbaros, é a mesma dos
séculos seguintes, quando a civilização entrou por um
período de grave decadência, devido ao desprezo que
os povos cristãos fizeram ao mundo material — que
foi, é, e será sempre o seu, mesmo após a ressurreição,
quando desfrutarmos diretamente da magnificente
companhia do Criador.

c) A Grandeza de Agostinho
Agostinho merece um capítulo especial, porque
foi realmente uma criatura totalmente excepcional em
toda a história da civilização. Partiu do conhecimento
antropológico, para chegar ao Supremo Bem, dizendo
que a alma humana é a imagem mais fiel de Deus, por-
que nela é visível o reflexo da Trindade; mostrou que
a vida interior é a comunicação direta com o Criador.
Afirmou que não bastava conhecer a verdade, mas
amá- la — enquanto nós dizemos que o contato com a
rea- lidade já é sinal desse amor. Um dos argumentos
mais famosos do grande pensador foi quando disse
que a consciência da dúvida já era certeza absoluta,
pois pes- soa alguma poderia duvidar, senão do que
tivesse como certo. Provavelmente, sua explicação
mais incrível foi sobre a luz da verdade que está
presente no homem, como um elemento dinâmico e
ativo, que não lhe dá paz — perceptível no processo
de interiorização (não confundir com a introspecção,
ou a introjeção). Tal fe- nômeno é o contato com a luz
da verdade, o bem infi- nito, a beleza de Deus; é o
fato de ter um pé na terra e outro no céu, a percepção
do finito e do infinito, do transitório e do eterno —
porque formamos uma liga- ção entre um e outro;
estamos fincados na verdade, no bem e na beleza, que
é tudo o que existe. Procuramos completar esta ideia
de Agostinho, dizendo que todas as coisas são boas —
porque são a manifestação do Bem, da Beleza e da
Glória Suprema do Criador, inclusive a vida psíquica,
com todos os seus dons, enquanto não os deturpamos
com atitude de inveja e teomania.
80
o que necessita para existir, sendo indestrutível, diferente de religiosidade; uma pessoa pode ser
porque ela é a vida, sendo absurdo conceber uma religiosa e materia- lista (inimiga de Deus) ao mesmo
vida privada de vida. Como a verdade é o ser (o que tempo — mas não pode ser espiritualizada e contra a
é), a alma jamais poderia perdê-la mesmo estando verdade, o bem e a justiça. Assim sendo, o termo
no erro, ou se afastan- do da realidade. Aqui, religioso tem frequente-
entramos na questão do bem e do mal; ele aceitou a
explicação de Taciano: o mal é a privação do bem
(malum, privatio boni), dizendo que a corrupção
não é um mal em si mesmo, porque só as coisas
boas estão sujeitas à corrupção — chegando a uma
incrível conclusão: a consciência da imperfeição e
da miséria é própria das criaturas elevadas. Nós
dize- mos que só uma pessoa, que aceite a grandeza
e beleza que existem na verdade e no bem (em
Deus), é capaz de olhar para os seus erros — quem
não deixa sua inveja de lado, jamais sairá de sua
alienação, a fim de que pos- sa ver toda a maravilha
que existe.
Agostinho fala que o tempo da morte nasceu
do primeiro pecado: tempo que vai e tempo que
vem, mas tudo segue para a morte; mais as coisas
crescem e mais se apressam para o não ser —
parece que o tempo do pecado seja ávido de morte
— linguagem lírica, para explicar nossa atitude de
querer contrariar o eterno, re- dundando em um
perecimento só físico. Para o espíri- to, o tempo não
existe: se envelhecemos, é porque nos colocamos
em oposição ao eterno, recusando vivê-lo.
Posicionamo-nos contra o imperecível e perecemos
fi- sicamente; a alma permanece, porque é a
verdade, que jamais poderemos destruir. Estamos
no eterno, recusan- do-o e querendo erigir uma
outra existência, que jamais poderia ser assim,
porque só poderemos existir no de- finitivo e não
em uma escolha errônea, porque a verda- deira
vontade também é voltada para o eterno.
Eu chamei Aurélio Agostinho um dos maiores
pensadores da humanidade, devido à perfeita junção
que ele fez entre pensamento e o sentimento —
faltan- do-lhe apenas a experimentação, que só
alcançamos por força do nosso desenvolvimento
científico. Neste sentido, ele foi bem superior a
Tomás de Aquino, que permaneceu em um
extremado racionalismo, parecen- do que os seus
seguidores carecem de afeto, de alma. A Trilogia
Analítica deve muito a este incrível gênio, que
pouco a pouco está sendo corrigido em seus erros,
para voltar a brilhar com todo o fulgor de sua
capaci- dade no mundo atual. Espiritualidade é

8
Santo Agostinho

mente conotação pejorativa. maldade, o que é um grande


A filosofia, que posteriormente vigorou na Idade
Média, foi tomada de uma concepção de vida religio-
sa muito intransigente (por exemplo: obrigatoriedade
de pertencer à Igreja para se salvar); havia um grande
narcisismo (uma divinização da própria personalidade)
leiam-se às páginas 150 e 151 de G. Bardy, sobre Ata-
násio): forte teomania (atitude de juiz sobre o bem e o
mal) — enfim, uma conduta psicopatológica
acentuada, porque não permitia a sua conscientização.
Posso dar um exemplo: na ciência psicoterápica
BIBLIOGRAFIA:
trilógica (da Tri- logia Analítica) fazemos com que o
Boyer, C.: L’Idée de Vérité dans la Philosophie de S.
indivíduo veja sua conduta de inveja e ódio, em lugar Augustin.
de obrigá-lo a ser “bom”, ou melhor, de adotar um Combès, G.: S. Aug. et la Culture Classique, Paris.
Grand George: S. Augustin et le Néoplatonisme.
determinado compor- tamento, para esconder sua Nourrisson, F.: La Philosophie de S. Augustin. Paris.

82
incentivo à hipocrisia. E o fato de conscientizar
(sentir) seus erros é o único caminho para deixá-los.
Agostinho fecha com chave de ouro o mais
belo período da humanidade, o antigo — pois o que
não sabe- mos ainda dele é, provavelmente, muito
mais grandioso, do que poderemos realizar por
muitos anos futuros.

8
B -Período Medieval

Idade Média

A Idade Média, que vigorou do século V ao XIV,


constituiu uma grande tentativa de viver na terra o
teoricamente, o mestre dos mestres estava certo. O que
aconteceu então? A finalidade deste trabalho é justamen-
Rei- no de Deus. Sabemos que falhou inteiramente; te conscientizar a verdadeira mensagem de Cristo, que
vamos tentar saber o porquê. não foi bem compreendida, porque dependia da
A grande desculpa aventada foi a invasão dos povos ciência trilógica, que só agora está sendo
bárbaros que teria destruído a civilização romana. Mas desenvolvida; temos de procurar os erros do
não podemos nos esquecer que foi um período pratica- cristianismo nas pessoas que o difundiram e não nos
mente de dez séculos (mil anos) — tendo os primeiros seus ensinamentos. Neste estudo sobre o pensamento
um atraso atordoante — é importante lembrar que tal medieval, gostaria que os leitores percebessem que
fato ocorreu logo após a implantação do cristianismo, todos os filósofos e até mesmo os teó- logos
como religião oficial. E o que se tornou ainda mais conservaram uma ideia mais filosófica de Cristo, em
sig- nificativo foi que a humanidade só voltou ao lugar de captar a sua verdadeira realidade. No início
progresso e desenvolvimento, quando se revoltou contra do cristianismo, pretenderam conhecer o Filho de
tal estado e retornou aos princípios helênicos (em sua Deus através do platonismo; a partir do século XII,
inteireza), que eram bem anteriores à era cristã. De duas, substitu- íram Platão por Aristóteles (Alberto Magno,
uma: ou o cristianismo é inadequado ao homem, ou Tomás de Aquino); na sociedade moderna, ele foi
simplesmente não foi entendido e usado corretamente entendido de modo diferente por inúmeros pensadores,
— eu opto por esta última explicação. “teólogos” e até economistas, sociólogos e políticos.
No começo do século XX, tivemos o exemplo do Tenho a grande esperança de que, finalmente, ele venha
marxismo que, apesar de seus erros, tornou-se muito a ser compreen- dido através dele mesmo — só neste
mais atraente para a classe operária, os intelectuais, último caso, é que teremos a oportunidade de nos
po- líticos e até funcionários religiosos, do que os extasiarmos de enlevo por esse incrível amigo, pai,
ensina- mentos de Cristo. No entanto sabemos que, irmão e companheiro de existência que um dia assumiu
pelos menos a natureza humana. devi- do a tanto afeto que tem para

84
conosco.

8
Capítulo
12

Justiniano I

A CIVILIZAÇÃO “DIALÉTICA” PLATÔNICA


EM SEU APOGEU, OU SEJA, A ERA MAIS
OBSCURA DA HUMANIDADE, ORGANIZADA PELA
PSICOPATOLOGIA HUMANA (DE 430 A 553)

86
Podemos localizar o início da Idade Média no
século V, em pleno apogeu da Patrística, depois que
Agostinho deixou o seu formidável sistema teológico
é preciosa: “a Trindade nos santifica, sendo realizada
pelo Espírito, que é o seu perfume e qualidade, sua
virtude santifican-
e filosófico
— quase uma perfeição em Teologia, mas com
enormes falhas na filosofia (pois ele não acreditou
muito na sa- nidade do pensamento). O modo de
pensar que vigorou por oito séculos consecutivos foi
emanado basicamente desse grande gênio e santo.
Pelos resultados, sabemos que foi desastroso, a ponto
de a comunidade cristã ter procurado outro líder,
optando mais tarde nos séculos XII, XIII e XIV, pela
orientação aristotélica de Tomás de Aquino e pelo
voluntarismo de John Duns Scot e de Guilherme
D’Ockam.
Vamos agora entrar nessa longa noite do tempo
medieval, tentando examinar o motivo de tal situa-
ção. O primeiro autor notável foi Nestório, originário
de Marasch e estudante em Antioquia; ele afirmou que
Cristo teria duas naturezas distintas, uma divina e
outra humana — mas não seria o Filho de Deus pela
natu- reza, mas por homonímia — revelando seu
caráter de pesquisador superficial. Cirilo de
Alexandria (junta- mente com Atanásio) defendeu a
divindade de Cristo, mostrando os erros do imperador
Juliano, esclarecendo algumas heresias da época,
como os arianos, os apoli- naristas e o nestorianismo;
foi um grande defensor da maternidade divina de
Maria; via a santificação como uma purificação, uma
passagem da noite à vida, um re- nascimento, um
retorno ao estado primitivo, uma reno- vação interior,
uma transformação profunda da alma, uma deificação
enfim: a alma seria formada segundo a imagem de
Deus, que imprimiu nela sua semelhança, como um
selo — e essa impressão é tão real e profunda que
podemos participar da natureza divina; somos ver-
dadeiramente deificados: não podemos nos
transformar em natureza divina, mas recebemos
qualquer coisa de divino que nos eleva acima de nossa
natureza (J. Mahé, La Sanctification, pág. 31 e 38).
O leitor poderá notar de imediato a atitude muito
perigosa, no sentido de incentivar a megalomania, ao
manter a ideia de deificação; mesmo que participemos
da natureza divina, a distância entre nós e o Criador
continua sendo infinita. Este foi o ponto mais desastro-
so desse período medieval, que se caracterizou por
uma alta teomania (homocentrismo e não
teocentrismo). A ideia de Cirilo sobre o Espírito Santo

8
te, o fogo que consome nossas manchas, o alimento antítese violenta da treva como princípio de luz
que fortifica, a força da água viva que fecunda para (Comme S. Augustin, pág. 511). Tinha orientação
a vida eterna, o selo que se imprime para nos neo- platônica, ao considerar importante só a alma,
restituir à seme- lhança de Deus; é necessária a luz mas va-
para comunicar a luz, é necessário o fogo para
comunicar o fogo” (J. Mahé, La Sanctification, pág.
37 e 38). Teodoro de Cyr nasceu em Antioquia em
393, escreveu um célebre tratado sobre a Cura das
Doenças Pagãs, usando o seguinte título: Co-
nhecimento da Verdade Evangélica pela Filosofia
dos Gregos — colocando a mensagem divina
subordinada ao pensamento filosófico — fenômeno
que ocorreu em toda a era medieval e moderna —
praticamente até os dias atuais (1982), só podendo
ser modificada pela fase científica trilógica que
estamos iniciando agora. (Bar- denhewer,
Patrologie, II, pág. 239).
Justiniano I foi um imperador que deu grande
força à instituição religiosa; nasceu em 483 na
Macedônia e estudou, em Constantinopla, Direito,
Militarismo e Te- ologia. Casou-se com Teodora,
fervorosa monofisista, cuja doutrina afirmava haver
em Cristo uma só nature- za, depois da encarnação;
era extremamente rígido, va- lorizando a igreja em
seu aspecto políticossocial; tanto assim, que fez
tudo para condenar três homens dotados de grande
sabedoria: Teodoro de Mopsuesto, Teodoreto de Cyr
e Ibas d’Edesso. Tal atitude é o mais claro in-
dicativo do que foi toda a Idade Medieval, que
conser- vou graves sequelas até hoje. Essa inversão
aconteceu, depois que o processo de interiorização,
mostrado por Agostinho, foi sendo substituído pelo
social.
Dênio, o Aeropagita, exerceu acentuada
influên- cia nesse período através de dois tratados:
Dos Nomes Divinos e da Teologia Mística, citados
mais tarde por Tomás de Aquino, devido a sua
importância. Tinha uma ideia muito alta, pura e
simples de Deus: a unidade ab- soluta parece ser
(para ele) a característica fundamental do princípio
de todas as coisas. O imperfeito é múltiplo, mas
todo o bem, todo o positivo que contém é uma ex-
pressão múltipla da unidade absoluta de seu
princípio (De Div. Nom. IX, Theol. Myst. 1, 2, III,
IV). Dênio colocou a fé no ato de contemplação,
que tem seu fun- damento natural dentro da alma
humana, orientada para o bem e a verdade desde o
seu primeiro contato com o ser. Distingue a
contemplação infusa do conhecimento adquirido,
racional de Deus, sendo sua doutrina favo- rita a
8
lorizando a escuridão como sendo a alteridade da luz Capítulos, documentos célebres sobre a infalibilidade
(expressão de Platão), pois dizia que sem ela (a treva) papal; o segundo era possuidor
não haveria claridade.
A Idade Média continuou dentro desse esquema,
no qual havia um total desprezo ao material,
destruindo pouco a pouco aquela formidável
civilização herdada dos helênicos e que perdurara até
o Império Romano. Podemos dizer que a mensagem
de Cristo foi totalmen- te deturpada, sendo revigorada,
só mais tarde, quando os árabes (Averrois, Avicena)
levaram para a Europa o aristotelismo, que foi
introduzido pelos filósofos dos séculos XII, XIII e
XIV nas universidades. Nesta oca- sião, os desastres
sociais causados pelos funcionários religiosos haviam
sido irreparáveis, tendo sido adota- das novas formas
de culto cristão, através da Refor- ma (Lutero). Como
sabemos, o cristianismo nascente difundiu-se
primeiramente pelo Oriente Médio, atin- gindo
Constantinopla e os países do sul da Ásia, até a
Índia. Depois, foi sendo substituído pelo Islamismo
em grande parte dessa região, porque se constituía em
uma forma de religiosidade mais tolerante (pelo
menos, naquele tempo).
No século V tivemos uma série de exegetas, ora-
dores, ascetas e historiadores, de importância
totalmen- te secundária, até chegarmos em Leão, o
Grande, con- siderado o maior Papa da antiguidade
cristã. Além do trabalho disciplinário, realizou a
unificação doutrinária entre o oriente e o ocidente,
combatendo os maniqueís- tas; foi mais um doutor do
que teólogo, tendo sido enor- memente influenciado por
Agostinho, reafirmando com ele que “a humanidade
está gravemente lesada através do desenvolvimento da
concupiscência, pela transmis- são do pecado original”
(Serm. 24, 2-3). O platonismo foi intensamente
fortificado pelas instituições, que co- locaram a causa
de todos os problemas nos fatores ma- teriais
(orgânicos) — deixando de lado a consciência das
verdadeiras dificuldades que são oriundas de nossa
atitude psicológica invertida.
O sucessor de Leão foi Gelásio, africano e discí-
pulo fiel de Agostinho; acima de tudo era um teólogo,
que interpretou sua posição mais no plano social,
vendo a cátedra de Pedro infalível em questões da fé.
Hormis- da conseguiu a submissão do imperador à
Sede Apos- tólica. Do final do século VI até o VII
tivemos mais dois papas importantes: Virgílio e
Pelágio. O primeiro era filho de um cônsul, que se
tornou conhecido pela controvérsia dos Três

8
de uma enorme habilidade diplomática. Pouco a
pou- co, a igreja foi conquistando o poder temporal,
em total oposição ao ensinamento do próprio Cristo.
Dentre os grandes oradores da época, destaca-se
Pedro Crisólo- go, que procurou completar o
sentido literal da Bíblia com o espiritual. Máximo
de Turin foi (juntamente com Agostinho)
elaborador dos mais belos discursos. Mag- nus
Enódio de Paiva veio de um casamento muito feliz,
tornando-se religioso, após uma doença grave,
sendo não apenas poeta, mas um mestre de retórica.
Salviano verberou contra a impureza dos teatros e
espetáculos profanos, conforme a intransigência à
consciência dos erros, que houve durante aquele
tempo (Ser. 36, Edição Bruni, pág. 57;
L’Eucharisticum de Vita Sua, pág. 63; História
Literária, France, pág. 527).
A Escola Teológica de Lerins desenvolveu a
maior cultura da época. Honorato abandonou sua
grande for- tuna e posição social vantajosa, para
viver com alguns amigos, à maneira retirada dos
monges orientais; seu discípulo Hilário continuou
tal trabalho. Eucher de Lyon era casado e pai de
dois filhos, quando decidiu entrar na vida religiosa,
tendo sido fortemente agostiniano. Vicente de
Lerins passou toda a existência na célebre abadia,
tornando-se conhecido pelo seu livro Commu-

Cirilo de Alexandria
8
nitorium; sua visão sobre a verdade era muito estreita, aspecto em que
recusando qualquer compromisso com a filosofia —
de modo geral, era o pensamento da época, que via em
qualquer atividade não religiosa uma arte diabólica.
Observem como foi se formando a era mais tenebrosa
da História, baseada nos pensadores dos séculos V e
VI, que receberam inspiração, tanto de Agostinho
como de outros autores profanos, que conservavam
ainda um pouco de luz da verdade. Temos de lembrar
também de Fausto de Riez e Arnóbio, o Jovem; o
primeiro, origi- nário da Grã-Bretanha, lutou contra o
predestianismo (atribuído ao padre Lucídio), que
pregava a ideia de que os pecadores seriam
condenados ao inferno, enquanto que os escolhidos
por Deus (predestinados) ao céu. Ar- nóbio foi
adversário de Agostinho a respeito das graças para a
salvação, negando que isso fosse concedido pelo
Criador para os escolhidos (Bibliographie Spéciale de
L’Abbaye de Lerins, pág. 50; Précis de Patrologie, F.
Cayré págs. 161, 162, 163, 166, 170).
De modo geral, depois do século V, todos os ho-
mens famosos se inspiraram em Agostinho, em cinco
pontos principais: 1) decadência relativa da humanida-
de, devido ao pecado original: uma massa de perdição
(massa perditionis); 2) necessidade da graça (para agir
bem sobrenaturalmente): não somente para ajudar a
vontade, mas para fazer a vontade; 3) gratuidade abso-
luta das primeiras graças, da perseverança e dos meios
de salvação; 4) predestinação para ter fé, santidade e a
glória eterna — os outros indivíduos seriam lançados
no caminho da danação; 5) a vontade consequente sal-
varia o restante. A Trilogia Analítica explica de modo
diferente: 1) a decadência da humanidade ocorreu em
consequência da inversão que realizamos com a vonta-
de, rejeitando o que é bom (a verdade, o bem e o belo)
e acolhendo o doentio (a fantasia e imaginação); 2)
todos recebem a graça suficiente do Criador, tendo a
liber- dade de aceitá-la ou não; 3) de maneira que a
base do chamado pecado original está no ato da
vontade que causa prejuízos tanto à vida pessoal,
como à profissio- nal, social e até à física.
Mário Mercator foi amigo de Agostinho, tendo
lutado a seu lado, contra as heresias. Cláudio (474) de-
fendeu a espiritualidade da alma em oposição a Fausto
de Riez. Júlio Pomere escreveu A Doutrina sobre a
Vida Contemplativa, como se fosse uma antecipação
do fu- turo e a coroação da vida ativa. Próspero
d’Aquitana foi defensor da doutrina de Agostinho,
atenuando um pouco sua ideia de predestinação no

8
dizia que nem todas as pessoas nasceram para a sal- Sidoine Apollinaire; F. Cayré, Les Poètes Chrétiens,
vação. Fulgêncio de Ruspe afirmava que o pecado págs. 209, 210, 211).
ori- ginal era transmitido pela concupiscência, Boécio foi o último grande representante da fi-
através do ato de geração; não hesitou em afirmar losofia no ocidente, antes do final da idade patrística;
que Deus não queria a saúde de todos os homens; escreveu o famoso tratado Da Consolação da Filoso-
juntamente com Agostinho, era de opinião que as
crianças não batizadas seriam punidas com penas
sensíveis (infernais). Tal in- transigência
prenunciava o período negro que estava se iniciando
(E. Amann, Dict. Téol., pág. 2481); A. Engel-
brecht, Corpus de Vienne XI; Ceillier, Hist. Ant.
Eccl., pág. 451; L. Valentin, S. Prosper d’Aguitaine,
pág. 934; P.Godet, Fulgence, págs. 968-972).
Cesário de Aries foi um dos mais famosos
prega- dores da Idade Média; viveu no século VI,
acatando as ideias de Agostinho. Classificou os
seguintes pecados capitais: sacrilégio, homicídio,
adultério, falso testemu- nho, furto, rapina — em
lugar secundário, a soberba, in- veja e avareza —
deixando de lado a conduta realmente perniciosa
que, inclusive, tornou-se a responsável pela
decadência do homem: o orgulho. Parece que esta
foi a grande vitória do demônio, ao conseguir
desviar a aten- ção da humanidade do maior de
todos os pecados (que é justamente o seu): a
arrogância, soberba, megalomania e teomania. Ser
algum quer mexer neste nódulo, seja o humano ou,
principalmente, o demoníaco. O Concí- lio de
Trento fala claramente que a concupiscência (por
si) pode ser chamada de “pecado” — desviando
toda a atenção do ser humano de seu verdadeiro
problema (Rev. Hist. Litt. Rel.: Notes Bibliogr. sur
S. Césaire).
Houve vários poetas cristãos, como Avit que
foi um eloquente defensor da Igreja Romana,
conforme narrou Bossuet. Sidônio Apolinário (431-
489) foi idên- tico ao poeta anterior, quanto aos
seus interesses, ten- do feito um panegírico ao
imperador Avitus. Podemos apontar ainda Paulo de
Pella e Paulo de Périgueux, El- pis, Rústico
Elpidius e Arator, como poetas menores. Fortunato
(530-600) era profundo em sua inspiração e dono
de grande retórica, em uma época que já primava
pela ignorância e obscuridade. Dracôntio, à
semelhança do espírito da época, escreveu uma
poesia à glória do imperador de Bizâncio. Era a
realização fantasiosa do Reino do Criador sobre a
Terra, ao contrário do dese- jo de Deus (Chevalier,
Oeuvres Complètes de S. Avit; Pl. Allard, S.

8
fia, sua obra-prima. É composto por cinco livros: no Outra figura importante desta época foi Cassiodo-
primeiro, a filosofia lhe aparece sobre o aspecto de
uma nobre dama, que se oferece para repartir o que
tinha de melhor; o filósofo obedece e não hesita em
colocar em dúvida a Providência. No segundo livro,
a filosofia lhe mostra a inconstância da fortuna e a
impotência de todos os bens deste mundo, para sa-
tisfazer o homem — deixando claro que a verdadeira
felicidade está no interior.
No livro número três, Boécio define a beatitude:
“Status bonorum omnium congregatione perfectus” —
mostrando que todos os homens a desejam
naturalmen- te e a maior parte engana-se, ao procurar
bens exterio- res: riquezas, honras, poder, glória,
prazer. Em seguida, o pensador envia ao Criador uma
magnífica oração, pedindo-lhe luz para entender que
só existe um verda- deiro bem. Ele diz que o
imperfeito supõe o perfeito, o bem imperfeito exige o
bem soberano e não pode ser que Deus, que todos
desejam, seja aquele que derrua todo o bem: “Felix qui
potuit bonii Fontem visere luci- dem”. Este terceiro
livro é um verdadeiro monumento literário, elevado à
glória da verdadeira beatitude, disse Gardeil (Art.
Béatitude, no Dict. Théol., pág. 509).
No quarto livro, o filósofo expõe a conduta da
Pro- vidência ao ser humano: a maldade pode triunfar
aqui, mas a ordem será restabelecida na outra vida,
baseada sobre o mérito e o demérito, que são as
grandes leis da Providência. Finalmente, o último livro
mostra a onis- ciência divina que tudo previu, não
excluindo a liber- dade humana — ainda que
dificilmente possamos com- preender um acordo entre
estas duas verdades. O livro termina com um
magnífico capítulo, onde Boécio dá sua célebre
definição da eternidade: interminabilis vitae tota simul
et perfecta possessio (vida interminável toda
simultânea e possuidora de toda perfeição). (P. Godet,
Boèce, em Dict. Théol., col. 918-922).
É possível, logo de início, notar o forte
platonismo do filósofo, ao colocar os bens terrenos em
oposição aos de Deus e, principalmente, ao considerar
este mun- do irremediavelmente perdido, devido a sua
maldade. A infinita caridade, compreensão e poder do
Criador não foram entendidos e os autores medievais
continuaram fazendo mais filosofia platônica,
desprezando a incrível maravilha que já é este
universo todo. Estou dizendo que a causa fundamental
de toda as dificuldades do ho- mem, não foi tratada,
que é sua atitude de inveja, mega- lomania e soberba.

8
Os séculos V e VI contaram com uma plêiade de
historiadores, canonistas e ascetas; Gennade, padre

Boécio

ro (477-570), que pertencia a uma família de


políticos de três gerações, aliando sua atividade de
homem de Estado às questões de educação, morais
e filosóficas. No seu trabalho De Anima, defende a
espiritualidade da alma, mostrando estar
impregnado pelo pensamento de Agostinho e de
Cláudio Mamert. Com a idade de sessenta anos
começou uma vida diferente, retirando- se para o
mosteiro sobre a borda do golfo de Squillace
— conseguindo atrair o interesse dos monges pela
cul- tura e erudição; por este motivo, concebeu uma
ideia de monastério muito mais intelectual do que
os bene- ditinos. Seu famoso livro Institutiones
(escrito em 544) forneceu o programa básico para as
universidades (que foram criadas cinco ou seis
séculos mais tarde), procla- mando “a união da
ciência sagrada e da profana, para formar um ensino
completo e verdadeiramente cristão” (P. Godet,
Cassiodore em Dict. Théol., Col. 1832).
Enquanto Boécio caracterizou-se por ser um
filó- sofo e especulador, Cassiodoro foi antes de
tudo práti- co. Preocupou-se com a formação
intelectual e moral, utilizando mais os escritos
antigos e autores profanos do que os trabalhos
eclesiásticos. Aliás, esta atitude de tolerância é que
o tornou célebre na História Medieval, que tanto se
caracterizou pela intransigência; de vez em quando
uma luz se acendia dentro daquela longa noite de
trevas.
8
de Marseille, continuou o trabalho de Jerônimo, com uma diferença fundamental entre um tipo de existência
o mesmo título De Viris lllustribus. Dênio, o Peque- e outro, de forma que este último poderia praticar
no, foi o autor da obra canônica mais importante do todos os abusos contra a caridade e o amor ao próximo
Ocidente, conseguindo estabelecer como centro da — des- de que resguardasse a existência dos primeiros,
história o nascimento de Jesus Cristo. Podemos nos através do dinheiro e privilégios sociais. Assim, foi
lembrar ainda de Marcelino Comes, A. Jordânio, Vitor formado um pacto, que prevaleceu em todo tipo de
de Vita, Liberato, Victor de Tunnuna e Mário, bispo relacionamento econômico, político e social — e
de Lausanne, que deixaram importantes documentos continua até hoje, em detrimento da verdadeira
his- tóricos, como uma História Universal, sob o realidade.
nome: De Summa Temporum vel de Origine
Aetibusque Gentis Romanorum e História da
Perseguição da Província da África no Tempo de
Geiserich e de Hunerich, Reis dos Vândalos. Podemos
observar que a atenção dos historiógrafos estava
voltada para o campo eclesiás- tico, desprezando todo
o vasto mundo exterior, que pertence ao mesmo
Criador.

Bento, Introdutor do Platonismo


na Prática Social
Nessa ocasião surgiu o pai do monaquismo,
Bento (ou Benedito). De família rica, recebeu uma boa
educa- ção; enviado para Roma para poder melhorar
seus estu- dos (em 595), procurou fugir aos maus
exemplos da so- ciedade romana, retirando-se para
Subiaco onde fundou vários monastérios. Este é o
aspecto mais importante, para se perceber a ideia
errônea dos cristãos medievais, que dividiram a
sociedade entre bons e maus, o grupo de eleitos e o dos
condenados, gerando a mais séria divisão social de
toda a humanidade. De outro lado, o santo for- tificou
a ideia de fuga à consciência dos erros, acreditan- do que
seria possível viver sem defeito — dentro de uma visão
invertida onde colocou a conduta sexual como a mais
danosa. Existe ainda um terceiro erro que, prova-
velmente, é o mais grave de todos: a permissão que os
indivíduos mais responsáveis concederam ao chamado São Bento, fundador da Ordem dos Beneditinos
laicismo, para se viver como se quiser, pensando haver

9
Capítulo
13

Gregório, O Grande

OS ÚLTIMOS ESTERTORES DA
CIVILIZAÇÃO MAIS PATOLÓGICA QUE
EXISTIU,
REVESTIDA COM UMA
MÁSCARA DE CRISTIANISMO
(DE 553 A 800)
ciência psicopatológica tri- lógica, nesta nova fase da
O primeiro período medieval de 123 anos foi mais
profícuo do que o próximo (que veremos agora, de
humanidade.

247
anos), porque conservou ainda as características origi-
nais dos primeiros cristãos e, principalmente, não
havia sofrido a violenta institucionalização, que
deformou suas características divinas: liberdade,
verdade e bele- za; assim sendo, a sociedade passou a
coibir tudo aquilo que não fosse determinado pela
mente de um grupo de pessoas pretensamente
iluminadas, inaugurando a era mais invertida de toda a
história.
A maior personalidade desta época foi Gregório,
o Grande, papa, doutor da igreja, asceta, místico e
um excelente administrador; podemos dizer que sua
influência se estendeu até o século XII — para não
dizer que, até hoje, sua orientação de uma forma ou
de outra é seguida. Nascido em Roma em 540, entrou
na carreira política; foi prefeito de sua cidade natal,
vendeu parte de seus bens, fundando seis mosteiros
na Sicília e um sétimo na própria Roma — e, ele
mesmo, seguiu a carreira religiosa.
Gregório conseguiu grandes resultados porque foi
um verdadeiro romano, levando para o claustro toda a
beleza e dinamismo de uma das mais belas
civilizações que já houve; realizou a junção do ideal
filosófico do seu país ao da sociedade religiosa —
tornando-a am- pla e realizadora, como foi o seu povo.
Mas, além da atividade administrativa, escreveu sobre
o evangelho (homilias), a moral (Moralia, Pastoral e
Diálogos), li- turgia, teologia, disciplina penitencial,
tendo sido asce- ta e místico de grande porte. Ele é
chamado de espírito de contemplação (J. C. Headley,
Lex Levitarum), pois olhava a vida contemplativa
perfeita, um caminho uni- tivo (orações e obras
perfeitas); no entanto, considerava a vida ativa inferior
— estabelecendo uma divisão entre contemplação e
ação. Notem a confusão que fazia, ao pensar que um
tipo de ação era perfeito e outro sem muita
importância; vamos dizer: o trabalho religioso seria
admirável e o laico inferior, em uma clara atitude
platônica. Tal ideia impregnou toda a concepção de
vida da sociedade, condenando-a ao materialismo —
lem- brando as palavras de Cristo aos doutores da lei:
“nem vós entrais no Reino dos Céus e nem deixais que
os ou- tros entrem” (Mateus, cap. 23, vers. 13).
Notamos que o ser humano continuou o mesmo, não
havendo mudança em sua conduta, mas tendo
atualmente possibilidade de conscientizá-la, através da
8
No caminho do ascetismo, Gregório colocou
dois passos: o primeiro seria o da extirpação dos
vícios ca- pitais e, o segundo, a aquisição das
virtudes no qual incluiu as quatro virtudes morais
(prudência, justiça, força, temperança), as três
teologais (fé, esperança e caridade) e os sete dons
do Espírito Santo: sabedoria (contra a estultícia),
inteligência (contra o embotamen- to), conselho
(contra a precipitação), ciência (contra a ignorância)
piedade (contra a dureza), temor (contra a soberba)
e crença. O caminho para alcançar a virtude seria: a)
a humildade: Lumen enim inteligentiae humi- litas
asperit, superbia abscondit (a luz da inteligência
aparece com a humildade e esconde-se com a
soberba);
b) o recolhimento, que faz a alma entrar em si
mesma (se ad se colligat), para se dirigir a Deus; c)
a morte ao mundo e a si mesmo. De imediato, pode-
se notar: a) a ingenuidade do santo, que acreditava
ser possível uma vida sem pecados (vícios capitais)
— mesmo que tenha se referido a faltas graves; b)
um processo de aquisição de virtudes — como se
fossem dependentes do trabalho do ser humano — e
não conaturais à nossa existência, bastando não
rejeitá-las.
No aspecto místico, Gregório imaginou uma
pre- paração imediata para a contemplação
(contemplationis exercitatio), pela elevação da alma
a Deus: seriam as perfeições divinas estudadas em si
mesmas, ou nas cria- turas, usando as palavras
superna aeterna et sublimia, ou sacramenta caelestia
ou spiritualia. A contemplação propriamente dita,
simbolizada por Raquel e Maria (ir- mãs de Lia e de
Marta, que representam a vida ativa) se-

Gregório, O
Grande

8
ria comparada a uma montanha (em termos de que pouco a pouco foi sendo substituída por outra, de
ascenção ascética) e, a um túmulo, por causa da interesse pela posição social, — fenômeno
separação que exigiria; era a percepção de Deus pelo
Espírito Santo
— e tal conhecimento engendraria o entendimento de
si mesmo. Uma humildade profunda desataria a alma
para lançá-la em Deus, dando-lhe uma paz impertur-
bável (jóia celeste), uma caridade renovada e, particu-
larmente, ardente na procura de Deus: porque somos
portadores dos bens superiores e quando o sopro do
Es- pírito nos toca, inflama-se o entusiasmo pela pátria
ce- leste, imprime-se no coração uma espécie de traço
dos passos de Deus; a vida ativa se fundamentaria na
con- templativa. Na chamada vida pastoral, Gregório
faz um apelo a todos os que têm percepção desse
processo con- templativo, para que se dediquem à
ação tratando cada pessoa de acordo com suas
características: o homem, a mulher, o jovem, a
criança, os silenciosos, os tagarelas, preguiçosos,
agitados etc. (H. Leclercq, S. Grégoire le Grand; F.
Cabrol, Grégorien; P. Godet, Grégoire; Denis de
Saint-Marthe, Hist. de S. Grégoire).
Pelas descobertas científicas que realizei, é possí-
vel notar que toda a humanidade recebeu o “sopro di-
vino” e o processo contemplativo já é existente neste
mundo, em relação à maravilha material criada (veja o
livro A Glorificação). De modo que deveríamos ter con-
seguido chegar ao grau máximo de desenvolvimento
— o que não foi possível ainda, devido à nossa
exagerada inveja. Desde que nascemos, estamos nesse
universo divino; basta aceitá-lo. A diferença
fundamental entre o processo religioso e o científico é
que este último de- monstra que o ser humano é o
único culpado de não viver toda a bondade, grandeza e
maravilha nas quais foi criado; que não precisamos
criar técnicas místicas para chegar a Deus — mas
saber por que recusamos viver com ele.
A região da Espanha (que abrangia também
Portu- gal) contou com Martinho de Dume, ou de
Braga, que dedicou parte de sua vida para a conversão
dos suevos, tribo germânica que invadiu a península.
Escreveu For- mula Vitae Honestae (dedicada a um
jovem rei suevo), que é um tratado sobre as virtudes
cardiais: prudência, magnanimidade, continência e
justiça; Pro Repellenda Jactantia, De Superbia,
Exhortatio Humilitatis, todos os três combatendo o
orgulho e exaltando a humildade. Prestando atenção,
vemos ainda, até o século VI, um cristianismo
interiorizado, uma atitude firme de amor ao Criador —

9
presente até hoje, que causou o grande afastamento
do ser humano de Deus (E. Amann, Martin de
Braga).
Leandro era originário de Cartagena; muito
rela- cionado com a nobreza, o seu trabalho
fundamental foi a inauguração do Concílio de
Toledo em 589, seguindo- se uma série de dezoito
concílios, até o ano 701. Aliás, o direito espanhol
foi baseado nestas leis eclesiásticas de união da
Igreja ao Estado que, sem dúvida alguma, causaram
grande prejuízo à nação. Dez anos mais tar- de
(711) os árabes entraram na Espanha (E. Amann,
Léandre de Séville, dans Théol., Col. 96-98).
Isidoro de Sevilha foi arcebispo durante 36 anos,
tendo, no IV Concílio de Toledo, insistido na
obrigação do celibato para os padres.
Juntamente com Cassiodoro, Boécio e
Gregório, foi um dos quatro pilares na formação da
mentalidade da Idade Média — todos eles sob a
inspiração do agosti- nismo. Sobre a vida ativa e
contemplativa, Isidoro resu-

Papa Isidoro

9
me Agostinho e Gregório; sobre a oração e os estudos, Messias; “tudo o que ligardes sobre a Terra, será ligado
ele recomenda a Escritura, mostrando-se severo com também no céu” (Mateus, cap. 18, vers. 18), para jus-
os autores profanos, notadamente os poetas —
aumentan- do o abismo entre o campo religioso e o
leigo, querendo reduzir mais ainda o mundo do
Criador (M. Menendez y Pelayo, S. lsidore et Son
Rôle dans L’Hist. lntell. de L’Esp., dans Dict. Théol.,
col. 98-111). Podemos citar ainda Braulio, Ildefonso e
Juliano da Espanha.
Na Gália tivemos Gregório de Tours, célebre pelo
trabalho História dos Francos, que compreende um
total de dez volumes. Realizou uma visão comparativa
entre os atos históricos e eclesiásticos, parcializando
extre- mamente a compreensão da existência humana
— era o platonismo que dominava amplamente o
pensamento medieval (H. Leclercq, Gregoire de
Tours, dans Dict. Arch. col. 1711-1713). Na Grã-
Bretanha, Beda, o Ve- nerável, iniciou o povo inglês
no conhecimento de uma sólida cultura intelectual
cristã, no século VII.

Os Penitenciais
Nessa época surgiu uma preocupação muito gran-
de a respeito do pecado, nos livros chamados peniten-
ciais — contendo uma indicação sobre a maneira de
obter o perdão de cada pecado. Por exemplo: os atos
mais graves, incesto, parricídio e perjúrio seriam per-
doados com o exílio do pecador, ou sua reclusão em
um convento por toda a vida, ou por dez, sete, três
anos; para as faltas de gravidade mediana, a pessoa
teria de se submeter a jejuns mais ou menos
prolongados, ou repetidos durante a quaresma, anos,
ou através de pre- ces, flagelações, esmolas, etc..
Podemos localizar, neste ponto, a grande contradição
em que caíram os funcio- nários religiosos, ao
pretenderem se tornar juízes sobre o bem e o mal,
donos da consciência do ser humano. Tal interesse,
iniciou-se em Roma, dentro dos mosteiros e sua
prática somente mais tarde chegou aos fiéis. Da- qui
por diante, o aspecto espiritual do cristianismo foi
sendo substituído pelo desejo de domínio psicossocial
sobre os seus adeptos — inaugurando-se um período
de lutas políticas entre os vários grupos de mando.
Cristo referiu-se claramente a dois sacramentos:
batismo, a que ele mesmo se submeteu, e a eucaristia;
a confissão, extrema-unção, ordem, crisma e matrimô-
nio foram organizados pelos funcionários religiosos
— através da interpretação de algumas palavras do
9
tificar a confissão; “não separe o homem o que controvérsia que teve com Gregório, o Grande.
Deus uniu” (Mateus, cap. 19, vers. 6), para criar o Um grande asceta oriental foi João Clímaco, ere-
matrimô- nio; a extrema-unção, ordem e crisma mita, que escreveu Scala Paradisi (Escada do Paraíso),
constituíram um cerimonial para efeito mais social. onde recomenda três tipos de conduta: 1) renúncia ao
De outro lado, foram instituídas inúmeras leis, que mundo, 2) desprendimento interior, 3) não desejar a
aumentaram sensivelmen- te o número de pecados e re-
pecadores. Por exemplo: obri- gatoriedade aos atos
religiosos dominicais; vamos dizer que foi
organizado um tipo de existência religiosa mais
baseada no aspecto social, incentivando a atitude
mas- carada — fugindo a um trabalho interno de
convicção, amor pela verdade e de realização do
bem e da justiça na terra, uma existência voltada
para realizar a vontade do Criador. Os atos externos
têm de ser a manifestação do que se passa em nosso
interior — se não forem as- sim, serão inúteis e até
prejudiciais.
Nesta era de grande espiritualização, que está
vol- tando sua atenção aos problemas fundamentais
do ser humano, ou seja, ao orgulho, arrogância,
teomania e in- veja (que são causa de todos os
outros), será necessária uma abordagem diferente
na questão de sexo — como tem sido tratado até
agora — porque são fatores pro- fundamente
espirituais, que envolvem filosofia de vida, modo
de viver, trabalho, tipo de religiosidade, de rela-
cionamento humano enfim de toda a nossa maneira
de ser da qual ninguém escapa: leigos e religiosos,
domi- nantes e dominados. Finalmente (e isto é
muito impor- tante que seja considerado), o
funcionário religioso ao se colocar como juiz do
bem e do mal — contrariando a recomendação de
Cristo, para que não julgasse — le- vou à
organização das famosas indulgências (afinal de
contas, uma tentativa de barganha com o Criador)
moti- vo alegado por Lutero, que redundou no
século XVI na divisão interna da igreja, com a
criação de vários ramos independentes: luterano,
calvinista, anglicano.
No Oriente, a legislação eclesiástica bizantina
conservou estreita ligação com o direito civil,
admitin- do o divórcio e afastando-se da orientação
romana; o Concílio de Trullo colocou 102 cânones
novos em in- teira oposição aos latinos, depois que
a Igreja de Cons- tantinopla foi dirigida por João
III, o Escolástico, e por João IV, o Jovem: o
primeiro era um advogado muito ambicioso que aos
47 anos se tornou eclesiástico; o se- gundo foi
famoso por sua austeridade e principalmente pela

9
alização dos sonhos na religiosidade, para não cair nas os meios, obscurecendo a percepção de pensadores e
decepções. Podemos ainda apontar Zósima, conferen- místicos. Não havia ne-
cista sobre o ascetismo; João, o profeta, discípulo de
Barsanufo e autor de várias cartas espirituais; Simão
Estilita, o Jovem, autor de trinta exortações ascéticas;
Talássio, autor de quatrocentas sentenças sobre a cari-
dade, continência e direção espiritual; João de
Carpatos em trabalhos de exortação aos monges (S.
Salarille, S. Jean Climaque: Sa Via — et Son Ouevre;
S. Vailhé, L ‘ Orient Chrét., pág. 375-379).
Podemos notar claramente que à medida que en-
tramos de forma profunda na Idade Média, vai
havendo uma carência incrível de homens capazes e
a primei- ra ideia é que tal estado adviria do
cristianismo; pou- cos param para pensar que a
verdadeira mensagem de Cristo não foi devidamente
compreendida sendo que a orientação seguida, nesse
tempo, foi predominantemen- te filosófica, no sentido
platônico — o que significa, para as descobertas da
Trilogia Analítica, um período extremamente doentio,
de grave alienação psicossocial. Todos os verdadeiros
valores da civilização foram ali- jados porque as
pessoas daquele tempo não aceitavam a consciência de
seus erros, vivendo no “doce” alhea- mento: os que
habitavam os conventos, castelos e palá- cios
acreditavam que eram santos e perfeitos, só porque
não enxergavam a própria conduta de megalomania e
inveja. Não é sem motivo que os altares das igrejas an-
tigas contem imagens de santos, imperadores, nobres e
até de militares.
Nascido no ano 660, André de Creta tornou-se
o maior litúrgico do século VIII; teólogo mariano de
nomeada, difundiu a ideia de uma intervenção espe-
cial de Deus no momento em que Maria foi concebida,
colocando o pecado original na concupiscência (e não
na vontade invertida, localizada na vida psíquica, na
alma). A mãe de Cristo nasceu com total controle sobre
sua vontade, não tendo sido prejudicada pela chamada
culpa original, como aconteceu com todos os descen-
dentes de Adão e Eva. (M. Jugie, art. lmmaculée Con-
ception, dans Dict. Théol., col. 916-919). Outra
questão que agitou a Idade Média foi o culto às
imagens, que prosseguiu até a época da Reforma,
quando as igrejas reformadas aboliram a veneração
aos santos.
À medida que os séculos medievais vão
passando, mais e mais se empobrecia, por força de
uma concep- ção de vida inteiramente fora da
realidade — um plato- nismo que penetrou em todos

9
nhuma originalidade e os teólogos (os únicos cer- ta só a vida religiosa e uma total oposição à
homens de estudo que ainda havia) eram repetitivos consciência de qualquer erro; uma atitude de desprezo
das velhas teses. Assim foram Eusébio, Eulógio de pelo mundo
Alexandria, Ti- móteo de Constantinopla, Teodoro
de Raithou, Anas- tásio I (de Antioquia), Anástasio
(o Sinatra), abade do convento da Montanha Santa.
O assunto mais discutido era sobre a encarnação,
tendo o patriarca Sérgio de Bi- zâncio (mais homem
do Estado do que da Igreja) afir- mado: “Um só é o
mesmo Filho de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo,
que age por ações divinas e humanas; são duas
energias, duas vontades contrárias, uma divina e
outra humana” (Carta enviada por Sérgio a Ciro de
Ale- xandria: Mansi, pág. 529 e 532). Vemos aqui a
maneira de pensar da época, dualisticamente, como
se houvesse um Reino de Deus e outro do Mal —
do qual o ser hu- mano faria parte e em total
oposição ao divino.
Sofrônio de Jerusalém de simples monge foi
no- meado patriarca no ano 634, tendo apresentado
uma doutrina cristológica exata; diz ele: “Cristo é
um e dois (en kai dío); ele é um sob o aspecto de
hipóstase e de pessoa, ele é dois sob o aspecto da
natureza e de seus atributos que lhe são essenciais”.
Sofrônio corrigiu o erro de Sérgio, substituindo a
frase “duas vontades”, por duas energias, aceita
pelo concílio de 680 (J. Bois, Constantinopla, III
Concílio, em Dict. Théol., col. 1262-1263).
Máximo nasceu em Constantinopla no ano
580; pertencente a uma família de condição social
elevada, tornou-se primeiro secretário imperial; no
ano 613, desgostoso com as honrarias, despediu-se
do mundo e ingressou no Mosteiro de Chrisópolis;
em 662 foi fla- gelado, tendo a língua e a mão
amputadas — degredado para o exílio no Cáucaso,
morreu em agosto do mesmo ano. Dizia que Cristo
é o nosso ideal de deificação, por- que sua vontade
humana (ainda que distinta da divina) estava
inteiramente submetida ao Verbo. Do mesmo
modo, a grande lei da vida cristã seria a imitação de
Cristo, principalmente na vida religiosa. Em
seguida, fala de más tendências, classificando-as
em oito catego- rias, todas elas oriundas da
concupiscência e agravadas pela intervenção dos
espíritos maus — e, o “retorno à paz interior, que
supõe uma grande atenuação da con- cupiscência,
consiste na volta à integridade da natureza, que não
permite qualquer mancha e nenhuma atração ao
vício” (J. Tixeront, Hist. Dogm., III, pág. 188-192).
Este era o pleno espírito medieval que considerava
9
e suas coisas, como se ele não fosse a maravilhosa doutrinal. Considerava a vida religiosa como uma luta,
cria- ção de Deus. um combate contra as paixões, o demônio e também
O século VIII caracterizou-se por intensa discus- em prol da integridade da fé e moral cristãs — em
são sobre o culto das imagens, que tiveram grande di- uma clara atitude platônica de dividir a humanidade
fusão durante os primeiros setecentos anos da igreja. A em dois aspectos fundamentais: um bom e outro mau.
primeira fase de opressão iconoclasta durou de 725 a É fácil de observar que, à medida que a Idade
780 sob o reinado de Leão III, e a segunda sob Cons- Mé- dia avançava, os grandes talentos iam rareando;
tantino V (740-775). Germano, Patriarca de Constan- um ou outro santo tentava fazer-se ouvir, sem uma
tinopla, foi um seu grande defensor, principalmente maior re- percussão. Por causa deste ambiente de
da mãe de Deus, afirmando que ela era dotada de uma grande deca- dência, apareceu uma nova forma de
incomparável pureza e mediadora na distribuição dos religiosidade, que, praticamente, destronou o
bens sobrenaturais. Taraiso, Nicéforo (o Confessor) e cristianismo em quase toda a região que fora o seu
Método foram outros patriarcas iconófilos (J. Tixeront, berço; norte da África, Oriente Médio e sul da Ásia; o
Hist. Dogm., III, pág. 435-483). João Damasceno fez seu nome é Islamismo.
uma teologia das imagens, afirmando que: a) é impos-
sível e ímpio representar Deus (que é puro espírito),
mas não Cristo, a Virgem, os santos, os anjos que apa-
recem sob forma humana; b) é legítimo prestar culto a
estas imagens, cujas pessoas remontam a Deus, força
de todo bem; c) as vantagens das imagens e o seu culto
são múltiplos: instruem, chamam aos bens divinos e à
piedade. Dizia que Deus é o Bem, tendo presciência
do futuro livre, sendo causa de toda bondade — aliás,
achava que a providência seria a presciência. A
predes- tinação estaria condicionada à vontade livre do
homem. Quanto aos sacramentos, jamais disse coisa
alguma so- bre o casamento e a extremaunção; fez
uma simples alusão à confirmação, à penitência e à
ordem; dedicou toda a atenção ao batismo e
eucaristia. O santo expôs a presença de Cristo com um
realismo quase excessi- vo, recusando-se a ver os
acidentes eucarísticos (cor, o gosto do pão etc.,
envolvendo a substância divina — transubstanciação)
— a eucaristia seria o verdadeiro sacrifício não
sangrento e universal, predito por Mala- quias e
figurado por Melquisedeque, que nos faz verda-
deiramente participar da natureza divina; daí, o nome
participação (metalepsis). O que geralmente notamos
no santo é um grande equilíbrio e João Damasceno foi
uma luz de sabedoria dentro daquela época de obscu-
ridade (M. Jugie, Jean Damascène (Saint), dans Dict.
Théol., col. 693-751). Teodoro, o Monge, foi outro
san- to defensor das imagens; não era filósofo ou
teólogo,
propriamente ditos, mas um asceta, um homem de ação O Evangelista, El Greco

9
Capítulo
14

Meca

O ISLAMISMO SURGIU COMO DECORRÊNCIA


NATURAL DA DECADÊNCIA DO
CRISTIANISMO
A história da Humanidade foi sempre vista de acor-
do com as ideias básicas dos que a escreveram: se é
um economista, colocará a questão da riqueza como
os homens passam, mas seus pensamentos permane-
cem entranhados no espírito humano durante gerações
que, por sua vez, edificarão a sociedade. Acredito que
seu principal fundamento (Marx, Galbraith, Adam a Trilogia Analítica trabalha melhor com estes
Smith); se for um religioso, verá a sua instituição re- elemen- tos, porque os acatou inteiramente.
ligiosa como base (cristianismo, judaísmo, islamismo, O começo do islamismo foi no ano 622, com a
hinduísmo); se for um historiador, poderá colocar, ou Hégira, isto é, a fuga de Maomé de Meca para
os poderes políticos (impérios e grupos de mando) ou Medina, morrendo dez anos depois; logo em seguida,
as guerras gerais ou parciais (I, II Grande Guerra, Re- começa- ram as conquistas árabes: a Síria foi
volução Francesa, Soviética, Americana), ou ainda um invadida em 634, a Pérsia em 637, a Índia em 664,
grupo de fatores: genéticos, culturais etc.. Neste livro Constantinopla foi assediada em 669 e em 716, o
estou procurando mostrar que o fundamento da Egito foi conquistado em 642, Cartago em 697, a
civiliza- ção provém de sua maneira de pensar, da Espanha em 711. E todos esses países (com algumas
concepção de existência (Weltanschauung) que, por exceções) permaneceram até hoje com essa nova
sua vez, depende estreitamente da vivência afetiva forma de religiosidade e justamente na região que foi
(fator espiritual), que movimenta realmente o ser o berço do cristianismo: certamente, tal fato não
humano. Por este motivo, aconteceu pelo poderio das armas, mas devido

9
Medina, localizada na região oeste da Arábia Saudita, é a cidade onde Maomé habitou depois de sua fuga de Meca
à crença religiosa. Por exemplo, na Pérsia e no aquela época) significava um maior senso para com a
Império Bizantino, a população voltou-se para o Islã, realidade, pois o platonismo agostiniano medieval ha-
devido a sua atitude mais liberal (ou melhor ainda, via incentivado durante séculos, ao máximo, a aliena-
para escapar da forte opressão social das instituições ção psicossocial do povo. Quando se fala da filosofia
cristãs); dentro do islamismo, o povo adquiriu maior escolástica, que desenvolveu sobremaneira o aristote-
liberdade para se dedicar ao comércio e, lismo através de Alberto Magno e Tomás de Aquino,
principalmente, para se desen- volver filosoficamente, somos obrigados a retornar a este tempo e atribuir a
como os persas que eram volta- dos para a alta nossos irmãos árabes o rompimento dos grilhões da
especulação. intransigência e obscuridade impingidos pelos grupos
A cultura muçulmana floresceu desde a Síria até dominantes pseudocristãos a toda a sociedade. Aver-
as extremidades do oriente e do ocidente conhecidos; roés (lbs Ruxd) nasceu em Córdoba, no extremo opos-
os árabes consideravam Aristóteles mais importante to do mundo muçulmano de Avicena; estudou teolo-
que Platão, e o primeiro pensador que escreveu filo- gia, jurisprudência, medicina, matemática e filosofia.
sofia em árabe, Kindi, deu ao seu livro o nome A Te- Estava interessado em aperfeiçoar o conhecimento de
ologia de Aristóteles. Na Pérsia houve uma abertura Aristóteles, afirmando que a existência de Deus pode-
em direção à Índia, tendo Muhammad lbn Mjsa AlI- ria ser provada pelo uso da razão, independentemente
Khwarazmi introduzido no ano 830 os números arábi- da revelação; admitiu a percepção da imortalidade,
cos, que deveriam ser chamados apropriadamente de colocando-a no intelecto (nous) e não em toda alma
indianos. Omar Khayyan reformou o calendário em (como dizia Aristóteles). E o mesmo fato que acon-
1079; Firdousi, autor de Shahanama, foi comparado teceu com a civilização cristã repetiu-se na islâmica,
a Homero. Os filósofos árabes eram enciclopédicos: devido à oposição fanática que os religiosos fizeram
aceitavam a alquimia, astrologia, astronomia e geo- a todo assunto que não estivesse literalmente tratado
logia. Avicena (Ibs Sina): famoso médico e pensador, pelo Alcorão. Tal fenômeno serve de comprovação às
nasceu em Bokhava, em 980: escreveu uma enciclo- descobertas da Trilogia Analítica, quando conscienti-
pédia que exerceu grande influência no ocidente; era zou (cientificou-se) sobre a unidade que existe entre
bastante aristotélico e essa opção (principalmente para

O Profeta Maomé, recitando o Alcorão em Meca (gravura do século XV)


9
95
Mesquita de Ali

teologia, sentimento (amor) e filosofia, a palavra (ver- mar, através do esplendor da civilização árabe e prin-
dade) — e que uma não pode viver isolada da outra, cipalmente de Avicena e Averrois todo o engano em
assim como a consciência (Espírito de Deus) mostra que os cristãos viviam.
que o Verbo (Cristo) forma uma unidade com o Pai. A Quando uma região se impõe, sobre outra, é por-
filosofia de vida (Weltanschauung) da Idade Média fez que atingiu um grau superior de civilização. No dia em
essa ruptura porque aceitou como seu maior mentor que chegarmos à verdadeira concepção de vida cristã,
a ideia de Platão, sobre a existência de dois campos todo o universo, com toda certeza, será banhado por
opostos — até que os novos pensadores dos séculos ela, porque não existe nada mais maravilhoso e
XI, XII e XIII compreenderam e, podemos ainda afir- atraente do que o afeto e o pensamento de Deus.

BIBLIOGRAFIA
Russel, Bertrand, História da Filosofia Ocidental,
livro 2 °, A Cultura e a Filosofia Maometanas, pág.
126
a 135.

Sciacca, Michele Federico, História da Filosofia, A Filosofia

9
Capítulo
15

Carlos Magno

MORTE DA CIVILIZAÇÃO DIALÉTICA


“PLATÔNICA CRISTÔ E
NASCIMENTO
DE UMA NOVA CIVILIZAÇÃO RACIONALISTA,
PSEUDAMENTE CRISTÃ
O século IX assinala a passagem da civilização
do mundo latino e oriental para o anglossaxônico.
da e criante, ou Deus Pai, princípio primeiro e incriado
de todas as coisas; 2) a Natureza criada e criante, ou o
Carlos Verbo, o Filho, que seria o mundo inteligível das
Magno construiu o seu império que abrangeu, além da ideias primordiais, criado por Deus e origem do
região onde hoje é a França, toda a Europa Central mundo sen- sível; 3) a Natureza criada e não criante, o
(nor- te da Itália, Suíça, Áustria, Alemanha, Bélgica, mundo das criaturas sensíveis, que é criado e não cria
Holan- da, atualmente) e parte ainda de alguns países — pois não é o indivíduo que gera outro, mas a
eslavos. De maneira que a filosofia de vida espécie, por virtude do espírito; 4) a Natureza não
(Weltanschauung) sofreu mudança substancial, que já criada e criante, ou me- lhor, o próprio Deus, como
poderemos notar nos novos pensadores. fim absoluto de toda nature- za criada, causa final de
Alcuino (735-804) é considerado o verdadeiro todos os seres. É fácil perceber o forte platonismo de
au- tor do renascimento filosófico na França e que John Scot estava imbuído, na segunda proposição,
Alemanha. Cabrol chamou-o de “Erasmo de seu ao afirmar a existência do mundo ideal, do filósofo
tempo”, dizendo que “sua concepção da ciência era grego. Aliás, ele dizia que Platão era o maior filósofo,
original; seu método dialético tinha uma energia a criação eterna, admitindo ainda o panteísmo e a
germânica” (P. Môncelle, col. 35). Ele fez uma revisão origem do pecado original no sexo.
da Bíblia latina e o primei- ro catecismo conhecido: Gostaria de trazer ao leitor a percepção de
Perguntas e Respostas para as Crianças. Rabano Maur Erígena sobre o Criador, ao dizer que “ele é
(776-856) foi para a Alemanha o que Alcuino tinha infinitamente maior do que aquilo que realizou;
sido para todo o Império; comen- tou toda a Bíblia e portanto, o mundo está todo em Deus, mas ele não está
escreveu um tratado filosófico, De Anima, desprovido no mundo e o transcende; Deus, atingindo tudo, cria
de qualquer originalidade (F. Ver- net, col. 1224- todas as coisas e torna-se tudo em tudo, ficando acima;
1226). No século IX, podemos apontar Agobard, o mundo é idêntico a Deus, mas Deus não é idêntico
arcebispo de Lyon, durante o período de 816 a 840; ao mundo” (John Scot Erígena, De Divisione
via no culto às imagens um perigo de criação de Naturae). Dizia que a alma hu- mana reproduz em si
superstições. Hincmar (806-882), arcebispo de Rei- os momentos do processo divino,
ms em 845, à semelhança de Agobard, esteve ligado a
todos os principais acontecimentos sociais da época e
rejeitou o predestianismo absoluto de Gottschalk, in-
sistindo sobre a liberdade humana (com Ratramne) e
tentando salvaguardar os direitos do poder divino.
John Scot Erígena, nasceu na Escócia (daí, o seu
nome), sendo provavelmente o espírito mais
penetrante de seu tempo; na disputa entre Hincmar e
Gottschalk, o pensador irlandês foi favorável ao
primeiro, escrevendo o tratado Da Divina
Predestinação, onde afirmou que tanto a razão como a
revelação são fontes da verdade; porém, se houver
algum conflito, a razão deverá ter pre- ferência. Seu
trabalho foi rejeitado em dois concílios (855 e 859), só
não sendo condenado, devido ao apoio do rei e ao
espírito mais tolerante do povo nórdico — podendo
continuar trabalhando com toda liberdade. A sua obra
mais importante foi Da Divisão da Natureza, onde
distingue quatro espécies: 1) a Natureza não cria- Carlos Magno e Papa Adriano I

9
contendo de forma inata todas as coisas do universo; lecendo rígidas regras sociais para a salvação eterna do
através do conhecimento, o homem volta-se para Deus
e, com ele, todo o universo — pois somente no
Criador, princípio e fim de toda a criação, o ser
humano encontra sua finalidade e felicidade completas
(Jean Scot Erigè- ne: Sa Vie, Son Oeuvre, As Pensée,
Paris, 1933).
Não é difícil notar que a orientação agostiniana
desse extraordinário pensador prestou-se muito para
desenvolver o processo de teomania, ao querer identi-
ficar o universo com Deus (panteísmo, como falam os
filósofos). Os dirigentes do Período Medieval comete-
ram tantos desatinos, justamente porque se colocavam
como verdadeiros deuses donos do destino dos
homens. De outro lado, temos de admitir que as
incríveis des- cobertas de Agostinho não puderam ser
aproveitadas integralmente por causa da ausência da
experimentação científica, naquela época. É por este
motivo que Baro- nius qualificou o século seguinte
(X) como sendo de “ferro “ , devido a sua esterilidade,
deformidade e obs- curidade (J. de Ghellink, Le
Mouvement Théologique du Xlle sièc., Paris, pág. 29-
41).
O mesmo fenômeno, que ocorre neste final do sé-
culo XX, aconteceu no encerrar dos primeiros mil
anos de cristianismo, quando todos os seus valores
passaram a ser questionados. Foram os árabes, que
apresentaram uma civilização superior, os místicos e
principalmen- te os pensadores que trouxeram
contribuições e deram novo impulso para a
humanidade — com a diferença de que, agora, são os
cientistas que a estão renovando. O século XI surgiu
como se fosse o primeiro de uma nova civilização
cristã, simplesmente porque come- çou a mudar sua
filosofia de vida do platonismo para o aristotelismo;
ao mesmo tempo, foram fundadas várias ordens
(Camaldulense, Cartuxos, Cisterciences); foi proibida
a simonia (comércio com as coisas da igreja) e
valorizado o celibato dos sacerdotes. Paulatinamente,
a humanidade voltou ao processo dialético socrático
(ou cristão), aceitando algo fora do misticismo
tradicional, como sendo pertencente ao mesmo
Criador, que pensa- vam servir, reintroduzindo na vida
quotidiana todos os outros valores — daí, a
organização das universidades, a construção das
catedrais e o incentivo do ensino das sete artes
liberais, ou seja, do trívio (gramática, retóri- ca e
dialética), introduzidas no Império Carolíngio pelo
monge inglês Alcuino.
À medida que o poder temporal era retirado, os
sacerdotes aumentavam seu prestígio religioso estabe-
ser humano: os sacramentos só poderiam ser adequada”, diz irreveren- temente Bertrand Russel, em
adminis- trados por eles (eucaristia, absolvição, seu livro História da Fi- losofia Ocidental (A Filosofia
extrema-unção); “devido aos seus poderes Católica), à página 114; a grande maioria dos
miraculosos, podiam determi- nar se um homem funcionários religiosos sempre se preocupou com a
deveria passar a eternidade no céu, ou no inferno; se sobrevivência de sua instituição reli- giosa e não com
morria depois das cerimônias apro- priadas, iria ao Deus, espalhando pelo mundo a ideia que só através
céu, contanto que houvesse se arrepen- dido e deles é que poderíamos viver próximos do Criador.
confessado; antes de ir para o céu, teria de passar A era medieval até o século X falhou, porque pre-
algum tempo (ou um período mais longo) sujeito às tendeu construir uma sociedade inteiramente hipócrita,
pe- nas do purgatório – os sacerdotes poderiam
reduzir esse tempo por meio de missas em sufrágio
de sua alma, mediante uma remuneração
Carlos Magno

99

1
mas revestida de uma máscara cristã; a partir do século que a escolástica e o segundo não admitia outra filo-
XI, tendo de haver a separação entre o poder tempo- sofia além da fé, parecendo-lhe todo o restante “terres-
ral e o religioso, as instituições religiosas procuraram tre, animal, diabólico” e as artes liberais uma estultície
conservar o seu prestígio social, usando argumentos — esquecendo que tudo o que existe vem do Criador,
racionais, lógicos, mas pouco espirituais. Nessa épo- que é a própria beleza também (De Santa Simplicitate,
ca tivemos Gerberto (935-1003), que se tornou papa S., pág. 145). Pedro Damião foi mais moralista e as-
com o nome Silvestre II, adquirindo grande renome ceta; chegou a dizer que Deus poderia realizar coisas
pelos seus conhecimentos científicos, prodigiosos para contrárias à lei e, inclusive, desfazer o passado (ideias
aquela época; ele se ocupou muito pouco com a teo- refutadas por Tomás de Aquino); opunha-se à dialética
logia, voltando-se para o estudo de Aristóteles, acei- e via a filosofia como serva da teologia (G. Bareille,
tando a solução realista do pensador grego, a respeito Damien, dans Dict. Théol., col. 40-54). B. Lanfranc
dos universais, isto é, que as essências estão nas coisas foi jurisconsulto, professor de direito e de literatura em
individuais como suas formas imanentes. As outras Avranches, tornou-se monge e diretor da escola do
duas ideias sobre tal questão são o conceitualismo, que mo- nastério; mais tarde foi bispo de Canterbery;
afirma serem os universais apenas conteúdos de nossa sempre se opôs ao que chamava de mistura da
mente e o nominalismo que, como a palavra diz, o uni- filosofia com a teologia. considerando-a imprudente e
versal seria só um nome. dialética. (E. Amann, e A. Gaudel, Lanfranc, em Dict.
Fulberto (960-1028) e Pedro Damião (1007- Théol., pág. 2558-2570). Todo o terreno estava
1072) se opuseram ao novo rumo da civilização preparado para o desenvolvimento do mais fecundo e
carolíngia; afirmava o primeiro que a teologia era belo período do pensamento filosófico e teológico da
mais positiva humanidade.

10
São Pedro Papa Leão III coroando Carlos Magno
Capítulo
16

Anselmo

A ESCOLÁSTICA CONSTITUIU-SE
NA TENTATIVA DE CONSTRUIR UMA
(QUASE CONSEGUIDA) FILOSOFIA
PERENE PARA A HUMANIDADE

10
A Escolástica surgiu em decorrência da nova men-
talidade formada dentro do Império. Carolíngio, após
a instituição do trívio (estudo da gramática, retórica e
afirmou que o ser humano encontra uma grande
quantidade de coisas, que podem ser classificadas de
mais ou menos boas;
dialética) e do quadrívio, ou ensino científico
(aritméti- ca, geometria, astronomia e música);
podemos afirmar que o novo interesse, que houve com
a filosofia, foi re- lacionado diretamente ao estudo da
dialética e ao espí- rito objetivo, especialmente de
Oxford e de Paris. Não podemos nos esquecer de
Alcuíno (735-804), que veio da Inglaterra, contratado
diretamente por Carlos Mag- no, para a criação da
famosa escola palatina, na qual lecionaram o
historiador Paulo Diácono, o gramático Pedro de Pisa,
o teólogo Paulino de Aquilea e onde o próprio
imperador tornou-se aluno.
Anselmo (1.033-1.109) representa o ponto mais
alto de transição entre o espírito obscuro medieval e a
nova mentalidade cristã que aparecia. Tornou-se mais
conhecido pelo seu famoso argumento ontológico so-
bre a existência de Deus, afirmando que “o ser do qual
não é possível pensar nada maior, não poderia existir
apenas na inteligência” (Líber pro insipiente, pág.
241- 248). Em outro livro (A Libertação) já expliquei
que o engano dessa afirmação é o de querer colocá-la
dentro do raciocínio e não na consciência porque esta
última capta o que existe, enquanto que a inteligência
é fator parcial da personalidade — inclusive ligada à
fantasia que pode imaginar o que não existe.
Immanuel Kant (1724-1804) chamou-o de argumento
ontológico, por- que se baseia em três pressupostos: a
noção de Deus, fornecida pela fé; a convicção de que
haver no pensa- mento já é verdadeiramente existir;
a exigência lógi- ca de que a noção de Deus, no
pensamento, afirme sua existência na realidade.
Contudo, prestando bem aten- ção, veremos que
Anselmo percebeu que o ser huma- no tem perfeita
consciência da existência do Criador
— tendo errado, quando remeteu tal fenômeno para o
campo do intelecto. Aliás, a tentativa de demonstrar a
existência de Deus pela razão constitui uma
megaloma- nia — desde que o Infinito não cabe no
finito.
Anselmo escreveu dois livros, Monológio e Pros-
lógio, a pedido dos monges da abadia de Bec, por
causa do fastio que sentiam diante de tantos séculos de
pen- samento platônico, intransigente e alienado —
identifi- cando este último fenômeno, com os escritos
da Bíblia. Usando sua intuição genial, o pensador

10
ora, uma bondade relativa supõe necessariamente colecionou 150 questões de teologia e demonstrou que
outra (bondade) absoluta — pois só os bens os padres da igreja entravam
absolutos funda- mentam os relativos. O segundo
argumento diz que as coisas não podem existir por
si mesmas, ou melhor, são relativas; logo, tem de
haver um ser absoluto para que hajam os relativos.
A esta altura, o leitor já poderá ter visto que
hou- ve uma enorme alteração entre a mentalidade
alienada que vigorou desde o século X e a nova
percepção que se abria agora e, novamente, por
força de uma volta aos ideais gregos antigos, que
os árabes introduziram na Europa Central. É fácil
notar que Anselmo não foi racionalista, tendo
acatado naturalmente a existência do Criador;
também não foi tão platônico como quiseram
chamá-lo — usou tanto argumentos de Agostinho:
“Se me engano, eu sou, pois aquele que não é,
não pode ser enganado” (Cidade de Deus), como de
Sócrates, no sentido de ver a alma como a realidade
interior, poden- do conter sabedoria ou ignorância,
bondade ou maldade (Sócrates, Taylor, Doubleday,
New York). Anselmo re- jeitou tanto o pessimismo
de Agostinho (a humanidade, sendo uma massa de
perdição), como o racionalismo aristotélico, que
passou a ver a razão como o principal fenômeno
humano — foi um novo Sócrates, psicólogo, do
Segundo Milênio que começava (P. Ragey, Hist. de
S. Anselme, Paris; P. Richard, Anselme de
Canterbury, dans Dict. Hist., col. 464-485).
Pedro Abelardo (1079-1142) nascido no
vilarejo Pallet, perto de Nantes, tornou-se um
excepcional pro- fessor de filosofia e teologia em
Paris; ocupou-se muito das relações entre razão e
fé, geralmente dando priori- dade à primeira,
afirmando que a verdade da fé, poderia ser
entendida por intermédio da razão. Esta atitude con-
trariava a orientação da época, fortemente
impregnada pela intransigência platônica — tendo
sido emasculado (a mandado de Fulbert), com a
desculpa de que poderia abandonar sua sobrinha
Heloísa. Abelardo chegou a di- zer que os filósofos
gregos anteciparam muitos aspec- tos da revelação
cristã — o que lhe causou hostilidade por parte dos
teólogos, que afirmavam que tal assunto devesse ser
meditado apenas na solidão dos claustros.
Finalmente, o famoso pensador mostrou que a
morali- dade não reside na obediência exterior a um
conjunto de regras, porém no íntimo do coração e
da mente — co- locando em questão o poder de
absolvição dos sacerdo- tes. No seu livro Sic et Non
10
constantemente em contradição dizendo sim e não às sobre a vida e Bernardo (1090-1153) da visão afetiva.
mesmas perguntas (Rémusat, Abélard, sa Philosophie, Este foi um dos maiores místicos da humanidade e,
sa Théologie; Vacandard, Abélard, sa Doctrine, sa conforme o espírito da época, subestimou o mundo,
Mé- thode). O leitor pode notar o grande valor de induzindo uma cruzada suicida contra os árabes, di-
Abelardo que aceitou o processo dialético, voltando a rigida por Luiz e Conrado, em dezembro de 1146 e
filosofar com incrível capacidade; ele inaugurou o janeiro de 1147; foi responsabilizado por tal desastre,
racionalismo, que passou a comandar grande parte da mas não deixou de tentar organizar uma outra (cruza-
civilização oci- dental até hoje. da) que, felizmente, não foi levada adiante. Em seus
Nesse período medieval já era nítida a divisão en- trabalhos inspirou-se em Gregório, Ambrósio e, prin-
tre o mundo dos pensadores e o dos místicos cipalmente, em Agostinho, tendo sido teólogo profun-
(sentimen- to); tanto os primeiros como estes últimos do e sobretudo um místico, recebendo posteriormente
viam-se com rivalidade, pretendendo que seus o nome Doctor Mellifluus.
próprios campos de trabalho fossem os básicos. Tal Bernardo vê a humildade, como irmã da verdade,
fato não contribuiu para o bom desenvolvimento da sendo o primeiro degrau para o conhecimento de si
civilização, porque a levou a permanecer dividida mesmo; o segundo, seria a compaixão ao próximo e,
exatamente como o doente mais grave o terceiro, a própria contemplação de Deus. De modo
(esquizofrênico), que vive em sua terrível confu- são geral, existiriam quatro atitudes básicas em relação
mental. A consequência de tal situação foi a inter- ao conhecimento: a) os que o procuram, para se fa-
minável separação entre os grupos sociais: religiosos, zer valer, segundo a própria vaidade; b) os que dese-
políticos e econômicos. Especificamente, no domínio jam comprá-lo, como se fosse um comércio vil; c) os
da teologia-filosofia, criou-se mais tarde uma divisão que o querem, através do bem ao próximo, dentro do
entre a facção que dava primazia ao racionalismo (os princípio da caridade; d) e, finalmente, os que pensam
indivíduos de profissão católica) e os que deram mais em edificar a si mesmos, tomando uma atitude de pru-
realce ao sentimento e à vontade (os protestantes, em dência; somente estas duas últimas condutas seriam
sua maioria), desenvolvendo ambos uma visão unila- legítimas. Em sua opinião, a ação doutrinal é espe-
teral sobre a existência. cificamente uma ação espiritual, usando esta incrível
Abelardo é o exemplo da concepção intelectual recomendação: ama nesciri (aprecie sua ignorância);
e uma pessoa não pode ser perfeita, se não desejar ser
mais perfeita, assim como não pode ter maior perfei-
ção, se não desejar uma perfeição mais alta. Todo este
processo seria conduzido pela atitude de humildade,
definindo-a assim: Virtus qua homo verissima sui cog-
nitione sibi ipsi vilescit (é a virtude pela qual o ho-
mem despreza, para si mesmo, o seu conhecimento); a
verdade, que frui da humildade, conteria três graus: o
reconhecimento da própria miséria; o compartir da mi-
séria do outro e a purificação da alma para contemplar
a Deus. Classifica doze graus de orgulho que impedi-
riam o ser humano de alcançar a perfeição, ou seja:
1) curiosidade, 2) leviandade de espírito, 3) alegria
louca, 4) jactância, 5) excentricidade, 6) obstinação,
7) arrogância, 8) presunção, 9) hipocrisia. 10) revolta,
11) licenciosidade, 12) e o hábito de pecar.
Bernardo exerceu enorme influência em toda a
es- piritualidade moderna parecendo, o que fez, um
verda- deiro tratado de psicopatologia; colocou-se em
oposi- ção a Abelardo, ensinando a subordinação da
razão à fé, a interioridade da verdade (à maneira
Pedro Abelardo socrática) e

10
a supremacia da vontade sobre o intelecto. Dizia que a grande sucesso. O seu grande mérito foi o de ter mos-
alma seria uma matéria espiritual, sendo uma trado que, tanto Aristóteles, como Platão, poderiam
substância completa, reformulando velhas teses
agostinianas, sob nova roupagem. O famoso santo
colocou-se em franca oposição ao racionalismo, vendo
o valor do sentimen- to (amor), mas colocando o
elemento voluntarioso em posição fundamental — o
que abriu o caminho para John Duns Scot e
principalmente Guilherme D’Ockam desenvolverem
um caminho diverso, cindindo o gru- po cristão: o
voluntarismo levou ao protestantismo, e a ideia do
corpo receber um espírito, redundou nos con- ceitos
espíritas atuais.
O campo da psicopatologia trilógica aproximou-
se dos místicos, devido ao seu aspecto afetivo básico;
sabemos agora que o sentimento (amor) contrariado é
o fundamento dos males humanos, depois que Freud
e principalmente Melanie Klein passaram a trabalhar
com o problema da inveja; portanto, voltamos aos
gran- des místicos da civilização, mas de maneira
científica. A Idade Média decisivamente não foi uma
época dialé- tica: Abelardo (mesmo chamando-se
dialético) tentou reduzir toda a cultura à filosofia;
Bernardo, pelo contrá- rio pensava que a teologia é
que açambarcava tudo; de- pois, o abade de Saint-
Victor, célebre escola parisiense, declarou-se inimigo
dos dialéticos, de Abelardo, Pedro Lombardo, Gilberto
de La Porée e Pedro de Poitiers, denominando-os de
impiedosos e diabólicos (M. Grag- mann, pág. 127).
João de Salisbury concebeu o mesmo tipo de
relacionamento entre a razão e a fé, de Agosti- nho,
colocando todas as coisas sob o crivo da filosofia. O
século XII (segundo Bertrand Russel) foi pródigo em
quatro grandes movimentos: 1) o conflito entre o
impé- rio e o papado, com a independência definitiva,
deste último, do controle dos leigos; 2) a expansão e
liber- dade das cidades lombardas (no Império
Carolíngio), com sinais de democracia; 3) as cruzadas;
4) e a for- mação da filosofia escolástica. Pelo menos,
este último período medieval foi de uma riqueza
incrível, tanto no desenvolvimento da cultura, como
na vida econômica, política e nas artes; podemos
afirmar mesmo que se constituiu nos fundamentos da
civilização moderna.
Em 1206 nasceu, em Sonabe, Alberto Magno
(1206-1280); tornou-se monge dominicano aos 16
anos, devido à pregação de Jordão do Siosce; depois
de ter-se tornado professor, em diversos conventos
da Alemanha, foi enviado a Paris, onde ensinou com

10
ser colocados a serviço de Cristo (Mondonnet, Dict.
Hist., col. 1523); sobre o relacionamento entre
ciência e fé, achava a razão inapta para demonstrar
os mis- térios da fé. Temos ainda de citar Alexandre
de Hales (1180-1245), nascido na Inglaterra, que
escreveu um trabalho monumental, a Suma
Teológica, dividido em quatro partes: 1.°) De
Deus, 2.°) Das Criaturas, 3.°) De Cristo e das
Virtudes, 4.°) Dos Sacramentos e dos fins últimos.
Todo o seu trabalho foi baseado na ideia do bem: “
Deus é considerado muito mais como Bem, do que
como causa; porém, ele é conhecido pelos seus
efeitos e a verdadeira prova de sua existência é
forne- cida pelo argumento da causalidade, ainda
que nós te- nhamos, naturalmente, um certo
conhecimento ‘inato’ sobre sua existência”
(Doctoris Irrefragabilis Alexan- dri de Hales, O.M.,
Summa Theologica, Quaracchi, pág. 31,6). Nessa
época havia uma nítida luta entre o agostinismo
(platônico) e as novas ideias de Aristóte- les, que os
árabes introduziram na Europa; nos países latinos
predominou o racionalismo do filósofo grego e
entre os povos nórdicos foi dado mais um passo, ha-
vendo o desenvolvimento do voluntarismo.
João de La Rochelle, John Peckan, Guilherme
de La Mare, Mathieu de Aquasparta defendiam o
agostinis- mo. Roberto Grosse-Tête, chanceler da
Universidade e bispo de Lincoln (Inglaterra) dizia
que a argumentação matemática era um
procedimento dialético por excelên-

Alberto Magno

10
cia. Thomas D’York defendeu a metafísica de opúsculo De Reductione Artium ad The- ologiam,
Aristóte- les; Richard Middletown tentou conciliar indicou seis luzes diferentes para o melhor
Boaventura com o tomismo; Pedro de João Olívio
tomou um rumo pessoal; Raymond Lulle rejeitou a
filosofia escolástica; Roger Bacon sempre demonstrou
maior interesse pela ciência e filosofia, do que pela
teologia — acusando os maiores teólogos de
ignorantes, como Alexandre de Hales e Alberto
Magno (G. Delorme, Opus Minus, col. 27-29, pág.
322).
Gostaria de chamar aqui a atenção do leitor para
esse fenômeno psicopatológico, de querer viver em
um só aspecto da existência — sem realizar o
verdadeiro dialetismo, que denominei de socrático, ou
cristão, pois trabalha com duas realidades. Não
podemos negar que todo progresso, que tivemos, foi
oriundo desse período medieval, que rompeu todas as
cadeias com os aspec- tos ultrapassados das
concepções antigas, permitindo o crescimento da
ciência e vendo o pensamento sob um ângulo mais
dinâmico. Mesmo que somente agora a hu- manidade
esteja entrando em uma fase trilógica, total, temos que
admitir que ela veio sendo preparada desde essa
época.
Boaventura (1221-1274) foi um outro grande
mís- tico que, ao lado de Tomás de Aquino, tornou-se
um dos maiores nomes do século XII, ao sistematizar
a te- ologia corrente; ele continuou o trabalho de
Alexandre de Hales, realizando uma síntese fiel ao
espírito agosti- niano. O seu nome de nascimento era
João de Fidanza, originário de Viterbe; gravemente
doente na infância, foi curado por São Francisco,
passando a se chamar Bo- aventura. Aos 34 anos, foi
impedido de ensinar e des- tituído de suas altas
funções de ministro geral de sua Ordem; assim como
Bernardo, teve zelo muito grande pelo culto a Maria.
Boaventura, como todo místico, revelou um co-
nhecimento profundo da mente humana — fazendo-
nos lembrar a comparação que Freud estabeleceu entre
psi- canálise e religião (O Futuro de Uma Ilusão),
dizendo que “a primeira só começou a existir, depois
que as re- ligiões perderam sua força” — eu digo mais
ainda, que a ciência trilógica apresenta melhores
condições de co- nhecer e trabalhar com a verdade, o
amor e a beleza, do que cada um desses campos
separadamente (teologia, filosofia e ciência). Pois
bem, este famoso místico (que desenvolveu um
sistema antagônico ao tomismo) de- monstrou ter uma
visão muito ampla do universo e de Deus; no seu

10
conhecimento deste mundo e para atingir a glória: conhecimento, realizado por uma espécie de intuição,
1) Escritura Sagrada, 2) o conhecimento sensível, 3) ou melhor, existiria uma continuação natu- ral, que
a me- cânica, 4) a filosofia racional, 5) a filosofia fundamentaria a fé e a sabedoria. Deste modo, a
natural, 6) e a filosofia moral; coloca Deus como o existência de Deus não precisa de uma demonstra-
centro universal, estando subordinado a ele toda a
ciência e os trabalhos, que são frutos do
pensamento do homem e da ação ilu- minadora do
Criador (Sermo, Sermo de Septem Arti- bus,
Mechanicis, ou Tractadus de Origine Scientiarum,
De Ortu Scientiarum, De Illuminationibus). Em seu
opúsculo L’lncendium Amoris, ou Itinerarium
Mentis in Seipsum, diz que existe um tríplice
caminho para o homem chegar à verdade e união
com Deus: a medita- ção, a oração e a
contemplação; no Soliloque, faz uma série de
considerações sobre: 1) os efeitos do pecado,
2) a instabilidade dos bens deste mundo, 3) a morte,
4) os últimos fins; no De Sex Alis Seraphim, fala
das seis virtudes: 1) o zelo pela justiça, 2) piedade,
ou caridade para o próximo, 3) paciência, 4) uma
vida exemplar, 5) lembrar-se de discrição, 6)
devoção por Deus (Imago Vitae, Meditationes, pág.
28).
Enquanto Tomás de Aquino apoiava-se na
Escri- tura (ou na tradição) e na razão,
Boaventura apelava às luzes superiores do Espírito
Santo. Quanto à razão, distinguia quatro diferentes
desenvolvimentos: 1) para explicar a própria
natureza, segundo sua ordem, sem preocupação de
encontrar a verdade, 2) para explicar a natureza,
segundo sua ordem, mas orientada pela união da
alma com Deus, 3) para explicar as verdades da fé,
segundo os princípios de autoridade, 4) e a visão su-
perior da razão, segundo os dons místicos,
meditando sobre Deus, ou sobre o mundo como um
trabalho ca- minhando para Deus; o primeiro destes
exercícios é a filosofia pura e simples; o segundo, é
a filosofia com tendência mística; o terceiro, a
teologia contemplativa, ou uma filosofia mística.
Veja bem, o leitor, como o místico sempre
trabalhou nos dois planos com extrema facilidade
(Soliloquium de Quatuor Mentalibus Exerci- tiis,
pág. de 28 a 67). Boaventura fala em sua filosofia
que a essência divina é a causa e o modelo de
todas as coisas: tudo é sombra, vestígio e imagem
do Cria- dor. Afirma ainda que a criação vem do
nada e a alma seria uma substância completa tendo,
como faculdades especiais, a inteligência e a
vontade. Quanto ao conhe- cimento, diz que a
formação dos princípios é “inata” e o verdadeiro
10
ção propriamente dita — nossa aspiração natural para Boaventura
a sabedoria, bondade e paz, já supõe o conhecimento
de Deus; temos um conhecimento implícito dele,
assim como outro explícito, desenvolvido pela
reflexão, pela razão, ou pela fé (Et s’il n’existait pas,
notre vie intel- lectuelle s’evànouirait; lá causalité est
donc-entendue;
E. Gilson, La Philosophie de S. Bonaventure).
Boaventura explica que a chamada graça são
dons que o Espírito Santo concede, à semelhança dos
raios que emanam do sol; quanto à moral, diz que a
aspiração natural (inata) do ser humano é voltada para
o bem, re- fletindo a ideia divina que dirige o homem
para seu fim. Mas, é no trabalho O Itinerário da Alma
para Deus, que revelou todo o seu gênio; no início
ensina três es- pécies de exercícios: elevação
(ascenção), iluminação

10
e especulação, que devem ser usados, de união do homem com Deus, dentro do qual o
primeiramente com a crença, não podendo existir exemplarismo é a base.
sem unção (doçura); a reflexão, sem devoção; a Assim foi a vida deste santo que, em Paris, repre-
procura, sem a admiração; a atenção profunda, sem sentou uma escola oposta ao racionalismo tomista for-
a alegria do coração; a habili- dade, sem a piedade;
a ciência, sem a caridade; a inte- ligência, sem a
humildade; a aplicação, sem a graça; a luz, sem a
inspiração da sabedoria divina. Para haver tal
elevação, os cinco sentidos constituem ocasião para
ad- mirar o poder, a bondade e a sabedoria divinas;
aliás, o próprio conhecimento tem origem na
imagem sensível do mundo exterior. Neste
momento, gostaria de mos- trar uma analogia
incrível entre a descoberta da Trilogia Analítica,
sobre a semelhança entre o ser humano e o seu
Criador, ao colocar o sentimento, o pensamento e a
consciência como os seus três constitutivos básicos
— enquanto que Boaventura via a memória
(presença dos primeiros princípios), o intelecto
(plena captação) e a vontade. Falar no elemento
voluntarioso deste modo é conceder-lhe um
horizonte absurdo, isto é, que poderí- amos escolher
o sim e o não, o certo e o errado, o bem e o mal;
mas, se usarmos a consciência, estamos dizendo
que nossa vontade só pode escolher o que é real,
em sua origem — mostrando nossa incrível
semelhança ao Criador. A alma só contempla a
Deus, quando ela mes- ma se torna uma perfeita
imagem dele, pelas virtudes teologais, pela retidão
moral (purificação, iluminação, perfeição), que
usam a fé, a esperança e a caridade em uma
admirável união com Deus, conclui o místico.
Finalmente, é possível a elevação a Deus pela
ordem metafísica, primeiro porque a alma
contempla a Deus, através da noção do ser;
“conhecemos Deus, não pelas criaturas, nem pela
alma (sua imagem), mas pela luz que é impressa
(signatum) dentro de nossa mente” (E. Gilson, La
Philosophie de S. Bonaventure, pág. 453-456). A
noção do bem permite meditar sobre a Trindade,
porque ele importa em uma comunicação de si
(bonum diffusivum sui); a alma se eleva no co-
nhecimento das coisas mais altas, através do
sustento divino. Cristo é o objeto predileto do seu
pensamento: ele é o centro do universo, todas as
criaturas (os anjos e os homens) o reconhecem
assim e a própria história gravita em torno dele —
ele é a fonte de toda a sabedo- ria e ciência,
enquanto a teologia lhe parece ser a mais alta delas;
a natureza foi montada para realizar o plano divino
11
necendo um rumo diferente para a humanidade, pois,
tanto Duns Scot, como Guilherme D’Ockam
estudaram em Paris, aceitando mais tal orientação —
levando à Reforma de Lutero. Gostaria ainda de avisar
o leitor que Boaventura pertenceu à Escola
Franciscana, que conserva até hoje orientação diversa
da dominicana e do tomismo em geral (Prosper de
Martigné, La Scolas- tique et les Traditions
Franciscaines: S. Bonaventure, Paris; L. de Chérancé,
S. Bonav., Paris; E. Clop, S. Bo- nav., Paris; Th.
Heitz, Essai Hist. sur le Rapports entre la Phil. et la
Foi; E. Longpré, La Théol. Mystique de
S. Bonaventure, dans Arch. Franc. Hist.). Acredito
que, dentro do cristianismo, o catolicismo colocou o
racio- nalismo tomista em primeiro plano, afastando o
seu va- lor principal, o amor (para um segundo lugar)
motivo pelo qual, está sofrendo uma grande crise. A
ciência tri- lógica está mostrando que, acima de tudo, é
necessário conscientizar a psicopatologia (os maus
“sentimentos”: inveja, ódio, etc.), caso queiramos uma
humanidade equilibrada. Neste caso, deveria haver
uma unificação entre o elemento afetivo, presente São Bernardo de Claraval
mais nos grupos pro- testantes, com o racional, dentro
do catolicismo, para haver um verdadeiro cristianismo.

11
Capítulo
17

Tomás de Aquino

TOMÁS DE AQUINO CONSTITUIU O


APOGEU DO TERRÍVEL RACIONALISMO
QUE INUNDOU GRANDE PARTE DA
CIVILIZAÇÃO
T omás de Aquino merece um capítulo à parte, não
só porque é considerado o maior pensador religioso da
humanidade, mas principalmente por que foi adotado
homem em uma atitude (inútil) de dependência, como
todo indivíduo religioso foi caracterizado.

como norma de veracidade pela Igreja Católica (Leão


XIII, em seu Codex Juris Can. 589, par. 1 e 1366 par.
2). Era descendente do conde Landolfo d’Aquino e,
por parte de mãe, de Roberto Guiscard — esta mistura
de sangue normando e italiano influiu em sua conduta
ro- busta e rude, terna e delicada. Nasceu em 7 de
março de 1225 e faleceu prematuramente no dia 07 de
março de 1274, ao completar 49 anos. Depois de ter
ingressado em um mosteiro (abril de 1244), dirigiu-se
para Paris, que era o centro de estudos de sua Ordem;
foi nessa cidade que escutou as lições de Alberto
Magno — ao ter sido chamado de Boi Mudo da
Sicília, seu mestre retrucou: — “ Quando esse boi
começar a mugir, todo o mundo ouvirá sua voz”.
Tomás de Aquino, desde o início, interessou-se
por Aristóteles, realizando uma distinção clara entre
fi- losofia e teologia ao mesmo tempo em que
Alexandre IV recomendava um expurgo geral das
obras do famoso estagirita. Usou a tradução direta do
grego, realizada por Guilherme de Morbeke, para
evitar os erros que Averrois havia introduzido, nesse
pensador, mas só aos 42 anos é que começou o seu
principal trabalho, A Suma Teológica. Tinha um porte
imponente, com ca- racterísticas desgraciosas, uma
obesidade pronunciada, a fronte alta, larga, aumentada
por uma calvície precoce
— era extremamente humilde, modesto, reservado
com as mulheres e pessoas famosas, revelando uma
perso- nalidade doentia. A Suma Teológica é o
resultado de sua conduta reservada — de oração e
contemplação e, ao mesmo tempo, de estudo e
especulação.
Gostaria de mostrar agora o extremo racionalismo
de Tomás, quando afirmou o que seria a beatitude:
“des- prender-se cada vez mais dos elementos afetivos,
para tornar-se essencial e exclusivamente um ato de
inteligên- cia, um conhecimento”. (Sum. Th., I e II
Livros, questões de 2 a 6). Aquino explorou “a fundo o
relacionamento harmonioso entre o natural e o
sobrenatural, a razão e a fé” (Somme Th. pág. 43),
afirmando que “só as forças da razão poderiam
descobrir” (no final do III livro); “A felicidade do ser
humano viria unicamente pela contem- plação de
Deus” (livro III, pág. 125-37) — reduzindo os fatores
da vontade, da ação divina e humana, colocando o

11
Suma Teológica: trata-se da exposição sistemá- males humanos: o atraso social, a dificuldade para
tica mais ampla e clara do tomismo. A questão prin- aprender e as ideias pedagógicas atu- ais de total
cipal é Deus, visto sob três aspectos: 1) como liberdade.
Ser;
2) como o Bem; 3) como o caminho do homem. No
governo divino, Tomás fala da finalidade dos anjos,
que agem sobre os outros anjos e até nos demônios,
corpos e homens. Nas ações humanas, considera os
atos da vontade que, segundo as circunstâncias, po-
dem ser bons e maus. Em seguida, estuda as
paixões, chamando-as de apetites concupiscíveis: 1)
amor e ódio, 2) desejo e aversão, 3) deleite (ou
alegria) e tristeza; os apetites irascíveis seriam:
1) esperança e desespero, 2) temor e audácia e,
finalmente, 3) a cólera. Neste momento, gostaria
que o leitor notasse a designação que foi dada aos
sentimentos (paixões) chamando-as de
concupiscências, exatamente como
S. Freud copiou mais tarde.
Aquino discorreu sobre os princípios
intrínsecos dos atos (questões 49-89), distinguindo
hábitos bons ou virtudes e hábitos maus ou vícios.
As virtudes seriam: intelectuais, morais e teologais;
os vícios: pecados ou atos viciosos, devido a causas
internas: ignorância, fra- queza e malícia; a causas
externas: o demônio e o ho- mem (q. 55-67; q. 71-
89). Não é difícil novamente per- ceber o
preconceito contra os sentimentos. As virtudes
teologais: 1) a fé; a virtude pela qual o espírito
adere com firmeza à verdade, que a própria
Primeira Verdade nos revela; 2) a esperança: espera
da beatitude eterna pela possessão de Deus; 3) a
caridade: uma amizade do homem e de Deus (q. 1-
46). As virtudes morais car- deais são: a prudência,
que leva a uma orientação real (conselho) e,
principalmente, à liderança (imperium) (concepção
genial, segundo Sertillanges); e a justiça que é a
outra virtude, capaz de distribuir o bem e comu- tar
as ofensas, fraudes, astúcias e violência. A terceira
parte trata de Deus enquanto é nosso caminho,
diversi- ficando-se de Boaventura, Duns Scot,
Suarez (na teolo- gia) e de Tereza e Francisco de
Sales na espiritualidade. Quando os pecados foram
atribuídos em primeiro lugar à ignorância, o famoso
pensador concedeu enorme des- culpa ao ser
humano; na Trilogia Analítica mostramos
exatamente o contrário, ou melhor, que tal atitude
(de ignorância), que Freud denominou mais
acertadamente (no seu sentido malicioso) de
inconsciente, constitui a maior fonte de todos os
11
I — O Tomismo existência de uma espécie in-

Tomás de Aquino foi considerado um pensador


genial, sendo de opinião que a filosofia deveria ser
independente da teologia como uma disciplina em
si; renovou o trabalho de Aristóteles dentro de um
grande sistema, capaz de integrar o ensino cristão,
em um estrito racionalismo — pois sempre se guiou
pela razão. Sobre Platão, que fora seguido durante
quase oito séculos, disse: “se o platonismo contém um
certo número de teorias próximas da doutrina cristã,
o modo de filosofar de Aristóteles é superior e mais
conforme a crença e o raciocínio da igreja... porque
suas teses são mais rigorosas e dialéticas” (A. Chollet,
Aristotelisme, dans Dict. Théol., col. 1878). A
primeira correção que realizou sobre as teorias
agostinianas foi a respeito do iluminismo: “a luz,
natural ou gratuita, de nosso espírito não é outra coisa
do que a impressão da primeira verdade” (Suma
Teológica, I, questão XXXVIII, q. 3, ad 1). Tomás
sempre ensinou que a verdade filosófica não poderia
estar em contradição com a teológica — percebendo a
união que existe quanto aos dois campos do
conhecimento. Quanto à teologia, dizia que era uma
verdadeira ciência, mais especulativa do que prática,
ocupando-se principalmente de Deus e,
secundariamente, dos atos humanos — concedendo
um alto valor ao uso do raciocínio; afirmava que a
especulação racional completava o argumento de
autoridade. Por causa dessa orientação, Deus sempre
foi considerado de maneira teórica (visto ao longe),
pelos seguidores do tomismo.

II — Princípios Filosóficos
A) O Conhecimento Intelectual — rejeitado o ilu-
minismo (de Agostinho), elaborou a teoria do conhe-
cimento dizendo que o objeto próprio do intelecto é o
ser — que a alma abstrai do sensível. Existe no
espírito humano um poder ativo, chamado intelecto
agente, que abstrai da imagem interna (fantasma) a
espécie inteli- gível, que prepara o conhecimento.
Mas, em sua base essencial, o que produz mesmo o
ato de conhecer é o intelecto passivo: informado pela
espécie inteligível recebida (impressa), a mente forma
uma representa- ção do objeto (nova espécie
inteligível), que exprime perfeitamente o que se chama
espécie expressa, ou melhor, verbo. De outro lado, a
imagem sensorial, do mundo exterior, exige a
11
teligível (fantasma) dentro do ser humano,
adequada para recebê-la — uma forma quadrada
não aceita um objeto redondo; estou dizendo que a
própria estrutura espiritual está dimensionada
dentro do universo divi- no. A verdade (lógica) é
definida assim: adequatio in- tellectus ad rem
(adequação do intelecto com a coisa); porém, a
adesão certa do espírito à verdade exige a evi-
dência dos primeiros princípios.
B) A noção do ser é a primeira e a mais alta
noção percebida pelo espírito, representando o
ponto culmi- nante da metafísica. Não se podem
separar as qualida- des transcendentais que
acompanham necessariamente o ser, ou melhor, a
unidade (unnum, aliquid), a verda- de (adequatio
rei ad intellectum, divinum vel humano) e o bem
(convenientia entis cum appetitu, divino vel
humano). Em seguida, aparecem os juízos, ou seja,
os primeiros princípios, sugeridos imediatamente
pela simples percepção do ser: princípio de
identidade (o ser é o que é); princípio de
contradição, ou antes, de não contradição (o ser não
ser o não-ser, ou alguma coisa, não pode, ao
mesmo tempo, ser e não ser); princípio de razão
suficiente (tudo aquilo que é tem sua razão de ser,
ou todo ser tem uma razão suficiente), ou esta outra
fórmula: tudo é inteligível.

Tomás de Aquino

11
A palavra inteligível, usada pela filosofia desejável. Tais noções têm um valor superior
raciona- lista, poderia ser substituída por realidade. permitin- do-nos uma vivência transcendente no
Aliás, Tomás fala de dois princípios de razão: mundo em que estamos, porque exprimem as
causalidade (efficien- te), que explica a existência perfeições absolutas, que são analógicas e unívocas.
(coisa alguma pode dar o ser a si mesma) e o princípio C) Primeiras Determinações ou Divisões do Ser:
de finalidade, que explica a ordem dentro da 1) tudo aquilo que não pode ser ato puro ou potência
multiplicidade (todo agente age por um fim). Todas pura, é composto de ato e potência. O ato como tal é
estas primeiras noções, derivadas de proposições uma perfeição, sendo encontrado só no Ser Infinito e
evidentes, têm um verdadeiro valor ontoló- gico — Perfeito. 2) A distinção entre essência e existência é a
porque o sensível vê o acidental, enquanto que o ser, mesma de ato e potência: a essência é uma perfeição,
por si próprio, é real e fonte de realidade. Aquino usa um ato e, a existência, uma potência; é necessário esta-
da expressão: inteligível e fonte de inteligibilidade, belecer, não uma distinção de razão, mas uma
fazendo-nos compreender a frase controvertida de He- distinção real, porque a realidade da essência não
gel: “o racional é o real e o real, racional” — poderia se con- fundir com o que a atua (com a ação, o
atribuindo ao intelecto poderes megalômanos e ato, a essência).
revelando despre- zo pelo sensível. 3) Existe ainda a distinção entre substância e
Tomás afirma que o ser é uno, verdadeiro e bon- acidentes, denominando-a a mais alta divisão dos
doso: a unidade é o ser individual, a verdade é o ser seres, por deter- minadas categorias; a substância é o
conforme a inteligência (realidade), a bondade é o ser ser em seu pleno sentido da palavra, o que existe ou
subexiste, por si,

11
Estado do Vaticano, Roma

11
em função do qual aparecem os fenômenos (ens entis), fim, Deus é invisível, incompreensível e, portanto, co-
ou melhor, os acidentes. 4) A distinção entre matéria nhecível só por analogias. Os atributos relacionados com
e forma é menos geral do que a anterior (substância e
acidente). O ser corporal é composto de potência (ma-
téria) e ato (forma): a matéria é o princípio de passivi-
dade, inércia, multiplicidade e divisão; a forma pode
ser chamada (muito genericamente) qualidades, tanto
na ordem do ente (disposição, figura, estado), como na
operativa (hábito, virtude, faculdade); é por este moti-
vo que foi elaborada a famosa frase: operari sequitur
esse (a operação é conforme a substância que a pro-
duz) (Sum. Theol. III, questão 76, art. 7; Sum. Theol.
I, questão 85, art. 5; Sum. Theol. I, questão 77, art. 1 e
2; Sum. Theol. I, questão 90, art. 2, ad. 2; Quodl., I,
art.
22; Quodd. X, art. 3).
Podemos notar aqui um engano fundamental que
Tomás de Aquino cometeu a respeito do aristotelismo,
quando viu a passividade na matéria e a ação na alma,
justamente porque identificou o intelecto como função
mais importante. A Trilogia Analítica descobriu que o
ser humano não consegue realizar seu fim, porque
nega, omite e deturpa a vida, o bem e a beleza, por
causa de sua atitude de inveja — portanto, algo da
vontade e não da formação substancial, que inclui
alma e corpo
— vamos dizer que o homem tem que se deixar existir
plenamente, com toda a sua riqueza e liberdade psico-
fisicamente, sendo que a vontade é ligada tanto ao psi-
quismo, como ao físico.

III — Deus (A Trindade)


Tomás de Aquino afirmava a posteriori, sobre
Deus, rejeitando Anselmo com sua argumentação (a
priori) quando dizia ser evidente a existência do
Criador, apre- sentando cinco vias: 1) o movimento
dos seres que nos cercam; 2) sua atividade eficiente,
manifestada pela pro- dução constante de novos seres,
3) contingência: ao lado de sua realidade profunda,
uma existência efêmera, 4) a imperfeição relativa de
sua essência, 5) enfim, a ordem do universo, tanto nas
pequenas, como nas grandes coi- sas (Sum. Theol. I,
questão 2, art. 3). Os atributos relati- vos a Deus são: a
simplicidade (ou unidade), a verdade, a bondade (ou a
perfeição); em seguida, o filósofo fala que ele é
infinito, o que exclui todo limite de essência; a
imensidão e ubiquidade, que exclui todo limite espa-
cial, a eternidade, que exclui todo limite de tempo; en-
11
as operações divinas são: a Sabedoria e a usados os anjos para tal empreendimento, criaturas
Providência pela inteligência; pela vontade, o amor, formadas de puros espíritos, ou melhor, sem
com as suas duas grandes virtudes: a Misericórdia e composição de matéria e for- ma. Os homens são
a Justiça. Quanto ao trabalho divino, podemos inferiores aos anjos, sendo dota- dos de corpo e de
observar sua Onipotência (R. Garrigou-Lagrange, uma alma imortal, que é a sua forma substancial
Dieu, pág. 371 e 372). (Sum. Theol. questão 44-46; Sum. Theol.
As operações de Deus relacionadas com as
cria- turas é um dos pontos mais característicos do
tomis- mo teológico. Diz o pensador que a
ciência de Deus é universal, sendo ainda um pobre
objeto da essência divina, contendo explicitamente
todos os seus atributos e relações trinitárias. A
causalidade divina se estende a toda ação das
criaturas. Deus criou a faculdade de agir, conserva-
a e aplica-a à sua ação (movet eam ad agen- dum)
— e este movimento divino possui tripla causa-
lidade: final, eficiente e formal (Sum. Theol. I,
questão 105, art. 5). Depois afirma que a sucessão
de pessoas da Trindade Divina não é algo (um ser)
da razão, mas uma realidade (Sum. Theol. I,
questão 29, art. 1-4).
Neste estudo sobre Deus, aparece com clareza
o processo racionalista que usou para chegar à
verdade; no entanto e, por várias vezes, distingue o
chamado ser de ra- zão, da realidade — o que
significa que o doutor angélico se serviu do
racionalismo, mais como método. A maior parte da
civilização ocidental foi alicerçada sobre esta
pseudobase, motivo pelo qual atrasou-se
sobremaneira em relação ao mundo anglossaxônico,
especificamente. De outro lado, tanto a imagem
externa (do intelecto pas- sivo), como a imagem
interna (do intelecto agente) estão impregnadas pela
verdade, não havendo necessidade de uma
comprovação a posteriori de Deus.
IV — A Criação, os Anjos e os Homens Deus
criou tudo do nada (ex nihilo); não existe uma
maté- ria pressuposta, ou uma derivação da
substância divina (Aristóteles e panteísmo). Este
trabalho foi realizado pelas Três Pessoas, ou seja,
pela natureza divina: criar é produzir outro ser,
sendo tal privilégio exclusivo da divindade e
incomunicável à criatura, sendo a causa exemplar o
próprio Deus, tendo tudo feito à sua seme- lhança,
com os vestígios da Trindade (Trilogia); assim é o
homem, principalmente. Além da criação, existe a
Providência que governa o mundo, tanto o universo,
como os seres particulares; esta atitude divina
precede a humana (premoção). São, inclusive,

11
questão 45, art. 7; Sum. Theol. 1, questão 50-64; Sum. precedido pelo da inteligência e, a moralidade, uma
Theol. questão 65-74). propriedade essencial dos atos humanos; estes últimos
Na Suma Teológica, livro 1, questão 82, artigo 3, seriam movidos pelas paixões, comuns tanto aos ho-
diz que a vontade é, por si, inferior à inteligência, por mens como aos animais (Sum. Theol., livros 1 e 11,
causa de seu modo de agir: nada é querido se não for questão 6). A virtude é definida: bona qualitas mentis
an- teriormente conhecido (nil volitum nisi qua recte vivitur, qua nullus male utitur, quam Deus in
praecognitum). No entanto, em certos aspectos, a novis sine nobis operatur; — é clara a importância que
vontade é superior ao conhecimento, porque Deus não estabeleceu para os fatores mentais (boas qualidades
é conhecido neste mundo por intermédio das ideias, da mente), colocando em segundo plano os elementos
enquanto que, pela vontade, sobrenaturalizada é da vontade. Em sua opinião, as virtudes seriam: in-
atingido imediatamente. Este é o grande ponto de telectuais (inteligência, ciência e prudência), morais
contradição de Tomás: partiu do princípio de que o (prudência, justiça, força e temperança), e teologais
intelecto é o fenômeno funda- mental, no homem e no (fé, esperança e caridade) (Sum. Theol., questão 55,
Criador, tentando encaixar to- das as explicações no art. 4 e questão 62, art. de 1 a 4).
racionalismo — grande parte dos filósofos posteriores, No setor das paixões, Tomás faz uma
desde Kant e Hegel seguiram este mesmo caminho comparação entre os homens e os animais, como se
(racionalista), ajudando a atrapalhar a difusão do reino fossem idênti- cos; evidentemente, ele não pode
de Deus na Terra. A vontade sobrena- turalizada é contar com as desco- bertas da ciência trilógica que
exatamente o sentimento (o amor) e a cons- ciência enxerga o erro apenas no desvio, que se faz ao
que capta a verdade (Deus) imediatamente. sentimento (afeto) e não nele, em si. Os animais
Vejam como Tomás de Aquino explica o ato selvagens não são assim por causa de suas paixões e,
livre: diz ele que a ação do livre arbítrio é a muito menos, o ser humano é vítima (de paixões) —
possibilidade da eleição; a vontade está naturalmente mas sim da fantasia que realiza sobre seus instintos,
voltada para o bem universal e absoluto, repugnando tornando-se agressivo e inconveniente, ao querer
os bens particulares que não tenham conexão com o realizar o que imagina. Portanto, o homem não
fim último. E termina a explicação, dizendo: “a domina (os animais) porque ele quer viver a fanta- sia
liberdade, que reside formal- mente na vontade, tem que realiza sobre eles e não a sua própria realidade. Ao
suas raízes na inteligência” (Con- tra Gentiles, livro II, lado dos hábitos virtuosos, existiriam os maus
pág. 47 e 48). A alma do ser humano seria uma criação (hábitos), ou vícios; suas causas são: 1) ignorância,
imediata de Deus, enquanto que o cor- po é muito mais que tanto pode conduzir ao pecado, como desculpar a
perfeito do que dos animais, exatamente por ter de se falta, totalmente, ou em parte; 2) as paixões, que
adaptar às operações do espírito; o homem é a mesma atuam in- diretamente sobre a alma, agravando ou
imagem da Trindade, devido ao ato de conhe- cimento diminuindo o pecado; 3) a malícia pura e 4) o
e amor (Sum. Theol. livro I, questão 90, art. 2 e 3 e demônio, que age mais pelas sugestões. Depois,
questão 93, art. 3). Notem aqui a semelhança com a enumera os pecados capitais em: orgulho e cupidez,
Trilogia Analítica que coloca na base (do Criador e do que seriam a fonte, completando (com Gregório) a vã
criado) o amor (afeto) e o pensamento (verbo), glória (que compara ao orgulho), a inveja, a cólera, a
comple- tando com a ação, ou melhor, a consciência, avareza, a tristeza, a gula e a luxúria
imagem per- feita do Espírito de Deus, que não — aprovando a definição do pecado, dada por Agosti-
conseguiu conter em si tanta emoção e verdade, nho: peccatum est factum, vel dictum, vel concupitum
criando o céu e os anjos, com o universo, os homens e aliquid contra eternam legem (o pecado é algum fato,
tudo o que existe. palavra, ou desejo contra a lei eterna); enfim, o pecado
mortal constitui uma aversão ao fim último (Sum.
V — A Moral Tomista The- ol., questão 54, artigo 1 a 3; questão 76, art. 1 a
4; ques-
Tomás de Aquino diz que Deus é a nossa beati-
tão 80, artigo de 1 a 3; questão de 8 a 15, De Malo).
tude, ou felicidade — e o reconhecimento dessa fina-
No final deste capítulo aparece um erro funda-
lidade é fruto do conhecimento exato de si mesmo —
mental de Aquino, quando fala em hábitos virtuosos
lembrando aqui a filosofia antropológica de Agostinho
— como se fosse o homem que criasse a virtude — e
e a socrática. Em seguida, afirma ser o ato da vontade
11
não que ela exista, por si, pois tudo o que há
constitui uma virtude, bastando que se a aceite.
Deste modo, o

11
grande pensador colocou um peso desnecessário sobre entendimento intelectual. Este é o motivo principal da
os ombros da humanidade. conduta confusa do ser humano atual, que procura
afoitamente o conhecimento e não o

VI — Teologia da Graça
Este capítulo parece redundante, porque Tomás
de Aquino estabelece uma diferença entre o ser
humano comum e Deus — ao contrário da ciência
trilógica que vê todas as pessoas banhadas pelas
benemerências do Criador e uma parte delas não
aceita. Na teologia mís- tica diz que Deus pode
intervir de modo extraordinário, como é comum na
vida dos santos. Afirmou ainda que a contemplação
pertence essencialmente ao intelecto, análogo à
percepção dos primeiros princípios ignoran- do quase
sempre o sentimento, o amor. (Sum. Theol., questão
180, artigo de 3 a 6). O tomismo sempre tentou
esquecer o sentimento, o amor — exatamente ao con-
trário do ensinamento de Cristo, que não se cansava de
advertir sobre a necessidade de amor ao próximo,
como a si mesmo e a Deus acima de todas as coisas.

VII — Teologia Ascética


A teologia ascética é a teologia moral que estuda
com esmero particular os meios de adquirir progres-
sivamente a perfeição — sendo o grau de caridade a
aferição de tal perfeição; é a mais nobre e poderosa de
todas as virtudes, a verdadeira porque, quem a possui,
tem também todas as outras. Depois, Tomás conclui:
Melior est amor Dei quam cognitio (é melhor o amor
de Deus do que o conhecimento) (Sum. Theol., Tomo
I, pág. 19; Tomo II, questão 184, art. 1 e 2; questões
65
e 66 artigos 2, 5 e 6). Quando se trata do ascetismo, o
racionalismo começa a sofrer um forte abalo, porque
se vê sem força, para ajudar o ser humano em seu
aperfei- çoamento. Na Suma Teológica, livro 1,
questão 69,
Aquino diz que a ação divina não suprime a ação
humana; em seguida, que a vida ativa não seria conse-
quência imediata da contemplação (Suma, questão
179, art. 1 e 2) — exatamente ao contrário da ciência
trilógica, que vê o Criador (em sua essência) como
sendo o puro ato, a infinita ação. Não foi esta a noção
de Aristóteles (o mestre de Tomás de Aquino) sobre
Deus? O processo tomista colocou o aspecto ético em
último lugar, como se este fosse proveniente do
12
bem; é causador também da crise que atinge as trabalho, o filósofo construindo um sistema — ao
institui- ções religiosas (orientadas pelo tomismo), contrário do cientista verdadeiro que apenas vai
porque substi- tuíram o amor (caridade) pelo constatando a realidade. Neste sentido, passamos a
intelectualismo, que é um dos principais meios de viver mais um sistema filosófico, do que o verda-
fuga da realidade. deiro cristianismo.

VIII — O Redentor e seu


Trabalho
O doutor angélico construiu sua cristologia
sobre o paralelismo entre a composição humana e a
teântrica. Afirmou (ao contrário dos agostinianos) a
união subs- tancial da alma com o corpo, tendo
Cristo as duas natu- rezas: a divina e a humana;
admitia apenas uma neces- sidade relativa da
encarnação, para resgatar o gênero humano —
assim, ofereceu a Deus (Pai) uma satisfação super-
abundante (Sum. Theol., III, questão 2, art. 6, ad. 2;
questão 1, art. 2). Tomás de Aquino chama Nossa
Senhora de coadjutora de Cristo, distribuidora e
media- dora (Sum. Theol., III, questão 27-30, pág.
299-302). Quanto aos sacramentos, diz que depende
ex opere ope- rato, isto é, tem valor por si mesmo
— ao contrário dos doutores antigos que atribuíam
seu valor ex opere ope- rantis, ou melhor, à pessoa
que os administrasse (Sum. Theol. 1-II, questão
103, art. 3). Na Suma Teológica, livro III, questão,
artigos de 1 a 6, o grande pensador afirmou ser
Cristo a cabeça da igreja — dando-nos a ideia de
que a salvação só adviria através da instituição
religiosa, limitando sobremaneira a visão do
Criador.

IX — A Beatitude
Tomás de Aquino fala claramente que o ato es-
sencial constitutivo da beatitude é o da inteligência
(verificar o livro de P. Mandonnet, La Nature de la
Béatitude, páginas 497 a 505). No seu livro Contra
Gentes, III, C.26, diz que a intelecção é mais impor-
tante do que a vontade; depois, afirma: “à vontade,
pertence somente o deleite que se segue”
(consegui- tur consecutionem tinis). No seu livro
Compendium Theologiae, que data de seus últimos
dias, faz a se- guinte explicação forçada:
compreensão diz mais do que apreensão, ou
mesmo visão (Com. Th., C. 165-166) —
esquecendo-se que o afeto é o extremo deleite e
satisfação. Vemos, em todo transcorrer de seu
12
Igreja de São Marcos em Veneza

O leitor poderá notar que Tomás de Aquino exce- Poderá haver estranheza, também, sobre a exten-
deu, de longe, todos os outros pensadores e teólogos são do capítulo que dediquei a este filósofo; a explica-
do cristianismo, pois realizou uma súmula de todos os ção é a seguinte: Tomás de Aquino não influiu apenas
co- nhecimentos que havia até o seu tempo. O grande no cristianismo (principalmente no catolicismo); exer-
pro- blema que a Trilogia Analítica vê no tomismo é o ceu um grande fascínio em quase todos os pensadores
seu racionalismo básico, que levou a humanidade a modernos, desde Immanuel Kant até os mais atuais do
pensar em colocar todas as coisas dentro do critério do século XIX e XX que, no transcorrer do segundo volu-
racio- cínio — como se Deus fosse me deste livro, irei mostrando. Mas sua influência
fundamentalmente razão e não amor. Este terrível mais perniciosa foi o enorme incentivo que deu ao
engano gerou um grupo muito grande de indivíduos raciona- lismo, transmitindo a ideia de um deus parado
frios, descontatados da realidade da vida, péssimos e alimen- tando o ideal de inutilidade; por este motivo,
representantes do Criador, funcioná- rios religiosos, os povos (mais adiantados) não o aceitaram, sendo,
pessoas intransigentes e desagradáveis, que denunciei atualmente, os líderes do universo.
no livro Contemplação e Ação.

12
Capítulo
18

John Duns Scot

O RUMO DA CIVILIZAÇÃO FOI


DETERMINADO NESTE FINAL DA IDADE
MÉDIA, ATRAVÉS DE UMA ORIENTAÇÃO
RACIONALISTA E OUTRA
VOLUNTARISTA
A partir do século XIII, a humanidade seguiu dois
caminhos bem distintos: a civilização da Europa do
Sul, que abrangia todos os países latinos, escolheu o
Na Trilogia Analítica chegamos à consciência da
unificação que existe, não só entre filosofia e teologia,
mas também com a ciência, embora distinguindo-as
ra- cionalismo enquanto que os povos do Centro e do — exatamente como acontece em Deus e no homem:
Nor- te preferiram a orientação que poderíamos Pai, Filho e Espírito, sentimento, pensamento e ação.
denominar voluntarista — em homenagem ao seu As Três Pessoas, formando um só Deus, se bem que
maior pensador básico, John Duns Scot. Pelos distintas, uma da outra, e, no homem, as três instâncias
resultados, no mundo atual, podemos tirar a conclusão constituindo o mesmo ser, ainda que afeto não seja
sobre qual delas es- taria mais próxima da realidade. O inte- lecto e que consciência forme uma terceira
centro desta última orientação foi Oxford, na modalidade
Inglaterra, através de três dos seus pensadores: Roger — vamos dizer que são diferentes em suas aplicações,
Bacon, John Duns Scot e Gui- lherme D’Ockam. contendo a mesma substância (cerne), que se ramifica
Roger Bacon (1210-1294) pertencia à Ordem em três direções; à esta última (substância)
Franciscana, tendo estudado em Oxford e em Paris; foi poderíamos dar o nome de deidade, para o Criador e
obrigado a sair da Grã-Bretanha, estabelecendo-se em de homiedade, para a criatura. É muito importante
Paris, onde foi condenado à prisão pelos seus próprios saber que a subs- tância não se define, porque o
superiores. Ele diz que as três fontes do conhecimento intelecto trabalha com os acidentes, ou melhor, ela
são: 1) a autoridade, que dá-nos a crença e a fé, não (substância) pertence ao campo do sentimento,
porém a ciência; 2) a razão, que proporciona a podendo ser sentida, conscienti- zada e até mesmo
compre- ensão, a ciência e 3) a ciência experimental, intuída, jamais entendida; estou fa- lando que o
que cons- titui a mais sólida fonte da certeza — tal Criador pertence basicamente ao campo do sentimento
experiência seria alcançada, tanto pelos sentidos e secundariamente ao conhecimento, já pe- las suas
externos, como pela percepção interna. Bacon manifestações enquanto que a consciência é a
enxergava unidade entre filosofia e teologia, enquanto abrangência dos dois, a sua atuação (ação). Deste
que Tomás de Aquino as distinguia inteiramente. modo podemos dizer que o processo final, divino,
constitui o início do humano, como se fôssemos um
prolongamen- to do Criador.

11
Roger Bacon Inquisição

11
Outro elemento que podemos deduzir é que só al- France Francisc, pág. 663). Somente estes quatro prin-
cançamos (intelectualmente) as manifestações de cípios têm uma aplicação quase ilimitada.
Deus, porque o próprio intelecto age em decorrência Observando- se sua filosofia, de imediato, percebe-se
do sen- timento: se ele estiver alicerçado sobre o que é muito mais completa que a do Doutor Angélico,
amor, tudo o que pensar será certo e real mas, se for pois une o bem ao verdadeiro, o amor ao real
baseado na inveja, megalomania e teomania, todos os (intelectual); a hie- rarquia do real, onde o Criador é a
seus pensa- mentos serão deturpados. O contato com o maior realidade entre todas; a desnecessidade de
Criador não é pelo raciocínio, pelo acidental, ou pelo provar a verdade e a verda- deira função psíquica: a
exterior, mas através do profundo sentimento de afeto. ação.
John Duns Scot (1266-1308) (doutor sutil) siste- Duns Scot não admite estabelecer o
matizou uma filosofia, contrária às inovações tomis- conhecimento de Deus a priori, rejeitando a tese de
tas, utilizando muitos elementos aristotélicos. No cur- Anselmo, colo- cando uma tríplice via: a afirmação, a
to período de anos que viveu (38 anos), ajudou a dar negação e a emi- nência. A vida divina é
uma orientação totalmente diversa ao seu país, motivo essencialmente intelecção e vo- lição, e a liberdade,
pelo qual a Inglaterra projetou-se em todos os setores: fundamental à sua vontade. Em sua teologia trinitária
marítimo, expansão comercial, revolução industrial afirma que a procedência do Espírito Santo exige dois
e fornecendo todos os elementos fundamentais para atos de amor: o primeiro seria pelo ca- minho natural
a civilização norte-americana. Ele era eminentemen- (ao produzir o Filho) e o segundo deno- minou
te construtivo, tendo a preocupação de organizar uma Spiratio que é um ato especial da vontade, da fé livre,
concepção geral de vida, baseada no amor — “afinal da liberdade essencial (P. Raymond, Etudes, pág.
de contas, a união eterna dos eleitos com Deus, seria 1882). Vê a encarnação como um ato do amor de
através do amor” (E. Longpré, La Philos. du D. Scot, Deus, porque o pecado de Adão e Eva não tiveram
pág. 139) iniciando o voluntarismo, em clara oposição uma gra- vidade infinita. Foi intransigente defensor da
ao intelectualismo do Doutor Angélico. ausência de pecado original na mãe de Cristo,
A tese mais característica de Duns Scot é a pre- acreditando que, longe de diminuir os méritos de seu
ponderância da ideia do bem (do amor), dando prima- Filho, aumenta-os (Bachelet, lmmaculée Concept.,
zia e superioridade à vontade, em si, rejeitando a ideia pág. 1075).
tomista “nada é querido, se não for conhecido” (nil Tal filosofia voluntarista influenciou fortemente, não
volitum nisi praecognitum). Neste momento, gostaria só o campo da psicologia, como o da atividade moral.
de esclarecer que o bem, o que é real (verdadeiro) e Scot não admite a existência de virtudes (morais) infu-
o belo são procurados espontaneamente, porque fomos sas, falando claramente que a beatitude consiste muito
criados justamente para isso e, assim sendo, cada fibra mais em um ato de vontade, do que intelectual (P.
do corpo e movimento do espírito estão voltados para Ray- mond, col. 1935). Sua orientação influiu
essa finalidade; de modo que só podemos conhecer o sobremaneira em Guilherme D’Ockam e toda a
que nos permitimos gostar — o sentimento (amor) é a civilização anglossa- xônica; vamos dizer que os
causa de todo conhecimento e, posteriormente, de toda povos do sul da Europa se tornaram mais racionalistas
ação. Esta descoberta da Trilogia Analítica é baseada e megalômanos, enquanto que os nórdicos, de intensa
na incapacidade de aprender, de que sofrem todo atividade, se bem que um tanto piegas em sua
neurótico mais grave e, principalmente, os psicóticos. religiosidade — porque somente dentro do
Praticamente, são quatro os princípios fundamen- verdadeiro processo dialético (sentimento e
tais da filosofia de Scot: 1) o formalismo metafísico, pensamento), é possível haver um grande crescimento.
ou melhor, a unidade entre essência e existência, do A filosofia era vista como serva da teologia; com
bem e do verdadeiro, no Criador; 2) a univocidade do Duns Scot começaram a considerá-la independente. A
ser: uma nova maneira de estabelecer a hierarquia do Trilogia Analítica a vê desta última maneira, mas cons-
real, onde Deus ocupa o cume; 3) o intuicionismo tituída pela mesma essência, vamos dizer, por idêntico
psicológi- co, que afirma a inteligência ter intuição do fundamento de bondade, verdade e beleza. De outro
que existe; lado, podemos até afirmar que Tomás de Aquino
4) o voluntarismo, que põe em relevo o caráter ativo inver- teu o processo medieval, pondo a teologia na
da alma, restaurando a ideia de atividade (E. Longpré, depen- dência da filosofia, ou melhor, colocando

12
tudo sob o
crivo de nosso pensamento.
O racionalismo tomista levou seus seguidores
a pensar que tudo poderia passar pelo julgamento
da ra-

12
zão (até mesmo o próprio Criador), gerando um gru- confusão e inércia em que grande parte da humanidade
po muito grande de indivíduos acentuadamente me- atual vive.
galômanos; é por este motivo que alguns campos do O século XIV foi de transição entre a Idade
conhecimento moderno foram invadidos pelos racio- Média e a Moderna, caracterizando-se por crises e, ao
nalistas (tomistas), que os estão levando a um rumo mesmo tempo, crescimento: 1) a guerra dos Cem
muito perigoso: total autossuficiência — exemplo tí- Anos, com as desordens que se seguiram e 2) a grande
pico é a parapsicologia. peste, que de- vastou a Europa; de outro lado: 3) a
Pelo pouco tempo de vida que teve, unido a uma multiplicação das Universidades, tendo sido criadas:
intuição incrível, podemos afirmar que Duns Scot foi de Praga, 1348; de Viena, 1365; de Heidelberg, 1316;
mais profundo que Tomás de Aquino. Este último vi- de Colônia, 1389; de Erfurt, 1392; de Cracócia, 1397
veu mais tempo, tendo escrito seu principal trabalho, destronando as de Paris e Oxford; 4) as ciências
A Suma Teológica, dos 42 aos 48 anos de idade; pela especulativas sofreram forte declínio; 5) findou-se o
extensão de seus tratados e equilíbrio, que sempre de- período denominado “teocên- trico” que, segundo a
monstrou, foi considerado o principal doutor da Igre- Trilogia Analítica, foi muito mais teomânico, pois o
ja Católica — tendo sido revivido no século XX, pelo homem se acreditou, como nunca, ser um deus; 6) o
movimento neotomista, iniciado na Itália, por Luiz Ta- espírito de independência que tomou conta de toda a
parelli DAzeglio e continuado, em outros países, prin- sociedade, limitando os poderes das au- toridades
cipalmente na França, por Jacques Maritain. Sua temporais e espirituais. O leitor poderá obser- var que
orien- tação partiu de um erro fundamental, o o espírito medieval era idêntico ao de todas as
racionalismo, que inverteu a ordem divina e humana, ditaduras que ainda vigoram no mundo atual (1982).
colaborando na Foi exatamente no final do século XIII que nas-

12
Oxford, Inglaterra

12
ceu Guilherme D’Ockam (1290-1349), tendo estudado mal, por si. O discutido pen- sador deixou sua vontade
em Oxford de 1312 a 1318 e escrito algumas teses, das vagar através de seu mundo
quais foram condenadas 51 proposições: excomunga-
do em 1328, refugiou-se na Baviera, junto ao rei Luiz
IV, que faleceu em 1347; dois anos depois, ele mesmo
morreu, com 49 anos. Conservou a mesma ideia de
seus mestres ingleses, que valorizaram as ciências
físicas ou matemáticas; rejeitou os princípios da
metafísica, afir- mando que a substância confunde-se
com os acidentes (seja na quantidade, ou nas
qualidades) e identificando também a essência com a
existência. Ao lado dessa con- fusão, tinha uma
incrível perspicácia, ao afirmar que a razão não tem o
poder que lhe foi atribuído (tomismo), ou seja, de
demonstrar a espiritualidade da alma, ou a existência
de Deus. Foi de um brilho incrível, quando falou da
vontade; por exemplo: que era independente da
apresentação intelectual do bem. Como nossa con-
duta (real) poderia ser afetada pelas combinações de
conceitos sobre o fim, os meios, a moralidade, que são
símbolos criados pelo espírito? A vontade está
investida de um poder de absoluta autodeterminação; a
decisão, livre dos motivos racionais, o ato espontâneo
identifica- do com o livre. A vontade é a essência
mesmo da alma: por este motivo, sua ação é sempre
livre — mesmo que não possa conhecer o bem e o
mal, senão pela revelação (Dialogus, Ed. Mulder, pág.
490 e M. de Wulf, Hist. Ph. Méd. II, pág. 158, 172 e
174).
Não é difícil estabelecer uma relação entre este
filósofo e o tomismo: enquanto Tomás fez tudo certo,
dentro de um princípio errado (racionalismo). Ockam,
usou de uma base melhor, elaborando uma série de
con- ceitos errôneos, procurando seu fundamento no
volun- tarismo. Primeiramente, mostrou que a vontade
é total- mente independente do conhecimento do
próprio bem, dos motivos racionais e principalmente
dos símbolos elaborados pela mente; o que ele não viu
(porque não tinha elementos experimentais) foi a
percepção de que a vontade é dirigida (basicamente)
pelo sentimento pro- priamente dito, o amor, ou então,
pelos antisentimentos: inveja, ódio, ciúme, tristeza etc.
De qualquer maneira, ela é mais fundamental do que o
raciocínio, devido a sua ligação ao afeto.
Ockam era de opinião que a teologia era
totalmente separada da filosofia, afirmando que
somente a fé pode- ria falar sobre a espiritualidade e
imortalidade da alma, a existência de Deus e seus
atributos; afirmou ainda a inexistência do bem e do

12
um desenvolvimento muito maior do que os latinos,
predominantemente racionalistas —

St. John’s College, Cambridge

fantasioso, dando-lhe foro de “absoluta” verdade:


esta- va inaugurando o pensamento moderno, ao
considerar o centro de toda a realidade oriundo do
elemento volunta- rioso, no homem e no Criador (e
não do amor, segundo a Trilogia Analítica). Sua
influência atingiu rapidamente inúmeros
admiradores, principalmente nas Faculdades de
Artes, em Oxford e mesmo em Paris. John Buridan
levou-a para Heidelberg ( Alemanha); Pierre
D’Ailly, John Gerson e várias Ordens Religiosas
acolheram-no com entusiasmo na França; John
Huss, professor e rei- tor da Universidade de Praga
realizou grande difusão do o camismo na Europa
Central. A Ordem Franciscana adotou Scot como
seu filósofo e grande parte de seus membros voltou-
se para o ocamismo: podemos assina- lar Adam
Wodhan, mestre em Oxford, Brinkel, John de Ripa;
entre os dominicanos (Ordem Religiosa de To- más
de Aquino), citamos Armand de Beauvoir, Robert
Holcot (na Inglaterra), mestre em Cambridge, e
Gregó- rio de Rimini (agostiniano).
É fácil notar que o ocamismo, juntamente
com o scotismo e o rogerismo possuíam
basicamente uma filosofia superior ao tomismo
porque colocaram a ex- perimentação, o amor e a
vontade em primeiro plano, levando seus países a
12
no entanto, faltou-lhes o processo dialético (do afeto, sua filosofia de vida muito mais adiantada; houve
com o raciocínio), motivo pelo qual os povos anglo- ainda um resplendor (por ocasião do Renascimento),
saxônicos apresentam uma filosofia de existência mais dentro da latinidade, mas foi rápido e novamente
ingênua. No entanto, tal orientação permitiu um abafado pe- los grupos dominantes que, até hoje, não
grande florescimento do misticismo. aceitaram o espírito de liberdade que viceja no Norte.
O século XIV viu-se em face ao Grande Cismo Podemos afirmar que toda orientação para a civi-
(1378-1417), depois de dez séculos de segurança so- lização moderna foi oriunda dos quatro últimos
cial. Discutia-se se a Igreja deveria ser uma democra- séculos da Idade Média, conservando até hoje suas
cia, aristocracia ou monarquia absoluta; Pedro D’Aillè característi- cas fundamentais — o Renascimento, que
dizia que o Papa não era infalível (em questão de fé), se constituiu em uma volta aos ideais da Grécia
somente a Igreja; nessa ocasião, os grupos orientais Antiga, foi gerado aqui, devido a uma forte oposição
desligaram-se do Vaticano — estamos só a um passo (não ao cristianismo) mas ao platonismo e ao
da Reforma Protestante. Tanto o historiador francês racionalismo medievais. O que é teológico tem de
Sa- lembier, como João de Charlier de Gerson, conviver com o que é filosófico e com o que é
chanceler de Paris em 1395, eram de opinião que tal científico (experimental); no início do Pe- ríodo
acontecimento foi provocado pelo trabalho de Ockam. Moderno, foi feita uma tentativa de união desses três
Os Países Baixos foram fortemente influenciados campos que, só agora, no alvorecer do Terceiro Mi-
pela chamada Escola Alemã, cujo principal iniciador lênio é que estamos em vias de viver integralmente.
foi Eckart; dizia que “nós podemos nos transformar
total- mente em Deus até nos convertermos nele, do
mesmo modo que, no sacramento da Eucaristia, o pão
se con- verte no corpo de Cristo” (Denzinger,
Enchiridion, n.° 501-529); aliás ele pensava que a
alma tinha uma par- te incriada e a glória de Deus se
manifestava, tanto no pecado, como no bem.
Exemplificando: o blasfemador louvaria a Deus
através do seu pecado (Denzinger, En- chiridion, pro.
4, 5, 6, 8 e 14). De seus três discípulos, John Tauler,
Henri Suso e John Ruysbroek, este último tornou-se
mais conhecido, com o nome de Admirável: aos
cinquenta anos de idade, retirou-se para a floresta de
Soignes, tornando-se ermitão e escreveu uma dúzia de
tratados notáveis pela sua piedade e profundidade; os
principais são: O Ornamento da Núpcia Eterna, onde
descreve a vida ativa, interior (ou afetiva) e
contempla- tiva, super-essencial; O Espelho da
Salvação Eterna, O Reinado dos Amados de Deus, O
Livro da Mais Alta Verdade (P. Groult, Les Mystiques
das Pays-Bas et la Líttérature Espagnole). Temos de
citar ainda a Escola de Windesheim, iniciada por
Geraldo Groot (1340-1384), que teve Thomás de
Kempis como seu prior, autor do mais famoso livro de
ascética, A Imitação de Cristo.
Está claro pelos dados históricos que o misticis-
mo caminhou rumo norte na civilização européia, ou
melhor, ela própria (a civilização) deslocou-se John of Ruysbroeck
progres- sivamente para os países anglossaxônicos,
por força de

12
Capítulo
19

Pietá

A RENASCENÇA E A REFORMA
CONSTITUÍRAM O INÍCIO DA
CONSCIENTIZAÇÃO DA PSICOPATOLOGIA
NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE
não houve no período medieval - de maneira que o
O Renascimento e a Reforma constituem uma rea-
ção a toda hipocrisia que vigorou na civilização, pelo
século

menos por dez séculos consecutivos, como nunca hou-


ve antes e provavelmente jamais se repetirá um dia.
Estranho fenômeno esse, quando o ser humano usou o
ensinamento do próprio Criador para organizar o
perío- do mais obscuro de sua história. O mais curioso
ainda, é o fato de muitos historiadores aventurarem
mil expli- cações para defenderem o indefensável,
sendo a mais absurda de todas, dizer que na Idade
Média vigorou um teocentrismo; essa hipótese só
seria admissível se se considerassem deuses o
imperador, o papa e demais autoridades daquele
tempo.
Mesmo que muitos escritores neguem, Renas-
cença e Reforma são filhas do mesmo desejo humano
de livre expressão e realização. Estudando-se os his-
toriadores cristãos (Umberto Padovani e Sciacca), ve-
mos sua preocupação de não querer conscientizar que
a Idade Média foi o maior escândalo de toda a história
da humanidade, ao afirmar que houve nesse período
um verdadeiro teocentrismo; pelo contrário, no século
XV é que voltou a haver um pouco de cristianismo,
devido à liberdade recém conquistada pelos indivídu-
os mais conscientes.
É muito perigoso confundir cristianismo com me-
dievalismo, agostinismo, aristotelismo, platonismo,
racionalismo tomista, porque o identificaremos como
uma época da história, ou como um ou outro grupo do
pensamento, que pouco tem a ver com a verdadeira re-
alidade de Deus; até pelo contrário, na maior parte das
vezes, tais orientações constituem uma oposição à ver-
dadeira mensagem de Cristo. Não podemos nos esque-
cer que o príncipe deste mundo é o Satanás (João, cap.
16, vers. 11) e ele faz tudo o que pode para não perder
o seu reino, além de ser mais esperto do que qualquer
um de nós, mortais. Deste modo, a maior parte do que
se faz, sempre traz um grande número de sugestões
ma- lignas, sutilmente encaixadas no contexto geral;
pode- mos incluir nesta procissão, não apenas os que
se dizem claramente inimigos do Criador, mas
pastores, bispos, papas, filósofos, teólogos e cientistas,
que servem aos desígnios diabólicos, sem perceber
claramente.
A maior parte dos historiadores vê a Renascença
e a Reforma como se fossem movimentos anticristãos,
esquecendo-se que Deus, além de ser a verdade, é
liber- dade, ação e beleza, ou melhor, quase tudo o que

12
civilização.
A Idade Moderna nasceu sob o signo da liberda-
XV foi uma enorme aproximação ao Criador.
de, principalmente depois que Ockam colocou a von-
Estamos na curiosa constatação de ver as instituições
tade como sendo a essência mesma da alma; tal atitu-
organizadas para o cristianismo estarem voltadas
de concedeu ao ser humano total licença para realizar
contra ele, lembran- do as palavras de Cristo sobre os
que falam “Senhor, Se- nhor”, mas jamais entrarão
no Reino dos Céus (Mateus, cap. 7, vers. 21). Ao
contrário do que falou Leon Bloy, a Igreja não são
os santos; ela é toda essa parafernália de
intransigência, politicagem, interesses econômicos e
sociais, que a caracterizaram durante estes dois mil
anos. As criaturas santas sempre constituíram
exceção a esta regra geral, que teve seu início no
século IV, depois que o imperador Constantino
nomeou o cristianismo religião oficial do Império
Romano.
O que realmente caracterizou o Renascimento e
a Reforma, foi o clima de tolerância à visão dos
erros que passou a vigorar, ou melhor, a volta à
dialética socrática ou cristã, que tinha sido
violentamente reprimida du- rante quase toda a
Idade Média; vamos dizer que a volta aos ideais da
Grécia Antiga foi, na linguagem científica trilógica, a
renúncia à extrema hipocrisia social que vi- geu
durante toda a civilização medieval.
Temos de admitir que a abertura para o campo
científico foi que propiciou tal revolução na história
da humanidade, porque os velhos esquemas do
pensamen- to (mesmo com alterações) não surtiam
mais efeito. A última a chegar, a ciência, filha da
filosofia e teologia, tornou-se a mais importante para
a existência humana - assim como a Terceira Pessoa
da Trindade, o Espírito, é fundamental à existência
divina, a experimentação é o contato com a
realidade, que precisa ser constatada.
Como já falei, no primeiro tomo deste trabalho,
a Idade Moderna é uma continuação dos quatro
últimos séculos do Período Medieval; são seiscentos
anos de experimentação das teses dos grandes
pensadores des- sa ocasião: Anselmo, Abelardo,
Tomás de Aquino, John Duns Scot, Roger Bacon e
Guilherme D’Ockam. E, pre- cisamente agora, na
passagem para o Terceiro Milênio, é que nos
voltamos a uma nova maneira de viver, resultan- do
na Trilogia Analítica - unificação através da ciência
(trilógica), da filosofia com a teologia, realizando o
an- tigo sonho do homem. Desta maneira, alguns
conceitos têm de ser revistos e reformulados, para
que compreen- damos melhor o que se passou com a

12
todo vôo sobre a imaginação. Sem dúvida alguma, foi nosso desejo natural da visão divina, influenciado
uma conduta bem diferente da que vigorou no período pelos novos pensadores (Scot e Ockam); em seu livro
medieval, uma contrareação que levou a humanidade a Douta Ignorância, demonstrou a grande restrição que
outro extremo; por este motivo é que o homem passou havia no conhecimento humano, valorizando a
a acreditar que poderia realizar tudo o que planejasse, intuição.
mesmo que seu trabalho não estivesse dentro das ver- O Renascimento e a Reforma foram praticamente
dadeiras necessidades. No meu livro Contemplação e uma luta contra o falso dialetismo do período medie-
Ação, procurei demonstrar que a ação deve ser o re- val (platonismo) e contra o racionalismo aristotélico-
sultado da união do sentimento (amor) com o pensa- tomista - ambos intolerantes e fora da realidade.
mento (real), ou seja, o verdadeiro trabalho é só aquele
que leva o ser humano à verdade e ao bem - portanto,
a liberdade somente pode girar entre o verdadeiro e o Nicolau Maquiavel (1469-1527)
bondoso; caso contrário, criará aleijões na estrutura
psi- cossocial. Por exemplo: indústrias desnecessárias, Nicolau Maquiavel, nascido em Florença no dia
or- ganizações fanáticas e atrito entre povos e pessoas. 03 de maio de 1469, representa o espírito de liberdade
Os primeiros sinais da Renascença surgiram em que estava surgindo, oriundo dos últimos pensadores
decorrência de um movimento literário e filosófico, da me- dievais (Scot, Roger Bacon e principalmente
segunda metade do século XIV, com a finalidade de se Ockam) e do impulso que a ciência ganhava. Assim
opor ao terrível espírito medieval de obscuridade e in- como Le- onardo da Vinci (1452-1519), dizia que a
transigência. Começou justamente na Itália, centro experiência jamais engana, sendo o erro produto do
des- sa intolerância, e através do campo artístico, para pensamento especulativo. Maquiavel propôs-se
evitar os perigos de confronto direto com as estudar a sociedade não como deveria ser (sob o ponto
autoridades; a tarefa de enfrentar tal situação no seu de vista ideal), mas segundo o seu modo real de ser.
campo específico, foi reservada para os povos mais Escreveu vários livros, sendo o mais conhecido O
distanciados de Roma: Alemanha, Inglaterra e Suíça. Príncipe, onde trata da ciên- cia política.
A visão científica trilógica nos dá oportunidade Notem agora sua observação exata sobre o ser
para entender melhor o que houve no desenvolvimen- humano, ao dizer que os homens são todos egoístas e
to desse período da humanidade. Leon Battista Alberti ambiciosos, só recuando da prática do mal quando co-
(1404-1472) no seu tratado Da Família diz que o ho-
mem é artífice do seu próprio destino, nascendo para
realizar e não para a estagnação. Aliás, Coluccio Sa-
lutati já afirmava (inspirado no voluntarismo de Scot)
que a luta no mundo leva o ser humano para a glória
do céu. Giannozzo Monetti (1396-1459) vê no
trabalho uma continuação da obra do Criador. Marsílio
Ficino (1433-1499) escreve em Theologia Platonica
que a his- tória da humanidade é a continuação da
revelação divi- na, e a própria natureza é a
manifestação de Deus. Gio- vanni Pico Della
Mirandola (1463-1494), célebre pela sua capacidade
linguística, pois falava dezoito línguas, colocou as
seguintes palavras na boca do Senhor, fa- lando para
Adão: “Coloquei-te no meio do mundo para que visses
melhor tudo o que está nele; não te fiz nem celeste,
nem divino, nem mortal, nem eterno; poderás
degenerar-te nas coisas inferiores ou, consoante a tua
vontade, regenerar-te nas superiores, que são divinas”.
(De Dignitate Hominis). Na Alemanha, Nicolau Krebs
(1401-1464) valorizou a intuição mística, mostrando

12
Guilherme D’Ockam

12
agidos pela força da lei; os desejos e as paixões são Leon Battista
os mesmos em todas as cidades e povos (Maquiavel,
A Política e o Estado Moderno). Neste momento, a
hu- manidade começou a sair de sua alienação, ao
consi- derar a sua conduta psicopatológica, isto é,
como o ser humano realmente pensa e age. Assim
sendo, o estudo sobre história e a psicologia saiu de
seu cunho teórico para se tornar um conjunto de
técnicas sobre a arte de dirigir. Ele usou a palavra
fortuna para designar uma conduta de êxito, que
dependeria da habilidade do indi- víduo. Cita Moisés,
Ciro, Rômulo e Teseu como exem- plos daquilo que
chamou de virtu, sendo nada mais do que sinônimo de
esperteza. Ora, diante dos princípios éticos de justiça e
honestidade, sabemos que tal ideia é desprezível,
porém, é exatamente assim que age o ser humano.
Maquiavel ficou mais conhecido através de sua ideia
de que o fim justifica os meios a serem usados para
chegar a ele, inclusive o assassinato (como Rômu- lo
fez com seu irmão e com Tito Tatius).
Podemos notar no pai da política: 1) forte teoma-
nia, ao pensar que o homem pode plasmar a realidade;
2) extremo platonismo em suas opiniões, ao conceder
valor tanto às virtudes como aos erros, em si. Aliás,
foi por este motivo que os filósofos chamaram a esta
época

12
de neo-platônica (Villari, P.: Niccolo Machiavell i
Sudi Tempi). Vê-se claramente aqui a mentalidade
invertida do ser humano, ao considerar o engano e a
desonestida- de uma enorme vantagem; aliás, o que
sempre foi reali- zado em todos os tempos e,
quando Maquiavel “denun- ciou”, causou um
grande mal-estar entre todos aqueles que sempre
acreditaram estar plenos de boas intenções. Este
fenômeno demonstra como é difícil para o ser hu-
mano aceitar a consciência de seus erros.

Erasmo de Roterdam (1466-


1536)
Erasmo de Roterdam foi um dos espíritos mais
equilibrados desse período; era filho do padre
Roger Geert e Margared, apresentando desde muito
cedo uma grande tolerância. Para ele, o mundo
material não era uma residência do pecado, e os
cuidados com o aspec- to físico não significavam o
afastamento ao Criador. Seu principal trabalho foi o
livro O Elogio da Loucura, que abalou as estruturas
sociais da época, devido à de- núncia à corrupção
das instituições, a ponto de Lutero procurá-lo, para
trabalhar pela Reforma. Ele dizia que o sofrimento
causado pelo formalismo, limitação e sutile-

Nicolau Maquiavel

12
za insípida do ensino escolástico era muito maior do que Aliás, a vida dos indivíduos assim, foi sempre uma
o desconforto e jejuns. luta contra
Erasmo descreve como o ser humano vive em
fun- ção de sua psicopatologia, acreditando ser o
melhor da existência, antecipando em 600 anos a
descoberta da inversão pela Trilogia Analítica. Na
página 16 diz o se- guinte: “Sou eu aquela verdadeira
despenseira de bens, a que os latinos chamam Stultitia
e os gregos, Moria” mostrando o processo de inversão,
que vê o bem na patologia; na página 17 continua com
a mesma ideia: “Sendo eles loucos e arquiloucos,
embora assumam a atitude de sábios e de Tales, não
teremos razão de chamá-los loucamente de sábios?”.
Outro exemplo da atitude invertida, à página 59: “as
artes mais vantajosas são as que mais se relacionam
com a loucura”; na pá- gina 65: “a felicidade dos
loucos, devo dizer que eles levam uma vida muito
divertida e depois, sem temer nem sentir a morte,
voam direitinho para os Campos Elíseos, onde as suas
piedosas e fatigadas almazinhas continuam a divertir-
se ainda melhor do que antes”. Sobre a hipocrisia da
época: “Persuadido dos perdões e das indulgências, ao
negociante, ao militar, ao juiz, basta atirarem a uma
bandeja uma pequena moeda, para ficarem tão limpos
e tão puros dos seus numerosos rou- bos como quando
saíram da pia batismal” (pág. 73).
O que Erasmo estava revelando com sua
genialida- de era a ideia de que, estando inconscientes
em relação aos problemas e dificuldades, nós não os
teríamos - ati- tude que vigorou durante todo o tempo
medieval, quase liquidando com a civilização, ao final
do século X. E, usando de uma incrível ironia, fez uma
análise geral da sociedade de sua época, levando-a ao
desenvolvimento.

Thomas More (1478-1535)


Thomas More, doze anos mais novo do que Eras-
mo, recebe enorme influência dele, de Willian Grocyn,
professor da Universidade de Oxford, e de John Mor-
ton, arcebispo de Canterbury. Pertencia ao grupo dos
humanistas, que procuravam repensar os filósofos an-
tigos em uma concepção diferente da síntese realizada
pela filosofia medieval; porém, sua característica mais
marcante foi ter tido grande tolerância.
More tornou-se um símbolo de todos os homens
de valor, que dedicaram sua existência para que a
verdade e o bem prevalecessem sobre a face da Terra.

13
Thomas More

Erasmo de Roterdam

13
o poder das trevas, que domina ainda fortemente o ser finalmente o homem pode começar a manifestar o que
humano; até hoje estamos empenhados nessa batalha, realmente pensa, saindo da velha hipocrisia medieval, e
para fazer prevalecer o bem e a liberdade na
sociedade. Thomas aceitou perfeitamente a existência
de outras crenças e maneiras de pensar, procurando
mostrar que a humanidade caminha para um destino
certo.
O seu principal livro é “A Utopia”, onde relata
o que deveria ser uma sociedade ideal; seu principal
argumento, mesmo sem o saber, era a questão da in-
versão - levando alguns historiadores a confundi-lo
por vezes com o epicurismo, outros com o estoicismo.
Por exemplo, à página 253 diz o seguinte: “os
utopianos re- duzem todas as ações e mesmo todas as
virtudes ao pra- zer, como finalidade; eles chamam
volúpia todo estado ou todo movimento da alma e do
corpo, nos quais o homem experimenta uma deleitação
natural... devemos compreender os bens que se podem
procurar sem injus- tiça, os gozos que não privem de
um prazer mais vivo e que não arrastem consigo
nenhum mal”. Ele estava simplesmente mostrando que
a vida não é constituída de sacrifícios, mas muito mais
de satisfação; estava ten- tando retirar aquela ideia
penosa sobre o Criador, que vigora até hoje dentro das
instituições religiosas.
Thomas More jamais se conformou com a estru-
tura social vigente em sua época, idealizando um outro
tipo de civilização, que não pode existir até agora; al-
guns autores chegaram a chamá-la de comunista, por-
que abolia a propriedade, o comércio dos alimentos e
preconizava a existência de uma total democracia,
atra- vés de leis que impedissem qualquer forma de
opressão sobre o povo. Estava iniciada a luta para
elaborar uma estrutura social condigna com os seres
humanos; tanto assim que, mais tarde, Tommaso
Campanella (1568- 1639) escreveu a Cidade do Sol e
Francis Bacon (1561- 1626), A Nova Atlântida, ambos
inspirados no genial santo inglês. Desde então, o ser
humano sempre quis primeiro resolver o problema
social, para depois o psi- cológico e por dois motivos:
1) seria um caminho mais fácil; 2) devido ao processo
de inversão em que vive; a primeira objeção é fácil de
responder, pois a vida social é formada pela psíquica;
no entanto, a atitude invertida é mais difícil de
perceber, porque é inconscientizada, isto é, o
indivíduo não a nota de imediato, mas só com as
técnicas científicas.
Estamos no início da fase mais bonita de toda a
nossa história, depois de um sufoco que durou séculos;

13
Thomas More juntamente com Erasmo fizeram uma agosto de 1521: “peca forte mas tenha ainda uma fé
in- crível crítica sobre a patologia da sociedade e mais forte e alegria em Cristo (pecca fortiter sed for-
dos seus componentes. A grande luta do ser humano tins fido et gaude in Christo)”; parodiando Agostinho
tem sido em prol de sua liberdade – o que equivale em sua sentença: “ame e faça o que quiseres”, reco-
dizer, em deixar os limites de sua imaginação, para
alcançar o infinito.
Se o homem não conseguiu ainda total
liberdade, estando sempre em perigo de ver-se
restringido por ou- tro, é porque a humanidade não
percebeu ainda que só a escolha da realidade
conseguirá torná-la inteiramente livre - enquanto
houver indivíduos escolhendo a ima- ginação e a
fantasia, haverá também o perigo de querer dominar
o outro. Por este motivo, o máximo de liberdade se
encontra na aceitação da realidade, e a total prisão
na aceitação da imaginação. Como a realidade tem
uma di- mensão infinita, o ser humano que se une a
ela penetra no universo ilimitado, onde não existe
restrição alguma.

A REFORMA
Martinho Lutero (1483-1546) foi um monge
que se caracterizou pela coragem que teve para se
opor, na prática, a toda situação irregular dos
funcionários re- ligiosos de sua época; a Reforma
que realizou tinha a intenção básica de melhorar a
filosofia de vida dos que eram responsáveis pela
propagação do cristianismo - e como seu trabalho
teve tão larga difusão, é sinal que foi um
representante fiel do que grande parte da huma-
nidade desejava. Ele compreendia perfeitamente
que a situação institucional religiosa era
insustentável sob o ponto de vista social,
conseguindo segurar grande parte do povo europeu
dentro do cristianismo, porque respei- tou a
liberdade do ser humano, que gira entre o bem e o
mal; vamos dizer que ele foi realista, abandonando
a conduta medieval de idealização sobre o homem.
Lutero via a religiosidade mais como um
processo interno, psicológico, dizendo que a igreja
exterior seria a igreja do diabo; a de Cristo seria o
interior (Du Lu- théranisme au Protestantisme, L.
Cristiani). Quis voltar à verdadeira raiz do
cristianismo, incentivando a lei- tura da Bíblia, mas
caindo no agostinismo; dizia que somos totalmente
corrompidos pelo pecado original e privados da
liberdade, de tal modo, que não podemos realizar
nada de bom; é famosa a sua frase dita no dia 1o. de

13
mendou: “creia e faça o que quiseres” (J. Paquier, col. Lutero conservou algumas ideias antigas, como a
1243-1251). de Lucídio (século V) e mesmo de Crisóstomo (século
Lutero viu a necessidade de libertar o homem da IV) e de Gottschalk (século IX), quando afirmou haver
hipocrisia social organizada pelas instituições, porém, uma total predestinação, tanto para a salvação, como
sendo de opinião idêntica de Agostinho que a nature- para a condenação; assim sendo, colocou nosso desti-
za humana fora totalmente corrompida pelo pecado, no totalmente nas mãos do Criador, pedindo que tivés-
acabou por submetê-lo (o ser humano) ao poder secu- semos fé e tudo se desenvolveria corretamente. Não é
lar - exatamente como aconteceu no século IV dentro difícil perceber que o reformador germânico desejava
da orientação agostiniana. Concedeu grande poder aos uma espiritualidade mais autêntica, que só poderia vir
dirigentes da sociedade (aliás, idêntica à orientação de do próprio interior do ser humano, bem ao contrário
Tomás de Aquino, quando falou que todo poder vem do institucionalismo religioso. Como estamos vendo,
de Deus), incentivando a conduta de veneração do em alguns aspectos, voltou a velha intransigência
povo alemão às autoridades. Se ele retornou em medie- val. Infelizmente, o Vaticano não aceitou a
grande parte às origens do cristianismo, de outro lado Reforma (no seu sentido filosófico), o que deverá
tal volta foi mais ao século IV do que propriamente ao realizar agora, com seiscentos anos de atraso;
tempo de Cristo. Assim sendo, o protestantismo de enquanto isso, os países de religião católica sofreram
modo geral foi uma nova tentativa de institucionalizá- dificuldade no seu desen- volvimento, por força de
lo, de manei- ra diferente da que fora usada até aquela uma concepção existencial improdutiva,
época. antivoluntariosa e racionalista. Prestando bem atenção,
Neste momento, faço uma comparação entre a filo- vemos que um melhor desenvolvimento da civilização
sofia luterana, e os filósofos cristãos, quando afirmam continuou nos países nórdicos, por for- ça da Reforma.
que o homem foi corrompido em toda a sua natureza, Os países do sul da Europa continua- ram apegados
e a nossa descoberta, segundo a qual tal corrupção foi aos seus ideais de autoritarismo, motivo pelo qual até
basicamente na vontade, atingindo também em maior hoje conservam acentuado atraso; tal sorte pode ser
ou menor escala os outros setores. As consequências vista pela cultura dos países colonizados: os da
entre o primeiro pensamento e o novo são evidentes, América Latina, de modo geral.
pois enquanto os filósofos cristãos têm uma visão pes-
simista sobre o homem, a Trilogia Analítica enxerga
enorme possibilidade de recuperação; o grande proble- Melanchton (1497-1560) e
ma em relação a Deus e a nós mesmos está no campo Böhme (1575-1624)
da conduta, no da realização: no instante em que o
corri- girmos, praticamente todas as dificuldades serão Lutero foi acompanhado de outros seguidores,
resol- vidas, a ponto de neutralizarmos quase de- vendo ser citados Filipe Schwara Erde, mais
inteiramente as consequências do chamado pecado conhecido pelo nome Melanchton. Nascido também na
original; podemos até lançar este aforisma: se, pela Alemanha, tornou-se filósofo e teólogo do luteranismo,
vontade, Adão e Eva afastaram-se do bem, da verdade, devido à ela- boração de uma série de manuais de
felicidade, da ciência infusa e do Criador, pela própria orientação aristoté- lica humanística, largamente
vontade poderemos retornar a tudo isso novamente, difundidos nas universida- des. Jakob Böhme estudou
reconstruindo o paraíso que abandonamos. a questão do bem e do mal, sendo de opinião que os
Tudo o que existe, por si, é bom e basta ao ser dois têm sua origem em Deus. Esta ideia,
humano não desviar, negar ou omitir o que é, o que evidentemente, causa uma grande desolação aos seus
pode realizar verdadeiramente, para estar novamente seguidores; ele conservou a mesma noção platô- nica
no melhor dos mundos. Não é tanto a árvore que está trágica medieval, de ligação inarredável ao mal.
ruim (como Lutero fala), mas a vontade perturbada,
por causa da inversão, querendo trocar a realidade pela
fantasia, o que existe verdadeiramente pelo
Huldryck Zwingle (1484-1531)
imaginário, as leis reais (científicas e pessoais) pelas
elucubrações mentais; é relativamente um pequeno Sua filosofia de vida foi diferente de Böhme, sendo
passo, para uma total transformação. bem mais próxima ao ideal da Renascença, de Erasmo
e Thomas More. Nascido na Suíça, escreveu De Vera
13
et Falsa Religiones, mostrando, à semelhança de
Lutero,

13
a fé sob o aspecto interior, devendo depois exteriorizar – Deus é o único fim, devendo tudo ser feito em
na sociedade. Diz ele que desse aspecto brota a função dele; vida prática e religião são o mesmo
energia ativa (da pessoa) cuja função é a de viver fenômeno, porque todo ato é ação de Deus (Sciacca,
plenamente no século, formar moralmente todas as Michele Fre- derico, História da Filosofia, pág. 14).
concretas con- dições, inclusive reformar toda a vida Nota-se aí uma filosofia de vida eminentemen-
civil, política e religiosa da sociedade; é repelida toda te de ação, uma identificação do trabalho com a atitu-
a separação me- dieval do mundo em dois impérios, de divina, motivo pelo qual houve grande desenvol-
religioso e político. Nota-se aí a filosofia voluntarista vimento social, industrial, econômico e político nas
de Duns Scot, com toda a intensidade; sua nações alcançadas pela Reforma; vamos dizer que
consequência nas regiões onde o protestantismo essas regiões continuaram em seu desenvolvimento,
dominou é evidente: um maior desen- volvimento, seja enquanto que outras estagnaram no medievalismo.
ele político, econômico ou social, de maneira geral. Por esse motivo, Espanha, Portugal, Itália, América
Eis o motivo por que houve um melhor empenho Latina e até mesmo a França concederam grande va-
industrial e científico entre eles ( Journet, Ré- forme lor ao autoritarismo – enquanto que a Alemanha e a
en Suisse, dans Dict. A.p. col. 733-742). União Soviética alimentaram regimes totalitários, que
são diferentes: estes últimos incensam os seus habi-
Jean Cauvin (1509-1564) tantes, e as ditaduras são formadas por grupos dentro
de um país, mas contra o seu povo. A história moderna
Calvino escreveu Institutiones Christianae Re- foi organizada pelos povos nórdicos, justamente por-
ligionis, onde relata que o mundo terreno não é cor- que não estancaram o seu desenvolvimento, como os
rupção e pecado, mas um objeto de conquista, sendo latinos fizeram. E, para que haja progresso entre todos
sua finalidade idêntica ao fim transcendente do aqueles que se atrasaram, é necessário que entendam
governo divino, que deveria ser realizado através do estes motivos, que, só agora, a ciência trilógica está
homem. Praticamente, nós não nos pertencemos e, por em condições de fornecer.
este mo- tivo, devemos esquecer a nós mesmos e o
que é nosso

13
Capítulo
20

Inácio de Loyola

A CONTRA-REFORMA É O MESMO PROCESSO DE


CONTRA-RENASCENÇA QUE OS PAÍSES
MERIDIONAIS DA EUROPA REALIZARAM, PARA
ELIMINAR
A CONSCIÊNCIA, ALIENANDO-SE.
A civilização moderna sofreu uma irremediável
di- visão entre as nações saxônicas e as latinas que,
para continuar no poder. Se a Renascença colocou em
cheque a posição dos nobres, a Reforma fez o mesmo
ini- com os funcionários religiosos; assim sendo, podemos
ciando no domínio do pensamento filosófico, atingiu afirmar, com segurança, que a Contra-Reforma foi um
todos os setores de suas existências: a maneira de ver movimento muito maior de preservação dos poderes
o Criador, interesses profissionais, de cultura e a sociais e não da doutrina religiosa propriamente dita -
própria atitude com a vida; enquanto os latinos vamos dizer que não era o amor a Deus o que levava a
permaneceram em uma filosofia de existência teórica, instituição cristã a se defender; exatamente ao
racionalista, os países germânicos e saxônicos contrário, era o interesse econômico-social o seu motor
desenvolveram-se no aspecto prático, emocional. Tal principal.
fenômeno é fácil de ser notado na própria conduta O centro dessa campanha contra a Reforma
desses povos, pois enquanto estes últimos voltaram-se locali- zou-se na Espanha em uma recém-formada
atualmente para a psicaná- lise, psicopatologia e organização religiosa, com o nome Companhia de
demais ciências, os meridionais conservaram-se Jesus. Inácio de Loyola, um valente soldado,
apegados aos velhos padrões de auto- ritarismo convertido ao cristianismo (quando ferido) resolveu
medievais, incensando os seus governantes, sejam organizar tal Ordem, com a finalidade de “salvar” a
príncipes, nobres ou ditadores. igreja, usando de métodos mili- tares; desde então, tais
A instituição cristã, desde que recebeu a sua ofi- grupos religiosos usaram sempre de processos
cialização de Constantino, no século IV, tomou conta autoritários para sobreviverem. Durante os anos de
de quase toda a sociedade civil, conseguindo altos 1547 a 1563 o Vaticano realizou o Concílio de Trento,
postos governamentais, terras e riquezas materiais. De com a finalidade de defender a vida social de seus
manei- ra que os funcionários religiosos não queriam funcionários, demonstrando que o legítimo cristia-
abrir mão de seus privilégios, assim como a classe nismo estava falido.
dominante da época: imperadores, príncipes e nobres, Vou mostrar agora uma série de pensadores e
que começaram a perder sua posição social, fazendo santos que, sem perceber muito bem, lutaram contra
tudo o que podiam

13
Basílica de São Pedro, Vaticano

13
a Reforma, mais para defender os valores sociais da liberdade: “a essência da vontade (criada) é
instituição religiosa. De início gostaria de lembrar que predetermi- nada quanto à apetição do bem universal,
eles pertencem, em quase toda a sua maioria, aos pa- determinando- se a si mesma quanto à escolha dos
íses mais conservadores da Europa: Espanha (Portu- bens particulares” (A. D/Alès, Providente, dans Dict.
gal), Itália e França. Apol., col. 452). Pa- rece-me que esse filósofo diz bem
do espírito jesuíta, ao não se comprometer com uma
Cajetanus (1468-1534) e atitude firme, em prol de uma causa, deixando sempre
em aberto o parecer contrá- rio; praticamente, já
Francisco Suarez (1548-1617) consultei inúmeros teólogos e todos disseram que
“Molina não disse bem isso...precisamos compreendê-
lo melhor”, mas nenhum conseguiu expli- car o que
Cajetanus nasceu em Gaete, Espanha, organizou ele falou realmente. De modo geral, valorizou
uma missão diplomática, de maio de 1518 a setembro sobremaneira a conduta do ser humano para chegar à
de 1591, para tentar fazer com que Lutero se retratas- salvação, diminuindo um pouco a ideia de predestina-
se - sem resultado algum, como é evidente. ção (que os protestantes acataram), bem de acordo com
Apresentou uma teologia trinitária com a ideia de que a intenção aguerrida da sua Ordem Religiosa.
há em Deus três substâncias relativas e, ao mesmo Não apenas Molina foi muito influenciado pe-
tempo, absolutas los famosos exercícios espirituais de Inácio de Loyo-
- que depois foi combatida por Suarez. Aliás, este últi- la, como Francisco de Borgia, que foi diretor geral da
mo apresentou um sistema teológico de aproximação Companhia de Jesus, depois, no ano de 1565;
do tomismo ao scotismo; era jurisconsulto, filósofo e Balthazar Alvarez (1533-1580) confessor da famosa
teólogo, procurando se adaptar ao espírito do tempo, doutora da igreja Tereza D’Avila; Luiz Du Pont (1554-
ao dizer que “a autoridade, de origem divina, não é co- 1624), autor de numerosos escritos sobre a vida
municada ao soberano senão por intermédio do povo; espiritual; Afonso Rodriguez (1531-1617), autor do
primeiro, o poder é conferido à multidão que depois o trabalho Da União e da Transformação de Alma em
transfere a um ou vários de seus membros, escolhidos Deus; seu homônimo, Afonso Rodriguez (1526-1616)
pelo consentimento geral, tácito ou explícito”. “Em que escreveu Prática da Perfeição; Alvarez de Paz
caso de tirania, o povo pode retomar a autoridade, que (1560-1620) realizou um tratado completo sobre a
ele sempre conserva in radice e concedê-la a outrem” espiritualidade e Le Grandier, com o seu livro, em três
(Leonel Franca, Noções de História da Filosofia, pá- volumes, De Perfectione Vitae Spiritualis. Vamos
gina 130). Nota-se aqui, de imediato, o espírito que dizer que o grupo cristão que per- maneceu fiel a
tomou conta dos funcionários religiosos, levando-os a Roma foi orientado pelos jesuítas, sob
se adaptarem aos novos grupos de mando que
surgiam; todo “político” sabe farejar para qual lado
pende o po- der, para se colocar lá.

Luiz Molina (1536-1600)


Luiz Molina nasceu em Cuenca e estudou em
Coimbra, onde ensinou por quatro anos; de volta à Es-
panha, foi morar em Madrid, quando faleceu.
Escreveu seis volumes sobre a Suma Teológica;
tornou-se conhe- cido por um trabalho, em que
colocou o título Concor- dia liberi arbitrii cum gratiae
donis, divina praescientia, providentia,
praedestinatione, et reprobatione, onde combateu o
predestinacionismo luterano, dizendo que a graça não
nega a liberdade, mas a confirma (Sciacca,
M. F., História da Filosofia, pág. 58).
13
Ele deu uma nova explicação sobre a concepção de Luiz Molina

13
o espírito da Contra-Reforma; é justamente por este uma inveja excessiva
motivo, que os funcionários religiosos do catolicismo
estão preocupados quase que exclusivamente com a
sua instituição, relegando o Criador a lugar
secundário.

Tereza d’Avila (1515-1582)


Entrou no convento das carmelitas aos vinte anos
de idade, procurando um caminho de misticismo
oposto ao dos reformadores. Mostrou que “a caridade
é a alma da espiritualidade, falando da divina história
do amor di- vino que a alma encontra no Castelo
Interior” (Vie Écrite par Elle-Même, pag. 303); diz da
perfeita união espiritu- al da alma com seu Deus,
simbolizada por um laço indis- solúvel, como se fosse
um casamento - fato interessante este de toda mulher,
mesmo que não se case, ou seja uma santa, viva com o
laço matrimonial na mente.
Tereza compara a caminhada em direção ao amor
de Deus, semelhante ao encontro da luz, denominan-
do-o: “inteligência da verdade pura”(Vie Écrite par
Elle-Même, pág. 21). Nota-se de imediato a influência
da filosofia racionalista, ao identificar o Criador com a
inteligência. Aponta dois tipos de união; uma simples:
“Deus priva a alma da inteligência, para imprimir nela
a verdadeira sabedoria” (Château, pág. 194); existiria
ainda a graça de união intensa, dentro da qual, nós
sen- tiríamos: a) apelos internos de amor, b) palavras
sobre- naturais, c) arrebatamentos e d) visões, que são
revela- ções de Cristo. A santa é de opinião que as três
Pessoas Divinas se comunicam diretamente à alma,
sendo a aliança mais estreita com a Segunda Pessoa
(Château, Vie e D., Cap. 4, pág. 205).
Gostaria que o leitor notasse este aspecto que irei
abordar agora, quando a famosa doutora afirmou que
“a visão da grandeza divina humilha o ser humano,
desprende-o e afasta-o de todas as afeições humanas
e mostra-lhe sem cessar novos sacrifícios a cumprir”
(Château, Vie D., cap. 1) - revelando sua ideia
invertida de que a aproximação ao Criador é que nos
causa so- frimento. Um fato interessante é que colocou
as doen- ças e as “travessuras” do demônio no mesmo
nível de incompreensão do confessor - significando
que as três modalidades estão muito próximas; vamos
dizer que ela já tinha uma certa consciência desses
fatos, que a ciência trilógica está apontando agora.
Mas o fato mais incrível é a santa ter percebido que o
primeiro passo é a admiração, adoração a Deus - que
13
Finalmente, chegamos ao que denominou humano tenha sanidade, seja feliz e até alcance os
união transformante, através da qual: a) as Três domínios do Criador, em avantajada posição.
Pessoas divi- nas se comunicam diretamente com a Enquanto os místicos do cristianismo e mesmo os das
alma; b) esta con- templação, ou visão intelectual religiões orientais (hinduísmo, bramanismo) procuram
da Trindade, acontece no mais íntimo da alma a elabo- ração de um exercício para galgar os bens do
(Château, pag. 246). Vê-se de imediato o seu alto, nós mostramos a necessidade de conscientizar a
platonismo, ao valorizar exclusivamen- te a alma própria psicopatologia, para deixar que a bondade, a
(rejeitando o corpo, como consequência) e mais verdade e a beleza floresçam e paremos de negar todos
uma vez incentivando o racionalismo, ao discorrer os bens com que o Criador nos aquinhoou.
sobre a visão intelectual de Deus. Citando o
apóstolo Paulo, quando disse Qui adhaeret Domino
João da Cruz (1542-1591)
unus spiri- tus est (1 Cor.,VI, 17), Tereza mostra a
Inicialmente, temos de advertir que João foi
possibilidade de chegar ao mesmo espírito divino,
extre- mamente influenciado por Tereza D’Avila.
tendo “uma brilhante luz que vem do interior”
Nascido em Vieille-Castille, de família nobre em
(Château, pag. 288). Não é difícil notar uma
decadência, en-
diversidade total entre o que Tereza D’Avila
preconizava e o que nós dizemos, para que o ser
não permite ver, dizemos nós. Tereza d’Ávila

13
trou em um colégio de jesuítas em Medina, própria mentalidade renascentista. Por este motivo, as
ordenando- se padre em 1567; teve uma entrevista
com a famosa doutora da Igreja e ele mesmo tornou-se
confessor das carmelitas. Escreveu Monte Carmelo, A
Noite Obscura e Viva Flama do Amor, onde expõe
seus exercícios es- pirituais e ideias místicas.
João da Cruz é chamado Doutor Místico,
conside- rando o elemento fundamental a
contemplação, concebi- da como “uma atenção geral e
afetuosa, um conhecimen- to de Deus” (Montée du
Carmel, II, Col. 12). Diz que a contemplação é infusa,
produzida por uma operação es- pecial do Espírito
Santo; é essencialmente mística e, em certo sentido,
passiva (Montée, pág. 355). Sua doutrina é dirigida às
pessoas que desejam se firmar na virtude e chegar à
perfeição; para isso, recomenda: a purificação, através
da mortificação interior, praticamente pela elimi- nação
do aspecto sensível (ou inferior), ou pelo afasta- mento
às afeições e consolações sensíveis - tal fenômeno seria
concomitante à purificação da parte racional e espi-
ritual da alma. Este último fato comportaria as
chamadas provações internas (trevas, esterilidade,
angústia), que preparariam uma união mais perfeita
(Nuit Obscure, col. 8-14). É muito importante notar
aqui a extrema seme- lhança com as práticas hindus,
quando recomendam eli- minar a vida sensível e
atingir o karma; evidentemente, tal atitude não é bem
cristã.
A finalidade seria a união transformante, pela es-
piritualização de toda a atividade da alma; deste modo,
ela (a alma) seria movida totalmente pelo Espírito
San- to: o entendimento, a vontade e a memória
agindo de conformidade com Deus. João da Cruz usa
as palavras: “assimilação em Deus”, “divinização”,
“sabedoria mesma de Deus”, que perdurou durante a
Idade Média, dando-nos a ideia de teomania. Aliás,
todo o seu méto- do é baseado no sentido de construir
um caminho para o Criador - e não de aceitar o que já
está feito, como a ciência trilógica descobriu. Tal
processo, tanto de João da Cruz, como de Tereza
D’Ávila, do próprio Inácio de Loyola e de Francisco
de Sales (como veremos agora) têm uma certa
semelhança com os exercícios místicos de outras
religiões, quando recomendam técnicas para se
espiritualizar (como se fôssemos deuses). De outro
lado, podemos notar o grande desprezo aos elementos
sensíveis e até ao afeto, realçando o racional, abando-
nado pelos últimos pensadores medievais (John Duns
Scot, Guilherme d’Ockam), pelos reformadores e pela

13
sensação de mutilação da própria vida, que não se a vontade é um reinado que governa todos os
fomos nós que fizemos. Não foi por esta causa que poderes da alma, ela mesma é governada pelo amor; 2)
o famoso místico morreu tão cedo? de sua natureza: o amor supõe uma conveniência
(proporção) da vontade com o bem; 3) de seus efeitos:
a união produzida pelo amor é espiritual; 4) das partes
Francisco de Sales (1567-1622) da alma: devem-se reco- nhecer, dentro da alma,
vários graus de perfeição; 5) da amizade: é um amor
Seus mestres preferidos eram: Agostinho,
de bem-aventurança recíproca; 6) enfim, os
Gregó- rio, o Grande, Crisóstomo, o Príncipe da
relacionamentos com Deus: não existe apenas uma
Eloquência, Jerônimo e Bernardo, com sua
conveniência admirável entre o homem e seu Cria-
linguagem suave, Ci- priano, Tertuliano e,
dor, mas uma inclinação natural para amar a Deus
particularmente, Vicente de Lerins. Pode-se
sobre todas as coisas (Traité de l’Amour de Dieu, col.
considerá-lo mais um psicólogo do que um pen-
1-5). Em seguida, fala da necessidade da graça divina,
sador ou místico; estabeleceu os fundamentos
para se desenvolver o verdadeiro amor, entrando no
naturais do amor divino: 1) a importância do amor:
que cha-
recomendações de todos esses místicos dão-nos uma Francisco de Sales

13
ma de mistério da predestinação: “Deus, sem dúvida, muitos indivíduos têm se voltado para o pensamento
não preparou o Paraíso, senão para aqueles que previu oriental (hindu, principalmente) e seus
que serão os seus” (Traité de l’Amour de Dieu, col-5).
No seu processo de ascetismo, Francisco de Sales
discorre sobre a necessidade de intensificar e apurar os
atos interiores que nos unem a Deus; no seu livro In-
troduction à La Vie Devote, diz claramente “que é ne-
cessário, não somente a observação dos mandamentos,
mas o exercício dos conselhos e inspirações celestes”
(pág. 191). Muito influenciado pelo espírito da
Contra- Reforma encabeçada pelos jesuítas, o bispo de
Genebra deu importância exagerada à penitência,
recomendando uma piedade jansenista; assim sendo,
aconselhava ora- ções frequentes de jaculatórias, além
de exames de cons- ciência, retiros anuais e uma
contínua direção espiritual. Podemos afirmar que a
Igreja Católica segue até hoje a orientação desse santo
que, por sua vez, conservou uma estrutura medieval -
tanto assim que colocou como a grande virtude a
modéstia, que é a flor da castidade - re- novando a
questão ultrapassada da concupiscência.
Francisco de Sales mostra que os atos interiores
constituem essencialmente o amor, que é a compla-
cência e a benevolência; recomenda o recolhimento e
a quietude, para receber as graças de Deus; os princi-
pais frutos do amor são: a conformidade e a
submissão. As propriedades atribuídas ao amor são:
Deus deve ser amado acima de todas as coisas e o
desenvolvimento do seu amor tem de ser universal,
para reparar os desastres do pecado (Amour de Dieu,
pág. 207, pág. 330 e col. 13-14). Este final mostra-nos
que ele foi influenciado pela filosofia de John Duns
Scot, conservando ainda as velhas teses medievais,
como a questão da concupis- cência e a ideia (oposta à
da Trilogia Analítica) que po- demos construir o
caminho da verdade - e não aceitá-lo, desde que ele já
está construído.
Deve-se ver bem que, após o século XVI, nada
mais de significativo foi realizado dentro do catolicis-
mo. Pelo contrário, o movimento mais importante foi
o neo-tomismo, iniciado na Itália por Azeglio
Tapareli, e que foi apenas uma renovação das teses
tomistas fi- losóficas; temos de admitir que a igreja
católica está parada no tempo, por causa de sua
concepção de vida, que impede o uso de sua grande
riqueza teológica - que foi justamente a maravilhosa
contribuição de Tomás de Aquino; temos de admitir
que tal fenômeno vem acon- tecendo atualmente
também com os reformadores – por esse motivo,

14
exercícios, trazendo para o ocidente a mesma Giordano Bruno (1548-1600)
decadên- cia daquela região.
Era um homem inconformado com a terrível situ-
CONTRA-RENASCENÇA ação de hipocrisia da época e não sabia o que fazer
para
Como podemos notar pelos capítulos
anteriores, o mundo ocidental havia se dividido
entre um grupo racio- nalista, teórico, e outro
empírico, prático; o primeiro, lo- calizado no sul da
Europa, e o segundo, na região central e norte; tal
fenômeno determinou o tipo de civilização que se
desenvolveu em todos os países colonizados por
eles. Vejamos agora o que aconteceu com os
indivíduos geniais que habitaram uma ou outra
nação.
Começando com a Itália, onde justamente
come- çou a Renascença, houve um grupo de
pessoas que valorizou sobremaneira a ciência e
tornou-se famoso em seus trabalhos; mas foi pouco
a pouco abafado pelo espírito medieval de
intransigência que predominou so- bre aquele país.
No próprio pensamento filosófico foi iniciada uma
grande renovação: Bernardino Telésio (1509-1588)
falava que conhecer é sentir; a consciên- cia não é
senão sensação; o próprio intelecto é sentido, e a
lógica, a matemática pura, deriva das sensações.
Tommaso Campanella reflete melhor o espírito do
Re- nascimento, ao dizer: “sentir é ter consciência
de si; na sensação, conhecemos o que viemos a ser,
através da própria sensação; a alma e todos os
outros entes co- nhecem originariamente e
essencialmente a si mesmos e só secundariamente e
acidentalmente todas as outras coisas”(Lanciano T.
C., Le Dotrine Filosofico-Religio- se). Pelo que
podemos ver, a península itálica apresen- tava
filósofos do mais acurado raciocínio - mas que se
deparavam com aquela parede de pedra da estrutura
psicossocial medieval, da qual era o centro.
Exatamen- te por este motivo, as maiores
aberrações aconteceram nesse país que,
paulatinamente, viu-se sufocado no seu
desenvolvimento, parando no tempo e espaço. O
que Telésio e Campanella escreveram há quatro
séculos é de uma atualidade incrível, que só agora a
ciência tri- lógica está percebendo claramente. No
entanto, este último filósofo sofreu quatro
processos, permanecendo vinte e quatro anos
encarcerado - por um único motivo: escrever o que
pensava.

14
denunciá-la; tinha uma profundidade e erudição incrí- cuja mínima parte nem é capaz de conhecer, menos
veis, abalando a velha estrutura medieval, toda carco- ain- da de dominar (Ensaios, Montaigne M.).
mida, mas que tinha suficiente força para persegui-lo e O que sempre caracterizou Montaigne foi seu
sacrificá-lo a 17 de fevereiro de 1600. ceti- cismo e uma atitude de manifestar o que pensava -
Giordano Bruno vestiu o hábito de clérigo no bem ao contrário do tempo medieval; antes de
convento napolitano de São Domingos, doutorando-se Immanuel Kant, teve a coragem de ser porta-voz do
em teologia em 1575; admirava Túlio, Cusano (Kre- que os indivíduos pensam, mas não expõem; disse que
bs) e Copérnico, sendo processado por não seguir a o valor das coisas não é o que elas carregam, mas o
ortodoxia católica, que eram, quase em sua totalidade, que colocamos nelas. Podemos até afirmar que
os interesses sociais da instituição. Dizia claramente Montaigne foi um precursor do liberalismo do século
que a realidade não era, como pretendia o aristotelis- XIX, inspirador de Descartes, na dúvida metódica, e o
mo-tomista, um mundo estéril, morto e Deus imóvel próprio Pascal usou sua argumen- tação a respeito do
(o primeiro motor imóvel). Usando o heliocentrismo, ser humano. De modo geral, o pensa- mento moderno
procurava mostrar uma concepção de vida bem maior francês, ora frívolo, ora profundo, cético e zombador
do que imaginavam, chegando a identificar a natureza formou aí suas bases: Montesquieu (1689- 1755),
com o Criador (panteísmo); ele acreditava, com Lu- Voltaire, Chateaubriand (1768-1848), Stendhal
crécio, que o universo era infinito e ilimitado. Mas, (1783-1842); Shakespeare (1564-1616), na Inglaterra,
ao lado dessa ideia, pensava que o ser humano era um e Ralph Waldo Emerson (1803-1882), nos Estados
ser privilegiado, capaz de penetrar em todos os seus Unidos, seguiram muito sua concepção de existência.
segredos - o que está perfeitamente dentro da própria Não é di- fícil notar que ele pode trabalhar mais à
lógica pois, se o homem é a mais perfeita criatura, tem vontade, porque residia na França, onde havia um
condições de perceber tudo o que foi criado, que está pouco mais de liber- dade em comparação ao restante
em situação inferior a ele (Trollo, E: La Filosofia di da latinidade; a própria filosofia deslocou-se para lá,
Giordano Bruno, Roma). onde Descartes fundou o racionalismo moderno.
A meu ver, a grande contribuição de Giordano
Bruno nem foi tanto a sua filosofia, mas seu modo de
ser, vamos dizer, o seu direito de discordar, de não se-
guir a máscara social que todos usavam, fingindo
serem corretos, caridosos e, no fundo, eram lobos
selvagens
- tanto assim que torturavam e matavam em nome de
Deus, como se faz até hoje, em todas as regiões que se
conservaram no atraso medieval.

Michel Montaigne (1541-1592)


Na França havia também febre pelas transforma-
ções psicossociais, seja no aspecto religioso, através
do calvinismo (que encontrou grande acolhida) seja
pela ascensão da nova classe social, a burguesia, pelas
ar- tes e literatura. Foi nesse ambiente que nasceu
Michel Montaigne, que se caracterizou por uma nova
atitude individualista, que aparecia; ele ataca
claramente o rei- nado do racionalismo, afirmando que
a razão não é ca- paz de provar o que quer que seja,
em sua Apologia de Raymond Sebond. Em seguida,
revela a teomania do ser humano, ao dizer que não
existe nada mais ridículo do que o homem, pobre e
miserável criatura, nem se-
14
Giordano Bruno
quer dona de si mesma, considerar-se dona do universo,

14
Galileu Galilei (1564-1642) contra o espírito teológico e metafísico da época e não
contra a enorme hipocrisia que havia; a verdade apa-
Quando a Itália estava saindo de sua situação me- rece naturalmente, até intuitivamente; deste modo, um
dieval, por força dos novos gênios que surgiam, entrou indivíduo genial percebe perfeitamente o que está
de cheio na ciência, e Galileu Galilei tornou-se uma de acon- tecendo, mesmo que não o saiba definir
suas maiores figuras - mais por força da enorme luta racionalmente
em que teve de se empenhar, para impor a realidade - era o que acontecia com ele, ao não aceitar aquele es-
científica sobre a longa noite de trevas que tomara pírito, que pouco tinha a ver coma verdadeira teologia
con- ta da humanidade por tantos séculos. e metafísica. Toda a latinidade estava em jogo, e Gali-
Primeiramente, ele estudou medicina, abandonan- leu constitui o símbolo do que aconteceu no começo
do-a para se dedicar à matemática, tornando-se pro- do Renascimento, contra a tirania cultural e a opressão
fessor dessa matéria na Universidade de Pisa; nessa da desonestidade; e, pouco a pouco, ele foi
ocasião aplicou a matemática para investigar os fenô- sucumbindo diante da enorme pressão social que os
menos físicos - suscitando uma violenta oposição da donos da men- tira e do atraso fizeram sobre o povo e
ciência oficial que se baseava em Aristóteles; esta foi a suas mentes, abafando aquele incrível progresso que
sua maior contribuição para a humanidade. Mais tarde começava.
apoia a teoria heliocêntrica de Copérnico e mostrando Não existe fenômeno mais lindo do que a luta
que, se o sol tem manchas, a ideia do filósofo grego de que os grandes talentos, gênios e místicos
perfeição celeste estava caída por terra. Em 1623 volta empreenderam, não propriamente para trazer a
a polemizar com os jesuítas, confrontando as ideias de verdade, mas para impe- dir que os inimigos dela
Ptolomeu, de uma Terra parada, com a de Copérnico, prevalecessem sobre a face da Terra; o processo de
onde o Sol seria o centro; em outubro do mesmo ano, civilização foi sempre o esforço de pessoas e grupos
teve de enfrentar o tribunal do Santo Ofício (notem o privilegiados, no sentido de evitar a ati- tude danosa de
nome Santo, dado a uma instituição que não tinha todos aqueles que procuram conservar a humanidade
nada de bom) (Galileo Galilei, Banfi, Milão). na ignorância, no primitivismo e no erro. E o fato mais
Alguns historiadores afirmam que Galileu estaria significativo é o reconhecimento geral de to- dos os
povos e regiões sobre tais pessoas; justamente por esse
motivo, grande parte delas só teve pleno reconheci-
mento depois de muitos anos, ou mesmo após a morte.

14
Galileu Galilei

14
Capítulo
21

Francis Bacon

O MUNDO OCIDENTAL, NO SÉCULO XVII, DIVIDIU-SE EM


DOIS GRUPOS OPOSTOS: O NÓRDICO, INTERESSADO NO
DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA, DA CIÊNCIA, E O
LATINO, DOMINADO PELOS GRUPOS REACIONÁRIOS,
QUE ABAFARAM O SEU PROGRESSO

14
teóricos; estes últimos apenas

A história do pensamento humano é, sem dúvida


alguma, a mais bela jóia da civilização; cada filósofo,
teólogo ou místico é um novo mundo de descobertas e
desenvolvimento que surge, mostrando-nos uma peque-
nina luz da imensa claridade do Criador. Temos de pres-
tar bem atenção, para ver que a humanidade caminha
passo a passo, havendo necessidade de entender mís-
tico por místico, gênio por gênio, pois todos eles estão
construindo a formidável civilização do Terceiro Milê-
nio; toda vez que um país, ou um grupo étnico, social
se recusa a andar mais um pouco, fixando-se em
algum autor, ou ideia ultrapassada, inicia seu processo de
deca- dência: todo aquele que pára, regride, porque o
progres- so é um eterno desenvolvimento, cujo limite
máximo está no enlace com o infinito, em todos os
sentidos.
Vamos ver agora essa grande divisão que houve no
mundo ocidental, entre aqueles que se lançaram para o
mundo futuro, da ciência e da realização, e os que re-
solveram permanecer em uma conduta retrógrada, de
autossuficiência: os primeiros localizaram-se no
centro e norte europeus, e os outros, no sul; este livro
é um alerta, principalmente a estes últimos, para que
ponde- rem bem o que lhes está acontecendo, para que
voltem ao mundo do século XXI. De outro lado, é um
absurdo afirmar que os ingleses tinham um espírito
prático, mo- tivo pelo qual desenvolveram
rapidamente seu país, en- quanto que os latinos são

14
Francis Bacon

estão impedidos para o progresso devido ao sistema


so- cial que criaram, seja no domínio econômico e
político, mas principalmente no campo do
pensamento, que é o seu fundamento. Basta lembrar
que as leis que vigoram entre eles é diferente do
direito germânico e do saxão - o que significa que as
nações da Europa Meridional e os países
colonizados por elas adotam basicamente o Di-
reito Romano, que possui mais de 2000 anos de
idade.

Francis Bacon (1561-1626)


Francis Bacon é aceito como o fundador do
método experimental da ciência moderna; tinha
profunda aver- são por Aristóteles, alegando que era
uma filosofia pró- pria para contendas, e estéril no
sentido de beneficiar a vida do ser humano (La
Pensée de Lord Bacon, Schuhl, P.M.). Tinha ideia
de organizar um trabalho científico de grande vulto,
que conteria o título A Grande Instau- ração,
dividido em seis partes: uma classificação geral das
ciências, novo método para chegar à verdade, coleta
de dados empíricos, exemplos de aplicação do
método, uma lista de generalizações sobre o novo
método e, fi- nalmente, uma nova filosofia, baseada
no seu resultado final. Como podemos ver, um
modo de pensar contrário ao da Idade
Medieval,uma confiança muito grande na realidade
e nos elementos que ela mostra.
Bacon faz uma severa crítica à escolástica, pelo
seu

14
cunho teórico, racionalista, que a levava a permanecer Freud, que usou repetidas vezes sua ideia, retirada do
em uma eterna atitude contemplativa - onde apenas livro Sobre o Cidadão: “o homem é o lobo do
Deus e os anjos poderiam ser espectadores; ele homem”. Ele via o ser humano como se fosse um
desejava que a ciência (no seu sentido também do animal perigo- so, que deveria ser tratado com extrema
conhecimento) ser- visse à humanidade; aponta a precaução: “no estado de natureza, dizia, a utilidade é
megalomania, dizendo que os homens querem ver tudo a medida do di- reito”; levado por suas paixões, o
sob determinada luz muito particular, pensando que é homem precisa con- quistar o bem, as comodidades da
a razão que governa as pala- vras e não que as palavras vida, tudo aquilo que resulta em prazer; portanto, o
possam atuar sobre o intelecto. Segundo a opinião de altruísmo não é natural e sim o egoísmo e o desejo de
Léon Brunschvicg, Bacon foi o introdutor do método poder e mais poder, que só termina com a morte”
indutivo, próprio das ciências. (Sobre o Cidadão). Considerava a humanidade
Nos seus últimos anos de vida, escreveu Nova vitimada por uma natureza errônea, que só subsistia
Atlântida, em oposição à República de Platão (que devido ao direito fundamental de autopre- servação,
também se passava na Atlântida), mostrando um país algo mais exterior, uma necessidade social. Ao
imaginário, onde todos se sentiam bem por causa da contrário de Aristóteles, não compartilhava a opi-
or- ganização econômica e social justa; a ideia básica nião de que teríamos uma disposição natural para
do livro diz respeito ao controle científico, alcançado viver em sociedade, mas apenas um desejo de
sobre a natureza, afirmando ser mais importante preservação, quando a vida está ameaçada; “os
dominá-la (a natureza) do que governar os homens. homens não vivem em cooperação natural, como
Colocou nesse local uma “Casa de Salomão” que fazem as abelhas ou as formigas; o acordo entre elas
dirigiria a vida dos ci- dadãos, cuja finalidade principal é natural, mas entre os se- res humanos só pode ser
era a do conhecimento das causas e forças interiores, artificial”. (Sobre o Cidadão). No seu mais famoso
estendendo o poder hu- mano a tudo o que fosse livro Leviatã, afirma que “os pactos sem a espada não
possível. O pensador inglês via o trabalho científico passam de palavras”; notem agora sua percepção da
formado por um verdadeiro exérci- to de teomania e megalomania ao di- zer que “não há
pesquisadores, pois ele é oriundo do contato com a dogma algum referente ao serviço de Deus, ou às
realidade e não de algumas teorias afirmadas a priori; ciências humanas, onde não nasçam diver- gências,
a ciência poderia aumentar a duração da vida, curar as que continuam em querelas, ultrajes e, pouco a
do- enças e construir máquinas de todos os tipos, seja pouco, não originem guerras, porque a natureza dos
para voar, ou para percorrer o fundo dos mares.
A partir de Francis Bacon, a nova mentalidade
científica desenvolvida na Inglaterra levou tal país ao
enorme progresso industrial, tornando-o precursor do
tipo de existência de que a maior parte da humanidade
ainda não desfruta; os ingleses conseguiram estender
sua influência a inúmeras nações, sendo as mais bene-
ficiadas aquelas que receberam fortemente sua influ-
ência; enquanto na Itália perseguiam Giordano Bruno,
nas Ilhas Britânicas já antevíamos os séculos futuros,
colocando o ser humano em primeiro plano. Não é di-
fícil notar que boa parte da humanidade voltou-se para
esse mundo encantado da ciência.

Thomas Hobbes (1588-1679)


Thomas Hobbes tinha uma mentalidade contrária
à de Francis Bacon: era pessimista com a “realidade”
humana e não acreditava que pudéssemos desenvol-
ver qualquer sentimento bom; sua maneira de pensar
14
era muito semelhante à que teve mais tarde Sigmund Thomas Hobbes

14
homens é tal que, vangloriando-se de seu suposto XVII tornou-se fundamental no direcionamento defi-
saber, querem que todos os demais julguem o
mesmo”. Hob- bes vê como única solução para esse
problema um Es- tado autoritário, onde o soberano
fosse absoluto, civil, dominando o aspecto religioso da
sociedade.
Vê-se aqui um pensador bem diferente dos outros
britânicos, uma pessoa que tirava conclusões do que
enxergava na corte da Inglaterra e de Paris, onde
esteve exilado por onze anos; aliás a mesma ideia da
atual ci- ência do psicopatológico, que acredita poder
construir uma visão sobre o ser humano, retirada
inteiramente dos elementos experimentais, esquecendo
que foi o próprio homem quem os fez - portanto, de
quem é anterior e, principalmente, superior aos dados
apresentados. Tal método pode funcionar em uma
pesquisa social para se determinar um padrão de
existência em sociedade, mas jamais para saber o que
é o homem em sua essên- cia; este é o grande
problema de todos os filósofos que rejeitaram a
metafísica.
A civilização inglesa conservou em sua base um
Francis Bacon e um Thomas Hobbes: o primeiro, em
seus ideais elevados, em seu grande amor pelo desen-
volvimento, e o segundo em sua atitude de domínio
econômicossocial sobre muitas nações que coloniza-
ram, usando muitas vezes punhos de aço. Podemos di-
zer ainda que esse pensador forneceu ao seu país ele-
mentos políticos fundamentais de ação que os Estados
Unidos da América usam hoje, com grande perícia - da
mesma maneira que a Itália, até hoje, segue fielmen-
te a orientação de Nicolau Maquiavel. Gostaria ainda
de informar ao leitor que a maior parte dos princípios
criados por Hobbes foi rejeitada pelo povo inglês que,
mais tarde, voltou-se inteiramente para John Locke. A
psicanálise freudiana difundiu hodiernamente tal con-
cepção de vida, motivo pelo qual os seus aficionados
são pessoas derrotistas, amarguradas, substituindo a
neurose individual por um tipo de existência
totalmente pessimista - inadequada ao ser humano, que
é a melhor criação de todo o universo.

John Locke (1632-1704)


Enquanto a atitude absolutista, despótica e pes-
simista de Thomas Hobbes não foi bem aceita na In-
glaterra, Francis Bacon e principalmente John Locke
foram venerados pelos seus trabalhos, onde mostraram
toda a grandeza de espíritos privilegiados; o século
14
nitivo dos novos rumos da civilização moderna. quando afirmou que o conhecimento é derivado
John Locke estudou em Oxford, abominando o fundamental- mente da experiência sensível,
aristotelismo escolástico, mas aceitando John Owen desenvolvendo teses políticas e sociais no mesmo
e Descartes, de- vido à tolerância religiosa do sentido: assim como não existem ideias inatas no
primeiro e à clareza in- telectual do segundo; espírito humano, também não existe poder inato, ou de
pertencente a um país que havia se libertado do origem divina (como até hoje
atraso medieval, concedia grande valor à
experimentação científica, escrevendo durante vinte
anos o Ensaio sobre o Entendimento Humano -
contra a filosofia de Ralph Cudworth, que defendia
a existên- cia de ideias inatas, derivada do
pensamento de Platão. Pois bem, o grande filósofo
inglês era de opinião que a alma do ser humano, no
momento do nascimento, é uma “tábula rasa”, como
se fosse um papel em branco, no qual não se
encontra nada escrito inicialmente.
No segundo livro (Ensaio Sobre o
Entendimento Humano), afirma que a fonte de todo
conhecimento é a experiência sensível e a reflexão;
vamos dizer que esta origem (experiência e
reflexão) seriam os processos que suprem a mente
com o material do conhecimento; este material são
as ideias: as de sensação proviriam do mundo
exterior, e as de reflexão do próprio interior.
Abordando a questão da verdade, distingue dois
tipos: o primeiro seria constituído pelas
‘matemáticas’, que têm um conhecimento certo,
porque é produzido pela pró- pria mente humana; o
segundo viria da experimentação (onde as ciências
ideais, matemática e moral estariam ausentes) e o
critério da verdade dependeria da conve- niência
entre as ideias que estão na mente e a realidade
externa - o que não deixa de ser uma visão
escolástica. A questão da exatidão da matemática
mostra bem o as- pecto megalômano do ser
humano, quando pretendeu construir, no século
XIX, uma ciência independente do Criador, a qual
desmoronou atualmente.
Nota-se que o pensamento de John Locke tem
uma dimensão humana superior à dos filósofos
anteriores em seu país (Hobbes, Bacon)
principalmente à dos me- dievais e, até mesmo, à
dos gregos; podemos afirmar que muitos deles
apresentaram um quadro básico me- lhor, porém, no
aspecto de compreensão do mundo atu- al, não há
comparação possível - tal fenômeno poderia ser
melhor esclarecido pelas novas noções sobre a vida,
introduzidas no mundo por Cristo. Neste momento,
en- tramos no aspecto mais belo de seu trabalho,

14
falar: bendito seja tão extraordinário pensador, que
tanto benefício trouxe para toda a humanidade: tanto a
revolução burguesa na Inglaterra, os iluministas
france- ses do século XVIII (que levaram o país à
Revolução Francesa), como Montesquieu, que
formulou a teoria de separação dos três poderes, e a
Declaração da In- dependência Americana, em 1776,
tiveram sua origem nessa privilegiada criatura. E o que
de mais importan- te houve para a história da
civilização no seu sentido político-social do que tais
acontecimentos?

Isaac Newton (1642-1727)


Enquanto Galileu quase foi parar em uma foguei-
ra da Inquisição organizada pela Igreja Católica, Isaac
John Locke Newton, que nasceu exatamente no ano em que o fa-
moso cientista italiano morreu (1642), recebeu as
afirmam os aristotélicotomistas, mesmo que Suarez te- maio- res glórias que uma pessoa poderia receber em
nha modificado um pouco tal orientação, concedendo vida - a ponto de estar escrito na Abadia de
esse poder ao povo). Westminster: “É uma honra para o gênero humano que
Continuando nessa ordem de ideias, Locke escre- tal homem te- nha existido”. A ciência havia emigrado
ve que o estado social e o poder político nascem de para o norte da Europa, por falta de aceitação no sul,
um pacto entre os homens, ao contrário do estado onde é rejei- tada até hoje; as nações latinas
natural, anterior; “nascemos livres, na mesma medida geralmente perseguem seus gênios (enquanto estão
em que nascemos racionais”; como consequência, vivos) por não permitirem qualquer alteração em sua
seríamos iguais, independentes e governados pela estrutura social - não é difícil perceber tal fenômeno
razão; entre os direitos naturais, existe o da até nas moradias, estradas, ho- téis, ruas, cidades e
propriedade, natural e anterior à sociedade civil, mas campos das regiões meridionais da Europa, onde os
não inato. O filósofo lan- ça no seu livro Dois automóveis modernos mais parecem figuras estranhas
Tratados Sobre o Governo Civil a tese de que a origem na paisagem. Esta diferença funda- mental de atitude
e o fundamento da propriedade é o trabalho. O pacto entre a civilização nórdica e a latina não é determinada
social seria apenas um acordo entre as pessoas, no por fatores raciais ou étnicos, mas inteiramente por
sentido de preservar as leis naturais, ou seja, a vida, a questões psicossociais, devido à ação dos grupos mais
liberdade, e impedir a possível violação de seus fortes (econômicos, políticos, religio- sos, militares e
direitos (naturais); exatamente ao contrário de Hobbes, sociais), que não querem perder os seus privilégios -
um acordo mútuo reuniria os indivíduos para chegar à mesmo à custa de conservar seus países em acentuado
uma harmonia geral, em uma forma de gover- no que atraso e, a longo prazo, eles mesmos se prejudiquem; a
julgassem conveniente: quando um governante se única saída seria o povo se conscienti- zar de tal
torna tirano, coloca-se em estado de guerra contra o situação, para obrigar seus algozes a deixá-lo se
povo; se não for possível encontrar reparação, este (o desenvolver.
povo) pode revoltar-se - como se fosse um direito Newton conseguiu unir a matemática à experi-
natu- ral de punir seu agressor – a razão do contrato mentação, levando Immanuel Kant (século XVIII) a
social é evitar o estado de guerra, que é quebrado considerar a sua física e mecânica celeste como sendo
quando o go- vernante se coloca contra o povo; e é a própria ciência. Em 1666 desenvolveu o teorema do
justamente o povo que decide quando ocorreu uma binômio, que deu origem ao cálculo diferencial e in-
quebra de confiança, pois só quem confia o poder é tegrado – a mais importante inovação na matemática,
capaz de dizer quando se abusa do poder. desde os gregos antigos; descobriu que a luz branca é
Vendo tal grandeza de pensamento, só podemos constituída pela união das sete cores fundamentais, e a
14
lua mantém-se em órbita devido à força
gravitacional.

14
Em 1704 mostrou que a luz é constituída de corpúscu- verdadeiro início do encontro com a verdade total.
los emanados pelos elementos luminosos e, nos
últimos anos de sua vida, dedicou-se a assuntos
teológicos.
Escreveu Os Princípios Matemáticos da Filoso-
fia, sistematizando a mecânica de Galileu com a as-
tronomia de Kepler, através de três leis fundamentais:
“todo corpo permanece em seu estado de repouso, ou
de movimento uniforme em linha reta, a menos que
seja obrigado a mudar de estado por forças impressas
nele”; a segunda lei: “a mudança do movimento é pro-
porcional à força motriz impressa e faz-se segundo a
linha reta, pela qual se imprime essa força”; a terceira:
“à uma ação sempre se opõe uma reação igual, ou seja,
as ações de dois corpos, um sobre o outro, são sempre
iguais e se dirigem a partes contrárias”. Suas noções
de espaço e tempo serviram de grande valia no cam-
po científico; disse que o espaço absoluto permanece
constantemente igual e imóvel, sem relação alguma
com o objeto exterior, enquanto que o espaço relativo
é uma medida, ou parte imóvel do primeiro, que nos-
sos sentidos captam, devido a sua situação em relação
a outros corpos; as coisas mudam, mas o tempo não se
altera, ou melhor este último em nada contribui para
que tal fato aconteça (Jammer, M.: Concepts of Space;
Cambridge, Massachusetts).

René Descartes (1596-1650)


Os grupos, instituições, países e povos que
aprova- ram a Contrarrenascença e a Contrarreforma
não acei- taram desenvolvimento algum que veio
posteriormente, seja na ciência ou na filosofia,
teimando em permane- cer em uma conduta medieval
de inconsciência a todos os valores e progresso da vida
moderna. Tal fenômeno não é difícil de ser
constatado: basta ver o currículo dos seus cursos
universitários, parados no tempo e espaço, como se
nosso planeta não estivesse quase no século
XXI. De maneira geral, podemos localizar esse fenô-
meno em todas as nações dominadas pelo espírito filo-
sófico racionalista da igreja católica, pois ela não usou
o tomismo (em seu sentido teológico) para preservar o
que é certo, ou melhor, Deus, mas para defender o que
é errado, ou seja, seus interesses sociais. E o grande
passo, que foi dado em direção à realidade, veio
através da ciência, que deu seus primeiros sinais nessa
ocasião; como Deus é o real, podemos afirmar que
Renascença e Reforma (no sentido filosófico) foram o
14
Um fato extremamente significativo que
sempre aconteceu nos países latinos, foi a teimosia
em perma- necer em um estilo de existência
totalmente ultrapas- sado; Descartes, por exemplo,
desenvolveu um pen- samento racionalista bastante
aproximado da filosofia aristotélico-tomista e até da
medieval (de Anselmo e Agostinho); afinal de
contas, a chamada dúvida metó- dica constitui uma
variação do que Agostinho disse que somente
podemos duvidar do que acreditamos e que a
deterioração só pode acontecer em algo são, que
exis- te o conhecimento sensível, o intelectual etc.
Quanto à semelhança ao aristotelismo, coloca a
primazia no pen- samento (conhecimento
intelectual) e a total dependên- cia da vontade ao
intelecto (só podemos gostar do que conhecemos);
porém, como o famoso filósofo francês não colocou
a instituição religiosa como detentora, in- clusive da
verdade filosófica, não foi aceito pelos seus irmãos
racionalistas (tomistas).
De todos os países latinos, a França conservou-
se mais independente da atitude dos grupos da
Contrar- reforma e da Contrarrenascença, porque já
tinha expe- riência de uma nova civilização,
iniciada por Carlos Magno, em oposição ao
medievalismo exagerado, e

René Descartes

14
também devido a sua maior proximidade aos povos sa- mo, para provar a existência de Deus (não posso pensar
xônicos. Eis porque o seu desenvolvimento não sofreu em algo que não exista), valorizando a intuição, colo-
tanta estagnação como o da Itália, Espanha e Portugal.
Notamos claramente que uma cultura filosófica racio-
nalista diferente deslocou-se para lá, devido ao fato de
possuir ainda alguma liberdade.
Vejamos então esse mundo latino, especificamente
a França, um tanto mais distante da intransigência da
pesada Contrarreforma e Contrarrenascença da Itália,
Espanha e Portugal. Estamos agora no século XVII, e
a luta contra o obscurantismo está se desenrolando em
quase todos os países europeus: os grupos dominantes
têm pavor de se verem alijados de suas posições de
mando e recorrem a qualquer expediente para impedi-
lo; e Descartes acovardou-se inteiramente, não publi-
cando um trabalho, de idêntica linha ao de Galileu,
com medo de retaliação política. Temos de convir que
o ser humano vivia apavorado, mormente com as
poderosas forças políticas que o oprimiam no sul da
Europa, em detrimento do verdadeiro progresso e
civilização.
O famoso pensador francês estudou no colégio
je- suíta de La Flèche e, desencantado com a
inutilidade do ensino das “letras” na França, dirigiu-se
para os Pa- íses Baixos, onde ligou-se a Isaac
Beeckman, médico holandês, apaixonado pela física e
matemática. Escre- veu Traité du Monde et de la
Lurnière, que defendia o movimento da Terra; ao
saber que Galileu havia sido condenado por expor tese
semelhante, renuncia à sua publicação. Tal atitude foi
tomada em relação a tudo o que fez, não se sabendo o
que pensava realmente (Des- cartes, Chevalier,
Jacques, Paris).
Descartes pode ser considerado o fundador do ra-
cionalismo moderno; diz que o início do
conhecimento é fornecido pela intuição, que é a
apreensão imediata das essências elementares, sendo o
fundamento de todo saber; como ponto de partida para
o conhecimento, es- tabelece a dúvida metódica
(provisória, não definitiva); devido ao fato de que
tanto os sentidos como a razão podem nos enganar,
valoriza o conhecimento sensível e o racional. E,
como todo racionalista, desvalorizou o campo do
sentimento, afirmando que o sábio deve com- bater as
paixões, destruí-las e até aniquilá-las. Vemos a
mesma linha do racionalismo aristotélico-tomista da
Idade Medieval, com uma nova roupagem, pois o pen-
sador francês superestimou o raciocínio, colocando-o
como fundamental à vida; usou ainda a ideia de Ansel-

15
cando-a na base de qualquer conhecimento; dos anjos, ou se a alma caberia dentro de um copo; o
podemos dizer que estabeleceu uma certa união mesmo espírito per- manece até hoje, como se fosse
entre o aristote- lismo e o platonismo. um grupo de graves doentes conversando.
Descartes não possuía a mesma profundidade
de Aristóteles ou de Tomás de Aquino, partindo do
conhe- cimento da matemática (ao contrário do
filósofo grego Aristóteles, que partiu da ciência
biológica) para che- gar ao conhecimento - a
matemática, como sabemos, fornece grande
“segurança” ao indivíduo, porque dá a impressão de
responder a todas as questões que levanta; vamos
dizer que esse campo encaixa todas as formula-
ções dentro de suas fronteiras. De maneira muito
geral, o filósofo francês está querendo falar que os
seres hu- manos concedem-se licença para existir:
se duvido, eu penso e se eu penso, eu existo;
claramente está dando a ideia máxima de teomania
colocando a origem da exis- tência não no
pensamento do Criador, mas no da cria- tura;
evidentemente, é uma ideia geral que têm todos os
seres humanos, e que novos pensadores puderam
manifestar - mesmo que fosse em uma nação
afastada da latinidade (Holanda).
Se Descartes não tivesse morado tanto tempo
em países mais tolerantes, Holanda e Suécia,
provavelmen- te não teria elaborado todo o seu
pensamento, devido à situação de intransigência
que vigorava no sul da Euro- pa. Ele sofreu maior
oposição justamente dos funcioná- rios religiosos,
que desejavam uma filosofia, mas liga- da,
dependente da estrutura social que dirigiam. Não é
exatamente o que acontece até hoje? O mais
importante não é o que se pensa, mas que não se
cogite coisa al- guma que abale as prerrogativas
psicossociais. Tanto Descartes, como Spinoza
conseguiram se desenvolver melhor por estarem na
Holanda; Pascal sofreu inúme- ras dificuldades por
morar na França.
Foi Nicolau Malebranche (1638-1715) quem
fez a difusão do dualismo cartesiano, quando
considerou o ser humano formado por duas
substâncias heterogêneas (matéria e espírito) -
portanto, impossível de agir uma sobre a outra; o
conhecimento que possuímos não existi- ria devido
a uma relação entre o corpo e o espírito, mas por
causa de uma relação espiritual direta com Deus.
A verdade é que os filósofos racionalistas
perma- necem o tempo todo em conversa fiada,
típica do tempo medieval, quando discutiam o sexo

15
Blaise Pascal (1623-1662) nista francês, chamado Port-Royal, desejava uma alian-
ça com a Contra-Reforma espanhola, para massacrar os
O século XVII foi um dos mais fecundos para
todo o pensamento moderno, porque a maioria de seus
grandes talentos começou a acreditar em um próximo
apogeu da civilização; foi nessa ocasião que a ciência
iniciou seu desenvolvimento, aparecendo notáveis tra-
balhos: na Holanda, em 1608, Lippershey inventou o
telescópio; Guericke (1602-1686) inventou a bomba
de ar; os relógios foram aperfeiçoados nessa época;
Gil- bert, em 1600, descobriu o magneto; Harvey
publicou, em 1628, sua descoberta sobre a circulação
do sangue; Stephen Hamm e Leuwenhock (1632-
1723) percebe- ram os espermatozóides; Robert Boyle
(1627-1691) foi o pai da química, enunciando a lei de
Boyle (determi- nada quantidade de gás, em
determinada temperatura, tem a pressão inversamente
proporcional ao volume). Napier publicou, em 1614,
sua invenção dos logarit- mos; o cálculo diferencial
foi “inventado” por Newton e Leibniz. Como é
evidente, o grande desenvolvimento da civilização
moderna foi uma prerrogativa dos países que
conseguiram se safar do atraso medieval, aceitando a
Renascença e a Reforma, isto é, dos que não eram
latinos e das pessoas latinas que foram trabalhar dis-
tante de suas nações (Descartes); estas últimas regiões
latinas também iniciaram-se na era científica e foram,
pouco a pouco, abafadas pelo espírito rançoso
autoritá- rio e preconceituoso que predominou; além
de Galileu, apareceram Torricelli (1608-1647),
Laplace, que foram melhor aproveitados fora do que
dentro de seus países. Blaise Pascal foi outro
indivíduo de grande gênio,
que sofreu muito as restrições que havia na
mentalidade do povo francês; tinha uma incrível
facilidade com a matemática, descobrindo sozinho as
32 proposições de Euclides, com apenas 12 anos de
idade; aliás, o seu Tra- tado Sobre as Potências
Numéricas é que abriu caminho para Leibniz, mais
tarde, descobrir o cálculo integral; inventou a máquina
de calcular e prometia alçar ousado vôo no campo
científico, sendo pouco a pouco abafado pela filosofia
de vida retrógrada de seu país.Atormenta- do pelas
dúvidas religiosas, procurou uma nova orien- tação no
jansenismo, que desejava conciliar as teses dos
reformadores com o catolicismo, pois havia um grande
aborrecimento com o racionalismo da orientação esco-
lástica; Jansênio declarou que a razão filosófica era a
mãe de todas as heresias; de outro lado, o grupo janse-

15
huguenotes, dentro e fora do país; imaginem a
confusão em que as pessoas ficavam! Podemos
afirmar que o sé- culo XVII viu a vitória definitiva
do novo-racionalismo (cartesiano) que dominou
inteiramente o mundo latino
- pois ele (novo-racionalismo) deixou a concepção
geo- cêntrica e antropomórfica da Idade Média,
acatando as descobertas da astronomia moderna -
portanto, a verda- deira luta não era bem contra o
racionalismo moderno, mas diretamente em relação
ao progresso científico e ao desenvolvimento social.
Pascal percebia perfeitamente que a razão era
insuficiente para conhecer as verdades naturais;
falava que, sem a fé, não era possível chegar a
coisa alguma, usando a famosa frase: “o coração
tem razões que a própria razão desconhece”; como
corolá- rio, asseverou que “o Deus dos filosófos não
é Deus” (Lefèbvre, Henri: Pascal, Paris). No
entanto, um pouco antes, havia dito que seria
possível conhecer os fatos es- senciais pela razão -
e, se alguma vez os ignora, é devi- do à depravação
da vontade (Les Provinciales, in Oeu- vres
Complètes, Paris). Afirma ainda (invertidamente)
que Deus se escondeu irremediavelmente do
homem – não querendo notar que foi o ser humano
que se afastou dele; à semelhança de Agostinho, era
de opinião que o

Blaise Pascal

15
ponto de partida para chegar à fé residia no autoconhe- problema da vida seria através do conhecimento e da
cimento. Sua apologética tem algumas características
da psicopatologia moderna, ao mostrar que devemos
tomar consciência da contradição humana: não deve-
mos fugir de nós mesmos, nem inventar desculpas
para justificar as fraquezas, pois “os homens se
governam mais pelo capricho do que pela razão”
(Goldmann, Lu- cien, Le Dieu Caché, Paris).
O desenvolvimento da civilização passou para
mãos leigas, inclusive e principalmente em seu
aspecto teológico; tal assunto, que no período
medieval fora es- condido dentro dos monastérios,
finalmente estava sen- do discutido às claras. Pascal
fez um verdadeiro tratado de psicopatologia, aliás,
como quase todo pensador que surgiu a partir do
século XVII, sinal indicativo de que a orientação do
ser humano deveria partir fundamental- mente do
psicológico (antropológico, como fez Agosti- nho, no
século IV). De outro lado, a Contrarrenascença e a
Contrarreforma, que eram dirigidas pelos grupos de
mando no campo político e social, não permitiam que
o povo conscientizasse suas dificuldades - por esse
motivo, a França tentou atingir através da Revolução,
o que os outros povos realizaram normalmente. Não
podemos nos esquecer ainda que este último fato (Re-
volução Francesa) foi inspirado basicamente nas ideias
de John Locke.

Baruch de Spinoza (1632-1677)


A família de Spinoza é originária da Espanha,
ten- do emigrado para Portugal; seis anos depois foi
obrigada a se converter ao cristianismo; o pai de
Baruch nasceu em Beja, mais tarde foi morar em
Nantes e finalmen- te em Amsterdam, juntamente
com inúmeras levas de marranos (judeus convertidos)
que fugiam da situação econômica da Península
Ibérica - que estava em deca- dência devido a sua
economia baseada no monopólio e privilégio. A
Holanda defendia a liberdade de imprensa e de
consciência, valorizava a atividade econômica; os
países baixos foram os primeiros a iniciar um regime
capitalista, findando o período feudal - evidentemen-
te, para conseguir tal intento teve de lutar contra a in-
transigência cultural e religiosa do império espanhol
(o centro da Contra-Reforma). Foi nesse ambiente que
Spinoza viveu e desenvolveu sua filosofia chamada ra-
cionalismo absoluto, inspirada em Descartes.
Baruch era de opinião que a única solução do
15
muito negativa sobre o sentimento (a mesma opinião
dos escolásticos) e com- parou a instituição religiosa a
esse lado do ser humano,

Baruch de Spinoza

contemplação filosófica da realidade.Porém, não


era possível ação alguma entre a alma e o corpo,
dizia ele, imitando Descartes; tinha ideia panteísta
sobre Deus. A respeito do conhecimento, afirmava
que o sentido é algo inteiramente subjetivo,
chamando-o de “imagina- tio” e distinguindo o
conhecimento racional universal do particular. No
aspecto moral, continuou na mesma linha medieval,
aconselhando a libertação das paixões, para
alcançar racionalmente a felicidade - pois o sábio já
viveria na eternidade, por causa do seu
conhecimento racional (Pollock, F.: Spinoza, His
Life and Philhoso- phy, Londres).
Até aqui vê-se Spinoza um seguidor de
Descartes e das ideias que vigoraram na Idade
Média, parecendo mesmo que não havia diferença
entre o que pensava e os pensadores tradicionais,
principalmente Tomás de Aquino e Agostinho. No
entanto, realizou comen- tários desairosos sobre a
instituição religiosa, motivo pelo qual sofreu
perseguição. Como era judeu, foi ex- comungado:
“por decisão dos anjos e julgamento dos santos,
expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de
Spinoza... maldito seja... que ninguém mantenha
comunicação com ele” - revelando toda a teomania
de seus acusadores (texto de excomunhão da
comunida- de judaica de Amsterdam, promulgado a
27de julho de 1656). Como ele tinha uma ideia

15
evidentemente teria de vê-la pejorativamente; vamos
dizer que teve a coragem de chegar a uma conclusão privados e a justiça comum (Croce, B.: La Filosofia di
lógica, racional, conforme o que todos os racionalistas GiambattistaVico, Bari).
pensavam e não diziam. Vê-se de imediato uma enorme distância entre o
Não é difícil perceber que o mundo racionalista pensador italiano e os do norte da Europa e mesmo os
do século XVII já era deliberadamente contra qualquer da França - sinal evidente de migração da antiga
descoberta que fosse diferente dos seus padrões de cultura itálica para outras regiões. Vico apresentou
con- duta. Os funcionários da igreja católica não uma ideia evolucionista e o cuidado para não
usavam o tomismo (em seu sentido teológico) para contrariar as crenças de seu país - como tentou
preservar o que era certo, isto é, Deus, mas para conservar um pensamento ul- trapassado, seus escritos
defender o que era errado, ou seja, apenas seus não foram aceitos nas demais nações.Vico representa
interesses sociais; e tal fenômeno ocorre até hoje e praticamente o último filósofo que tentou, na Itália,
com a sociedade latina de modo geral. construir algo a respeito do pen- samento; o que houve
nessa nação, daí em diante, foi apenas a tentativa de
ressuscitar algumas múmias, que já estavam bem
Giambattista Vico (1668-1744) embalsamadas.

Na Itália dominada pela filosofia escolástica,


pelo espírito da Contrarrenascença e Contrarreforma,
apareceu no final do século XVII o seu último filósofo
de importância, Giambattista Vico - e, por causa do
ambiente reacionário, ele só poderia desenvolver um
pensamento dentro de sua velha linha tradicionalista
aristotélica e escolástica. A respeito do cartesianismo,
explicou que a consciência poderia ser possuída pelo
ignorante, mas não o conhecimento verdadeiro, isto
é, a ciência - revelando até que ponto o pensamento
racionalista é arrogante.
Seu trabalho mais importante foi um estudo
histó- rico a respeito da civilização; afirma que
existem três etapas em seu processo de evolução: a
idade divina, a heróica e a humana. A primeira seria a
sabedoria primi- tiva, quando os seres humanos eram
néscios, insensa- tos e bestiais, dotados de poderosa
fantasia e sentidos agudos; foi nessa ocasião que
criaram repúblicas mo- násticas, dominadas pelo
poder paterno e fundamenta- do no temor a Deus. A
idade heróica teria surgido pelo resultado da aliança
entre os chefes, com a finalidade de conter os ataques
externos e para evitar as dissidências internas. A
terceira etapa é a que surgiu com o plato- nismo,
quando houve a conciliação entre os interesses
Giambattista Vico

15
Capítulo
22

Arco do Triunfo (França)

O SÉCULO XVIII, CHAMADO DA LUZ (ILUMINISMO),


FOI O MAIS BELO CAPÍTULO DA HISTÓRIA,
DEVIDO A SUA LUTA PELA CONSCIÊNCIA; DESSE IDEAL,
NASCERAM OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
George Berkeley

T odos os ideais de liberdade e justiça, que os


pen- sadores de todas as épocas preconizaram,
desaguaram
como se fosse um rio impetuoso em um país latino,
cha- mado França, que se tornou símbolo de todos os
povos oprimidos. Se, naquele tempo, foi possível tal
aconte- cimento, é sinal que ele será viável em
qualquer outra época, desde que os seres humanos de
todas as partes do universo conscientizem que foram
criados livres, para viverem em um mundo de amor e
honestidade, que é este Reino de Deus. E o caminho
para esta real realização poderá ser trilhado agora,
desde que temos, cientificamente, todas as condições
para isso, através das descobertas da Trilogia
Analítica. Para entender esse magno fenômeno da
civilização, em que o ser hu- mano atingiu a
culminância de toda a sua beleza, entu- siasmo e amor
pela liberdade, igualdade e fraternida- de, é necessário
conhecer um punhado de homens que conseguiu
vencer a incrível falsidade social dos grupos
reacionários, que dominavam a sociedade: de um lado,
os nobres decadentes e, de outro, o clero hipócrita: por
isso que, de toda a latinidade, a França tornou-se o
úni- co país respeitado e considerado parte integrante
da ci- vilização moderna.

15
percebido (esse est percipi); na prática, a cor dos
objetos não seria mais do que algo visto; o som, algo
A questão principal sobre o que chamamos de
ouvido; a forma, algo sentido pelo tato, ou melhor,
civilização é a enorme luta na qual os homens mais
não poderia haver
conscientes tiveram de se empenhar, para que a
reali- dade predominasse na sociedade. Os grandes
valores da humanidade, que começaram a ser
despertados de- finitivamente no século XII, com
Anselmo, Abelardo, Alberto Magno, Tomás de
Aquino, Roger Bacon, John Duns Scot, Guilherme
d’Ockam, trouxeram frutos ad- miráveis no século
XIV, XV, XVI, através da Renas- cença, Reforma,
do despertar da ciência e de uma nova civilização,
culminando no século XVIII; parece-me que o auge
foi atingido, quando Francis Bacon e princi-
palmente John Locke trouxeram sua contribuição,
que floresceu em David Hume, Berkeley, Rousseau,
Dide- rot e toda a mentalidade pela qual a Europa
foi toma- da, enfrentando o rançoso mundo da
intransigência dos grupos dominantes, ou mesmo as
velhas fórmulas me- dievais de pensamento, dentro
das quais predominava o racionalismo.

George Berkeley (1685-1753)


O século XVII já via bem definido cada tipo
de civilização, em seus respectivos países,
conforme suas concepções de existência: os do
norte, pontificando a Grã-Bretanha, mais voltados
para os elementos afetivos da personalidade,
conscientes e práticos; e as nações sulinas,
intelectualistas, interessadas em fatores sociais,
subjetivos; este último fenômeno é proveniente da
fi- losofia racionalista, oriunda da escolástica
aristotélico- tomista e imposto pela
Contrarrenascença e Contrarre- forma; o primeiro
veio da concepção de vida de Scot e Ockam,que
deram maior importância ao emocional e à
liberdade humana.
George Berkeley nasceu na Irlanda do Sul,
estu- dou na mesma escola que Jonathan Swift
(Viagens de Gulliver), tendo muito interesse por
Locke, Newton e Malebranche, escrevendo Ensaio
para uma Nova Teo- ria da Visão, Tratado Sobre os
Princípios do Conheci- mento Humano e os Três
Diálogos entre Hilas e Filo- nous. Ele concorda em
linhas gerais com John Locke, mas não admite a
passagem do conhecimento sensorial para o
abstrato: o que conhecemos do mundo exterior é
apenas um feixe de sensações, pois ser é ser
15
coisa alguma, sem a percepção do ser humano - como David Hume nasceu na Escócia, em Edimburgo;
se tivéssemos de dar licença para que as coisas exis- mais tarde, foi para a França, em La Flèche, no mes-
tam, em uma evidente atitude de megalomania.
Ronald Knox expôs tal fato da seguinte maneira:

Era uma vez um jovem que disse: “Deus


Deve achar excessivamente estranho
Verificar que esta árvore
Continua a existir
Não havendo pessoa alguma no Pátio”

Resposta

Caro Senhor:
Sua surpresa é singular:
Eu estou sempre no Pátio
E é por isso que a árvore
Continuará a existir
Já que é observada pelo
Seu, sinceramente,
Deus.

Vendo-se com atenção, aqui já estão delineadas


as primeiras noções do idealismo kantiano, que
dominou o pensamento após o século XIX. Como
Berkeley era um bispo anglicano, teria de salvar a
religiosidade, escre- vendo contra os livres-pensadores e
criticando a filosofia da natureza de Newton e a teoria
da força de Leibniz.
Nos países que aceitaram a Renascença e a
Refor- ma, houve continuação em seu
desenvolvimento cultu- ral, religioso e principalmente
científico, pois propicia- ram uma grande difusão dos
elementos culturais junto ao povo - enquanto que nas
regiões da Contrarrenas- cença e Contrarreforma, as
prerrogativas do progresso permaneceram
enclausuradas entre as quatro paredes de sociedades
fechadas e dos monastérios o povo ficou de fora,
sendo-lhe permitido, no máximo, as atividades
comerciais simples; a burguesia e o capitalismo
ficaram confinados aos grupos privilegiados, como
acontece até os dias atuais (negócio de família, ou
entre amigos). Berkeley foi um dos maiores exemplos
sobre a difusão do Reino de Deus dentro do povo, pois
reunia em uma só pessoa os valores filosóficos,
teológicos e científicos.

David Hume (1711-1776)

15
mo colégio de jesuítas, em que estudara Descartes;
lá, escreveu Tratado da Natureza Humana,
considerado seu principal trabalho; de volta a
Londres, fez-lhe uma cuidadosa revisão, para não
chocar os doutores do pen- samento oficial e as
autoridades religiosas; como não deram muita
atenção ao livro, procurou consolo entre alguns
amigos, dentre os quais estavam Adam Smith
(chamado o pai do capitalismo); mais tarde
escreveu História da Inglaterra entre 1754 e 1762.
Em sua teoria do conhecimento, faz uma
classi- ficação (conforme sua expressão), sobre o
que se dá a conhecer: as impressões e as ideias; a
primeira, for- necida pelos sentidos, tanto os
internos (por exemplo: uma tristeza), como os
externos (a visão, audição); as ideias seriam
representações da memória e da imagina- ção,
associadas por semelhança, contiguidade espacial e
temporal e por causalidade; aceitando a ideia da “tá-
bula rasa” de John Locke, dá-lhe o nome de
empirismo psicológico, cuja consequência (o
chamado empirismo lógico) afirma que as palavras só
têm significado na me- dida em que se referem a
fatos concretos. Hume rejeita a metafísica, por
pensar que seria um jogo grandioso de palavras
(Hendel, C.W.: Studies in the Philosophy of David
Hume, Princeton).

David Hume

15
A partir deste ponto, o filósofo inglês constroi um sociedade é constituída por um
caminho diferente do de John Locke, desenvolvendo
o conceito de causalidade (que é justamente um dos
núcleos da metafísica); causa e efeito não seriam nada
mais do que o anterior e o posterior, em uma sucessão
temporal - deslocando a explicação básica para o cam-
po da matemática, cujas verdades seriam apodíticas,
ne- cessárias e invariáveis; a teomania e megalomania
vão se tornando cada vez mais evidentes quando o
homem subordina a filosofia a uma criação humana (a
matemá- tica); estamos conquistando a liberdade para
podermos ser doentes (psiquicamente) sem que a
inquisição acen- da uma de suas fogueiras (Mac Nabb,
D.G.C.: David Hume, Londres).
Hume explica a moral e a política pelo conceito
de causalidade, ou melhor, que o fundamento de moral
reside no sentimento e não na razão, sendo um con-
junto de qualidades aprovadas conforme sua utilidade,
ou prazer que proporcionam; é uma concepção muito
ingênua; aliás, ele foi uma pessoa muito dada aos pra-
zeres da corte, tendo uma conduta bonachona. O sécu-
lo XVIII via a filosofia como se fosse algo diferente,
prenunciando a ideia de Wittgenstein no século XIX;
o homem estava sendo visto como um ser muito mais
prático e sensitivo do que racional; seu conceito de
cau- salidade matemática inspirou o positivismo de
Augusto Comte, o utilitarismo de Jeremy Bentham,
John Stuart Mill e despertou Kant de seu “sono
dogmático”, confor- me sua própria expressão
(Stewart, John B.: The Mo- ral and Polítical
Philosophy of David Hume, Columbia University
Press, New York and London). O pensamen- to inglês
chegou ao seu apogeu com John Locke; após ele, os
outros pensadores fizeram mais aplicações de suas
ideias, que conseguiram transformar o mundo e gerar
uma civilização considerada ideal: a do Estados
Unidos da América.
Enquanto a Inglaterra estava consolidando suas
ideias, a França entrava em ebulição, inspirada pelos
pensadores ingleses, principalmente John Locke; fenô-
meno que perdurou por quase um século, eclodindo na
Revolução Francesa, como se fosse o seu último grito
de cisne - para depois, nova e definitivamente, voltar
aos seus velhos padrões tradicionalistas de existência;
foram mudadas as leis sociais, mas não a mentalidade
racio- nalista do povo, que substituiu os seus nobres
corrup- tos e autoritários por outros governantes
iguais. Este é o destino de toda comunidade que
trabalha apenas com o social, esquecendo que a

15
grupo de indivíduos portadores de qualidades e
também patologias, como a inveja, o ódio, a intriga,
preguiça, que deverão ser cuidados com primazia,
para que não impe- çam que ela se desenvolva.
Somente agora, tal fenôme- no está sendo
conscientizado, por causa das descobertas
científicas, sendo fundamental para que a paz,
felicidade e o definitivo progresso tome conta de
todo o universo.
Vejamos, agora, o que podemos chamar de
esforço mais belo de toda a história dos homens,
aquele em que o ser humano alçou vôo, conseguiu
muito e, pouco a pouco, foi sendo novamente
abafado pelas forças rea- cionárias, que sempre
dominaram a latinidade. O sécu- lo XVIII
representa o apogeu da civilização moderna, no
campo do pensamento; tudo o que se cogitou, em
todos os tempos, foi dissecado e analisado aqui,
pare- cendo que em tal domínio, todos os seus
recursos foram esgotados. A genialidade dos
grandes, o misticismo dos santos e a heroicidade
dos audazes reuniram-se neste tempo, para tentar
dar um grande impulso à civilização; uns
conseguiram, outros não, porém a França tornou-se
o símbolo de quanto pode o idealismo humano.

Adam Smith

15
Montesquieu (1689-1755) regiões do mundo, consolidaram o Reino do Satanás, que
tem de ser desestabilizado agora,
De todos os países latinos, somente a França não
se conformava com a conduta dos que a dirigiam po-
lítica, econômica e religiosamente; por este motivo,
tornou-se um exemplo para todos os povos oprimidos,
ao deflagrar sua Revolução - e, para chegar a ela, inú-
meros pensadores e cientistas tiveram que lutar deno-
dadamente. Atualmente, ainda é um exemplo, princi-
palmente para os povos latinos e os orientais, sobre o
que deveriam fazer para alcançar a liberdade. O século
XVII tinha visto a consolidação definitiva da Renas-
cença e da Contrarrenascença, da Reforma e da Con-
trarreforma no continente europeu; somente a França
permanecia ambivalente, como se fosse um palco de
luta entre a liberdade e a escravidão, o desenvolvimen-
to e a estagnação, a honra e a desonra. Montesquieu
tornou-se um exemplo desse desejo humano e de todos
os seus empecilhos psicológicos e sociais.
Naquele tempo havia a ideia de que a ciência
con- seguiria afastar todas as sombras, permitindo a
existên- cia definitiva da luz e do conhecimento
(consciência e ciência); por este motivo, o século
XVIII foi chamado de primado da razão, reino das
luzes; Voltaire, critican- do Leibniz, afirmava que o
progresso viria pela cons- ciência que a humanidade
teria de seus próprios erros e acertos - algo que a
Trilogia Analítica está demons- trando, só agora,
cientificamente. Ele estava prevendo a vitória
definitiva da ciência, em seu sentido trilógico (não
positivista) sobre toda a superstição, intransigên- cia,
parcialidade e desonestidade. O que eu creio funda-
mental para a civilização foi a possibilidade do
homem mostrar sua conduta, mesmo que ela lhe
estivesse ainda bem inconscientizada, devido a tantos
séculos de pesa- da hipocrisia. Cristo veio à Terra
justamente para de- nunciá-la, e sua verdadeira
mensagem foi sendo pouco a pouco alterada, omitida e
até negada, inclusive pelo grupo que a deveria
difundir.
O clero, de modo geral, impôs-se um regime de
castidade (real ou aparente, conforme o caso), não
com a finalidade de servir ao Criador, mas sim para
estabele- cer uma distância entre ele e o povo - para
poder dizer que é melhor, próximo a Deus, enquanto
que os leigos são pecadores e distanciados - devido à
ideia falsa que desenvolveram de que a
concupiscência seria o maior pecado humano. Com
esta maneira de pensar, que di- fundiram em todas as

15
com o processo de conscientização. Santo não é o viu o ser humano em função de algo ideal e não de sua
que se vê santo, mas pecador, assim como o realidade: basicamente bom, mas adotando uma forte
indivíduo capaz se enxerga incapaz, o trabalhador, conduta de inveja, oposição e negação a tudo o que
preguiçoso e assim por diante. Em todo caso, o existe. Prova-
grande erro do iluminismo foi o de acreditar
demasiadamente na razão, fosse ela car- tesiana
(derivada da matemática), ou tomista (jungida à
metafísica).
Charles Louis de Secondat, Seigneur de La
Brè- de, Barão de Montesquieu escreveu Cartas
Persas, onde dois viajantes estrangeiros descrevem
para o seu país o que viam na França; por exemplo:
o rei parece pode- rosíssimo porque faz seus súditos
pensarem como ele quer; se não tem mais do que
um milhão de escudos, não precisa fazer nada mais
do que persuadi-los de que um escudo vale dois; as
mulheres são muito habilido- sas, fazendo da
virgindade uma flor que perece e renas- ce todos os
dias e que se colhe, na centésima vez, mais
dolorosamente do que na primeira.
Montesquieu viajou pela Itália, Alemanha, Ho-
landa e Inglaterra, recebendo enorme influência
desta última; escreveu Espírito das Leis, e procurou
uma co- nexão entre os fatos sociais e os
individuais, mostran- do mais as causas humanas do
que as divinas dos atos sociais - ao contrário do que
sempre fizeram Agostinho e Bossuet, de certa forma
desmistificando a conduta do homem que, agindo
sempre por sua cabeça, ainda colo- ca tal altitude
sobre os ombros do Criador.
Afirmou que o atraso francês era devido ao
finalis- mo da filosofia escolástica – cometendo um
erro funda- mental no posicionamento das causas
sobre os problemas de seu país – não querendo
observar que a grande difi- culdade residia nem tanto
na filosofia escolástica, mas na conduta de
estancamento a qualquer mudança nos seus
privilégios sociais; a própria escolástica e o
aristotelismo poderiam ser usados contra eles, era só
não permitirem a difusão do verdadeiro Reino de
Deus sobre a Terra, através da liberdade, igualdade e
caridade (fraternidade) entre os homens. Os
funcionários religiosos fizeram um trabalho muito
sutil ao quererem dar a impressão de que Deus
estaria contra o espírito do século XVIII; infeliz-
mente, tal ideia campeia até hoje as mentes humanas -
os fenômenos de tal época foram justamente uma
explosão do amor do Criador sobre a humanidade.
Montesquieu afastou-se do racionalismo
abstrato, ou melhor, do velho idealismo que sempre
15
velmente, sua maior contribuição, no setor político, foi pelo interesse dos grupos dominantes: nobreza e clero.
a teoria da separação dos poderes (Livro XI, do Espí- É por este motivo que, somente após a convivência no
rito das Leis); sua tese foi incorporada à Constituição salão de Walpole, na Inglaterra, com a nata da socie-
Americana e no artigo 17, da Declaração Universal dade, como Edward Young, Alexander Pope, Swift,
dos Direitos do Homem e do Cidadão. Berkeleye Clarke, Voltaire impressionou-se muito
Uma pessoa que rejeite a instituição religiosa, com o espírito de tolerância religiosa e igualdade
não significa que esteja evitando o Criador - se tal política, que havia naquele país.
socieda- de for hipócrita, ela está justamente negando- Sou obrigado a abrir um parêntese aqui, para ex-
se a par- ticipar de sua falsidade, ou melhor, lutando plicar que os latinos detentores do poder (econômico,
para que a verdadeira ideia sobre Deus não seja político, social), participam da mesma mentalidade de
deturpada, em prejuízo de sua imagem real. A seu povo que, infelizmente, não contou com uma plê-
concepção de vida da latinidade moderna, além de ser iade de indivíduos geniais, como tiveram os ingleses,
racionalista, aprimo- rou mais ainda sua alienação, alemães e nórdicos em geral. Afinal de contas, Espa-
excluindo a metafísica e adotando como base a nha e Portugal estavam mais distantes ainda de Roma,
matemática; é o que realizaram Descartes e Pascal. que outros países que aceitaram as novas descobertas
do mundo pós-medieval - e não lutaram para que os
Voltaire (1694-1778) grupos reacionários deixassem o poder – fenômeno
co- mum até os dias de hoje, nas regiões colonizadas
Apesar de François Marie Arouet não ter sido por eles (Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Paraguai,
con- siderado filósofo, seu pensamento teve enorme Bolí- via, México) (1983).
difusão, em virtude de representar a aspiração de todo Voltaire sempre foi um inconformado, acentua-
um povo, pela máxima prerrogativa que o Criador damente persecutório, não conseguia se dar bem com
concedeu à criatura humana: a liberdade - e não a pessoa alguma; como habitava uma nação com menta-
conseguiam ter, por força da mentalidade vigente em lidade medieval (mais persecutória ainda do que ele),
seu país, reforçada constantemente sofria pressão para deixá-la. Teve um

Montesquieu Voltaire

15
incidente com o Duque de Sully e foi obrigado a se re- encarcerado até 1749 no castelo de Vincennes; liberto,
fugiar na Grã-Bretanha; prestigiado na corte prussiana escreveu Carta sobre os Cegos para
por Frederico II, polemizou com o presidente da Aca-
demia de Berlim, Maupertuis, sendo obrigado a deixá-
la; abrigou-se em Genebra, com os enciclopedistas e
sugeriu a construção de um teatro (contrariando o pró-
prio Rousseau), tendo de abandonar a Suíça.
De tudo o que foi dito sobre Voltaire, a questão
mais importante é a influência que recebeu de Newton,
John Locke e Pascal, quando escreveu Cartas Filosófi-
cas ou Cartas Inglesas, sendo de opinião que o
pensador inglês (Locke) foi o primeiro que escreveu
sobre a alma humana e, afirmando contra Pascal, que
não somos tão malvados, nem tão infelizes. Seus
escritos difundiram em seus país o empirismo, o
deísmo, a religião natural e o humanismo ético,
provocando a famosa Revolução Francesa que, afinal,
foi uma Revolução Inglesa na Fran- ça: a diferença é que,
nesta última nação, foi sangrenta e, na Inglaterra,
passou-se pacificamente; por este motivo, os ingleses
conservam sua monarquia - vamos dizer que a
verdadeira revolução é de caráter interno, psicológi-
co e não social, como o francês pensou. As
descobertas de Freud tiveram excelente acolhida no
norte, enquanto que foram rejeitadas no sul da Europa,
devido à atitude dos latinos de não quererem ver os
seus problemas in- ternos, colocando-os no social; a
verdadeira revolução (psicológica) ainda não foi
realizada por eles.
Voltaire lutou a vida toda pela justiça e liberdade
intelectual, abominando a intolerância, a superstição e
o fanatismo; no entanto, ele mesmo financiou o tráfi-
co de escravos, mostrando como não olhava para sua
própria intolerância e desonestidade. A civilização
lati- na foi contra a Renascença e a Reforma, porque
estava contra a consciência de seus problemas,
projetando-os no mundo exterior, para não vê-los.

Diderot (1713-1784)
Denis Diderot foi o autor da famosa
Enciclopédia, na qual participaram D’Alembert,
Quesnay, Turgot, Marmontel, Holbach; os livreiros
Briasson, Durand e David encarregaram-no de traduzir
a Cyclopédia de Ephraim Chambers, publicada na
Inglaterra em 1728. Escreveu Pensamentos
Filosóficos, em 1746, O Passeio do Cético, Suficiência
da Religião Natural e As Jóias Indiscretas, sendo

15
Uso Daqueles que Vêem, colocando um sério
proble- ma para a teoria empirista do conhecimento:
um cego de nascença, que recupere a visão, poderá
perceber a tridimensionabilidade do espaço? De
certa maneira, ele confirma as mônadas de Leibniz.
Um fato muito significativo que eu gostaria de
mostrar agora, é o da proteção que os nobres deram,
tanto a Voltaire, como a Diderot e a outros
revolucio- nários do século XVIII, que acabaram
por levá-los à guilhotina. A famosa Enciclopédia foi
terminada, de- vido ao empenho de Madame
Pompadour; na Rússia, Diderot recebe todo o apoio
de Catarina, a Grande, que inclusive, compra sua
biblioteca - que só deveria ser en- tregue após a
morte. Esse fenômeno que a ciência psi-

Diderot

canalítica trilógica denominou de inversão, atribui


ao próximo aquilo que cada um realiza dentro de si;
neste caso, seria culpar os antigos dirigentes da
sociedade (os nobres) pelas injustiças sociais, pelos
problemas de cada um, que são projetados no
exterior (nos outros) em uma atitude paranóide. É
justamente por esse mo- tivo que, logo após
terminada a Revolução Francesa, subiram ao poder
generais ambiciosos que, por sua vez, fizeram
novos imperadores, criando um novo grupo de
nobres e nas mesmas condições injustas que os
antigos, ou talvez pior.
Os escritores franceses estavam confusos com
a si- tuação, atribuindo suas causas mais aos
poderes sociais de domínio (clero e burguesia),
esquecendo seu motivo principal, ou melhor, a
filosofia de vida imperante em

16
sua nação, que atingia governantes e governados; en- saúde frágil e possuidor de uma fabulosa erudição; leu
quanto no norte europeu o povo concedia mais impor- todos os livros da biblioteca de sua mãe, teve amiza-
tância ao psicológico, ao individual, no sul, voltaram de com o filósofo Condillac e Diderot; casou-se com
sua atenção inteiramente ao social. E por que aconte- Thérèse Levasseur, teve cinco filhos, colocando-os em
ceu isso? Podemos localizar sua causa no racionalismo um orfanato, alegando que não poderia cuidar deles,
aristotélicotomista escolástico, que concedeu à razão por ser pobre e doente. Em 1749 publicou Carta Sobre
o valor primordial da vida, excluindo o fator emocio- os Cegos, declarando-se ateísta; em 1765 foi atacado
nal, básico, que John Duns Scot, Guilherme d’Ockam pelos protestantes, que apedrejam sua casa em Neu-
e demais pensadores nórdicos colocaram em primeiro châtel, refugiando-se na Inglaterra, com o amigo
lugar, levando seus povos ao grande desenvolvimento David Hume - manifestando-lhe delírios persecutórios,
que tiveram - e não tanto à chamada índole empirista voltou para a França.
dos britânicos; na latinidade foi imposta a filosofia ra- Seus livros mais conhecidos são Emílio e
cionalista tomista, sob pena de ser queimado, em uma Contrato Social; a ideia fundamental é a de que o
fogueira, quem a recusasse. homem primi- tivo é feliz, por viver de acordo com
Diderot tentou difundir uma ciência baseada na ma- suas necessidades inatas, isolando-se na floresta e
temática, imitando Descartes e Newton; difundiu a ideia satisfazendo-se, seja na alimentação,ou quanto ao
(platônica) que o ser e o não-ser são partes de todos os sexo; do mesmo modo, não sofreria de angústia,
conjuntos, e o nascimento, a vida e a decadência perante a morte; acreditava, po- rém, que a vida em
seriam apenas mudanças de forma; aceitava a teoria sociedade trazia algumas vantagens, como a ampliação
evolucionis- ta biológica e tentou traçar uma história dos conhecimentos intelectuais, melhoria dos
do universo, do inconsciente até a vida espiritual; sentimentos e elevação da alma. Sendo evolucionista,
considerava a vontade e o livre arbítrio meras era de opinião que deveríamos agrade- cer o instante
abstrações; as noções de justiça e injustiça, relativas; o em que deixamos de ser animais e que a grande
erro seriam as convenções sociais, que restringem as desvantagem da vivência social residiria na perda da
bases biológicas da conduta humana - inspirando consciência, devido ao culto ao refinamento, às
Freud em sua ideia sobre o perigo da repres- são mentiras convencionais e à ostentação cultural - está
sexual (Lefèbvre, J.: Diderot, Paris). clara aqui a sua intenção de conquistar um verdadeiro
Nesta fase da história já estavam bem delineadas conhecimento. Rousseau vê o sentimento como meio
as duas condutas básicas da civilização ocidental: a de entrar na interioridade (psíquica); seria uma imer-
anglo-saxônica, voltada mais para os valores psicoló- são mística no infinito, atingindo a plena liberdade.
gicos, internos, concedendo grande valor à capacidade Ele deslocou da razão para o sentimento a verdadeira
pessoal de cada cientista, técnico, filósofo, teólogo, e razão de ser na vida - aliás, como a Trilogia Analítica
o comportamento latino, parado no tempo e espaço mostra.
(sé- culo XIV), atribuindo todos os fenômenos a um
social imponderável, paranóico - usando-se uma
linguagem prática, podemos dizer que este último (o
latino) quer resolver todas as dificuldades através de
transforma- ções sociais, e os nórdicos voltam-se para
si mesmos, para ver o que podem realizar para
melhorar tudo (“não devemos pensar o que os Estados
Unidos poderiam fa- zer por nós, mas o que nós
podemos realizar pelos Es- tados Unidos”, Discurso de
Posse do Presidente John Kennedy). Augusto Comte é
o modelo de latinidade, e John Locke, dos saxônicos.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)


A figura máxima da Revolução Francesa, Jean-
Jacques Rousseau era suíço, nascido em Genebra, de
16
Jean-Jacques Rousseau

16
(Schinz, Albert: La Pensée de J.J. Rousseau, Paris). de seu racionalismo (que o levava a colocar todos os
O pressuposto de que nascemos bons e a socieda- problemas no exterior), a população francesa não via
de nos prejudica é o princípio fundamental outra saída, senão destruir os seus opressores sociais.
apresentado no livro Emílio; Rousseau aconselha o Além de Voltaire, Diderot, Rousseau, temos de
afastamento da criança da vida social - exatamente citar La Mettrie, Holbach, Condillac, Helvétius, Des-
como ele próprio fez, levado por sua paranóia; tutt de Tracy, e Degérando, todos eles do século
enxerga na sociedade forças perigosas que alienam o XVIII. Julien-Offroy de La Mettrie escreveu História
ser humano, podendo transformá-lo, ou em um tirano, Natural da Alma. O Homem-Planta, O Sistema de
ou escravo. Em seu trabalho Contrato Social manifesta Epicuro e Discurso Sobre a Felicidade, procurando
sua teomania, ao conceder aos legisla-dores poder uma explica- ção materialista sobre as atividades
divino, pois o cidadão recebe deles, de certa forma, instintivas e cons- cientes do ser humano,
sua vida e seu ser; depois, propõe a criação de uma comparando-o a uma máquina; confunde o sentimento
religião civil, que deveria ser obedecida cegamente. (amor) com o instinto, sendo de opinião que a religião
Jean-Jacques Rousseau é o exemplo claro de é contrária à felicidade (Lemée, P.: Julien Oflroy de
quan- to valor tem o ser humano, ao poder manifestar La Mettrie, Médecin, Philosophe, Polemista: SaVie,
sua psi- copatologia - o que teria sido impossível no Son Oeuvre, Mortain). A confusão entre religião e
tempo me- dieval, que via o homem em função de um infelicidade era típica daquela época de terrível
ideal e não de acordo com suas aptidões e defeitos. opressão e intransigência dos funcionários religiosos,
Algumas pessoas poderão estranhar o elogio que faço levando o povo a identificar o Criador com eles;
aos pensadores da Revolução Francesa, que, evidentemente, tal situação social contribuiu para o
basicamente, manifestaram sua paranóia no sentido desenvolvimento de ideias materialistas.
coletivo; porém, a situação de hipocrisia dos dirigentes
não pode ser negada e, afinal de contas, o povo estava
sendo terrivelmente preju- dicado. O ideal completo Barão de Holbach (1723-1789)
que houve no século XVIII poderá ser realizado só
agora, com o desabrochar da ci- ência trilógica, devido Paul Heinrich Thiry, Barão de Holbach, nasceu
à possibilidade de conscientizar a própria em Heidesheim, Alemanha, mudando-se para a capital
psicopatologia, encerrando o pacto que o ser humano francesa aos 12 anos. Foi ele quem organizou o grupo
realizou com os demônios. Estamos no limiar do de Diderot, para redigir a Enciclopédia, e ele mesmo
Reino Divino, sobre nosso planeta, assim que expul-
sarmos o que não pertence a ele; e a única maneira de
conseguir isso é através da conscientização dos erros,
exatamente como Voltaire disse.

La Mettrie (1709-1751)
A sociedade francesa sofria de todos os
desmandos que sua classe dominante (nobreza e clero)
lhe infligia, acrescentados à própria atitude de
intransigência, oriun- da dos tempos medievais;
estrutura demasiadamente conservadora, o povo não
conseguia se libertar, não só do autoritarismo de seus
governantes, mas principal- mente da rigidez interna,
por falta de conscientização, o que o povo inglês teve
a sorte de conseguir através de seus pensadores. Como
sabemos a Revolução Francesa eclodiu em 1789,
provocada pela enorme insatisfação do povo com os
seus governantes, influenciado pela fi-

16
losofia de vida dos ingleses e principalmente por causa Julien-Offroy de La Mettrie

16
escreveu O Sistema da Natureza ou As Leis do Mundo funcionários religiosos realizaram
Físico e do Mundo Moral. Defende a existência só do
material, explicando que os diferentes modos de ser
não seriam nada mais que uma composição física di-
versa (Boas, G.: French Philosophies of the Romantic
Period, Baltimore). Tal concepção de vida é decor-
rente da forte teomania de que a filosofia racionalista
cartesiana foi impregnada, ao eliminar as explicações
metafísicas e colocando em seu lugar a matemática -
invertendo a ordem das coisas e tentando subordinar
o maior ao menor.

Helvétius (1715-1771)
Claude-Adrien Helvétius nasceu em Paris; publi-
cou em 1758 Sobre o Espírito, causando enorme
celeu- ma, sendo condenado pelas autoridades
políticas e ecle- siásticas; seu livro foi queimado em
praça pública e o autor obrigado a deixar o país; viajou
para a Inglaterra e Prússia, sendo hóspede de
Frederico II - um imperador incrível na proteção que
ofereceu a todos os grandes intelectuais da época.
Helvétius desenvolveu a mesma ideia de Locke,
dizendo que o espírito humano é um simples registro
das impressões, devido ao contato do sujeito cognos-
cente com o mundo exterior; a essa função primária
deu o nome de sensibilidade física, que seria a fonte de
todas as ideias, juízos, memória e emoções; elabora
uma psi- cologia, que vê toda a estrutura psíquica
formada pelo meio ambiente: é de opinião que todos
os indivíduos nascem com os mesmos talentos e
inclinações, diferen- ciando-se depois pelo processo
educativo. No caso da pessoa genial como, por
exemplo, Newton, quando for- mulou a lei da
gravidade (ao ver a maçã cair), o filósofo esclarece
que é necessário uma seqüência de eventos, para que
se perceba um fenômeno - mesmo que todos nós
tenhamos nascido com a mesma capacidade. No
campo ético e social, acredita que somos uma tábula
rasa comportamental, sendo o critério para a educação
a utilidade pública, o interesse geral, ou a felicidade
co- letiva, ou melhor, conseguir o máximo de prazer
com o mínimo de dor; o cristianismo e o feudalismo
seriam inimigos, por condenarem o prazer sensível e
impor de- sigualdades econômicas e sociais
(Cumming, I.: Hel- vetius: His Life and Place in the
History of Education Thought, Londres). Helvétius
praticamente emprega a filosofia de Locke na
educação e coloca no cristianis- mo a culpa do que os
16
contra o povo, deixando de ver o processo de
inversão que realizaram.
Condillac (1715-1780)
Etiènne Bonnot de Condillac é considerado o
pai da filosofia francesa do iluminismo; escreveu
Ensaio so- bre as Origens do Conhecimento
Humano, inteiramente inspirado no trabalho de
John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano;
aceita a origem das ideias nos sentidos, excluindo a
reflexão (de Locke), como outra fonte de
conhecimentos. Para ilustrar sua concepção fi-
losófica, imagina uma estátua de mármore, que
fosse de repente animada por uma alma: as
sensações olfativas redundariam na atenção e na
memória, surgindo a com- paração; daí, chegaria ao
juízo e depois à associação de ideias, à imaginação,
até as paixões e desejos; para che- gar ao
estruturalismo, bastava um passo, pois achava que a
linguagem é a mais avançada etapa no processo
cognitivo e, a ciência, uma linguagem bem feita;
final- mente, procura uma correspondência entre a
linguagem e os signos (modernamente, Lacan
tentou organizar uma psicoterapia, baseada neste
conceito) (Le Roy, G.:
Barão de Holbach

La Psichologie de Condillac, Paris).


Notando bem, vemos Condillac (e também
Locke) levando a ideia de Aristóteles de que nada
está no inte- lecto que não tenha passado pelos
sentidos (nihil est in intelectus, quod prius non
fuerit in sensus), até as suas últimas conseqüências,
isto é, colocando o ser humano totalmente
dependente do mundo exterior, do sistema

16
de ensino, da política e dos conceitos vigentes na O racionalismo pouco a pouco vai aumentando a
socie- dade, como se fôssemos desprovidos de alienação do ser humano, tornando a filosofia um
vontade. Tal conceito, que desencadeou a Revolução gran- de empecilho para o desenvolvimento; o próprio
Francesa, é a ideia diária de cada pessoa, nos países povo notou esse fato, vendo no filósofo um indivíduo
influenciados pela França, o que impede o seu fora da realidade, fato este muito observado nos países
desenvolvimento. latinos.

Destutt de Tracy (1754-1836) Degérando (1772-1842)


Destutt de Tracy tinha a opinião que John Locke Joseph-Marfe Degérando, o oposto do pensador
era o Copérnico da filosofia, e Condillac o novo Kepler; anterior (Destutt de Tracy), responde da seguinte ma-
para estimular as discussões sobre o assunto, instituiu neira as perguntas do Instituto Nacional de Ciências e
um concurso, através do Instituto Nacional de Artes de Paris: 1) o espírito não necessita de signos,
Ciências e Artes de Paris, para determinar a influência mas de um ato de atenção; 2) mesmo que os signos
dos sig- nos sobre a faculdade de pensamento, com as fos- sem perfeitos, é impossível antecipar as
seguintes perguntas: 1 - as sensações podem ser experiências e observações que estão por acontecer; 3)
transformadas em ideias, através dos signos? 2 - O a perfeição de algumas ciências deriva delas mesmas;
pensamento seria perfeito, se os signos também o 4) a imprecisão dos signos pode ser uma fonte de
fossem? 3 - A perfeição de algumas ciências seria discórdias, mas é uma questão circunstancial que
devida à perfeição dos signos empregados? 4 - A depende mais de interesses, preconceitos ou
divisão de opinião é por causa da inexatidão dos diversidade de temperamento; 5) que a correção dos
signos? 5 - E possível corrigir os signos, para tornar as símbolos não modifica a ciência, porque está fora de
ciências suscetíveis de demonstração? E, apesar de suas fronteiras (Acton, H.B.: The Philoso- phy of
seguir o pensamento de Condillac, Tracy es- tabeleceu Language in Revolutionary France in Studies in
como faculdades originárias da mente: a von- tade, o Philosophy, Oxford University Press, London).
juízo, o sentimento e a recordação; de maneira que não Degérando não foi muito considerado, porque
foi tão extremado em suas opiniões (Van Du- zen, C.: não conseguiu trazer uma contribuição melhor,
The Contributions ofthe Idéologue to French permane-
Revolutionary Thought, Baltimore).

16
Destutt de Tracy Joseph Marie Degerando

16
cendo mais na crítica ao exagerado sensismo da época Revolução Francesa
que, afinal de contas, era um retorno ao velho tema do
racionalismo, já superado pela civilização anglossa-
xônica. De tal maneira a mentalidade latina é intran-
sigente, que até um pensador racionalista (da linha de
Aristóteles e Tomás de Aquino), mas que possuía al-
guns pontos de vista em desacordo, teve que procurar
um país nórdico para melhor se desenvolver, como foi
o caso de Descartes, Helvétius, Rousseau e Voltaire. A
gloriosa França, de tantas lutas pela sua liberdade, não
conseguiu dar o passo principal, ou seja, libertar-se in-
teriormente (psicologicamente) da forte censura inter-
na da consciência, para se desenvolver tanto quanto os
seus irmãos do norte europeu.

NASCIMENTO DOS
ESTADOS UNIDOS DA
AMÉRICA
O século XVIII assistiu ao maior esforço do ser
humano para se livrar da intransigência social (Revo-
lução Francesa), e à organização da nação mais po-

16
derosa e livre que já houve na face da Terra: que defendiam a total liberdade do povo, frente a uma
Estados Unidos da América. E, para ter melhor Constituição conservadora que pretendia evitar o que
ideia do que aconteceu aí, é necessário verificar o
trabalho de Tho- mas Paine, Alexandre Jefferson,
Hamilton, John Ada- ms e Thomas Jefferson.
Thomas Paine (1737-1809)
Até o século XVIII, o calvinismo dominou a
fi- losofia de vida do povo norteamericano; a partir
daí, recebeu forte influência do empirismo e do
iluminis- mo europeu: Jonathan Edwards defendeu
um idealis- mo materialista, enquanto Samuel
Johnson atacou o materialismo newtoniano. Porém,
foi Thomas Paine, nascido na Inglaterra, quem
afirmou os direitos revo- lucionários dos homens: se
os seres humanos estiverem entregues aos seus
próprios impulsos, usariam de sua liberdade para
restringir a dos outros, de modo que o governo seria
necessário, para proteger a liberdade, de- vendo sua
autoridade ser reduzida ao limite mínimo; a função
do governo não é a de criar valores, mas de não
permitir que os gananciosos impeçam a sua
existência
- porque os indivíduos ambiciosos sempre
conseguiram explorar a superstição e a credulidade
das massas, para oprimi-las; aliás, a classe
dominante está comprometi- da a se manter no
poder, sendo contra o liberalismo - a principal
obrigação do político liberal é a de encorajar o povo
para se rebelar contra as leis tirânicas e seus tiranos.
Alguns meses antes da Declaração da Indepen-
dência, Paine publicou um panfleto, Senso Comum,
no qual esclarecia que o sistema de governo inglês
não era um ideal democrático, devido à monarquia
hereditária; tentou mostrar que o norteamericano
era um povo esco- lhido e, lutando pela sua
liberdade, estava lutando pela liberdade de toda a
humanidade (Conway, M.D.: Life of Thomas
Paine). O pensamento de Thomas Paine ser- viu de
inspiração para todos os países, como se fosse uma
cartilha para aprender os rudimentos da vida de-
mocrática; é evidente que ele se baseou em John
Locke e nas ideias do iluminismo do século XVIII
(Berkeley, Rousseau, Voltaire).

Hamilton (1757-1804)
Alexandre Hamilton, juntamente com James
Ma- dison e John Jay eram jornalistas de New York
17
chamavam de “excessos do povo”. Hamilton dizia que Jefferson) - exatamente por
fora sempre alarmante a situação das antigas cidades
gregas e medievais, que passavam constantemente da
tirania para a anarquia - pois os homens que
cortejavam o povo, na maioria das vezes, acabavam
ditadores; para evitar tal problema, deveria manter o
governo afastado da pressão popular. Tal concepção
era oriunda das te- orias de Thomas Hobbes, que via a
natureza egoísta e mal intencionada (verificar o
capítulo XXI). (Warren, C.: The Making of the
Constitution). Como já falei, no capítulo XXI, a
filosofia devida norteamericana é um misto de Locke e
Hobbes; por esse motivo, o presidente é indicado
primeiro pelos grupos representativos eleitos
livremente e só depois pelo povo - porque eles consti-
tuem uma elite política, com equilíbrio suficiente, para
não se deixar enganar pelos indivíduos demagogos.

John Adams (1735-1826)


Adams notou que os elementos “aristocráticos”
do governo deveriam ser equilibrados pelos demo-
cráticos, porque toda pessoa que chega a uma função
política importante, identifica-se com ela; ao lado
de um executivo forte, deveria haver um legislativo
igualmente capaz e um Poder Judiciário independente,
na cúpula do sistema (Coolidge, A.C.: Theoretical and
Foreign Element in the Formation of American Cons-
titution). Não é difícil notar a inspiração que John
Adams recebeu de Montesquieu sobre a separação dos
três poderes. A luta que o povo francês travou para
conseguir a liberdade política foi plenamente realiza-
da pelo povo norteamericano.

Thomas Jefferson (1743-1826)


Foi o que desempenhou papel fundamental na in-
dependência dos Estados Unidos; redator da Declara-
ção dos Direitos do Homem e do Estatuto de
Liberdade Religiosa da Virgínia, Jefferson acreditava
que todo homem possui certos direitos inalienáveis,
como da vida, da liberdade e da busca da felicidade.
Nascido em família de fazendeiros, foi embaixador em
Paris, onde assistiu ao início da Revolução Francesa,
ajudando na redação da Declaração dos Direitos do
Homem, em 1789; observando os regimes políticos de
vários países, notou que a República formada na
América era a me- lhor de todas (Nock, A.D.:

17
esta causa é que seu país, em pouco tempo,
ultrapassou os europeus em seu progresso e
desenvolvimento.
Thomas Jefferson temia que o poder político
se alojasse em algum grupo - embora a maioria
possa er- rar, dizia, o pior de tudo era o egoísmo
dos monarcas, sacerdotes e nobres; tinha a opinião
de que a indife- rença do povo matava as
repúblicas, preferindo o erro à inação; para evitar
este problema, preconizou um sistema de escolas
públicas com a finalidade de esti- mular a
existência de uma imprensa livre; a educação das
massas pode interromper o processo de corrupção
e decadência que ameaça toda república. Tinha
grande desconfiança de todo governo no qual não
há equilíbrio entre os poderes e pensava que,
mesmo que um corpo de governantes fosse eleito
pela maioria, não lhe da- ria caráter democrático.
No campo econômico permitia toda liberdade,
rejeitando que um homem pudesse ser
intrinsecamente superior a outro; aliás, se o governo
não tiver favoritos, a riqueza se distribuiria de
acordo com o esforço e a habilidade individuais.
Foi presiden- te dos Estados Unidos de 1801 a 1809
(Kock, A.: The Philosophy of Thomas Jefferson).
Vemos um país ser organizado à base de uma
filo- sofia de vida a mais generosa possível -
tentando reali-

Thomas
Jefferson

17
zar todos os ideais do iluminismo, que eclodiu no
sécu- lo XVIII; os Estados Unidos herdaram uma
concepção de vida mais livre do que os germânicos,
estabelecendo um equilíbrio entre tal filosofia de vida e
o racionalismo dos latinos, que escolheram a vereda da
alienação.
Tocqueville (1805-1859)
Alexis Charles Henri Maurice Clérel de Tocque-
ville pertencia a uma família nobre da França,
exercen- do grande atividade política; estava ligado
aos novos imperadores (como Carlos X) que tinham
a intenção de estabelecer um regime contrário às
conquistas libe- rais da Revolução Francesa; viajou
aos Estados Uni- dos, realizando observações muito
importantes, para um conhecimento melhor da nova
civilização que sur- gia; como a democracia
americana foi organizada sob a inspiração das ideias
iluministas do século XVIII, da Inglaterra e França,
nada melhor do que um francês, para julgar o seu
resultado. Uma primeira observação que fez, foi sobre
o igualitarismo, que considerou a principal
característica dos americanos; pensava que tal atitude
ameaçava a liberdade individual; no seu livro A
Democracia na América narra essa forte tendência de
uniformização, que coloca em perigo os grupos que
desejam pensar e viver de maneira diferente
(D’Eichtal, E.: Tocqueville et Ia Démocratie Libérale).
Tocqueville mostra-nos a grande diferença entre a
filosofia de vida norteamericana e a européia,
principalmente a latina; tal situação me faz pensar que Alexis Charles Henri Maurice Clérel de Tocqueville
os norteamericanos é que chegaram mais próximos
aos ideais que muitos colo- cam no marxismo,
organizando o país economicamente mais forte da
história da humanidade - enquanto que os europeus
(dando ênfase à União Soviética) construíram uma
verdadeira aristocracia (uma continuação do cza-
rismo) sob ideais de igualitarismo.

17
Capítulo
23

Leibniz

O SÉCULO XIX VIU CRESCER O IDEALISMO


GERMÂNICO, QUE POSSUI DUAS RAMIFICAÇÕES:
RUMO A UM DESENVOLVIMENTO INCRÍVEL,
OU NO SENTIDO DE UMA DESTRUIÇÃO TOTAL

17
Leibniz (1646-1716) possuir em seu interior, de qual- quer maneira, algo de

S e o século XVII viu o apogeu do pensamento


acordo com o que existe - genial- mente, Leibniz
denominou a isso mônada (Belaval, Y.:
in- glês, o XVIII foi tipicamente francês, no seu
desejo
de libertação, enquanto que o século XIX assistiu ao
crescimento e domínio da filosofia germânica dentro
de toda a humanidade. E, para compreender tal
fenômeno, temos que recuar um pouco no tempo e
chegar aos me- ados do século XVIII. A Alemanha
constituiu o meio termo entre a concepção de
existência anglossaxônica e o racionalismo da Europa
meridional, mas sem os problemas pesados de
perseguição social, que os países latinos sofriam;
assim sendo, seus pensadores tinham ampla liberdade
para aceitar ou divergir de qualquer ideia, ou
concepção de existência; bafejada por esse ambiente
de descontração, tomou as rédeas de todo o
pensamento moderno.
Temos de começar com Gottfried Wilhelm Leib-
niz, que nasceu a 1o. de julho de 1646, mas cujas
ideias floresceram no século seguinte. Ele seguiu o
raciona- lismo de Descartes, de Aristóteles e da
filosofia es- colástica, tentando conciliar a explicação
matemática do mundo com a maneira teológica.
Apresentou dois princípios fundamentais: 1o.) o da
razão, que afirma o caráter não contraditório daquilo
que é explicado, ou demonstrado; 2o.) o da razão
suficiente, ou melhor, o que diz que a coisa
demonstrada deve existir real- mente. Depois, inclui a
causa final (aristotélica): Deus calcula vários mundos
possíveis e faz existir o melhor. Rejeita a ideia da
“tábula rasa” de Locke, dizendo que existem
princípios inatos no intelecto: “nada há no in- telecto
que não tenha passado primeiro pelos sentidos, a não
ser o próprio intelecto” ( Morxeau, I.: L’Univers
Leibnizien).
Ao contrário de Descartes, Leibniz constroi uma
concepção dinâmica sobre o mundo, partindo da noção
de matéria, como basicamente atividade; o universo
se- ria formado por unidades de força, chamadas de
môna- das – cada indivíduo tem em si mesmo uma
substância una e indivisível, é a percepção, que
representa as coi- sas; a percepção é a consciência; a
apetição é a fuga da dor e a procura do prazer; a
expressão é o poder interno de exprimir o universo, a
partir de si mesma. Esta é a ponte que faltava entre o
que Aristóteles chamou de intelecto agente e o passivo
interno; afinal, quem capta alguma coisa tem de
16
aceitou viver). Se o conhecimento do sensorial
(Aristóteles e Locke) não contasse com (o
conhecimento) espiritual, para haver comparação, não
Pour Connaitre la Pensèe de Leibniz, Paris).
teríamos entendimento algum.
A visão de Leibniz é harmoniosa, pois ele vê
as mônadas como se fossem relógios criados por
Deus, para sempre à mesma hora, depois de lhes dar
corda, elas funcionarem automaticamente. Ele é de
opinião que os defeitos não foram criados juntos
com a na- tureza; o próprio sofrimento seria
necessário, para a produção de um bem superior. O
que é mais importan- te é a sua percepção de que o
intelecto é algo mais do que um agente passivo dos
sentidos, ou uma cera para gravar as sensações
(Helvetius); o primeiro genial fi- lósofo alemão
começou a inverter a ideia tradicional de
dependência do espírito ao corpo. Eu tenho dito na
Trilogia Analítica que o superior é que conduz o
infe- rior (o cérebro, todo o organismo); assim
sendo, o pro- cesso do conhecimento é muito mais
dependente do psíquico, usando o físico mais como
um instrumento para as suas manifestações.
Não existe apenas uma forma de
conhecimento, a partir do sensível, como mostrou
Aristóteles; exis- te também uma outra forma (de
conhecimento) mais profunda e essencial, que se
passa diretamente na vida psicológica, através de
elementos psíquicos, como a telepatia o tem
demonstrado ultimamente; o espírito humano está
em condições de captar diretamente o es- piritual,
porque ele é assim; por exemplo: Deus não é objeto
de demonstração (como Kant mostrou), mas a
“semelhança” espiritual conosco; da mesma
maneira, o demônio exerce influência direta,
colocando em nossa mente o que pensa e deseja. É
por este motivo que o chamado mundo espiritual
(Deus, anjos, santos e de- mônios) não pertence ao
domínio do racionalismo, mas ao da ciência
trilógica (verdadeira ciência, filosofia e teologia),
que abarca toda a dimensão humana, ou seja, o
sentimento, o raciocínio com a ação. Quando Platão
falou do mundo das ideias estava captando
erroneamen- te este fenômeno: o contato imediato
do espiritual.
No processo do conhecimento, analisado pelos
fi- lósofos, temos de inverter tal ideia, colocando os
sen- tidos na dependência do espiritual, por serem
de cate- goria inferior. Assim sendo, toda captação
sensorial é imediatamente analisada pela mente, em
função da vi- vência espiritual em que ela está (ou

16
ESQUEMA único parâmetro para saber qual é nosso estado
psicoló- gico, é notar o que realizamos: algo voltado
Explicação do Esquema: o ser humano tem o seu para o bem comum, segundo o desígnio de Deus e da
Eu (Ego) voltado para o mundo espiritual e para o ma- civilização, ou uma atitude de total egoísmo, querendo
terial; quanto mais ele procura a captação do espiri- só tirar van- tagem pessoal? A primeira conduta é para
tual (Deus, anjos, santos e demônios), melhor sente o crescimento e incrível desenvolvimento individual e
o material, conseguindo produzir, melhorar a ciência da civilização, a segunda, o caminho da destruição e
e o desenvolvimento humano. Pelo contrário, quanto morte.
mais se volta para o seu Eu, alimenta suas fantasias,
megalomania, teomania e narcisismo, mais patológico Kant (1724-1804)
se torna, perdendo o contato com a realidade (espiri-
tual e material). Vamos dizer que, para ser um bom Para saber o que se passa na civilização contem-
cientista, trabalhador, atleta, pensador, o homem tem porânea, é necessário conhecer o pensamento de Kant
de estar em contato com o mundo espiritual, ou vice-
- o filósofo que melhor manifestou o que todos nós
versa; para entender este último, tem de perceber bem
pensamos e desejamos; a maior parte das descobertas
a realidade do universo físico, que é um verdadeiro
da Trilogia Analítica poderá ser encontrada aí, como a
reflexo do espiritual.
teomania, megalomania, a fantasia e o dialetismo pla-
Existem dois grupos de ideias, o primeiro e real, tônico (as antinomias). Aliás, quando Herz, amigo do
que colhe tudo do mundo exterior (espiritual, ou mate- pensador alemão, leu sua Crítica da Razão Pura, de-
rial) e, o segundo grupo, que se volta para a volveu imediatamente os manuscritos, alegando que
megaloma- nia, teomania, elaborando pensamentos poderia cair na loucura, se os continuasse a ver - iden-
fora da realida- de e só no sentido de alimentar o tificando a consciência do erro, com ele próprio. Por
próprio narcisismo. O este motivo, podemos dizer que Kant deu um grande

16
impulso à civilização, de dois modos fundamentais:
respondendo questões básicas relacionadas à mente e
principalmente lançando ao mundo o primeiro trata-
do de psicopatologia, abrindo espaço para um novo
campo de estudo; a ciência do psicopatológico, prati-
camente, nasceu com ele - mesmo que só agora tenha-
mos consciência desse fenômeno.
A Trilogia Analítica vem confirmando grande par-
te das descobertas desse gênio, provavelmente o ser
humano que mais impulso deu à civilização; podemos
dizer com certeza que o deslocamento do centro da
cul- tura, para a Alemanha, foi devido à incrível
contribuição desse pensador - a tal ponto que
Schopenhauer afirmou ser a Crítica da Razão Pura o
trabalho mais importan- te da literatura alemã e
Spencer que, para ser filósofo, há necessidade de ser
primeiramente kantiano - e nós dizemos que, para Immanuel Kant
compreender o que pensamos e aspi- ramos nesta
civilização contemporânea, é fundamental entender as
suas descobertas.
Kant propôs-se a estudar o que era a famosa
razão, que grande parte da filosofia escolhera como
fundamen- tal à existência humana: a totalidade dos
países latinos, o sul da Alemanha e o último período
da Idade Média (séculos XII,XIII e XIV); de maneira
que, um dia, um pensador resolveu colocar em pratos
limpos a sua es- sência. E, contando com o ambiente
de liberdade, típico dos países que aceitaram a
Renascença e a Reforma, foi possível ter dentro de
suas fronteiras as duas orien- tações. Parece até que o
destino da Alemanha é estar sempre dividida: a sua
situação política atual (1983), o

16
Renascimento e principalmente a Reforma, que sofre- damental ao pensador alemão, no sentido de esclarecer
ram oposição dos grupos reacionários (localizados no que as ideias que temos não são elaboradas pela men-
sul); da mesma maneira, sua filosofia ficou dividida
en- tre o espírito empírico saxônico e o velho
pensamento racionalista medieval.

CRÍTICA DA RAZÃO PURA


Em seu livro Crítica da Razão Pura, o filósofo
alemão avisa que nem todo conhecimento procede
dos sentidos (como Locke e o próprio Aristóteles
disseram); cita como exemplo a matemática. Posta
esta questão, tudo o que se pensou em filosofia, teria
de ser revisto; foi o que fez; afirma que o espírito
humano não é uma cera passiva (Locke e o intelecto
passivo, de Aristóteles e Tomás de Aquino) - a este
fenômeno denominou de estética (sensação ou
sentimento) transcendental - pois, além das sensações
e das ideias, existe o espírito.
Neste momento, passamos da estética transcen-
dental para a lógica transcendental, porque o
espírito é coordenação da experiência; se Locke não
teve razão ao dizer que nada existe na inteligência,
que não tenha existido primeiro nos sentidos, Leibniz
acertara, quan- do acrescentou: nada, exceto a própria
inteligência por- que, sem as concepções, as
percepções são cegas, adi- cionou Kant. Este último
estava mostrando que existem os sentidos que
percebem, e a inteligência que forma as concepções -
tomadas diretamente do campo espiritual, dizemos
nós.
Em sua dialética transcendental, fala que um ob-
jeto exterior, em si, torna-se muito diferente depois
que o captamos; ele (o objeto) existe realmente, mas
nada podemos saber, senão que existe. O seu
idealismo não nega a existência das coisas, mas as
subordina às nossas ideias. No seu livro O Mundo
como Vontade e Ideia, volume 11, página 7,
Schopenhauer diz que o maior mérito de Kant foi o de
distinguir o fenômeno da coisa em si. Quando
procuramos compreender o que é espaço e tempo, não
o conseguimos, porque eles não são coisas em si, mas
modos de interpretar e compreender. Esta ideia da
maior cabeça pensante da humanidade mostra- nos
todo o grau de teomania que possuímos, ao pensar
que a realidade depende do que pensamos; a maior
par- te dos filósofos tem esta ideia, somente
Immanuel teve a coragem de admiti-la.
Neste momento, é necessária uma correção fun-

16
te, mas também captadas direta e imediatamente do
mundo espiritual, com o qual estamos em contato. Se RAZÃO E RELIGIÃO
permanecermos só no conceito de Kant, iremos colo-
car como centro do mundo todas as fantasias que ela- Kant vê uma finalidade interna em todas as
boramos, em uma atitude de extremada megalomania coisas, devendo procurar o valor da religião no
e teomania. Então, vamos dizer que tanto Aristóteles aperfeiçoamen- to da humanidade; Cristo veio à Terra
e Locke eram exatos, quando mostraram um conhe- para organizar o Reino de Deus e, em seu lugar, foi
cimento voltado para os sentidos, como Kant acertou erigido o reinado dos clérigos; mas o auge da
ao afirmar a existência do conceito (sem os sentidos) perversão acontece quando a igreja se torna um
- e a ciência trilógica explica que existe uma dialética instrumento nas mãos de um governo reacionário e,
entre as imagens (sensoriais) e as percepções (espiri- em lugar de consolar e guiar a humani- dade, torna-se
tuais), alcançando-se grande desenvolvimento quando um fator de obscurantismo teológico e de opressão
deixamos estas últimas predominarem. No ano de política (Paulseen, I. Kant, pág. 366). E as
1960 escrevi em Viena uma tese sobre a advertências do pensador alemão são as mesmas que
transconsciência (e seus transtipos), onde procurava venho expondo em todos os meus trabalhos
demonstrar os dois ân- gulos da consciência ultimamen- te, com o acréscimo de que os clérigos
(conhecimento): um voltado para o material e outro (funcionários re- ligiosos) não estão vivendo o seu
para o mundo espiritual (Psicanálise Integral, pág. 17). Reino (Divino), mas ajudando a difusão do Reino de
Satanás.

CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA


POLÍTICA E PAZ ETERNA
Negada a validade objetiva do conhecimento,
tan- to a teologia como a filosofia foram rejeitadas, Kant realizou todos os trabalhos de vulto, após
como bases de uma religião; o pensador alemão meio século de existência, publicando Crítica da Ra-
voltou-se então para o campo da moral, alegando que zão Pura aos 57 anos, Fundamentos da Metafísica aos
temos um sentimento iniludível do que é bom e do 61, Crítica da Razão Prática aos 64, Crítica da
que é mal, aproximando a atitude religiosa da Faculda- de de Julgar, aos 66, A Religião dentro dos
afetiva. A Trilogia Analítica mostra como os três Limites da Simples Razão, aos 69, e O Conflito das
setores são unidos entre si, não havendo diferença Faculdades, aos 74 anos.
essencial entre o amor (reli- giosidade), a verdade Tinha 65 anos quando a Revolução Francesa
(filosofia de vida) e a ciência (re- alização). Kant eclo- diu, acolhendo-a com lágrimas nos olhos e
prossegue, fazendo uma divisão entre o campo do explicando que a luta é indispensável ao progresso,
raciocínio e o do sentimento, colocando neste último devido ao esfor- ço que a natureza faz para
um imperativo categórico; assim sendo, sentimos desenvolver as capacidades latentes (a luta de um
que somos imortais e devemos fazer o bem contra todos, de Hobbes); a na- tureza sabe melhor o
desinteressadamente, porque esta existência é apenas que nos convém, havendo neces- sidade de luta pela
uma parte da vida que nos dará uma compensação existência, para melhorar (Deleuze, G.: La Philosophie
cen- tuplicada de qualquer ato bom que tenhamos, Critique de Kant, Paris). Vê-se aqui uma certa
mesmo que seja um simples copo de água dado ao identificação entre ele e Rousseau (resultado do
semelhante. Em sua Crítica da Razão Prática, Kant racionalismo dos dois pensadores), colocando a culpa
fez uma divisão entre o racional e a moral, rejeitando na existência (em si), vendo-a antissocial, invejosa,
a valida- de objetiva do conhecimento e colocando a vai- dosa, e ambiciosa de poder e vaidade - exatamente
fé sob base afetiva; tenho a impressão de que ele como costumou pensar a maior parte da humanidade;
percebera já por intuição o verdadeiro fundamento da aliás, Kant oficializou praticamente o reinado da
verdade, inclusi- ve da (verdade) filosófica - pois o fantasia me- galômana. Tudo o que se realizou, de
raciocínio só é váli- do, quando estiver montado sobre importância, após o século XIX, teve algo a ver com
o amor, constituindo esse pensador; a ideia de uma vida perigosa, tão
explorada pela psicanálise (e psicologia) atual, recebeu
com ele a verdadeira realidade.
sua aprovação.

16
Em seu último livro, Paz Eterna, faz um
gracejo logo de início: “estas palavras foram certa
vez escritas

17
Fichte (1762-1814)
Fichte, Schelling, Schleiermacher e Hegel são os
seguidores imediatos de Kant, cada um trilhando ca-
minho oposto: o primeiro, dando azo total a sua ima-
ginação, vendo seu povo e a si mesmo, como se fos-
sem novos deuses (teomania); o segundo, aceitando a
espiritualidade, permaneceu em uma atitude sã, que se
manifestou em seu trabalho. Schleiermacher foi mais
próximo a Schelling nas ideias e Hegel deu total
ênfase a toda fantasia de que é capaz um pensador,
principal- mente racionalista.
Gostaria de transcrever a opinião de Bertrand
Rus- sell, em seu livro História da Filosofia Ocidental,
tomo III, página 261: “O sucessor mediato de Kant,
Fichte, abandonou as coisas em si e levou o
subjetivismo a tal ponto que parece quase implicar
uma espécie de loucu- ra; afirmou que o Eu é a única e
última realidade e que existe porque se afirma a si
mesmo; o não-eu, que tem uma realidade subordinada,
existe também porque o Eu o afirma”. Em linguagem
da psicopatologia trilógica, tal fato significa o pleno
Fichte uso de uma dialética platônica, que tenta unir o que
existe (Eu) com o que não existe (não-eu). Aliás, tal
ideia, tirou das antinomias de Kant que diz: 1) o
por um estalajadeiro holandês sob uma pintura de um mundo tem princípio no tempo e é limita- do; sua
cemitério.” Em seguida, mostra todo um pensamento antítese: o mundo não tem princípio no tempo, nem
paranóico (projetivo), dizendo que o povo não deve- limite no espaço; 2) toda substância composta é e
ria permitir que os seus governantes gastassem dinhei- não é formada por partes simples; 3) existem duas
ro para organizarem exércitos, pois eles estimulam a causalidades: uma de acordo com as leis da natureza e,
guerra, não querendo ver que os dirigentes outra, (de acordo) com a liberdade; sua antítese: só há
representam o consenso de seus dirigidos; depois, causalidade, de acordo com as leis da natureza; 4) há e
manifesta a opi- nião de que o estado de guerra só não há um Ser absolutamente necessário. Finalmente,
deveria ser declarado, através de um plebiscito de os filósofos estavam assumindo toda a sua megaloma-
todos os cidadãos. A vitória da Revolução Francesa nia, mesmo que não o percebessem.
serviu para Kant pensar que as repúblicas se Johann Gottlibe Fichte já usava a ideia de um
difundiriam por todos os países, surgindo uma ordem inconsciente criador do não-eu, que levou mais tarde
internacional justa. Aliás, em seus últimos cinco anos Freud a imaginar a origem de toda conduta humana
de vida, apresentou sinais evidentes de uma em uma estrutura incognoscível, alimentando sua
pronunciada patologia psíquica (Durant, Will, História psico- patologia; parece que, após o ensinamento de
da Filosofia, 2o. Volume). Cristo, o homem vem tentando fazer de tudo para
Acredito que o principal erro de Kant foi o de su- provar que Deus estava errado. O trabalho desse
bordinar todo o conhecimento do chamado espiritual, pensador germâ- nico repercutiu intensamente na vida
ao campo das ideias (daí, o nascimento do idealismo); social, por pregar a Alemanha como sendo um Estado
a ciência trilógica tem demonstrado o grande perigo de (povo) ideal; ao mesmo tempo preconizava a liberdade
um incentivo ao Ego (Eu), o que redunda em um cres- absoluta, que é o fundamento último do Eu e a
cimento sem controle do narcisismo. Provavelmente, doutrina da ciência (Pa- reyson, L.: Fichte). Este é o
os grandes conflitos, que a sociedade humana passou a motivo por que os regimes totalitários desse país
sofrer, podem perfeitamente ter a sua origem aí. sempre estiveram voltados contra as outras nações,
17
em benefício do povo alemão - en-

17
quanto os latinos organizam ditaduras em detrimento causas negativas na raiz dos mitos - pelo contrário, diz
de sua própria população. De qualquer modo, as guer-
ras que aconteceram no século XX têm suas origens
nesses pensadores; parece que o demônio começou a
dominar o pensamento humano através das antinomias
de Kant.

Schelling (1775-1854)
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling constitui a mais
pura expressão da filosofia do romantismo, no país
que foi um dos maiores focos do pensamento
romântico; po- demos citar rapidamente Göethe,
Beethoven, Schelegel, Bach, Mozart, Mendelssohn,
Händel, Humboldt (língua alemã) Balzac, Gay-Lussac,
Volta, Berlioz (França); Malthus, David Ricardo,
Adam Smith, Darwin, Poe, Kierkegaard, Verdi,
Bolívar, Stendhal, John Stuart Mill, Engels - um grupo
de pessoas incríveis no campo da ci- ência, literatura,
música, economia e política.
Schelling impressionou-se com a filosofia de Fichte
e foi chamado para Berlim, para contrabalançar a
influ- ência de Karl Marx, Feuerbach e Strauss. Era de
opinião que a natureza é tão real quanto o eu (opondo-
se à ideia fichteriana de que ela (a natureza) oporia
resistência à atividade infinita do eu); pensava que a
finalidade das ciências era a interpretação da natureza
como um todo unificado; no seu idealismo
transcendental, expõe uma ideia de desenvolvimento
dialético, que seria o relacio- namento da consciência
com a filosofia da natureza: nos trabalhos de arte, a
inteligência teria a possibilidade de realizar-se
inteiramente – colocando no campo artístico a plena
realização humana, o que ele chama a verdade na arte
(notam-se aqui as primeiras origens da filosofia
existencialista, iniciada com Kierkegaard).
No período final de sua vida, Schelling se aproxi-
ma do divino; diz ele que o mundo finito existe como
algo separado do absoluto, do qual se desprendeu e
deseja voltar, seja através da evolução natural, ou do
desenvolvimento histórico; a tarefa básica da filoso-
fia seria o esclarecimento para o ser humano retornar
a esse absoluto. Escreveu a Filosofia da Mitologia, di-
zendo que existem três grupos de pessoas: as que recu-
sam qualquer valor de verdade aos mitos, as que lhes
concedem apenas uma verdade indireta e exterior e as
que lhes atribuem uma verdade intrínseca e imediata:
o primeiro grupo (emanatistas) interpretam a mitologia
como alteração ou desvirtuamento; o segundo coloca
17
o pensador, eles (mitos) precedem a revelação; o
último grupo concede a eles (mitos) uma verdade;
por exem- plo, o profeta que vê o que os outros não
veem (Jaspers, K.: Schelling: Grösse und
Verhängnis, München).
Vemos um pensador bem diferente do seu
ante- rior imediato, dotado mesmo de uma visão
contrária à de Fichte; enquanto este último entrou
pelo diale- tismo platônico, querendo unir a
realidade à fantasia, Schelling permaneceu no
dialetismo socrático, ou cris- tão, que procura
trabalhar com duas realidades - não é necessário
lembrar que a argumentação de Fichte leva às
psicopatologias.

Schelling

Schleiermacher (1768-1831)
Frederic Schleiermacher foi seguidor de Kant e
Spinoza e fundamentalmente idealista romântico;
di- zia que o Absoluto não poderia ser atingido pela
via prática, moral, como julgava Kant e sim pela
vontade moral e razão prática - ele (o Absoluto) só
poderia ser alcançado pelo sentimento, que é a
intuição estética;
o Absoluto não é atingido pelo conhecimento, pela
ci- ência e nem mesmo pela vontade, pela ética,
mas pelo

17
sentimento - que é autoconsciência; a religião ocupa mem começaram a aparecer. Se tal fenômeno for cons-
o mais alto grau da atividade humana, assim como o cientizado agora, conseguiremos entrar por um grande
sentimento é o vértice da vida espiritual (Padovani, período de paz dentro da humanidade.
Umberto, História da Filosofia).
Schleiermacher expressou opinião idêntica à da
Trilogia Analítica, ao colocar o sentimento como bá- Hegel (1770-1831)
sico da vida psíquica; note o leitor uma orientação to-
talmente oposta ao do tomismo, medieval, que a igreja George Wilhelm Friedrich Hegel não tem a mes-
católica teima, até hoje, impingir aos seus membros - ma profundidade de Immanuel Kant, mas exerceu uma
enquanto que, na Europa Central e do Norte, o povo influência maior na história da civilização, devido a
continuou normalmente com o seu desenvolvimento. seu interesse pela política; ele foi um novo Platão dos
Para saber o que se passa no mundo atualmente, tem- pos atuais, inclusive no tipo de dialetismo que
basta ver a orientação da filosofia alemã do século usou, le- vando outros pensadores e até economistas a
XIX, que manifestou a patologia do ser humano, imaginar uma existência ideal (e não real); pessoas
com todo o seu vigor; os pensadores germânicos muito ima- ginosas e megalômanas conseguem
puderam falar tudo aquilo que fora proibido no geralmente grande aceitação, porque o ser humano
período medieval e nos países mais intransigentes, ou procura quem o incen- tive em suas fantasias - é por
melhor, tudo o que a humanidade pensava de mais este motivo que Will Du- rant acusou o pensador “de
doentio e absurdo, e não tinha a coragem de arquitetar puros disparates, palavras extravagantes e
manifestar, esse grupo de filósofos idealistas sem sentido, instrumento de mistificação” (Durant,
conseguiu dizer; assim sendo, toda a teoma- nia, Will, História de Filosofia, 2o. Volume, pág. 43).
megalomania, narcisismo e egocentrismo do ho- Hegel, sob muitos aspectos, reviveu o mesmo ca-
minho traçado por Platão, interessando-se logo de iní-
cio pela política, a ponto de Bernard Bourgeois
afirmar que ver a filosofia (de Hegel) é o mesmo que
saber sua política (Bourgeois, B.: La Pensée Politique
de Hegel, Presses Universitaires de France). Desde
então, o inte- resse central da humanidade voltou-se
novamente para esse campo, acreditando que,
resolvendo-o, todos os outros problemas seriam
solucionados; sabemos que, na Grécia Antiga, Platão
jamais conseguiu realizar seus ideais apontados em
seu livro República - convidado pelo monarca de
Siracusa, Dionísio II, teve de fugir da- quele país,
devido a seu fracasso como político - o ser humano
esperava uma desculpa para escapar da cons- ciência
de seus erros, e o famoso pensador alemão caiu como
uma luva, sobre essa intenção. É importante abrir um
parênteses aqui, para elucidar o leitor sobre o desejo
que o homem tem, de colocar a culpa de todas as suas
dificuldades no mundo exterior em uma clara atitude
paranóide; este é o motivo por que países inteiros pe-
recem, quando aceitam tal filosofia psicopatológica de
existência; a própria Alemanha poderia servir de
exem- plo. A religião foi vista no seu sentido exterior,
popular, como se fosse um novo tipo de política. Em
1795, He- gel escreveu A Vida de Jesus, onde mostra
um messias político, fundando um tipo de
religiosidade social, den- tro de um regime livre.
Schleiermacher Hegel define melhor a sua filosofia no livro Enci-
17
clopédia das Ciências Filosóficas, onde coloca três po- seu conceito filosó- fico central, ou seja, a alienação,
sições: 1) a ingenuidade da experiência, ao pensar que julgando que a cons- ciência fosse se formando como um
pode chegar a conhecer a verdade; 2) o erro do duro aprendizado,
empiris- mo ao negar o supra-sensível; 3) o
pensamento diante do seu objeto tem o saber imediato.
Analisando-se estes aspectos, vemos o reinicio de um
platonismo exagerado na história da humanidade,
onde tudo poderia ser e não- ser, certo e errado, bom e
ruim. E, ao lado dessa ideia de tudo ser permitido, o
grande pensador alemão apresen- tava uma percepção
muito aguda; por exemplo: a críti- ca ao empirismo e o
chamado saber imediato, que ligou a inspiração,
revelação do coração, a fé - seus adeptos
compreenderam que Deus, a verdade, o infinito seriam
imediatamente entendidos; não há dúvida da total
influ- ência do kantismo sobre ele.
Gostaria agora que o leitor prestasse bem atenção
ao erro fundamental de Hegel, quando afirmou em sua
Filosofia do Direito que aquilo que é, é a razão - con-
fundindo-a com a realidade; tal assertiva alimentou ao
máximo a megalomania, levando W. R. Bion a afirmar
no seu livro Elementos de Psicanálise que o ser
humano de modo geral só acredita no que pensa;
inspirado por Kant, diz que a riqueza das coisas
depende diretamente do maior grau de abstração que
façamos, dando a en- tender que nós é que
determinamos o valor da realida- de – em uma
evidente atitude de teomania (Kojère, A.: Introduction
à La Lecture de Hegel, Paris). No processo dialético
de Hegel é que se torna mais evidente o seu alto grau
de megalomania, ao dizer que a dialética é a própria
alma do conteúdo - em uma atitude de inversão,
colocando o valor da coisa (em si) na percepção; se-
guindo por esse rumo, fala que tal sistema inclui, tanto
o positivo, como o negativo, citando duas frases que
se tornaram famosas: o que é racional é real e o que é
real é racional, e o ser e o nada são uma só e a mesma
coisa
- e não há uma única coisa no mundo que não abrigue
em si a co-pertinência do ser e do nada (é a volta total
ao platonismo desastroso).
Seguindo por esse rumo, Hegel diz que o grande
conteúdo da história do mundo é racional e deve ser
racional; então, situa como os três momentos
principais da civilização: 1) o mundo oriental, 2) o
grecorromano e 3) o germânico - colocando a base da
realização hu- mana sob o domínio da razão (mesmo
que a filosofia oriental não seja muito racional). No
seu livro Fenome- nologia do Espírito, discorre sobre

17
conhecimento está na dependência de nossas ideias;
acredito que este é o ponto mais importante para
compre- ender o rumo da civilização atual - sem
dúvida, foi Kant que iniciou esta alimentação máxima
ao narcisismo hu- mano, mas Hegel é que o levou ao
ponto máximo; 3) seu

H
e
g
e
l

ao contrário da Trilogia Analítica que descobriu


que a doença reside na luta que se faz para apagar
a consci- ência, ou melhor, a percepção de toda a
incrível mara- vilha da realidade, por causa da
inveja. Hegel punha este processo de alienação
nas instituições, aumentan- do a persecutoriedade
de seus seguidores - que chegou ao seu ponto
mais agudo no século XX, que viu duas guerras
mundiais e está em perigo de uma terceira que,
certamente, seria última.
Hegel tinha uma erudição muito grande e
levou seus desejos megalômanos a um nível
muito alto; de modo geral, podemos apontar os
seguintes erros como funda- mentais: 1)
identificando filosofia com a política, tentan- do
resolver todos os problemas da humanidade
através de fatores consequentes e não básicos
(filosofia de vida), em uma clara atitude
paranóide; 2) sua orientação de que o
17
desprezo ao conhecimento sensível levou o ser civilização seja inteiramente organizada pelo
humano à mesma situação medieval, quando reis, raciocínio, como se tivéssemos poderes inimagináveis.
nobres, sacer- dotes e religiosos se colocavam como Acredito que o ser humano esperava que alguns
donos da verdade, em lugar de Deus (teomania) - indivíduos geniais lhe dessem licença para fantasiar e
criando a Idade das Tre- vas; estamos agora no mesmo pensar sobre qualquer devaneio, como se fosse real -
perigo, pelo desprezo que o homem voltou ao trabalho o sucesso de uma pessoa não depende tanto dela mes-
(com o sensível) e a ideia de que poderá se realizar ma, mas do acatamento que faça à realidade através da
como se fosse um deus, através de drogas, história. Chegamos ao momento de examinar tudo isso
alucinógenos e das chamadas meditações (trans- agora, para separar o joio do trigo, desde que estamos
cendentais), onde entra em verdadeiros delírios de às portas do Terceiro Milênio. De tal maneira a
gran- deza; 4) o coroamento dessa megalomania foi filosofia hegeliana é perigosa que o povo alemão,
atingido com a sua famosa declaração: “o racional é evidentemente o mais influenciado pela sua
real”,como se fôssemos nós que construíssemos a megalomania, vê hoje o seu país dividido e dominado
realidade, e “o ser e o nada são uma só e mesma por países menos afoitos em sua concepção de vida.
coisa”, dando azo para ima- ginar tudo o que se quiser;
5) ele pretende que a própria

17
Capítulo
24

Adam Smith

A CIVILIZAÇÃO, QUE SE ENCAMINHARA PARA O


NORTE, DIVIDIU-SE EM DOIS GRUPOS: O ANGLO-
SAXÔNICO, LIBERAL E OTIMISTA E O GERMÂNICO,
IDEALISTA E TEOMÂNICO, AO MÁXIMO; NO SUL, A
PSICOPATOLOGIA GRASSAVA CADA VEZ COM MAIOR
INTENSIDADE
Castelo de Neuschwanstein, Bavária, Alemanha
(1623-

E nquanto a Alemanha começava a criar uma


nova maneira de pensar, a Inglaterra aplicava sua
filosofia de
vida no campo da economia, tornando-se rapidamente
o primeiro país a formar urn parque industrial. Somos
obrigados a ver a economia dos povos em função de
sua filosofia de vida, para que possamos compreendê-
Ios. Sabemos que a atitude anglossaxônica é diferen-
te da germânica e muito mais ainda da latina, devido
à maneira diferente de pensar entre essas três regiões:
enquanto os nórdicos têm uma conduta de maior valo-
rização ao trabalho, os latinos apegam-se ao dinheiro,
como se fosse todo o valor, por si; por este motivo que
estão endividados (1983).

Adam Smith (1723-1890)


A Inglaterra, sob inspiração de sua filosofia chama-
da empirista, produziu novos setores da cultura, como
a economia. E o primeiro e grande economista foi
Adam Smith, autor do livro A Riqueza das Nações.
O pensamento europeu predominante na época
era o mercantilismo, dentro do qual colocava-se a
moeda como sendo sua riqueza; assim sendo, quanto
maior fosse a exportação, um maior número de divisas
entra- ria no país, tornando-o mais rico. William Petty

17
1687) tentou mostrar que o valor de uma nação
estava no trabalho — tema que Smith aceitou,
afirmando que a verdadeira riqueza residia no valor
do uso, colocando seu fundamento no consumo
(Crospey, J.: Polity and Economy: An Interpretation
of The Principles of Adam Smith). Provavelmente,
este foi o seu erro principal pois ao colocar a
riqueza no denominado valor (mo- netário), per
capita, Smith destruiu o valor do trabalho, em si —
o crescimento da riqueza de uma nação, disse ele,
depende essencialmente da produtividade do tra-
balho que, por sua vez, é uma função do seu grau de
especialização — deste modo, qualquer obstáculo
ao comércio, externo e interno, redundaria no
empobre- cimento. Atualmente, vemos como tal
tese é errônea, porque difunde o uso de um número
muito grande de objetos inteiramente
desnecessários para a vida e uma quantidade
excessiva de elementos necessários (vários carros,
alimentação exorbitante, roupas, cosméticos).
Observa-se em Adam Smith uma influência
muito grande do pensamento de John Locke,
quando este atri- buiu todo o processo pessoal ao
ensino, vendo a mente humana como se fosse uma
tabula rasa, na qual é neces- sário escrever e tudo
caberia; o capitalismo tem coloca- do toda a sua
esperança no aumento da produtividade, como se a
humanidade fosse uma consumidora infi-

17
nita — realçando sua ideia teomânica. De outro lado, verdadeira finalida- de: servir ao ser humano.
estamos sendo privados das melhores coisas (técnicas
e descobertas de alto nível) por não serem de grande
consumo — estamos dentro de uma filosofia de vida
mediocrizadora; só os países que produzem artigos so-
fisticados é que tem atualmente uma situação
econômi- ca confortável: Estados Unidos, Japão,
Alemanha Oci- dental. Outra observação importante
foi a valorização que ele deu ao trabalho, mas em
função do ganho, su- bordinando o ser humano ao
elemento material — daí, a famosa frase: exploração
do homem pelo homem.
Adam Smith emitiu a opinião de que a “ordem
na- tural” seria baseada na total liberdade (conforme a
ideia de Guilherme d’Ockam), desenvolvendo o
famoso li- beralismo individualista; dizia que ninguém
melhor do que a própria pessoa, para cuidar de si
mesma e que a luta pelos interesses individuais, levava
beneficio a to- dos (sua ideia da mão invisível).
Refutando os fisiocra- tas, dizia que todas as
atividades que produzem merca- dorias, causam valor;
os capitalistas e os proprietários fundiários se
apossaram dos meios de produção), acre- ditando que
assim, conteriam todo o valor social — e tal situação
continua até hoje. Neste ponto, Smith não sabia mais o
que dizer, ora colocando o valor no lucro e na renda,
ora no trabalho, representado pelo seu custo (salário),
ou pelo valor que produz (evidentemente, o lucro)
(Mac-Connel, J. W.: Basic Teachings of the Gre- at
Economists, Barnes and Noble).
Não é difícil perceber que Smith cometeu um
erro fundamental em suas hipóteses, ao deslocar o
valor do trabalho, em si, para o nível da produtividade,
em seu sentido de lucro (monetário). Este fato teve
como consequências principais: 1) colocar o ser
humano em função do capital (dinheiro); 2) desviar o
valor do tra- balho necessário, para o lucro, que visa
mais a quan- tidade; 3) incentivo a teomania, tanto do
capitalista, como do operário — como se a sociedade
dependesse basicamente deles. Em todo caso, estamos
sendo obri- gados a ver isso, porque: 1) a sociedade
vem se satu- rando com a quantidade desses artigos,
almejando um melhor nível de vida; 2) a interminável
luta de classes não tem outra saída, senão a de ver que
o verdadeiro valor está no trabalho (em si) e não em
sua produção de dinheiro; 3) a Revolução Industrial
foi brecada, por subordiná-la ao lucro e não a sua

17
David Ricard (1772-1823)
(Economista)
Ricard era filho de homem de negócios e
corretor da Bolsa de Valores de Londres; antes dos
trinta anos adquiriu considerável fortuna, mostrando
sua capacida- de para os empreendimentos
financeiros. Foi seguidor de Adam Smith,
corrigindo e aperfeiçoando os seus elementos
fundamentais; no seu livro Os Princípios de
Economia Política e da Tributação procura
distinguir o custo do trabalho (salário) do seu valor;
em seguida, aponta o seguinte problema: dado o
fato de que o va- lor da mercadoria e o resultado,
não apenas do trabalho direto utilizado, mas
também de toda atividade que lhe é incorporada,
nem sempre o lucro será proporcional ao volume do
capital imobilizado (Biaujeaud, H.: Essai Sur la
Theorie Ricardienne de la Valeur). Desde que o
valor do trabalho foi deslocado para o lucro, tanto
Smith, como Ricard não conseguiam formular uma
ideia acer- tada sobre ele (o trabalho); qualquer
tentativa de subor- dinar o maior ao menor, não
dará certo e enquanto não se colocar a atividade
sob o valor de sua realização, os economistas
girarão como um parafuso empenado,

David Ricard

17
mia, Jeremy Bentham inaugurava um novo campo que

Stuart Mill

por desprezarem sua base: o valor do trabalho não está


no lucro (econômico), porque o ser humano não é um
robô, mas ele próprio é um valor por si, podendo gerar
também lucros, em instância secundaria.
David Ricard acreditava que a economia se en-
caminhava para um “estado estacionário”, quando
cessariam a acumulação de capital e o crescimento da
população, conforme a preocupação de Malthus
(1766- 1834), amigo pessoal; seu critério era sempre o
esta- tístico, fenômeno geral em toda a humanidade, o
que lhe tem causado gravíssimos prejuízos —
sabemos que, quanto maior a quantidade, menor a
qualidade — é o que acontece atualmente, com a
escassez de gênios e talentos em todos os setores da
sociedade.

Bentham (1748-1832)
Enquanto a Alemanha começava a despontar no
universo da filosofia com Leibniz e Kant, na Inglater-
ra, os novos pensadores estavam dando um passo além
e realizando aplicações sobre suas orientações filosó-
ficas; além de Adam Smith, que se dedicou a econo-

17
denominou utilitarista; atualmente, sabemos a maneira inseparável. Praticamente, ele formulou uma
enorme força que tal noção trouxe para alguns filosofia psicológica; dizia que a indução é sempre o
países, como os Estados Unidos que a aceitaram — método para descobrir a verdade — por exemplo:
basta lembrar de William James. quan- do dizemos todos os homens são mortais;
Bentham iniciou a escola utilitarista inglesa Sócrates é
com o livro Um Fragmento Sobre o Governo e em
1787 escre- veu Defesa da Usura, revelando-se
discípulo de Adam Smith, no seu liberalismo; dizia
que cada homem é o melhor juiz de seus lucros,
devendo haver total liber- dade para aplicar como
quiser seu dinheiro a juros. Ti- nha grande crença
na bondade natural do ser humano, pensando que,
deixando-o a vontade, espontaneamente trilharia o
caminho do bem. Baseou seu ponto de vista no
direito natural, afirmando que o ser humano deve
ser obediente ao Estado, na medida em que tal
atitude contribui para a felicidade geral; criticava os
revolu- cionários franceses, porque ales eram
demasiadamente individualistas e egoístas; pessoa
boa é aquela que har- moniza seu interesse
individual com o coletivo, deven- do-se conduzir
em função da felicidade de todos. Com tal
generosidade de pensamento, logo formou-se um
grupo de indivíduos de valor ao seu redor, como
James Mill (1773-1836) e seu filho John Stuart Mill
(Mack, M.P.: Jeremy Bentham: An Odissey of
Ideas).

Stuart Mill (1806-1873)


John Stuart Mill nasceu em Londres, sendo
filho do filósofo utilitarista James Mill; tinha
intenção de re- formar o mundo, tendo recebido
influência de Jeremy Bentham, de Wordsworth,
Comte, Saint-Simon e John Sterling —
contrariamente ao que pensava Bentham, era de
opinião que não deveria deixar de lado as ideias
consideradas obsoletas e antiquadas; excursionou
pelo campo da economia, política, psicologia,
lógica e ciên- cias morais.
Na psicologia, Stuart Mill estabelece quatro leis:
1) lei da semelhança: dois fenômenos semelhantes
ten- dem a ser pensados juntos; 2) lei da
simultaneidade: fenômenos experimentados em
contiguidade íntima tendem a ser pensados
conjuntamente; 3) lei da repeti- ção: associações
produzidas por contiguidade tornam- se mais certas
e rápidas; 4) lei da associação insepará- vel:
fenômenos, que acontecem juntos, concebem-se de

17
Hegel Ludwig Feuerbach

homem; logo, Sócrates é mortal, a premissa maior exi- a máscara de grande genialidade. Em todo caso, só o
giu um número muito grande de experiências (todos os campo da psicopatologia trilógica tem condições de
homens são mortais) (Day, J.P.: John Stuart Mill in A perceber melhor tal problema.
Critical History of Western Philosophy). No período moderno da civilização, Hegel foi o
De modo geral, o pensamento inglês continuava filósofo mais difundido; não a difícil saber o porquê:
no seu caminho empirista, derivando-se às vezes para todo indivíduo genial, que incentiva a teomania é sau-
o setor econômico, outras vezes para o psicológico, ou dado com grande entusiasmo, enquanto que os
o político — enquanto que, na Alemanha, realistas são vistos com mais parcimônia. Assim
fermentavam as ideias absolutistas e megalômanas de sendo, o pen- sador alemão conseguiu dois tipos de
um tipo de existência ideal, mas não real, seguidores: os primeiros, interessados pelo aspecto
influenciadas por Kant e Hegel. espiritual e, os se- gundos, voltado para o patológico;
podemos citar como pertencente ao primeiro grupo:
INFLUÊNCIA DO Karl Ludwig Michelet, David Friedrich Strauss, Max
Stirner e Arnold Ruge; representantes do segundo
PENSAMENTO GERMÂNICO grupo sac) Ludwig Feuerba- ch, Engels e Marx.
A principal fonte de inspiração foi o seu livro Fe-
Mostraremos agora as consequências imediatas
nomenologia do Espírito, onde coloca a consciência
dos primeiros e grandes filósofos germânicos
na dependência do social, dizendo que as instituições
(Leibniz, Kant, Fichte, Schelling, Schleiermacher e
que o ser humano funda, acabam desenvolvendo leis
Hegel) que, afinal de contas, dominaram grande parte
pró- prias, subordinando-nos a elas — como se não
do pensamen- to atual; seja no campo político,
fosse o homem que as fizesse — tal ideia inteiramente
econômico e até mes- mo no artístico e teológico está
projeti- va (paranóica), vem causando as inúmeras
havendo uma invasão maléfica do que nós chamamos
dissenções sociais, em grande quantidade de nações,
de dialética hegeliana (ou platônica), da grande
mais sujeitas a sua psicopatologia: as latinas, do
teomania e megalomania que esses pensadores
oriente médio, sul da Ásia e da África.
difundiram pela humanidade, sob

18
Samtliche Werke). O leitor pode verificar, aqui, o rumo
que tomou

Karl Marx

Ludwig Feuerbach (1804-1872)


De tal maneira Hegel confundiu as mentes, que
Karl Ludwig Michelet o considerou irrefutável, com-
parando sua dialética à Trindade; seria o mesmo que
dizer: Deus e o não-Deus formam o verdadeiro Deus.
A partir desse pensamento, qualquer absurdo poderia
ser formulado e, seus seguidores, como David Friedri-
ch Strauss, Bruno Bauer, Max Stirner, Arnold Ruge e,
principalmente, Ludwig Feuerbach que, em seu livro
A Essência do Cristianismo procurou destruir o pensa-
mento teológico de Hegel, afirmando que o espírito e
o conjunto dos fenômenos históricos, o universo e a
na- tureza. Além disso, ele aceitou o dialetismo
hegeliano dizendo que a verdadeira filosofia não é
reconhecer o infinito como finito, mas reconhecer o
finito como não- finito, ou infinito, ou melhor, colocar
não o finito no in- finito, mas o infinito no finito —
em um claro desejo de diminuir o poder do Criador,
por causa de sua inveja.
Todo o esforço de Feuerbach era tentar se reali-
zar como se fosse um deus, “destronando” o Criador e
“divinizando” o homem; chegou mesmo a dizer que o
ser humano é o que ele come (Feuerbach, L.:

18
a humanidade com Hegel e seus discípulos — países “comunistas” são os que mais exploram seus
podemos dizer, uma paranóia coletiva, que tentou operários — mesmo que deem a desculpa de que não
substituir Deus por alguns indivíduos doentes, que chegaram ainda ao seu ideal marxista. Assim, quando
acreditaram em um papel messiânico, lançando seus prepararam o famoso Mani-
países no mais perigo- so caminho que existe:
delírio de grandeza.
Uma filosofia que alimente a psicopatologia
do ser humano é melhor aceita, de início, porque
vem de en- contro ao nosso processo de inversão;
porém, com o tempo, manifesta-se tão perigosa, que
é necessário o seu desmascaramento, para que a
humanidade escape desse caminho de destruição.

Karl Marx (1818-1883)


De origem judaica, nasceu na Alemanha, aban-
donando o judaísmo em 1824; jamais conseguiu tra-
balhar, motivo pelo qual, três filhos morreram de
inanição; recebeu influência de Hegel, através de
Feuerbach que escreveu A Essência do Cristianismo
(1841), onde colocou o espírito como
consequência de fenômenos históricos; escreveu A
Miséria da Filo- sofia (1846-1847), procurando
resolver questões mais práticas, como a econômica.
Leu um artigo de Friedri- ch Engels, Esboço de
Uma Crítica da Economia Polí- tica, que causou
uma reviravolta em seu pensamento; não é
necessário dizer que este trabalho constitui uma
crítica aos economistas — Engels diz que, após
Adam Smith, os cultores dessa ciência entraram em
uma es- calada de cinismo incrível, despojando o
homem de suas qualidades humanas, a ponto de
Ricard chegar a privilegiar o produto, em prejuízo
do produtor (Cornu, A.: Karl Marx et Friedrich
Engels).
Marx partiu da ideia de que a sociedade civil
era o local de alienação do ser humano, inspirando-
se na grande teomania de Feuerbach, no seu desejo
de divi- nizar o homem; enxergava o operário
lesado por todos aqueles que trabalhavam com o
produto de sua ativida- de: o empresário, os
comerciantes e todo o grupo go- vernante — na
verdade, Marx via um grande prejuízo no trabalho,
em si; motivo pelo qual jamais trabalhou; este
detalhe é importante para os cientistas, porque os
doentes mais graves não conseguem ter uma
atividade, seja ela qual for; podemos até afirmar
que ele (Marx) tomou um rumo contrário aos
interesses dos trabalha- dores, motivo pelo qual os

18
festo Comunista, Marx e Engels estavam convocando garante ao capitalista explorar trabalho alheio.
os trabalhadores do mundo inteiro para lutarem contra É necessário esclarecer os erros fundamentais dos
o trabalho — neste sentido, somos obrigados a ver no economistas ingleses, para entender o que aconteceu
célebre economista-pensador uma acentuadíssima posteriormente com Marx e Engels; Adam Smith co-
dose de inveja (Schmidt, A.: Der Begriff der Natur in locou a riqueza, em si, na quantidade de lucro que o
der Lehre von Marx). trabalho poderia produzir e Ricard seguiu pelo mesmo
O Capital caminho, colocando o ser humano subordinado ao ca-
pital, como se fosse apenas uma peça a mais no setor
O principal livro de Marx é O Capital, onde faz da produtividade. Karl Marx viu imediatamente o
uma crítica sobre a Economia Política; primeiramen- absurdo de tal proposição afirmando que, se invertesse
te, diz que no modo de produção capitalista, aparece tal pro- cesso, colocando o operário como dono de seu
enorme acúmulo de mercadorias. E o que é mercado- lucro, evidentemente ele seria dono de toda riqueza
ria? Neste ponto, adota a solução clássica: é o tempo social — mas tal questão não é tão simples assim. A
de trabalho, necessário para a sua produção; a merca- riqueza ma- terial elaborada depende inteiramente da
doria tem o valor de troca; desta maneira, ela passa a riqueza psico- lógica, por exemplo: dos ideais que se
engendrar dinheiro. Vê-se de imediato sua valorização tem em mente, da aplicação que se pretende fazer com
ao dinheiro e não ao trabalho que não somente produz os elementos manufaturados — não sendo necessário
capital, mas principalmente os elementos de grande falar de todos os outros setores mais afins, como o das
va- lor para a existência humana, como os aparelhos vendas, de competição e de toda a organização.
so- fisticados e as descobertas para melhorar e Sob o ponto de vista da filosofia capitalista, Marx
aperfeiçoar a vida. Como já Aristóteles falava, quanto tem toda razão em querer colocar o lucro na mão do
maior é a quantidade menor a qualidade — e tal operário — sob o ponto de vista trilógico, o capital, ou
orientação dos economistas é de grande prejuízo para o lucro, não é a finalidade do trabalho, que deve ser
a humanidade. Não é difícil notar que as nações visto em função da realização humana: social, econô-
marxistas produzem pouco, tem dificuldade para mica também, mas principalmente espiritual,
desenvolver técnicas so- fisticadas e formaram um psicológi- ca. Parece-me que foi necessário o ser
enorme grupo burocrático, ou melhor, os que são humano se em- panturrar com uma sociedade de
contra o trabalho, vendo-o como se fosse uma consumo, para poder avaliar melhor onde estaria sua
exploração contra a própria pessoa; den- tro deste verdadeira riqueza. E fato notório que todo capitalista
espírito, há necessidade de criar “escravos”, como na (que se convencionou chamar de homem rico) vive e
Grécia Antiga. No marxismo (bem como em Smith e morre na solidão emo- cional e até social; desta
Ricard) chega-se à conclusão que se deveria ter capital maneira, é necessário começar a viver os verdadeiros
sem o trabalho, ou melhor, uma nação desen- volvida, valores humanos, que derivam diretamente da
sem haver necessidade de trabalhar — como capacidade interna emocional e intelec- tual no campo
consequência, vemos um enorme grupo de tecnocratas da realização, seja científica, artística, espiritual e até
vivendo a esperança de obrigar todos os povos do mesmo econômica — em um outro sen- tido, que
mun- do a trabalhar para eles, formando uma ditadura abrange o ser humano integral.
contra o operariado (todo aquele que trabalha). Marx queria a existência do capital sem o capita-
Marx procurou compreender a natureza do lismo, do trabalho sem o trabalhador, vivendo em um
dinhei- ro, identificando-o com a mercadoria, porque mundo de fantasia, como ele mesmo viveu; o quadro
valorizava a sua quantidade (no tempo e no número); que apresentou é semelhante ao do doente mais grave
assim sendo, como explicar que o dinheiro no banco (esquizofrênico), pois vivia brincando com os filhos e
possa receber juros? Então, recorre mais uma vez ao assumindo conduta totalmente teórica: passava o dia
trabalhador, que produz tal valor (juros) para os outros todo lendo na Biblioteca de Londres, em um intelectu-
e não para si. Essa ideia, dentro do campo da alismo patológico; desvalorizou o trabalho (não o
psicopatologia, pode ser deno- minada de paranóica, capi- talista) e incentivou a paranóia de todos os
porque coloca sempre no outro a causa de todo o indivíduos megalômanos, que pensam ser possível
próprio sofrimento e dificuldade — daí, a sua viver em um Estado sem obrigação e deveres.
definição do capital, como sendo a propriedade que
18
dade, “conhecendo-a”, sem saber explicá-la. É
possível colocar dentro do intelecto o que é maior do
que ele?

Strauss (1808-1874)
David Friedrich Strauss foi autor de um famoso
livro, Vida de Jesus (1835), no qual procura mostrar a
identidade entre o conceito filosófico e o religioso:
tudo o que não fosse de acordo com a história e a
filosofia, seria um mito, ou lenda. No seu último livro,
A Antiga e a Nova Religião, (1872) afirma que nosso
interesse esta voltado para a veneração do universo,
como se ele fosse divino. Está clara aqui a teomania
do pensador, fenômeno que vem acontecendo com a
maioria dos seguidores de Kant e Hegel, levando a
sociedade mo- derna aos enormes conflitos da
David Friedrich Strauss atualidade; depois que o idealismo alemão concedeu
ao intelecto poderes ex- cepcionais (o objeto
conhecido estaria na dependência do individuo, do
Herbart (1776-1841) sujeito cognoscente), os povos mais influenciados
usaram de tal pretexto, para dar vazão a sua
Nunca na história do pensamento moderno um megalomania.
filósofo teve tanta influência quanto Hegel; pelos co-
mentários de quase todos os historiadores (Sciacca, B.
Russel, W. Durant, Padovani), é opinião unânime que Schopenhauer (1788-1860)
se tratava de um pensador acentuadamente desequili-
brado; exatamente por este motivo, é que exerceu tan- Se a filosofia empirista dos ingleses foi em parte
to fascínio entre os homens: quando uma pessoa tem substituída pela germânica, é porque não era suficien-
a coragem de manifestar toda a sua megalomania, dá te para responder a todas as questões que assaltavam a
impressão de audácia e progresso, porque a humanida- mente humana; assim sendo, havia necessidade de en-
de pensa de modo invertido, colocando no narcisismo, contrar outras explicações e os filósofos alemães
teomania e egocentrismo grande vantagem para viver. (Kant, Fichte, Hegel) foram escolhidos, porque
Johann Friedrich Herbart, discípulo de Fichte, constituíam um meio termo entre os ingleses e os
afirma que a filosofia deve partir da experiência, mas latinos. Em me- ados do século XIX apareceu um
deve superá-la, porque é contraditória (a experiência); novo pensador, que exerceu acentuada influência
de acordo com Kant, desconhecemos o que seja a sobre a mente do homem, levando-o a pensar que
coisa, em si — de maneira que apesar de haver finalmente poderia alcançar o pleno domínio sobre a
necessidade da experiência, não podemos permanecer civilização.
nela (Kinkel W.: Herbart, Sein Leben and Seine Arthur Schopenhauer merece uma abordagem es-
Philosophie). De ime- diato, pode-se notar a inversão pecial porque foi o maior inspirador de Sigmund
que o filósofo alemão cometeu, colocando a Freud, que é o grande responsável por um aspecto do
contradição na realidade, e não em nossa atitude; a pensa- mento moderno: a ideia de liberdade baseada
coisa em si, isto é, a sua essência, não pode ser na não repressão da libido. Desde cedo, manifestou
conhecida por nós, intelectualmente, mas conseguimos acentuada depressão, elaborando concepções
percebê-Ia, conscientizá-la, o que é um processo mais pessimistas sobre a condição humana; orientado pelo
afetivo, emocional; a inteligência perma- nece mais pai para a profis- são de comerciante, em 1814 rompeu
nos aspectos externos, enquanto que o senti- mento definitivamente com a família, escrevendo O Mundo
(amor) entra em sintonia com a verdadeira reali- como Vontade e Representação; no ano de 1833 fixou-
18
se em Frankfurt (Meno), onde permaneceu até sua
morte; vivia isolado, na companhia de cães.

18
de infelicidade: viver e sofrer. Porém, existiriam alguns
meios para a supressão do sofrimento: a) pela contem-

Schopenhauer

Inspirou-se em Kant, quando distinguiu a coisa-


em-si e o que nos aparece, motivo pelo qual não pode-
ríamos conhecer a essência do que existe, como havia
desejado a metafísica clássica; Schopenhauer era de
opinião que a coisa-em-si, a raiz metafísica de toda a
realidade seria a vontade; ao contrário de Hegel (o real
a racional), afirma que o real é, em si mesmo, cego e
irracional — a consciência seria a mera superfície da
mente, a semelhança da terra, da qual conhecemos
ape- nas a crosta, o inconsciente, o restante. Freud
chegou a dizer que as ideias desse pensador eram
exatamente as suas (Zimmern, H.: Arthur
Schopenhauer: His Life and Philosophy). O leitor pode
notar, de imediato, a inver- são do pensador ao colocar
o fundamento de tudo o que existe no desconhecido,
chamando-o de inconsciente
— sendo coerente com a ideia kantiana de não se
poder conhecer a coisa-em-si. A Trilogia Analítica
explica que o intelecto realmente não pode chegar à
essência, mas sim o sentimento, que se manifesta pela
consciência e intuição; Kant conseguiu desmoralizar o
racionalismo, mas não pôs em seu lugar uma melhor
solução.
Schopenhauer coloca no centro da vida a dor, su-
gerindo que o mal é inerente a existência humana e a
felicidade uma interrupção temporária desse processo

18
plação artística, b) através da conduta ética que, a seria o da subordinação da imagina- ção à observação.
seu ver, é a contemplação da verdade. O pensador Pode-se ver de imediato a teomania de Comte, ao
judeu- alemão pensava de maneira invertida, sendo pretender subordinar Deus e a natureza ao ser
de opinião que se devesse agir simpaticamente, de humano. O segundo tema é a classificação das
acordo com a máxima cristã: “ama a teu próximo
como a ti mesmo”; como colocou na natureza a
causa de todos os proble- mas, criou a ideia de que
seria necessária a renúncia quietista do mundo, a
mortificação dos instintos, auto- anulação da
vontade e a fuga para o nada — aproxi- mando-se
das concepções cristãs medievais e principal- mente
da filosofia hindu (Gardiner, P.: Schopenhauer).
Não é necessário esclarecer que toda concepção
mo- derna sobre a psicopatologia (com exceção da
Trilogia Analítica) tomou suas bases aí, difundindo
pelo mundo uma noção inteiramente pessimista —
substituindo a neurose original por outra mais
perigosa ainda.

Comte (1798-1857)
Toda civilização que entre por uma vereda
muito errônea, em sua filosofia de vida, vai
chegando a um ponto perigoso de explosão como
no caso do pensa- mento alemão; entre os latinos,
notamos uma atitude de inação, um comportamento
reacionário a toda mudan- ça — uma tentativa de
colocar na natureza tudo aquilo que caberia ao ser
humano realizar; assim foi Auguste Comte, em sua
conduta racionalista, totalmente aliena- da. Mostrou
precocemente um caráter muito doentio, rejeitando
os familiares e ainda culpando-os pelos seus
problemas — até que, aos 28 anos de idade,
manifestou claramente delírios persecutórios; como
toda pessoa enferma mental, lia muito, procurando
a via intelectual; teve contato com o físico Carnot, o
matemático Lagran- ge, o astrônomo Laplace,
Destutt de Tracy, Cabanis, Volney; estudou Adam
Smith, Jean-Baptiste Say, David Hume, William
Robertson e principalmente Condorcet, que via o
desenvolvimento da humanidade em função das
luzes da razão.
O sistema comteano fundamenta-se sobre três
te- mas: uma filosofia da história, com a célebre lei
dos três estados, a teológica, a metafísica e a
positiva; o primeiro seria o predomínio da
imaginação (como se o Criador fosse uma fantasia);
o segundo estado, metafí- sico, procura explicar a
natureza íntima das coisas e o terceiro, positivo,

18
do dialetismo hegeliano (inspirado em Kant); interes-

Friedrich Wilhelm Nietzsche

ciências segundo a filosofia positivista e, finalmente, a


criação de uma sociologia (Lacroix, J.: La Sociologie
d’Auguste Comte). Não é difícil notar que Comte
vivia inteiramente invertido, por sofrer uma profunda
inveja; daí, o seu processo doentio; tentou colocar o
Criador sob nosso domínio, como se ele mesmo fosse
o verdadeiro deus — por este motivo, tentou o suicídio,
atirando-se no rio Sena e afastou todos os amigos,
morrendo sozinho; sua última façanha foi a de querer
organizar uma nova religião, mas de maneira
invertida: em lugar de adorar Deus, adorar o ser
humano.
Neste momento, é importante meditar sob um
fato bastante significativo: a região do mundo que
melhor aceitou as ideias de Augusto Comte foi a
América do Sul e principalmente o Brasil. Parece que,
desde lá, o brasileiro e o sulamericano permaneceram
diante do seu altar megalômano, no mais profundo
narcisismo e adorando a si mesmo.

Nietzsche (1844-1900)
Friedrich Wilhelm Nietzsche representa o apogeu

18
sou-se pela filosofia após a leitura do livro de desas- tres no século XX: além das duas guerras
Scho- penhauer, O Mundo como Vontade e mundiais, o marxismo na União Soviética e o
Representação, tornando-se o apogeu da freudismo em todo o mundo ocidental; se de um lado
psicopatologia moderna, que começou com Hegel trouxe-nos Einstein (judeu-alemão) e Karl Jaspers de
— lendo-se tal filósofo, tem-se a impressão de que outro, difundiu a pró- pria patologia, sob forma de
é o próprio demônio manifestando-se sobre a face erudição.
da terra, em sua tentativa de destruir a hu-
manidade. Aliás, Nietzsche fora extremamente
doente (dores de cabeça, perturbações visuais e na
fonação), o que o levou a suspender sua carreira
universitária; ex- tremamente invejoso, atacou
Wagner pelo seu sucesso; teomânico, desejava que
o homem fosse o criador dos valores, em lugar de
atribuí-los a Deus. Doze anos an- tes de sua morte,
entrou por uma fase delirante que, em minha
opinião, sofreu a vida toda — sua filosofia se as-
semelha ao pensamento de um esquizofrênico
paranói- co, baseado em um notável conhecimento
de filologia. Nietzsche considera a doença como
um ponto de vista da saúde e vice-versa; não
considera nem a saúde nem a doença como
entidades; vê a fisiologia idêntica a patologia, o
bem o mal, o verdadeiro e o falso, a saúde e a
doença, como se fossem jogos superficiais; nega o
fato patológico, dizendo que a diferença entre a
doença e a saúde é apenas uma questão de grau.
Em sua ideia, a loucura não passa de uma máscara
para esconder um saber fatal e demasiadamente
certo; considera a von- tade de poder, a
sensualidade e o crescimento do eu, como
manifestações diabólicas; aniquilar as paixões
seria uma triste loucura, porque é ela (a loucura)
que torna mais plano o caminho para as nova
ideias, pois onde existe loucura há um grão de
gênio e de sabedoria, alguma coisa de divino; pela
loucura os maiores feitos foram espalhados pela
Grécia. A saúde é algo pessoal e o que pode ser útil
a um homem significa doença, para
outro (Jaspers, K.: Nietzsche).
Nietzsche constitui um verdadeiro tratado de
psi- copatologia, pois nele se encontram todos os
traços fundamentais que a Trilogia Analítica
enxerga no doen- te: teomania e megalomania,
acentuada fantasia, prin- cipalmente a inversão e o
processo dialético platônico (ou hegeliano); o
filósofo germânico movia-se pela in- veja, motivo
pelo qual rejeitou os valores básicos da humanidade
(cristianismo), sendo extremamente doen- te
fisicamente. Parece que a Alemanha estava preparada
psicopatologicamente para desencadear grandes
18
D - Período Contemporâneo
Este último período da história da humanidade pretende resolver todas as dificuldades através das pa-
foi organizado praticamente, pelo que podemos lavras – como se estas últimas pudessem formar o ra-
chamar de mentalidade germânica e baseado no ciocínio certo – em uma total atitude de inversão ao
pensador mais in- crível que já houve: Immanuel querer colocar o pensamento na dependência de sua
Kant.
Desde o século VI, a civilização ocidental vinha
se dividindo entre a filosofia da Europa Meridional,
predo- minantemente intelectualista, teórica e a
saxônica, cujo centro era a Inglaterra (Oxford). A
partir do século XIX todo este centro deslocou-se para
um país localizado na zona central do continente,
habitado por um povo que parecia adormecido: o
alemão; e, a partir desse tempo, essa terceira força
passou a determinar para que lado o fiel da balança
deveria se inclinar. É por este motivo que acredito ser
de fundamental importância compre- ender tal
mentalidade (germânica), a fim de saber o que se
passa no mundo.
De um lado, existe uma incrível profundidade
na mente alemã, a ponto de Leibniz ter realizado uma
junção entre o empirismo inglês (Francis Bacon, John
Locke, Berkeley) e o racionalismo clássico (Descartes,
Aquino e Aristóteles) dentro de um novo conceito: o
intelecto por si mesmo, como fonte também do conhe-
cimento; a famosa procura de um elemento natural à
mente humana, que Anselmo colocou a priori,
Boaven- tura e Scot no intuicionismo, o pensador
germânico deu o nome de mônadas — estava
resolvido um problema de séculos que Kant
desenvolveu, mostrando que a matemática procede
inteiramente do espírito. De outro lado, houve um
novo crescimento da psicopatologia através de Hegel
com o seu dialetismo (platônico); tal orientação foi
seguida por Feuerbach, Marx, Strauss e de modo geral
pela Escola de Frankfurt.
Gostaria de esclarecer ao leitor que o ser humano
atual está sendo orientado por três fontes principais de
pensamento: 1) o Estruturalismo, 2) Grupo de Oxford
e
3) a Escola de Frankfurt com primazia. A primeira ins-
pirada em Saussure, Jakobson, Hjelmslev e Chomsky

19
manifestação (a linguagem). Na França até surgiu
uma pessoa com a ideia de terapizar a mente através
de tal processo: Lacan.
O Grupo de Oxford (Ryle, Austin, Quine e
Stra- wson) foram influenciados pelo
Estruturalismo, dese- jando que a filosofia se
tornasse uma questão de lógica e linguagem; não é
sem motivo que o glorioso Império Britânico decaiu
para sua situação secundária hodierna- mente.
Porém, a Escola de Frankfurt, por força de um
pensamento mais vigoroso, tornou-se a mais
perigosa influência moderna; tanto Benjamim,
como Adorno consideravam a técnica como
prejudicial, Horkheimer e Habermas viam o ser
humano vítima de condições sociais, como o
capitalismo e o tecnicismo; mas, o mais famoso de
todos, Marcuse, apregoava a felicidade pela
libertação sexual, considerando a tecnologia
moderna como o resultado do “instinto de morte” e
a ordem so- cial oriunda da alienação.
Observem bem que o próprio Grupo de Oxford
se- guia a orientação estruturalista dos linguistas
alemães, como também o racionalismo cartesiano –
em uma cla- ra atitude de oposição a todos os seus
séculos passados de apogeu e glória do empirismo.
Não podemos nos esquecer que as ideias origi-
nais de Adam Smith, que nos deram os
fundamentos da economia moderna (e não
propriamente do capi- talismo) foram pouco a
pouco deturpadas, seja por Ricard, pelos marxistas
e principalmente por John Maynard Keynes, que
nos ofereceu um neocapitalis- mo – que não é outra
coisa senão a técnica da avareza, que está levando o
mundo à estagnação; praticamente, é o pensamento
paranóico germânico opondo-se ao velho otimismo
anglossaxônico.
A finalidade principal deste livro, O Reino do
Ho- mem, é fornecer a todas as pessoas bem
intencionadas os conhecimentos necessários para
enfrentar os grupos mal intencionados, que sempre
quiseram transformar o Reino de Deus em um
mundo de obscuridade e ódio – e o único caminho
para chegar lá é ter consciência de todos os erros
que vêm prejudicando a humanidade.

19
19
Capítulo
25

Henri Bergson

PARA COMPREENDER NOSSA SITUAÇÃO ATUAL, TEMOS


DE ANALISAR OS PENSADORES, SOCIÓLOGOS E
CIENTISTAS DO FINAL DO SÉCULO XIX: PRIMEIRAMENTE
OS GERMÂNICOS E OS NORTE-AMERICANOS (QUE
ENTRA- RAM EM CENA), DEPOIS OS INGLESES E
FINALMENTE OS DEMAIS (FRANCESES, RUSSOS,
DINAMARQUESES)
O que se evidencia imediatamente no século XX
é a ausência de originalidade, tanto no pensamento
como na ciência, a ponto de Wittgenstein ter dito que a
maneira de pensar é o saxônico (Scot, Ockam, Locke,
Fiume), acrescido atualmente pelos autores alemães,
ou da língua alemã: Hegel, Freud e mesmo Marx,
filosofia atual era diferente, nem devendo mais ter tal Husserl; os latinos só poderão ser lembrados através
nome (Pitcher, G.: The Philosophy of Wittgenstein). da grande figura de Bergson.
De um lado, houve um esgotamento tanto de pensado-
res como de artistas (pintores, músicos e arquitetos);
de outro, o ser humano passou para uma outra classe FRANÇA
de interesses, que é a técnica moderna e o desenvolvi-
mento econômico e social — a psicologia, a psicaná-
lise e até mesmo a teologia foram colocadas a serviço Durkheim (1858-1917)
dos interesses sociais; estamos em um período predo-
minantemente social — quando tudo o que acontece é
(sociólogo)
descontado no âmbito da sociedade: não são apenas os
Provavelmente, o maior desejo de Emile
economistas (Smith, Marx), mas os sociólogos (prin-
Durkheim era o de estabelecer a sociologia como uma
cipalmente Durkheim), filósofos e cientistas (Russel,
disciplina rigorosamente científica; trabalhou a vida toda
Darwin e Freud) atribuindo a fatores externos a causa
para isso, tendo se inspirado em Spencer, Espinas e
de todas as desavenças humanas.
principalmen- te em Wilhelm Wundt: como já é
Toda a base da visão social, filosófica e científica
conhecido, Spencer tinha preferência pelos modelos
atual foi tomada dos grandes gênios oriundos do sécu-
biológicos; Espinas, pelo que ele chamou de
lo passado, havendo mesmo uma discrepância muito
consciência coletiva e, Wundt, pela psicologia
grande, não só entre artistas e compositores (Richard
derivada da antropologia; o sociólogo usou ainda a lei
Strauss, Verdi, Rossini, Schubert, Goya, etc., etc.),
dos três estados de Auguste Comte.
mas também nos outros campos; deste modo, temos
Durkheim partiu do fato social, como se fosse a
de convir que a humanidade vem sofrendo um grave
base de todo acontecimento; portanto, de algo exterior
processo de mediocrização, por força de sua própria
ao ser humano — aliás, a consciência coletiva seria
filosofia de vida (Weltanschauung) errônea; se não
derivada das representações coletivas da sociedade e
houver uma séria tomada de consciência desse moti-
o método para conhecê-la, os sistemas jurídicos e as
vo — mesmo sem uma guerra mundial, o ser humano
obras de arte; o sociólogo francês chegou ao ponto de
entrará em total decadência.
afirmar que o suicídio é um fato social e não psicoló-
Podemos afirmar que o século XIX assistiu à
gico (Duvignaud, J.: Durkheim: Sa Vie, son Oeuvre).
substituição do pensamento anglossaxônico pelo ger-
Vê-se, de imediato, a terrível influência do racionalis-
mânico; não é necessário dizer que os latinos ficaram
mo latino nas primeiras ideias sociológicas, primeira-
no medievalismo, com pouquíssima esperança que se
mente em Comte, depois em Durkheim; pelas desco-
recuperem — com exceção da França, todas as nações
bertas da Trilogia Analítica, seria uma total projeção
que usam a língua originária do latim permaneceram
de todos os problemas psíquicos na vida social — e a
em atraso científico, industrial e artístico incrível. De
tal ponto foi esse exagero que ele imaginou que até a
outro lado, a Inglaterra veio perdendo o seu vigor, por-
moral poderia ser substituída pela sociologia; no se-
que sua concepção de vida não foi suficiente para
tor da educação, desenvolveu o conceito que preparar
viver a atualidade. De maneira que estamos na
um indivíduo é levá-lo a ser membro de um, ou vá-
situação de ter de entender o que podemos denominar
rios grupos sociais: de forma mecânica, nas socieda-
de germanismo (filosófico), para compreender a
des mais primitivas e, de maneira orgânica, nas mais
situação mundial. No final do século XIX, mais uma
complexas; pelo comportamento, neste último tipo de
nação entrou no páreo da cultura, produzindo novas
sociedade, Durkheim formulou seu conceito de anor-
concepções e um tipo de existência totalmente
malidade (anomia), vendo os indivíduos ausentes ou
original: os Estados Unidos da América; por esse
desintegrados (socialmente), anormais — mas sempre
motivo tomaram as rédeas da civi- lização
por culpa do meio ambiente que agora se complexou.
contemporânea — o fundamento básico de sua
Até mesmo no aspecto religioso, era de opinião que a
18
sociedade moderna ocidental, racionalista e individu- experimental na direção da filosofia;
alista precisaria de outras formas de crenças, que não
poderiam mais ser fornecidas pela religião tradicional,
como se fosse só um símbolo para o povo (Alpert, H.:
Emile Durkheim and his Sociology).
Como vemos, a França e a latinidade de modo
ge- ral, colocou no social a causa de todas as suas
desa- venças; algumas ciências mais profundas, como
a pró- pria psicanálise, jamais encontraram aceitação
nesses países, não porque eles tivessem mais
equilíbrio, mas justamente o contrário; sem exceção,
os povos da lín- gua latina não se voltam para as suas
dificuldades para poder resolvê-las, colocando a culpa
nas outras nações mais adiantadas que somente são
assim porque têm mais consciência, cuidando de seus
problemas. Para que a latinidade encontre o seu
caminho, é necessário que transfira o fato social para o
psicológico, como fon- te de todas as perturbações
psicossociais; sem dúvida alguma, existe também
dentro das sociedades nórdicas a ideia de culpar a
sociedade por todas as dificuldades humanas; porém,
não é algo instituído dentro de sua filosofia de vida
característica.

Bergson (1859-1941)
Henri-Louis Bergson pode ser considerado como
um dos grandes pensadores que a humanidade teve,
de- monstrando que é possível superar o ambiente
adverso como foi a concepção de vida latina desde a
Idade Mé- dia; sozinho demonstrou todo o erro do
cientificismo positivista que predominava nos meios
universitários da época, principalmente da França.
Bergson rompeu o caminho estéril sobre o conhe-
cimento científico e filosófico, que exigia a existên-
cia de elementos empíricos, diretamente observáveis
e capazes de mensuração; até mesmo a psicologia foi
empurrada para esse processo: Pierre Paul Broca, fi-
siologista descobriu o centro da linguagem no cérebro;
Gustav Theodor Fechner, psicólogo alemão, procura-
va a quantificação dos fenômenos psicológicos; Ernst
Heirich Weber formulou a lei Weber-Fechner:
qualquer sensação é diretamente proporcional ao
logaritmo de seu estímulo; William James organizou
um laboratório de psicologia experimental (imitando
Wundt da Ale- manha), baseando-se nos
conhecimentos de fisiologia, evolução e arqueologia
— se bem que, ao se tornar pro- fessor de psicologia
na Universidade de Harvard, orien- tou seu empirismo
18
transcendia o intelecto que, afinal de contas, consti- tui
um empecilho para a própria compreensão humana
— quando usado isoladamente, dizemos nós.

Émile Durkheim

neste sentido o filósofo norte-americano entendia-se


muito bem com o seu colega francês.
Bergson dizia em seu livro Os Dados
imediatos da Consciência que, à medida que nos
desembaracemos de todas as construções externas,
os dados imediatos apa- recem, ou melhor, a pura
qualidade; em seguida, afir- ma que a grande
dificuldade, para atingir esse interior, está na
inteligência que espacializa o fluxo qualitativo: o
intelecto fixa a realidade, permanecendo no nível de
relações entre os objetos — mesmo que tal
fenômeno seja necessário para a sobrevivência do
homem e o de- senvolvimento da sociedade; no
entanto, ele impede de captar o essencial. Para
atingir o reino da duração pura, a intimidade com o
real, é necessário utilizar outra ma- neira de
abordagem: esta forma de contato (sem media- ção
entre sujeito e objeto) é a intuição — que apreende
o que é a vida, o seu dinamismo, duração e criação
(Ma- ritain, J.: La Philosophie Bergsonienne).
Estava prepa- rado o caminho para o nascimento da
Trilogia Analítica que trabalha com a consciência
(não no sentido ético, mas no de captação da
realidade) que, juntamente com a intuição, é ligada
à vida emocional, base e origem da existência; o
pensador francês percebeu que a metafísi- ca

18
Por ter vivido em plena fase de discussão sobre
a psicanálise, Bergson afirmou que existe uma dupla INGLATERRA
ação entre o consciente e o inconsciente; porém, fez
uma ressalva, dizendo que o verdadeiro problema não Todo povo que escolha o caminho da megaloma-
é o da conservação de lembranças, mas do nia entra em decadência, porque perde o sentido da re-
esquecimen- to daquilo que se conserva por inteiro — alidade; assim aconteceu com a Inglaterra a partir do
exatamente a descoberta da Trilogia Analítica, final do século XIX; os seus maiores exemplos são os
quando mostrou que a atitude de querer olvidar o que seus últimos cientistas e pensadores.
se sabe é a razão da patologia (inconscientização).
Finalmente, o g r a n d e pensador francês distingue o Charles Darwin (1809-1882)
Eu Profundo, do Eu Super- ficial, onde a maioria da
humanidade vive; a verdadeira liberdade seria a de se Darwin era neto do biólogo Erasmus Darwin,
aprofundar nesse Ego, rompendo as barreiras da moral cujo livro Zoonomia, or The Laws of Organic,
e da religião fechada, como é pró- prio dos misturava concepções teóricas com devaneios
reformadores, santos e místicos; para nós, o Eu imaginosos; parece que o mesmo fenômeno aconteceu
Profundo é o sentimento (amor), que realmente liberta com Charles. Com 22 anos, partiu para uma viagem de
o ser humano (Chevalier, J.: Bergson). Está claro aqui cinco anos, a con- selho de seu mestre Henslow,
a sua consideração de que a verdade já existe em constatando os seguintes fatos: 1) uma diversidade de
nosso íntimo, conforme demonstraram Sócrates e espécies animais, à medi- da que caminhava para o
Cristo. sul; 2) diversidade também

Bachelard (1884-1962)
Gaston Bachelard é o representante típico do ho-
mem atual que não quer se comprometer com coisa
alguma, acatando todas as contradições como se fosse
possível chegar assim a uma síntese; falou sobre tudo
o que existe, desde a matemática, a química e física, a
psi- canálise, a filosofia intuicionista de Bergson, até o
exis- tencialismo e o racionalismo, mas jamais
assumiu uma posição definida — na base, foi
predominantemente ra- cionalista, desejando a
liberdade da razão em relação a ela mesma e uma
razão experimental para organizar o real (Quillet, P.:
Bachelard). É evidente a manifestação de sua
teomania, ao pretender criar a realidade.
Bachelard fala do poder da imaginação em criar;
discute o erro que a psicanálise fez em negligenciar a
vontade; é de opinião que a realidade não era
suficiente, sendo necessário demonstrá-la (Ginestier,
P.: Pour Con- naïtre la Pensée de Bachelard). Sendo
um dos últimos pensadores franceses, pois faleceu em
1962, torna-se fácil verificar toda a confusão que a
humanidade esta- beleceu em sua maneira de pensar,
admitindo ou rejei- tando tudo, como se não houvesse
diferença — temos de verificar que tal fenômeno é
mais típico dentro da la- tinidade. Apesar de tudo, ele
viu o erro básico de Freud, ao colocar todos os
problemas em “instintos”.
18
Gaston Bachelard

19
do endemismo entre as ilhas Galápagos; 3) parentesco tigo otimismo inglês, vendo o ser humano evoluindo
entre os nativos que moravam nas diversas regiões da
América do Sul e as ilhas próximas; 4) afinidade
bioló- gica entre os mamíferos vivos e as espécies
extintas dos pampas. Após esta observação, criou a
hipótese sobre as espécies, não como sendo uma
entidade fixa, mas dotada de uma progressiva
diversificação; verificou tal fenômeno entre os animais
domésticos e as plantas cul- tivadas (Darwin, Charles:
A Origem das Espécies).
Vê-se de imediato a precipitação de Charles Da-
rwin, ao formular sua ideia evolucionista, com apenas
cinco anos de observação; como decorrência,
imaginou que as espécies animais variavam no tempo
e não por causa das condições ambientais e, o mais
importante ainda, às mínimas alterações que notou
(que podemos até denominá-las de acidentais) deu
valor de transfor- mação total, a ponto de acreditar ser
possível passar de uma espécie para outra; é por este
motivo que até hoje (1983) procuram e não encontram
o que deveria ser su- perabundante dentro de nosso
solo: as espécies inter- mediárias. Pelo rápido sucesso
que as ideias de Darwin tiveram, conclui-se que as
fantasias megalômanas são aceitas com incrível
rapidez — enquanto que a verda- de, o amor e a beleza
são rejeitados; o naturalista inglês conseguiu ser aceito
imediatamente, pois a primeira edição de seu livro A
Origem das Espécies esgotou-se em uma semana e
houve na Alemanha uma adesão rá- pida e geral ao
darwinismo. Thomas Huxley, zoólogo, respondeu ao
bispo anglicano Wilberforce que preferia ser um
macaco aperfeiçoado do que um Adão degene- rado
— o que denota claramente todo o pensamento da
humanidade, no sentido de nada admitir de errado no
homem. Não é necessário dizer que o incentivo ao
pensamento arrogante levou o Império Britânico a sua
decadência atual.
A atitude do ser humano de querer reconstruir o
universo, segundo a sua imaginação, tomou todo o seu
melhor tempo útil, impedindo-o de se dedicar ao
verda- deiro progresso e desenvolvimento; enquanto
estamos tentando refazer a criação, deixando de
prestar atenção às reais leis científicas que regem todo
o cosmo, estag- nando dentro do tempo e espaço.

Spencer (1828-1903)
Herbert Spencer é o último representante do an-

19
para um contínuo progresso, que o alçaria cada vez
mais para ações elevadas; evolução e progresso são
os lemas de seus princípios básicos. Evolução seria
uma integração da matéria e uma concomitante
dissipação de movimento, durante a qual ela
(matéria) passa de uma homogeneidade indefinida e
incoerente a uma heterogeneidade definida e
coerente e o movimento conservado submete-se a
uma transformação parale- la; era de opinião que o
processo evolutivo humano leva sempre a maior
harmonia entre a natureza espi- ritual do homem e
suas condições de vida (Spencer, First Principles).
Vê-se de imediato a ideia invertida de Spencer ao
colocar no processo de desenvolvimen- to
(evolução) uma heterogeneidade; por este motivo,
afirmou que, quando a evolução chega ao seu cume,
determina-se o processo de dissolução. A Trilogia
Analítica mostra justamente o contrário, isto é, que
o processo de desenvolvimento leva à
homogeneidade e, quando alcança o seu ápice,
unifica-se.

Charles Darwin

19
Herbert Spencer coloca os fenômenos religiosos donou o empirismo, para se aproximar do racionalismo
inacessíveis, dizendo que não apenas a ciência, como a
própria teologia, não conseguem penetrar no
fenômeno religioso — exatamente ao contrário do que
pensamos e o próprio Tomás de Aquino afirmou que
tais misté- rios, mesmo que estejam acima da razão,
não estão con- tra ela (não a repugnam). O pensador
inglês estabelece uma diferenciação absoluta entre um
campo e outro, dizendo que a filosofia começa onde a
ciência para. Ele conservou sempre um otimismo
ingênuo, pensando que o ser humano espontaneamente
trilharia o caminho cer- to; essa ideia tem trazido
enormes dificuldades para a Inglaterra, levando-a a
uma certa decadência.

Bertrand Russel (1872-1970)


Bertrand Arthur William Russel reflete bem a filo-
sofia de vida a que a Inglaterra chegou no fim do
século passado e começo deste. Depois de formado em
filo- sofia, em 1894, escreveu: a Democracia Social
Alemã, Fundamentos da Geometria, Princípios de
Matemática, Casamento e Moral, Educação e Ordem
Social; em 1940, convidado para integrar o
Departamento de Filosofia da Universidade de New
York, foi rejeitado devido a suas concepções morais;
conferencista da Fundação Barnes, foi também
despedido. Casou-se quatro vezes, despre- zou a
formação que recebeu no Trinity College e mu- dava
constantemente de orientação filosófica: primei-
ramente opôs-se ao idealismo (Kant, Hegel e Bradley);
voltou-se para a matemática, sendo de opinião que ela
seria um desenvolvimento da lógica; depois, articulou
facetas epistemológicas e metafísicas em sua filosofia;
influenciado pelo seu aluno Ludwig Wittgenstein acei-
tou o atomismo lógico, abandonando-o logo depois.
Não podemos falar em uma filosofia de Bertrand
Russel, pois ele se dedicou a tantos assuntos diversos,
que não se aprofundou verdadeiramente em um só; de
modo geral, podemos dizer que tentou explicar tudo
pela matemática, subordinando o ser humano a ela —
imitando Descartes. Só este fato mostra a grande de-
cadência em que a Grã-Bretanha chegou; ligado ao
trabalho de Frege (que desistiu de continuá-lo quando
descobriu o paradoxo), o pensador ficou sozinho com
a empreitada. De modo geral, define a filosofia, afir-
mando que, se não for um problema de lógica, não é
filosofia (Quine, W. V.: From a Logical Point of View).
Russel mostra claramente que a filosofia inglesa aban-
19
— provavelmente, é o que está acontecendo com (Lowrie, W.: Kierkegaard).
todo aquele povo, que tinha em suas mãos grande Vemos uma alteração total no rumo da filosofia,
parte do mundo conhecido e entrou em decadência, devido à rejeição que Kierkegaard realizou em relação
só porque mudou sua maneira de pensar.

DINAMARCA
A Dinamarca não foi pródiga em filósofos; no
en- tanto, só o pensamento de Kierkegaard foi
suficiente para mudar todo o rumo da filosofia
idealista de Kant e megalômana de Hegel e
Feuerbach, introduzindo nesse setor os valores
éticos e afetivos. Ele deu o primeiro e grande passo
para tentar a fusão de todos os elementos
fundamentais da existência humana, aos quais
estamos chegando só agora no final do século XX.

Kierkegaard (1813-1855)
Soren Aabye Kierkegaard pode ser
considerado pai da filosofia existencialista moderna
(Heidegger, Biswanger, Boss, Viktor E. Frankl).
Ingressou em um curso de teologia da Universidade
de Copenhagen, onde tomou contato com a filosofia
de Hegel e logo passou a contestá-la, ao notar que o
pensador alemão procurava ignorar a existência
concreta da pessoa. De um lado, via o pensamento
filosófico hegeliano arro- gante; de outro, notava
que o luteranismo estava buro- cratizado e afastado
da religiosidade interior — assim sendo, passou a
atacar o primaz (luterano) Hans Lar- zen
Marteusen, que seguia orientação hegeliana (Heh-
lenberg, J. E.: Soren Kierkegaard).
Kierkegaard afirma inicialmente que a vida
não pode ser objeto do saber; ela é algo que escapa
ao co- nhecimento — atitude de total oposição a
todos os sis- temas racionalistas; assim sendo, o
núcleo da existência seria a escolha (vontade) e não
uma razão lógica que obrigue o homem a optar por
um tipo de vida. O pen- sador dinamarquês colocou
três níveis de existência: o estético, o ético e o
religioso, sendo que somente o últi- mo poderia
trazer ao ser humano a mais completa paz; basta
analisar a história, para verificar em Abraão uma
atitude antiética ao querer imolar seu filho. No
entanto, a eternidade e a infinitude do Criador
trazia-nos em um permanente conflito, sendo
necessária uma transforma- ção da linguagem

19
ao racionalismo; dando a mão a Kant, mostrou que a Soren Aabye Kierkegaard
razão não tem basicamente o valor que lhe
concederam os filósofos; voltou-se então ao estético,
ao ético e ao religioso, que são os elementos
emocionais da vida psí- quica. Em seguida, colocou o
núcleo da existência na livre escolha da vontade;
acredito que foi este o seu erro fundamental, que levou
mais tarde Sartre a dizer que era o tipo de existência
que determinava sua essência
— em uma clara demonstração de sua ideia
teomânica, de criador da própria estrutura vital. Temos
de convir que o trabalho deste pensador foi incrível,
por ter sido feito em pleno apogeu do racionalismo
hegeliano, que ocasionou tantos desastres para a
humanidade e princi- palmente ao seu país de origem,
a Alemanha.
Em minha opinião, o grande passo que o filóso-
fo dinamarquês realizou foi ter notado que a vida era
algo muito maior do que o nosso conhecimento pode-
ria alcançar, colocando tal empresa em outra dimensão
da personalidade; a Trilogia Analítica vê o sentimento,
que é basicamente o amor como o elemento
fundamen- tal que unido à razão (devido a sua
coerência), fornece toda a conduta ao homem e a sua
civilização.

19
UNIÃO SOVIÉTICA conduta, associada a certo estimulo, seguido sempre
de uma re- compensa; 2) o reflexo condicionado é
De certa forma, a civilização eslava foi sempre extinto, se a re- compensa for retirada; 3) a resposta
uma decepção no campo filosófico; a antiga Rússia pode ser retardada se for estabelecido um intervalo no
produziu grandes artistas (Tchaichovsky, Rimsky- oferecimento da re- compensa; 4) processo de seleção,
Korsakov, Stra- vinsky) e grandes literatos no qual o indivíduo
(Dostoievsky, Gogol, Tolstoi), mas nenhum grande
filósofo, que fizesse escola. O seu sistema
econômicossocial foi copiado de Marx e Engels,
com alguma modificação elaborada por Lenin; sua
estru- tura científica e industrial é simplesmente
uma cópia do mundo ocidental. O povo do maior
país em extensão de terras vive ainda em um estado
de semi-escravidão, que o impede de se
desenvolver satisfatoriamente.

Pavlov (1849-1936)
Petrovich Pavlov viveu em uma época de
super- valorização dos elementos fisiológicos,
como se fos- sem a base da estrutura psíquica:
Herzen ensinava que a filosofia sem fundamento
experimental era uma mera ilusão; Belinski
rejeitava a psicologia idealista; Tcher- nichevski
confiava só na ciência para melhoria da vida e
Pissarev era entusiasmado pelo evolucionismo.
Nesse ambiente, o fisiologista russo realizou uma
descoberta que muitos acreditaram poder resolver
todos os proble- mas da humanidade: o reflexo
condicionado.
No ano de 1927 foi criada a cidade-laboratório
de Koltuchi, onde Pavlov tentou aplicar seus
princípios de condicionamento na clínica
psíquiatrica; para que haja um reflexo, importam
seis elementos: 1) uma estimula- ção: car, som,
etc.; 2) o órgão receptor (olho, ouvido);
3) a terminação nervosa; 4) o centro nervoso; 5) o
nervo efetor, que transmite o impulso e 6) um,
órgão (glân- dula salivar, fígado, estômago) que
efetua a resposta. Sua famosa experiência foi a
seguinte: primeiramente, investigou com exatidão a
salivação dos cães ao lhes ser apresentada a carne;
ao mesmo tempo em que mos- trava o alimento,
tocava uma sineta; após repetidas ex- periências, ao
simples toque das campainhas, o animal salivava. A
partir deste trabalho, elaborou uma série de leis,
tentando explicar o problema da neurose no ser hu-
mano, como se tivéssemos a mesma constituição
dos cachorros: 1) toda resposta é o resultado da
19
escolherá o estímulo que for mais compensador. Charles Sanders Peirce praticamente é o pai da filo-
O grande fisiologista russo (naquele tempo o país sofia de vida norteamericana, denominada pragmatismo,
ti- nha o nome de Rússia) criou a ideia de que seria
possível através do cuidado com os fatores hormonais
e endócri- nos, desenvolver a medicina psicossomática;
tal intenção despertou uma onda de entusiasmo,
dando-se a organi- zação de inúmeros institutos de
reflexologia, para tratar das neuroses; é uni caminho
praticamente inverso ao de Freud e que, por causa de
seu superficialismo, naufragou totalmente. A
sonoterapia, a quimioterapia e o parto sem dor são
técnicas baseadas no pavlovismo; sabemos que a
primeira (sonoterapia) procura adormecer a
consciência, como se esta última fosse perigosa; a
quimioterapia pre- tende atingir o que é psíquico
(espiritual) com meios quí- micos e sabemos como o
medicamento é prejudicial ao próprio organismo, tendo
sempre uma indicação e quatro ou cinco
contraindicações.
A influência de Pavlov foi muito grande no setor
da psicologia chamado condutista (Behaviorismo) e os
americanos chegaram a provocar reflexo condicionado
até de cinco estímulos: som, luz, odor, toque no cor-
po do animal e outro tipo de alimento; até 1940 houve
grande entusiasmo na Europa e América do Norte com
tal orientação — que pouco a pouco foi sendo abando-
nada, devido a sua ineficiência com o ser humano: prati-
camente, ele só atinge a vida fisiológica,
permanecendo toda a causa da neurose (e suas
consequências físicas) intocada. Aliás, há alguns anos,
uma pessoa nascida na União Soviética mostrou-me
um trabalho de Pavlov, contando que, após uma chuva
torrencial sobre o seu canil, todos os cães perderam o
condicionamento; mais tarde, o fisiologista notou que
bastava jogar um balde de água fria sobre os animais,
ficando perdido todo o trabalho do cientista.

ESTADOS UNIDOS DA
AMÉRICA
Fora da Europa, só os Estados Unidos consegui-
ram apresentar uma filosofia original; como sabemos,
a civilização caminhou na direção que as ideias mais
adiantadas tomaram e a América do Norte, por causa
do espírito de seu povo, adotou o pragmatismo como
forma de pensar e viver.
Peirce (1839-1914)

19
último filho da civilização ocidental; aliás, desejava
que toda forma de misticismo fosse abandonada pela
ciência e aceito tudo o que foi realizado pelos
filósofos anterio- res; era de opinião que deveria
haver ligação entre o pen- samento e a ação,
definindo o pragmatismo como sendo a concepção
segundo a qual as coisas são aquilo que elas podem
fazer (Thompson, M.: The Pragmatic Philosophy of
Charles Sanders Peirce).
Vemos que toda a imaginação humana em
maté- ria de filosofia foi se esgotando pouco a
pouco e o ho- mem sendo obrigado a retornar à
realidade; a filosofia de vida norte-americana
explica o motivo do incrível desenvolvimento de
sua civilização que somente ago- ra apresenta os
primeiros sinais de exaustão, porque acreditou mais
na quantidade do que na qualidade do progresso,
segundo os padrões da orientação capitalista de
Smith e Ricard. Peirce intuiu a Trilogia (como nós
apresentamos) ao expor a teoria dos signos,
estabele- cendo três categorias: 1) primeiridade,
onde se locali- zam os sentimentos (qualidades
puras, como chama);
2) segundidade, que são as relações de duplo termo
(a dialética); 3) terceiridade, fenômeno de triplo
termo, que implicam conexão entre outros dois
fenômenos. Depois, explica que o acaso seria o
primeiro aconte- cimento cosmológico; a força e a
luta, o segundo, e a lei evolutiva, o terceiro
(Goudge, T. A.: The Thought

Pavlov

19
of Charles Sanders Peirce). Vê-se aqui uma clara te- O filósofo norte-americano entrou em polêmica
omania no filósofo norte-americano, tentando excluir com o seu patrício Peirce (considerado o verdadei-
Deus da criação; por este motivo, teve uma existência ro descobridor do pragmatismo), porque era de opi-
muito atribulada, vivendo seus últimos 27 anos na ex- nião que tal filosofia constituía uma nova teoria sobre
trema pobreza, doente e só. De outro lado, percebeu a a verdade e não apenas um método de determinação
própria fonte da existência ao colocar o sentimento em dos significados; o mais interessante ainda é o fato dos
primeiro lugar; outra descoberta muito significativa psicólogos verem em William James um colega, desde
que realizou foi a do processo dialético — mesmo que que ele era avesso ao trabalho científico, tendo funda-
não o tenha desenvolvido adequadamente; o que do um laboratório de psicologia experimental, sem ter
chamou de terceiridade deveria ser o resultado do qualquer dedicação a esse tipo de atividade. Não resta
dialetismo e não um triplo termo. dúvida, porém, que ele contribuiu para o nascimento
Em todo caso, fez uma analogia muito grande da psicologia científica, que estava jungida à
com a Trilogia Analítica. metafísica, até sua época, sendo apenas um tipo a mais
de pensar.
William James (1842-1910) Gostaria de esclarecer que essa nova orientação
es- capou bastante do campo da filosofia tradicional,
Provavelmente, William James é o pensador mais tornan- do-se praticamente algo diferente como falou
próximo da Trilogia Analítica; nasceu em New York, Wittgens- tein; em nossa experimentação científica,
de família abastada e altamente voltada para o campo notamos que a verdade se identifica com o afeto e a
da cultura: o pai fazia parte de um grupo denomina- ação — exatamente a noção de W. James sobre a
do transcendentalista (Emerson, Thoreau, Parker), que verdade; justamente esse modo de pensar foi a causa
acreditava na bondade natural do homem, no alcance do grande progresso dos Es- tados Unidos da América;
do conhecimento do Criador e das virtudes morais, in- a Trilogia Analítica procura completar tal noção,
dependente da graça divina; eram pessoas de alto ide- dizendo que a ação tem de estar de acordo com a
alismo, valorizando a intuição para chegar à verdade verdade (razão) e com o afeto (amor), para atingir o
e lutando para libertar o ser humano das convenções e apogeu, ou melhor, a verdadeira atividade é a fusão do
normas sociais. sentimento (amor) com a razão — caso contrá- rio, ela
W. James queria uma filosofia dferente, isto é, se perderá no tempo (passando da agitação para a
um sistema de hipóteses (filosóficas) que possam inação) e no espaço (produzindo quantidade excessiva,
funcionar e não por serem necessariamente ou escassa, elementos desnecessários, ou apenas úteis
verdadeiras, como fa- lava a filosofia tradicional; para a vida material). A produtividade tem de obedecer
acreditava que a verdade não era algo rígido e a três fundamentos: ser boa, para o ser humano; real,
permanente, mas variável, ligando-a (verdade) ao para sua existência e de acordo com sua verdadeira
aspecto de verificação; a segunda condi- ção, para necessida- de humana e não aparente, social, ou
identificá-la, seria o seu valor para a vida con- creta; supérflua.
além disso, admitia que a verdade não abrangia só a
esfera da ciência, mas da moral e da religião — uma John Dewey (1859-1952)
crença, para ser verdadeira, tem de satisfazer o anseio
de compreensão geral, sendo um bem vital (Moore, E. Devido a sua modéstia e coragem, John Dewey
C.: William James). Nota-se imediatamente que a filo- foi o pensador que maior influência exerceu no povo
sofia norte-americana deixou de ser uma verdade para norte- americano; a sua Escola Nova de Pedagogia
o pensamento, para se tornar um valor de realização; difundiu- se, não apenas nos Estados Unidos, como
William James interessou-se inicialmente pela ciência em todo o mundo. Foi professor no Teachers College
(química, anatomia, fisiologia, medicina, psicologia); da Univer- sidade de Colúmbia, tendo proferido
no campo psíquico, procurava explicação na fisiolo- conferências em Tóquio, Pequim, Nanquim, México,
gia (neurologia), na teoria evolucionista e mesmo nos Rússia e Turquia; escreveu nove livros, dentre os
achados da arqueologia — mais tarde, quando passou quais: Psicologia, Natu- reza Humana e Conduta, Meu
a lecionar na Universidade de Harvard, voltou-se para Credo Pedagógico.
o campo da filosofia. Dewey discordou da orientação especulativa da
19
filosofia tradicional e da ideia de que consciência
seria contemplação; colocou sua noção de
instrumentalismo, ou funcionalismo, afirmando que
o conhecimento é ati-

20
maior do que os que se dedicam às chamadas ciências
humanas e por um motivo muito fácil de entender: o
matemático tem a sua megalomania aumentada,
acredi- tando-se um deus, criador de tudo o que existe
— por este motivo é que os engenheiros, físicos e
matemáticos têm muita dificuldade com o tratamento
analítico.
Lembro-me agora da descoberta que um filósofo
realizou (Stuart Mill) quando disse que para realizar
qualquer afirmação, por exemplo: o homem é mortal,
é necessário ter uma série de percepções neste sentido
— sendo um dado colhido da verificação (ação); assim
sendo, a ação é fundamental, juntamente com o afeto e
a verdade.
Veblen (1857-1929)
Portrait). De fato, pela minha experiên- cia analítica,
observa-se que os indivíduos de forma- ção matemática
Charles Sanders apresentam traços de um desequilíbrio

vidade e parte funcional da experiência: o pensamento


seria o esforço para reconstruir a atividade,
praticamen- te, uma decorrência da ação; deste modo,
as atividades mostram se as ideias são verdadeiras ou
não (Schilpp,
P. A.: The Philosophy of John Dewey). O pensador
nor- te-americano identificou o pensamento com a
ação — o que eu mostrei no meu livro Contemplação e
Ação, que se trata do mesmo fenômeno, pois o
Criador é basica- mente Ato Puro, como já falava
Aristóteles, não poden- do haver amor sem a verdade e
a atividade, assim como ação sem afeto e realidade,
bem como o real é compos- to também de sentimento
e ação. Mesmo sem entender, Dewey estava notando a
união de todos os elementos em uma só essência; é
claro que o raciocínio é diferente de emoção, mas um
não pode existir sem o outro; ele disse claramente que
o pensamento contemporâneo es- tabeleceu
dicotomias entre o ideal e o real, o espírito e a
natureza, colocando uma distância irredutível entre o
matemático e o historiador, o humanista e o
engenheiro, por exemplo; procurava a unificação da
humanidade. John Dewey mostrou que a pedagogia
tradicional colo- cou os homens de ação (nos quais o
pensamento é sacri- ficado) em oposição aos
contemplativos; afirmou que as ciências humanas têm
um nível de inteligibilidade maior do que os
matemáticos (Hook, S.: John Dewey: An Intellectual

20
Thorstein Bunde Veblen é exemplo da
intelectu- alização: em 1880, forma-se em Carleton
College e transfere-se para a Universidade de
Chicago, depois para a Universidade de Stanford,
na Universidade de Missouri e, por último, para a
New School for Social Research; viveu
solitariamente dois anos, morrendo ig- norado pelos
seus contemporâneos.
Veblen era de opinião que a história da
humani- dade sempre se caracterizou pela luta entre
as forças predatórias e as construtivas, inatas no
homem; tal fato atualmente revestir-se-ia de um
manto de legitimida- de, para esconder os interesses
gerais — o pirata do século XVI transformou-se no
homem de negócio do capitalismo moderno e o
barão que roubava na Idade Média assumiu as
feições de um respeitável magnata financeiro
(Dowd, D.: Thorstein Veblen). Nota-se de imediato
uma semelhança muito grande com as ideias que
vigoravam no final do século XIX, quando colo-
cavam na natureza a causa de todos os males
(Darwin, Freud); de outro lado, o pensador norte-
americano se opôs à dialética hegeliana, achando a
antítese capitalis- mo-proletariado muito simplista,
ao ignorar a dimensão sociológica e psicológica das
duas classes — mesmo que ele próprio fizesse tal
dialética (forças predatórias versus forças
construtivas).
Veblen manifestou nas hipóteses filosóficas
sua acentuada psicopatologia; exemplificando:
provocou atritos com as autoridades universitárias,
sempre criti- cou atrozmente o sistema empresarial,
o nacionalismo e a religião, revelando acentuada
megalomania e inveja; de todos os filósofos dos
Estados Unidos, foi o único que causou estranheza no
ambiente cultural, tendo sofrido grande rejeição. O
filósofo norte-americano manifestou

20
toda a sua inversão ao comparar o indivíduo produti- Thorstein BundeVeblen
vo (homem de negócios, magnata financeiro) a
pessoas sem valor e ladras. Aliás, manifestava
claramente for- te inveja, motivo pelo qual viveu seus
últimos anos de vida sozinho e rejeitado pelos seus
conterrâneos.
A psicopatologia descoberta pela Trilogia
Analítica dá margem para analisar as manifestações de
um indiví- duo; neste caso, Veblen deixou
transparecer claramente em sua filosofia toda a sua
atitude invejosa, invertendo a realidade, colocando a
culpa de todos os problemas na natureza (em Deus) e
nas pessoas mais ativas.

ALEMANHA
Finalmente, chegamos na Alemanha, dona de
todo o pensamento contemporâneo e o país europeu
que mais tempo conservou o seu vigor mental. Não foi
somente a partir de Lutero, mas o povo alemão é
dotado ainda de grande possibilidade para continuar
orientando a huma- nidade — desde que perceba a
grande psicopatologia que vem alimentando na base
de sua civilização.

20
Weber (1864-1920) seus colegas latinos. Provavelmente, o maior erro do
soci- ólogo alemão foi o de não se aprofundar na
Como já falei várias vezes, a Alemanha chamada ação afetiva, que é a determinante de toda
constituiu um meio termo entre o empirismo inglês conduta so- cial — porque esse aspecto é ligado à
e o racionalis- mo latino; já Heirich Rickert Dilthey psicopatologia;
estabeleceu uma distinção entre a palavra
explicação (erklaren) e com- preensão (verstehen)
— a primeira, característica das ciências naturais e,
a segunda, das humanas; nós dirí- amos que
compreender estaria ligado mais à consciên- cia.
Max Weber tentou chegar às causas dos problemas
sociais, procurando captar o sentido da ação
humana; ora, tal orientação é totalmente diversa de
Durkheim, que pretendeu extrair toda dificuldade
do fato social. Assim sendo, o sociólogo alemão
não dava atenção pri- mordial ao aspecto exterior da
vida social (Bendix, R.: Max Weber: an Intellectual
Portrait).
Weber classificou quatro diferentes tipos de ação:
1) racional, em relação aos fins; 2) racional, em
relação aos valores; 3) ação afetiva e 4) ação
tradicional; como é evidente, a mentalidade
germânica acatou além do racional, também o
emocional. Em seguida, procurou saber a origem do
sistema econômicossocial moderno; sua principal
conclusão foi a íntima conexão que exis- te entre o
capitalismo e o protestantismo, pois notou que os
grandes comerciantes (e capitalistas) seguiam o
cristianismo reformado (protestantismo); o próprio
Benjamin Flanklin afirmou que ganhar dinheiro
dentro da ordem econômica moderna é, enquanto
isso for rea- lizado legalmente, o resultado e a
expressão da virtude e da eficiência de uma
vocação; Calvino, que o traba- lho constitui, antes
de mais nada, a própria finalidade da vida —
praticamente, legalizando a questão do lu- cro, na
opinião de Weber (Fishchoff, E.: The Protestant
Ethic and the Spirit of Capitalism).
Vemos um sociólogo totalmente diferente de
Durkheim e Comte, procurando o sentido da ação
hu- mana, que explique o fato social; acredito que
ele foi muito unilateral, ao pensar sobre um sistema
econômi- co derivado de mais de um tipo de
religiosidade e não como resultado de todo o modo
de viver da sociedade, que incluía também os
adeptos do protestantismo — só porque se
desenvolveram mais do que as outras cren- ças,
devido a sua filosofia superior; de qualquer forma,
seu pensamento foi muito mais adiantado do que

20
aliás, no ano de 1899, foi internado em um sanatório, Édipo jamais manifestou, mas sim uma ambição
permanecendo algumas semanas. desmedida
Já naquela época, os sociólogos alemães se per-
guntavam se o materialismo histórico formulado por
Marx era ou não verdadeiro; Wilhelm Dilthey, Ernst
Troelstsch e Werner Sombart ressaltavam a influência
das ideias e convicções éticas sobre o social e Weber
distinguia três tipos básicos de orientação: 1) racional:
é a aceitação do estatuto legal; 2) tradicional: quando a
situação social é considerada legítima, em virtude de
sua tradição e 3) carismática: revolucionária, em uma
atitu- de de oposição às bases sociais. Não é difícil ver
que ele colocou a segunda (tradicional) no meio,
porque tanto a racional (legal) como a carismática
(revolucionária) não conseguem equilíbrio. Porém,
não desenvolveu sua tese nesse sentido,
provavelmente porque o estudo da psicopatologia não
era ainda muito conhecido.

Freud (1856-1939)
Sigmund Freud constitui, nos tempos atuais, o
cientista que maior influência exerceu na sociedade,
por causa de seu trabalho terapêutico sobre a mente
humana. Formado médico em Viena, dedicou-se ao
es- tudo da fisiologia e da neuropatologia; estudando
com Jean Charcot, professor de neurologia em Paris e
com Joseph Breuer, médico vienense, passou a se
interessar pelos aspectos psicológicos das doenças
nervosas.

a) Origem das Neuroses

No ano de 1895 publicou um trabalho intitulado


Estudos Sobre a Histeria, onde afirma que os sintomas
histéricos são resíduos e símbolos de ocorrências trau-
máticas, nas quais um processo psíquico intensamente
afetivo teria sido desviado da elaboração consciente
normal; o pai da psicanálise fala claramente em uma
atitude de desvio da consciência, ocasionando a doen-
ça; porém, algum tempo depois, colocou a causa das
neuroses no sexo e introduziu o conceito de incons-
ciente — paralelamente, elaborou o conceito sobre o
Complexo de Édipo, tomado da mitologia grega: o rei
da Grécia se casa com a própria mãe, para se apossar
do país vizinho, onde ela era rainha; neste momento,
co- meça a grande fantasia do médico judeu-austríaco
em querer ver em cada ser humano um agudo desejo
sexual pelo progenitor do sexo oposto o que o próprio
20
(megalomania). Aliás, Margaret Mead estudou a demais educadores pela identi- ficação e
con- duta dos povos primitivos e jamais encontrou a interiorização. A consequência desta última afirmação
questão do Complexo de Édipo entre eles. é a de afastar qualquer influência dos indiví- duos
chamados “mais velhos”, por ser perniciosa, des-
b) Evolucionismo Freudiano

Freud aceitou as ideias evolucionistas de


Charles Darwin, tentando estabelecer fases no
desenvolvimento da libido: a) oral, b) anal-sádica,
c) período de latên- cia e d) genital, como se a
base do ser humano fosse o instinto sexual; essa
atitude de intransigência provocou o afastamento de
Alfred Adler, Carl Gustav Jung, Wi- lhelm Stekel e
Otto Rank; outra atitude invertida foi sua ideia de
que a consciência seria formada pela interiori-
zação das normas sociais — ora, tal pensamento
incre- menta a persecutoriedade, porque leva a crer
que somos subordinados ao social; porém, a
questão da inveja raia pela total incongruência ao
dizer que a mulher sente inveja do pênis do
homem, como se o Criador tivesse falhado na
criação da mulher. Esta intenção percorre todo o
sistema de hipóteses da psicanálise ortodoxa,
tentando fazer com que o homem pense que é
vítima da natureza — em uma atitude de oposição
direta a Deus. Este é um ponto fundamental do
chamado freu- diano: ter construído um sistema
teórico e prático, de acordo com os demônios que
se revoltaram contra o seu Criador; a psicanálise
tradicional tentou levar o ser humano (pelo
mesmo caminho que tomaram os
anjos decaídos).

c) Estrutura da Psique

Sigmund Freud afirma que a estrutura da


psique é formada durante o tempo da infância; por
exemplo, o ato psíquico inicialmente seria
inconsciente e, ao ser submetido à censura, é
obrigado a permanecer no in- consciente — se
passasse pelo crivo da censura, tornar- se-ia
consciente. Vemos uma total incoerência em dizer
que possa surgir alguma coisa do inexistente, pois o
inconsciente é uma simples negação ao que é
conscien- te e não a sua origem (o não jamais
poderá ser causa do sim). O ego seria formado a
partir das percepções; o id, um depósito de forças
instintivas, totalmente in- consciente, e o superego,
uma consequência das regras impostas pelos pais e

20
de que seriam responsáveis pela formação daquilo que transposição, que é a atitude de tornar irreconhecível os
nos causa a neurose: o superego — não é de estranhar “sentimentos” e desejos chamados indecentes; projeção,
que a juventude da década de 1960 desconfiava de na qual atribui ao semelhante as próprias intenções
toda pessoa que tivesse mais de trinta anos. Só este desonestas e mal-
último dado da “filosofia freudiana” explica a incrível
rebeldia paranóica das novas gerações.
Freud colocou a censura ao Id na etiologia da
neu- rose; assim sendo, caso déssemos total liberdade
aos instintos, estaríamos livres de qualquer problema
— ele não percebeu que a causa da neurose estava sim
no su- perego, mas em relação à consciência: se não a
repri- mirmos, vendo tudo o que se passa nela,
seremos sãos.

d) Consequências do Freudismo

Em seus últimos tempos de vida, Freud formulou


a ideia da existência de dois tipos de instintos: sexuais,
ou de vida (Eros) e os de morte (Tânatos). Neste mo-
mento, lembro-me de meus tempos em Viena, quando
Igor A. Caruso estranhava o fato de o grande cientista
se referir à existência de um instinto que não fosse de
vida, algo inteiramente ilógico. A opinião do criador
da psicanálise era que a não solução dos conflitos ins-
tintivos é responsável pelo aparecimento das neuroses
— devendo as forças mentais proteger o ego da ansie-
dade interna, adaptando-o à realidade; e aqui entra
uma das maiores contradições freudianas, quando
chamou a tal atitude Mecanismos de Defesa do Eu —
como se adotando um comportamento neurótico
(doentio, falso, errado) fosse melhor para nós; tais
condutas são: 1) re- gressão. 2) recalque, 3) conversão,
4) auto-agressivida-
de, 5) identificação, 6) super-compensação, 7)
sublima-
ção, 8) racionalização, 9) substituição e transposição,
10) projeção. Regressão é a volta a um comportamento
an- terior; recalque é esconder uma consciência;
conversão, jogar no físico o que recusa ver no
psicológico; auto- agressão é punir-se, para não
aguentar a consciência dos erros; identificação,
praticamente, mascarar uma atitude do semelhante,
para não ser o que é; super-compensação é o esforço
para adotar uma conduta de eficiência, ar-
tificialmente; sublimação, a ideia totalmente invertida
de Freud de que o bem poderia vir do mal (transformar
agressividade e sadismo em trabalhos úteis); racionali-
zação é tentar explicar tudo pelo raciocínio, para não
ad- mitir as próprias falhas; substituição e
20
Sigmund Freud

dosas. O pai da psicanálise teve a coragem de falar


que tais mecanismos constituem uma tentativa para
resolver os problemas inconscientes e a angústia
surgiria somente quando eles (mecanismos de
defesa) falham — podendo chegar até a uma total
desintegração da personalidade (Keppe, Norberto
R.: A Medicina da Alma).
Pelas descobertas da Trilogia Analítica,
chegamos à conclusão que a neurose (nome
invertido dado à psi- cose, pois neurose significa
comprometimento orgâni- co) foi vista por Freud
como algo natural, dando-nos a ideia de
vitimação; assim sendo, elaborou um tipo de
vivência megalômana, na qual a fantasia libidinosa
conseguiria nos salvar de toda angústia que avassala
a humanidade — não é sem motivo que Schur,
médico inglês que cuidou do pai da psicanálise em
seu último ano de existência na Inglaterra, declarou
que ele optou pela morte, injetando veneno na veia.
20
Husserl (1859-1938) já existe e a consciência capta imediatamente. Podemos
afirmar que Bergson, Husserl e Kierkegaard constituem
Edmundo Husserl foi contra o psicologismo que as luzes mais brilhantes para o século XX.
grassava no final do século XIX; formulou o método
fenomenológico, que influenciou a filosofia do século
XX, bem como todas as áreas das ciências humanas.
Nasceu na Alemanha, Morávia (localizada naquele
tempo, dentro do Império Austro-Húngaro) e foi pro-
fessor em Berlim, Viena, Halle, Gottingen e Freiburg-
im-Breisgau.
Inicialmente, mostrou que as leis lógicas não po-
deriam se fundamentar na psicologia, que não conse-
guiu resolver o problema do conhecimento: como é
possível a pessoa alcançar uma realidade, que é
exterior e tem existência heterogênea? Em seguida,
afirma que o psiquismo é um fenômeno e não uma
coisa — e esse fenômeno seria a consciência, que
poderia captar a es- sência imediatamente. (Lauer, W.:
Phéncménologie de Husserl, Essai sur la Genèse de
L’lntencionalité). Com esse passo o pensador
identificou a vida psíquica com a sua função,
cometendo o erro essencial de confun- dir a
consciência com o que vê; tal problema invadiu o
pensamento moderno, alimentando sobremaneira a
teo- mania do homem atual. Tal orientação
desembocou no existencialismo moderno, que
desenvolveu a ideia de que a existência determina a
essência.
Husserl afirma que a fenomenologia apanha a
pre- sença imediata das coisas; seria a intuição das
essências, podendo: 1) captar instantaneamente a
essência; 2) ela- borar uma ciência exata, universal; o
pensador diz que nós temos uma intuição originária
(eidética) das coisas e que a vida possui um sentido
independente, quer o sai- bamos, ou não. Toda forma
de expressão da cultura (e da vida) tem um mundo de
objetos puros, universais e extratemporais, que a
intuição revela; reduzir fenome- nologicamente
significa conceder liberdade à consciên- cia, pois o
conhecimento não existe apenas no sentido
ontológico; portanto, compreender, fundar uma ciência
significa descobrir a essência de cada aspecto da
realida- de (Husserl, E.: ldeen zur Einer Reinen
Phãnomenologie und Phãnornenologie Philos). O
filósofo alemão apre- sentou ideias próximas às de
Bergson, no sentido de uma apreensão imediata da
realidade, usando o fator da cons- ciência;
praticamente, repetiu a descoberta de Sócrates, ao
dizer que realizar algo é entrar em contato com o que

20
Quando Husserl dizia que a consciência não
era uma substância mas atividade constituída por
atos (percepção, paixão, imaginação, especulacão,
etc.), aproximou-se sobremaneira do idealismo
kantiano que colocava o valor da coisa em si na
percepção e não nela mesma. No meu livro A
Consciência esclareço que algo para existir não
depende de nossa conscientização — ideia
generalizada que se iniciou com Immanuel Kant e
que vem alimentando sobremaneira a teomania do
homem atual. Aliás, a causa fundamental de todos
os problemas psicossociais é a crença de que só
existe o que entendemos; por causa desta ideia, a
maior parte de toda a enorme riqueza criada por
Deus não está sendo ainda usada.

Edmundo Husserl

E - O Pensamento Atual
A chamada filosofia de vida atual (Weltans-
chauung) é a manifestação da total paranóia que
inva- diu todos os setores da sociedade: filosófico,
teológico

21
e científico; estou dizendo que o homem de agora é o através praticamente de um jogo de palavras — como
ser humano predominantemente doente, que coloca se filosofia fosse uma questão de gramática ou de ló-
em tudo o que realiza a sua psicopatologia, como gica. É evidente que tal pensamento piorou a situação
nunca havia feito antes; por este motivo, não tem da Inglaterra, transformando-a em uma potência de
apresentado mais grandes pensadores, compositores, segunda categoria.
artistas e teó- logos; no campo científico realçam mais A terceira corrente é formada pelo Círculo de
técnicos, indi- víduos práticos, que desenvolvem o que Vie- na, que tentou voltar ao empirismo absoluto,
foi descoberto pelos gênios do passado. negando as proposições dos pensadores germânicos
A maneira de pensar é conduzida por quatro cor- mais moder- nos (Leibniz e Kant); Moritz Schlick e
rentes fundamentais, que não são originais, mas Rudolf Carnap eram alemães que se afastaram do
consti- tuem o desenvolvimento de filósofos do ambiente filosófico da Alemanha e, juntamente com
passado: o Es- truturalismo, o Grupo de Oxford, o Karl Popper, procurou invalidar as teses mais bonitas
Círculo de Viena e a Escola de Frankfurt. A primeira do idealismo. Porém, a grande escola do pensamento
teve origem no século XIX com Ferdinand de atual é a de Frankfurt, contando nomes como Marcuse,
Saussure, suíço, que afirmou não haver elo específico Erich Fromm, Arendt, Benjamin, Adorno, Horkheimer
entre o significante e o signi- ficado — endossando a e Habermas; é a mais paranóica de todas e a mais
tese fundamental da filosofia existencial e da influente, devido a sua pro- fundidade; de modo geral,
fenomenologia. que tentaram conceder valor vê a técnica como sendo pre- judicial, por acreditar
primordial ao que o homem determina — como que ela se voltou contra a cultura e os valores
Immanuel Kant já havia feito. Tal orientação foi conti- tradicionais; Benjamin e Adorno disseram que o
nuada por Roman Jakobson, Louis Hielmslev, Avram cinema e a reprodução de obras de artes tiraram o
Chomsky, influenciando o Grupo de Oxford. valor do teatro e da, pintura clássica e Marcuse preco-
O velho otimismo britânico (Locke, Bent-ham, nizou a total “libertação” sexual. De modo geral, o seu
Smith) cedeu lugar a uma nova maneira de pensar de- pensamento é característico da fase atual, porque tenta
rivada de Kant, Hegel e agora do estruturalismo; Gil- conciliar Marx com Freud, a civilização com a destrui-
vert Ryle, John Austin, Willard Quine e Peter Straw- ção, vida com morte; dialético hegeliano, Marcuse é o
son procuraram resolver os problemas da humanidade protótipo da enorme paranóia do homem atual.

21
21
Capítulo
26

A INCRÍVEL CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO


SÓ SERÁ POSSÍVEL ATRAVÉS DA CONSCIENTIZAÇÃO
DE TODOS OS ERROS COMETIDOS PELA
HUMANIDADE
quarenta anos.
O século XX caracteriza-se por grande
decadência, seja nas artes (música, escultura, pintura),
seja na filo-
sofia e principalmente no nível de cultura dos povos;
muitos dizem que estamos em um período de grande
expansão pelo menos material daquilo que pertencia a
poucos; no entanto, a Trilogia Analítica tem outra ex-
plicação: a própria concepção de existência (Weltans-
chauung) que predomina atualmente visa, de um lado,
a posse dos bens naturais e, de outro, a destruição da
técnica e da ciência, como se a civilização nos
trouxes- se a infelicidade; alguns trabalham
afincamente, mas a grande maioria das pessoas
procura o ócio e teorias orientais (e também
ocidentais) que favorecem a ruína do mundo atual.
Este capítulo XXVI tem a finalidade de mostrar tais
enganos, para que possamos alcançar novamente o
Paraíso (Terrestre), que jogamos fora de- vido ao
processo de inversão que realizamos.

Santayana (1863-1952)
Vou falar agora de um pensador considerado
norte- americano, mas de pensamento latino: George
Santaya- na. Nascido na Espanha, emigrou com nove
anos para os Estados Unidos, onde permaneceu por
20
Ele distingue o mundo das essências do mundo da
exis- tência ou das coisas; o primeiro é infinito, fora
do tempo e espaço, reino do puro ser e objeto da
intuição imediata; o segundo seria o mundo material,
da existência sensível e objeto do raciocínio e do
discurso. Santayana admite a evolução da matéria
(orgânica), estando o espírito en- raizado no corpo
necessariamente (Santayana, J.: Life of Reason).
Não é difícil ver aqui a velha distinção entre o
corpo e alma da filosofia platônica, bem como
ranços do evolucionismo e ideias do tomismo.
George Santayana

20
No seu livro Razão na Religião é de opinião que 5, vers. 48).
os germânicos jamais aceitaram o catolicismo romano,
transformando a religião da pobreza na instituição do
poder e da prosperidade; acha que a religião não pode
ser tomada literalmente, como fizeram os alemães (!);
que o militarismo de Jeová havia retornado, sempre
com os germanos, da mesma maneira, ele prefere a
arte à indústria (Santayana: Life of Reason). Eis aqui o
pensamento típico latino, que dá mais valor à contem-
plação (racionalista) do que a ação, como se o ideal de
vida fosse a visão intelectual do universo e de Deus;
Santayana projetou no povo alemão a superficialidade
do latino no seu relacionamento com Deus; Lutero não
falou que a verdadeira igreja era a do interior? A ideia
de pobreza que Santayana ligou ao catolicismo consti-
tui uma agressão contra o Criador, ao se pretender co-
locar nele toda a culpa por nossas misérias, de
preguiça e da inveja. Atualmente, tal inversão é
realizada pelos católicos da América Latina que tecem
loas à pobreza, mas desejam a riqueza dos outros —
são contra o pro- gresso, mas querem usufruir do
conforto da civilização dos países adiantados; querem
permanecer em um ra- cionalismo contemplativo, mas
aspiram possuir os fru- tos do trabalho alheio.

Benedetto Croce (1866-1952)


Gostaria de transcrever as palavras de Will
Durant sobre a situação da Itália: sua infecundidade
em maté- ria de filosofia é devida em parte à retenção
das atitudes e métodos escolásticos; tornou-se lei não
escrita que os homens de cultura não acarretariam
perturbações para a Igreja; esse país permaneceu fiel à
velha fé, contentando- se em matéria filosófica com a
Suma de Tomás de Aqui- no — os homens tornavam-se
mais e mais irreligiosos, porém mais e mais fiéis à
Igreja. Benedetto Croce re- cebeu educação teológica
tão completa que acabou ateu (Durant, Will, Historia
da Filosofia, 2 volume). Exata- mente o mesmo fato
notei pessoalmente, pois a maior parte dos sacerdotes
e de estudantes de Teologia, que se afastaram da
carreira religiosa, tornaram-se inimigos fe- rozes da
Igreja e do Criador; de modo que seria impor- tante
saber porque pessoas assim se tornam sacerdotes,
pregando justamente o Reino de Deus a que se opõem.
Nossa explicação é a seguinte: a formação do religioso
(assim como a do militar) visa reprimir a consciência
de qualquer erro, para atingir aquele ideal: “Sede
perfeitos, como o Pai do céu é perfeito” (Mateus, cap.
20
— exatamente o contrário do que descobriu a
Trilogia Analítica, que procura conhecer os defeitos
e a atitude de hipocrisia que impera entre os homens
para que as qua- lidades humanas possam brilhar —
dando mais atenção à questão da humildade: “Os
humildes serão exaltados” (Lucas, cap. 14, vers.
11).
Croce colocou o conceito de utilidade no
mesmo nível da Bondade, Beleza e Verdade;
depois, tentou ex- plicação sobre os outros setores,
dizendo que o filósofo moderno equivale ao teólogo
medieval e vê a estética como substituta da religião;
aliás, seu maior livro é a Estética, no qual mostra
duas formas de conhecimento: a intuitiva e a lógica,
colocando na primeira, a imagi- nação, e afirmando
que a arte é governada unicamente pela imaginação;
sua ideia é que o ser humano se tor- na artista, antes
que raciocine (Carr: The Philosophy of Benedetto
Croce). Acredito que é fácil notar a influên- cia de
Kierkegaard, quando o filósofo italiano valorizou a
estética e a dialética hegeliana, ao pretender
misturar tudo, a realidade e a fantasia, para chegar a
um bom resultado. Ele é a imagem do mundo
latino, onde o ser humano pensa que a coerência e a
incoerência poderão ter a mesma serventia e uma
teimosia em permanecer no medievalismo, ou
melhor, em uma terrível alienação quase idêntica à
dos povos africanos.

Benedetto Croce

20
NEOKANTISMO to e vontade (uma volta a John Scot); Wundt diz que a
alma é atividade e Sorel (francês) que a história é
A filosofia do século XX é geralmente uma repeti- ação, liberdade, devir, que se manifesta pela luta de
ção de pensadores passados: a Alemanha, por classes.
exemplo, tentou reabilitar Immanuel Kant, através de
um neokan- tismo de Lotze (1810-1881), Lange
(1828-1875), Win- delband (1848-1915), Rickert
HISTORICISMO E
(1863-1936) e Cassirer (1874-1945); Rickert mostrou RELATIVISMO
que os valores são eter- nos e devemos nos elevar a
eles; Cassirer construiu a filosofia da cultura na qual Dilthey (1833-1911): a concepção humana é
afirma que a ciência e a filo- sofia fazem parte do relativa ao processo histórico e cada geração tem as
próprio desenvolvimento históri- co; o espírito suas estrutu- ras, que se repetem e reproduzem.
humano criaria a linguagem, ciência, arte, filosofia e Simmel (1858-1918): assim como a verdade filosófica
novas categorias. reflete o pensador, a ver- dade relativa aspira o
absoluto; Vaihinger (1852-1933): tudo o que
ultrapassa a experiência é ficção; o homem cria
VOLUNTARISMO ficções como se fossem verdades.
Vemos aqui os pensadores germânicos tentando
Hartman (1842-1906), Wundt (1832-1920) e reanimar velhas ideias: os neokantianos mostrando
Sorel (1847-1922) representam o voluntarismo; o que os valores são eternos, incentivando ao mesmo
primeiro afirma que o princípio absoluto é formado tempo a teomania do ser humano — exatamente como
pelo intelec- Kant fez no passado. O voluntarismo alemão valorizou
a te- omania e o francês (voluntarismo) a luta de
classes, ou melhor, a paranóia coletiva; é o
historicismo e o relati- vismo tentando diminuir o
trabalho do Criador e super- valorizando o do ser
humano.

ESPANHA
Unamuno (1864-1937): a pessoa é o problema
fundamental e a única questão que existe é a humana;
o que a vida afirma, a razão nega (antinomia). Ortega
Y Gasset (1883-1955): eu sou eu e o que me circun-
da; a vida não é, mas se faz; a realidade é a história; o
homem é um ponto de vista e a realidade um número
infinito de perspectiva. Vemos o pensamento espanhol
alimentando a teomania (sou o que me circunda) e a
vida e a realidade existem por si (ela não se faz e nem
é a história), em Ortega Y Gasset e o problema central
da humanidade, apontado na metafísica de Unamuno,
uma visão aprofundada do ser humano — só que o
problema fundamental não é a pessoa, em si, mas o
uso invertido de sua vontade e a razão (em si) não
nega, mas o racio- cínio invertido.

INGLATERRA

20
Vilhelm Dilthey
O pensamento empirista inglês foi sendo
substituí- do paulatinamente pelo idealismo alemão, e
pelo assim chamado romantismo.

20
ROMANTISMO em si e

Coleridge (1772-1834) dizia que o intelecto orde-


na a experiência e que a razão dotada de uma intuição
mística (experiência interior capta o Absoluto; Carly-
le (1795-1881) procura mostrar que a vida espiritual é
mais rica do que o utilitarismo burguês; a energia infi-
nita se manifesta no gênio do herói que é o verdadeiro
artífice da história e revelador de novos ideais. Erros:
a experiência é uma consequência do intelecto e
princi- palmente do sentimento (Coleridge) e temos
que consi- derar o santo e o místico ao lado do herói
(Carlyle).

NEO-HEGELISMO
Stirling (1820-1909) iniciou o neo-hegelismo na
Inglaterra; Green (1836-1892) disse que o real é só um
conjunto de percepções; Bradley (1864-1924): a ex-
periência integral é a vida do Absoluto; MacTaggart
(1866-1925): a pluralidade dos indivíduos está no Ab-
soluto; Royce (1855-1916): a Consciência absoluta é
uma totalidade individual.
Quanto mais antigo é o filósofo, mais profundo,
sério e original; quanto mais moderno, superficial e
co- piador — a ponto de haver um esgotamento total
de ideias no século XX: a percepção não faz o real,
apenas o mostra (Green); o Absoluto é independente
da expe- riência (Bradley); mais a simplicidade é que
está no Absoluto (MacTaggart) e a Consciência
absoluta não é uma totalidade (Royce).

FRANÇA
A França, sendo nação latina, raras vezes saiu do
racionalismo e durante o final do século XIX e início
do XX também repetiu velhas fórmulas medievais em
uma nova roupagem e, influenciado pelo idealismo
alemão, tentou mostrar alguma coisa diferente.

IDEALISMO
Ravaisson (1813-1900) diz que o Espírito é liber-
dade, ou atividade criadora da experiência e Deus só
se conhece pela intuição imediata — não podendo
haver demonstração de sua existência. Vacherot (1809-
1897): o Infinito exclui a existência, sendo um ideal.
Revou- vier (1815-1903) afirma que não existe a coisa
20
a realidade se identifica com a representação.
Boutroux (1845-1921): a realidade é sempre nova
criação e es- quemas da ciência. Meyerson (1859-
1933): fazer ciên- cia seria reduzir o diverso ao
idêntico. Poincaré (1854- 1917): não existem
princípios científicos a priori. Erro: todos eles
negam a realidade em si.

ESPIRITUALISMO E AÇÃO
Gratry (1805-1872): através do sentido,
intelec- to e vontade, encontra-se Deus em nós;
Ollé-Laprune (1839-1897): uma filosofia integral
não pode ignorar a religião, existindo no homem
uma profunda aspiração por Deus; religião e
vontade se integram e o conheci- mento racional é
completado pela fé. Blondel (1861- 1949): o
integral dinamismo do espírito é solicitado
interiormente a transcender-se; nossa atitude inata é
procurar Deus e todo o pensamento, ação e ser estão
orientados para uma Realidade que nos transcende.

Felix Ravaisson Mollien

20
ITÁLIA filo- sofia da evidência, do ser, da inteligência, universal,
do
Os filósofos italianos copiaram mais a Hegel, o
positivismo francês, o idealismo crítico de Kant e o
pragmatismo americano; na base continuaram apega-
dos ao pensamento medieval tomista.

NEO-HEGELISMO
Spaventa (1817-1883): a ideia só se desenvolve
depois da consciência; é necessário partir do pensa-
mento que pensa o Ser e o não Ser, como dizia Hegel.
Bonatelli (1830-1911): a atividade do juízo é a priori
— relembrando a velha escolástica. Tarozzi (1866-
1958): o determinismo é somente instrumento lógico e
não princípio do real. Guastella (1854-1922): toda
realida- de é fenomênica; a realidade em si é ilusão —
copiando Husserl. Masci (1844-1922): as formas a
priori kan- tianas não são modelos mentais pré-
constituídos, mas formadoras da própria experiência.
Martinetti (1872- 1943): filosofia é crítica do
conhecimento e como tal, introdução à metafísica.
Varisco (1850-1933): a re- alidade é um conjunto de
sujeitos múltiplos. Gentile (1875-1944): nada se pode
pressupor ao pensamento; o objeto é o pensamento,
pensado como ato, pelo ato de pensar; o Eu tem
consciência do objeto, porque tem consciência de si
mesmo (autoconsciência).
Nota: o leitor já deve ter observado que estes filó-
sofos redespertaram o conhecimento a priori (Kant) e
o dialetismo hegeliano.

PRAGMATISMO
Vailati (1863-1909) e Calderani (1879-1914)
reto- mam o pragmatismo de Peirce, achando que tal
filosofia é utilitária, pois elimina questões inúteis.
Aliotta (1881-
) afirma que o experimento é que decide a escolha de
um ponto de vista.

NEO-ESCOLÁSTICA
A Itália foi palco do renascimento da filosofia to-
mista, que seus seguidores fazem questão de chamar
racional e não racionalista, como seria a de Descartes
e Spinoza, por exemplo. Jacques Maritain diz que tal
orientação é natural ao espírito humano, porque é a
21
senso comum, perene e una. O primeiro restaurador
da filosofia de Tomás de Aquino foi o jesuíta, padre
Luis Taparelli D’Azeglio; foi seguido por outros
pensado- res, como Agostinho Gemelli, de Milão,
que organizou um laboratório de psicologia
experimental; porém, o que lhe deu mais força foi o
apoio dos Papas: Pio X, com a publicação da
encíclica Pascendi (1907) contra o modernismo e
Leão XIII (1878-1903) que concedeu ao santo
dominicano certeza da verdade, recomendan- do
seu estudo a todos os centros de estudos religiosos
da Igreja Católica.
A Trilogia Analítica colheu grandes benefícios
do aspecto metafísico do tomismo; Michele Federico
Sciac- ca diz que a neoescolástica é a tentativa de
restauração do pensamento medieval dentro da
civilização atual, na página 247 de seu terceiro livro
sobre a história da filo- sofia; acredito que seu
grande erro foi o de querer levar o mundo atual para
a Idade Média e não de trazer o to- mismo para a
civilização contemporânea; por este moti- vo, seu
tempo de êxito foi muito breve. O leitor poderá
verificar, no capítulo XVII do Iº Tomo de O Reino
do Homem, a supervalorização que Tomás de
Aquino faz do raciocínio em detrimento do
sentimento: se a huma- nidade resolvesse voltar à
escolástica, tornaria o mundo muito triste e
desprezaria toda a revelação divina que foi realizada
na ciência, arte e na própria filosofia — seria voltar
a uma total situação de hipocrisia.

Jacques Maritain

21
Malinowski (1884-1942) Na final de sua vida, Malinowski abandona o psi-

Bronislau Malinowski nasceu na Polônia e reali-


zou uma grande revolução na literatura antropológica
com o livro Os Argonautas do Pacífico Ocidental, pois
até sua época estudavam-se as sociedades tribais como
se fossem fósseis vivos do passado, peças de museu e
um aglomerado de crenças e costumes desconexos; o
antropologista polonês demonstrou que os povos
primi- tivos têm um comportamento coerente e
integrado.
Uma nova geração, como Radcliffe-Brown, na
Inglaterra, Franz Boas, da Alemanha, e Malinowski
fundaram a Escola Funcionalista, isto é, o trabalho de
campo; por mais estranho que pareça, a maioria dos
pes- quisadores jamais havia entrado em contato com
tais ci- vilizações, dando seu parecer teoricamente. Ele
passou a viver permanentemente na aldeia e falando
inclusive a língua dos nativos; exemplificando: entre
os trobrian- deses, concluiu que a cultura constitui
uma totalidade integrada e a instituição a verdadeira
síntese e não uma simples soma de aspectos de sua
estrutura (Hoebel, E. A.: The Trobiand Islanders:
Primitive Law as Seen by Bronislaw Malinowski). Tal
verificação é muito impor- tante e confirma a Trilogia
Analítica quando diz que as instituições sociais são
consequência da mentalidade de todo o povo e a
cultura de um país, o modo de pensar e viver de sua
população (verificar o livro Psicanálise da Sociedade,
N. R. Keppe).
A observação que Malinowski realizou sobre a
vida sexual dos chamados povos primitivos ocasio-
nou estupor, porque mostrou o contrário do que todos
pensavam: a castidade pré-nupcial é desconhecida e a
própria fidelidade conjugal não era seguida com rigor;
além disso, a sociedade dos trobiandeses é matrilinear
(Gluckman, M.: Malinowski’s Sociological Theories).
Tal descoberta confirma a hipótese trilógica de que os
povos primitivos constituem decadência de melhores
civilizações e a conduta livre, no seu sentido biológi-
co, própria de um processo decadente — e não sinal
de início de evolução, como queriam os pensadores
do século XVIII (Rousseau), Darwin, Freud, e toda
mentalidade moderna que preconiza a volta ao natural
(primitivismo) como forma de equilíbrio; a psicanálise
tradicional fala sobre a libertação do Id (Eros) como
forma de alcançar a felicidade (Marcuse, Herbert: Eros
e Civilização). Está claro agora que a promiscuidade é
típica de grupos atrasados ou em decadência.

21
cologismo, colocando a cultura sobre fundamento
das chamadas necessidades básicas e dos
imperativos cul- turais (A Malinowski, Bronislaw:
A Scientific Theory of Culture — and Other
Essays). Pela experimentação, vemos que toda a
humanidade irá chegar à mesma con- clusão; o
antropólogo polonês, naturalizado inglês, no- tou
claramente a influência do modo de pensar sobre
o tipo de civilização — exatamente como a Trilogia
Analítica, que uniu também a essa causa, a crença,
ou melhor, o modo do povo enxergar o Criador.
O mérito fundamental de Malinowski foi sua
de- núncia sobre o trabalho científico, pois a
maioria das conclusões no setor humanístico sempre
foi proveniente da cabeça dos cientistas e não da
experimentação — se- ria o mesmo que dizer: só se
os fatos estiverem de acordo com o que eu penso é
que serão exatos; assim agiram Darwin, Freud,
Piaget, Skinner, Reich, Fromm, isto é, a maioria de
todos os pesquisadores, pois jamais reali- zaram
uma pesquisa de campo para tirar conclusões dos
fenômenos observados; Charles Darwin, por
exemplo, tirou conclusões sobre milhões de anos
em um trabalho de apenas cinco anos; Skinner
então elaborou tudo de sua mente; Erich Fromm foi
um puro teórico. Enquanto a sociedade quiser viver
de simples pressupostos, estará criando castelos no
ar e miséria na vida.

Bronislau Malinowski

21
processo de psicoterapia baseado em seu estudo sobre
a linguagem; mas o fenômeno mais evidente em todos
os pensadores e cientistas nascidos no século XX, é o
espí- rito de oposição que desenvolveram, pois
assistimos ao período da história de maior crítica a
tudo o que se fez
— tal acontecimento revela, de um lado, uma experi-
mentação sobre o que os gênios passados fizeram, mas
de outro, uma maior atitude de inveja e mediocridade.
O pensador da França captou claramente que a verda-
deira origem da filosofia não poderia ser a razão, mas
não avançou em seu projeto, para chegar ao
sentimento, pois permaneceu nos sentidos; notou a
alienação grada- tiva do povo, devido ao seu idealismo
e viu o absurdo de Hegel e Platão, quando deram mais
atenção à po- lítica: a Idade Média foi assim, uma
incrível máscara social e atualmente a maioria dos
Merleau-Ponty países procura a volta a um estado paradisíaco através
de práticas primitivas, opondo-se ao progresso
MERLEAU-PONTY (1908-1961) técnico-científico. A conscien- tização desse
fenômeno é fundamental para que a hu- manidade não
O século XX assistiu a uma característica muito pereça.
significativa: o crescimento de uma gama variada de
interesses, desde assuntos políticos, hegelismo e mar-
xismo, até a fenomenologia de Husserl, o estruturalis-
SARTRE (1905-1980)
mo, antropologia, naturalismo, teologia e ontologia;
Para compreender a civilização francesa contem-
Maurice Merleau-Ponty tentou compreender todas es-
porânea, nada melhor do que saber o que Jean-Paul
tas questões, dando sua opinião a cada uma, sem for-
Sartre pensou e realizou; a França é o país mais ávido
mar um corpo filosófico original. Aliás, nossa época é
pela liberdade que existe e, desde sua Revolução, per-
diferente devido à procura que seus maiores talentos
segue com incrível denodo tal fim — vamos dizer que
realizam para alcançar o que Hegel chamou de síntese
o mundo seria muito mais pobre culturalmente se não
e a Trilogia Analítica de união entre ciência (ação), filo-
houvesse tal nação.
sofia (pensamento) e teologia (sentimento).
Sartre é um literato da filosofia, difundindo o
Merleau-Ponty era de opinião que a filosofia
exis- tencialismo (e o marxismo) com rara habilidade;
deve- ria descobrir sua fonte, isto é, o mundo sensível;
em 1933 passou um ano em Berlim, estudando a
depois falou sobre a mania dos filósofos de confundir
fenome-
política com filosofia, porque a primeira abriga um
pensamento ruim; critica humanismo e afirma que o
filósofo sobre- voa o mundo, procurando o idealismo,
tornando a rea- lidade cada vez menos real. Em
seguida, propõe com- preender uma nova origem para
a ciência e filosofia, sendo de opinião que a
consciência é capaz de chegar lá; finalmente,
aproxima-se da linguagem, pensando que ela
permitiria a coexistência entre os seres huma- nos
(Waelhens, A. de: Une Philosophie de L’Ambiguité:
L’Existentialisme de Maurice Marleau-Ponty).
Merleau-Ponty exerceu influência no pensamento
francês atual, como em Lacan, que tentou construir um

21
Jean-Paul Sartre

21
nologia de Husserl, as teorias existencialistas de Geoge Edward Moore
Heide- gger e Jaspers e a filosofia de Max Scheller;
interessou- se ainda por Kierkegaard, elaborando
depois sua própria versão filosófica; seu livro
principal é O Ser e o Nada, que seria uma ontologia
fenomenológica: existem o ser-para-si (consciência) e
o ser-em-si (fenômeno); o ser-em-si é aquilo que é e o
ser-para-si, a consciência, é aquilo que não é (Jeanson,
F.: Sartre Par Lui-Même). Vê-se aqui o dialetismo
hegeliano (ou platônico) quan- do pretende identificar
a consciência (ser-para-si) com o que não existe; em
todo caso, o famoso literato fran- cês trouxe para seu
país uma nova concepção de vida, inspirado nos
filósofos alemães.
Sartre diz que a liberdade obriga o homem a
fazer- se, em lugar de apenas ser; o valor da vida é o
sentido que cada pessoa escolhe para si mesma — pois
a vida mesma não tem sentido algum; o personagem
princi- pal de seu livro, A Náusea, vive só, em um
mundo sem razão de ser. Finalmente, considera o
marxismo como a filosofia insuperável do século XX,
porque é a única

21
que compreende o homem e os acontecimentos Vejamos agora qual é a origem do chamado
(Ga- raudy, R.: Perspectives de L’Homme). Neste capita- lismo moderno (neocapitalismo), cujo maior
momen- to, aparece o racionalismo francês com inspirador foi John M. Keynes, juntamente com Piero
toda a intensi- dade, quando pretende entender o Sraff, Joan Robinson e Michael Kaleski; a
universo e os seres humanos e não sentir, Universidade de Oxford foi o centro de onde emanou
conscientizar. Aliás, as ideias de Sartre revelam tal orientação.
uma total teomania, ao pretender dar ao homem o
destino de sua vida, conforme o seu tipo de
existência, dentro daquilo que os pensadores
chamam de imanência.
MOORE (1873-1958)
A Inglaterra deixou de ser a grande potência
mun- dial no século XX, por força de uma alteração
completa em sua filosofia de vida; o empirismo foi
inteiramente substituído pelo idealismo originário
da Alemanha e finalmente foi elaborada por George
Edward Moore e Bertrand Russel uma nova
maneira de pensar que seria um realismo empírico
analítico.
Moore dedicou grande interesse ao estudo da
lin- guagem, sendo de opinião que as proposições
do senso comum deveriam ser aceitas como
verdadeiras, desde que não poderiam ser provadas
ou contestadas; esta- va já em voga o
estruturalismo (Saussure, Jakobson, Hjelmslev) que
tentava entender o todo, o substancial através de
partes que, neste caso, seria a linguagem. Por
exemplo: ele investigava as coisas boas e depois o
sig- nificado da palavra bom, chegando à conclusão
que é um predicado básico, uma qualidade
irredutível — as- sim como a cor amarela é
irredutível (Warnok, G.: G. E. Moore, in English
Philosophy Since 1900).
Vemos já o que poderíamos chamar de
mediocriza- ção do pensamento, pelo fato de tentar
explicar questões fundamentais através da
linguagem; de outro lado, nota- se que os pensadores
do século XX tentavam alargar seus horizontes
incluindo outros setores, principalmente o das
ciências. Especialmente a Inglaterra perdeu toda
aquela firmeza que a filosofia empirista forneceu ao
formidável Império Britânico, dona de todos os
mares e o primeiro país industrializado em todo o
mundo.

O PENSAMENTO
ECONÔMICO
21
Keynes (1883-1946) entre o capitalismo monetário ou rentista e o capitalismo
in-
(Economista)
Como já escrevemos anteriormente, o chamado
sistema capitalista, inaugurado por Adam Smith, colo-
cou o ser humano subordinado ao dinheiro, como se
este fosse o valor máximo da existência, pelo menos
neste mundo. Nesse nível de ideias, é natural que
surgisse um Karl Marx (preguiçoso e mal
intencionado) apre- goando que o dinheiro deveria
estar em mãos dos que trabalham; nada mais lógico e
consequente, desde que os operários substituam sua
própria operosidade, pela arte de governar e
transacionar; neste caso, teriam de deixar de serem
trabalhadores, passando para a conduta de gerentes —
exatamente como aconteceu nos países marxistas: o
grupo burocrata (capitalista) dominando o restante da
nação (trabalhadores).
A verdade é que, durante a Primeira Guerra Mun-
dial, as ideias de Adam Smith tiveram de ser revistas,
porque o seu “laissez faire” não estava dando bons re-
sultados, desembocando na crise de 1929. E mais do
que claro que deixando o ser humano à vontade, con-
forme falava a velha filosofia inglesa (Smith e Ben-
tham), com toda certeza, chegaria a desatinos. Piero
Sraff denunciou tal situação, mostrando que a empresa
só deveria crescer, na medida em que tal crescimento
fosse compensador — caso contrário, faria
monopólios e concorrências imperfeitas (desleais);
neste sentido, deu mãos às ideias de Hilferding e
Lenin (Galbraith, J. K.: Economic Development).
Vemos que as ideias de Adam Smith seguem uma
filosofia de otimismo sobre o ser humano, bastante
fora da realidade, porque não con- sidera a sua
psicopatologia; por este motivo, não con- seguiu
controlar suas falhas — desde que todo sistema
humano é constituído de erros e acertos.
Neste ponto, surgiu John Maynard Keynes que,
em lugar de reconstruir a teoria econômica a partir da
velha ideia do valor (Smith, Ricard, Marx), procurou
verificar as teses marginalistas, que se baseavam nos
modelos de concorrência perfeitos — pois, para estes
últimos, não poderia estar havendo crise; o famoso
eco- nomista inglês mostrou que o nível de emprego
depen- de da demanda efetiva, isto é, da proporção da
renda que é gasta em consumo ou investimento; era de
opi- nião que, em uma economia capitalista, pode ser
mais lucrativo entesourar qualquer quantia de dinheiro
— praticamente, ele estabeleceu a grande diferença
21
dustrial ou empreendedor (Klein, L. R.: The
Keysenean Revolution). Observamos aqui um
enorme incremento ao capitalismo puro, com uma
supervalorização do di- nheiro; a partir daí,
evidentemente, o capital passou a valer mais ainda
por si mesmo, desfavorecendo o pleno emprego e
criando um problema social imprevisível. O
economista inglês pensou então em um meio de
regular a taxa de juros, para mantê-la abaixo da
eficiência mar- ginal do capital, favorecendo o
consumo, mediante a expansão dos gastos públicos
e realizando empréstimos para absorver os recursos
ociosos — praticamente, co- locou o Estado
controlando o capital. Keynes publicou suas ideias
no livro Teoria Geral, que alcançou quase o mesmo
sucesso de O Capital de Marx; suas novas des-
cobertas foram colocadas, na prática, após a
Segunda Guerra Mundial com o nome de
neocapitalismo.
A situação em que estamos atualmente (1983) é
de- corrente dessa ideia, pois o dinheiro é visto
atualmen- te como maior valia ainda; assim sendo,
o próprio em- presário troca o valor mercadoria,
produção (que antes

John Maynard Keynes

21
despertava seu amor próprio e orgulho em ser útil), G. H.: A History of Economic Thought). Acredito que o
pelo acúmulo de capital — fenômeno que só fenômeno mais importante na famosa
desfavorece o país, o povo e o próprio capitalista, pois
reduz acentua- damente a riqueza de cada nação: 1) em
bens produzidos,
2) no mau uso da capacidade humana, 3) no aumento
do roubo e da especulação. É o mesmo fenômeno de
guar- dar minerais (ouro, prata, bronze), em vez de
utilizá-los para benefício geral, ou de não querer usar a
própria inte- ligência e capacidade, fechando-se em um
quarto escuro. Aliás, a situação de endividamento da
maioria dos países no mundo atual é devida à
esperança baldada de que o dinheiro possa resolver
todos os problemas, relegando o trabalho, a capacidade
individual e os verdadeiros bens produzidos a uma
posição secundária — o que é inferior passou a ser
visto como superior — mas não conseguiu sair de sua
posição de inferioridade.

Kalecki (1899-1970)
(Economista)
Sem que Keynes soubesse, seu sistema fora ante-
cipado por outro autor, Michael Kalecki, nascido na
Po- lônia, tendo conhecido, em Cambridge, Joan
Robinson e Piero Sraff. Enquanto o economista inglês
baseava-se no capitalismo, o polonês fundamentava-se
em Marx; ele dividia a humanidade entre
trabalhadores e capita- listas, dizendo que os operários
gastam o que ganham e os que possuem capital
ganham o que gastam. Não po- demos nos esquecer de
que os países chamados comu- nistas aderiram aos
conceitos de Kalecki, endividando- se fortemente.

Joan Robinson (1903- 1983)


Joan foi educada na ortodoxia marginalista e tor-
nou-se adepta de Keynes; seu livro Economia
Marxista procura compreender as principais teses de O
Capital e o que notou de mais evidente foi o desejo de
Marx de derrubar o capitalismo, enquanto os
economistas esta- vam em uma total inconscientização
e a maioria deles assemelhava-se mais ao marxismo
do que aos autores tradicionais. No seu livro
Liberdade e Necessidade tenta realizar uma
interpretação da história da huma- nidade, procurando
reintegrar a ciência econômica no conjunto das
ciências humanas, baseando-se na natu- reza (Haylor,
22
economista inglesa foi a sua procura de uma
explicação mais ampla para as questões
econômicas; no entanto, ela não quis notar que o
próprio Adam Smith inspirou- se na filosofia de seu
país, predominantemente empiris- ta e que foi
substituída pouco a pouco pelo idealismo alemão e
até pelo positivismo francês — tornando-se difícil
adaptar suas ideias capitalistas a uma concepção de
existência totalmente modificada pelo tempo — por
esse motivo já usavam muitas concepções oriundas
do marxismo, sem o perceber; afinal de contas, se o
capita- lismo de Smith e Ricard estiver certo, Marx
estará mais certo ainda.

Sraff (1898-1983)
(Economista)
Piero Sraff escreveu um livro, A Produção de
Mer- cadorias por Meio de Mercadorias, onde
coloca uma espécie de pedra filosofal da economia:
uma medida in- variante do valor; com esta
descoberta, mostrou como é possível construir uma
visão coerente do movimento dos grandes
agregados econômicos e das leis que os re- gem. A
mercadoria padrão seria puramente auxiliar e o

Joan Robinson

22
campo ideológico: enquanto este último aconselhava a

Piero Sraff

verdadeiro valor o trabalho; se as mercadorias são pro-


duzidas por meio de mercadorias, os preços, salários e
lucros são determinados pelo tempo gasto de trabalho
(Hayek, F. A.: A Survey of Contemporary
Economics). Nota-se que Sraff quis revalorizar o
trabalho, desper- tando grande polêmica, não apenas
no ocidente, como nos meios marxistas; o economista
italiano inclusive mostrou que um método mais
intensivo de capital pode substituir outro menos
intensivo, colocando o dinheiro como elemento
secundário; parece-me que só lhe faltou a percepção
de que a qualidade da atividade seria o ele- mento
mais importante e o dinheiro totalmente subor- dinado
aos interesses gerais.
A Trilogia Analítica vê esta maneira de usar o di-
nheiro como impedimento para o desenvolvimento do
ser humano — assim como todo elemento de troca,
que seja colocado em um plano superior ao da
atividade do homem; todo o essencial deveria ser
fornecido sem des- pesa alguma, reservando-se a
moeda (de valor real, ouro ou prata) para pagamento
de trabalho sofisticado, isto é, o que servisse de
progresso e desenvolvimento para a humanidade; deste
modo, os seres humanos produtivos e bons seriam
recompensados e os preguiçosos e inativos viveriam
apenas com o básico: alimento e moradia.

Hayek (1903- 1992)


Friedrich A. Hayek, austríaco, é denominado o
maior filósofo da economia e adversário de Keynes no

22
intervenção do Estado sobre o processo econômico, com a filosofia e a psicologia; os linguistas notaram
o primeiro afirmava que tal atitude contrariava a que a língua falada é bem anterior à escrita, motivo
liberda- de individual, sendo que tal ideia de pelo qual seria possível conhecer melhor o ser humano
inspiração marxis- ta levaria inevitavelmente às e a sociedade, conhe- cendo a linguagem.
tiranias; publicou isso em seu livro O Caminho da
Servidão, no ano de 1944.
Hayek diz claramente que, devido à crescente
arrogância, os economistas, sociólogos e
psicólogos, em sua pretensão de dirigir o
comportamento humano (como Skinner que
planejou um mundo além da liber- dade e da
dignidade, onde tudo é organizado, por ser ra-
cional e ótimo), estão frontalmente contra a
liberdade; ele afirma que o problema básico dos
pensadores so- ciais é considerar a liberdade como
algo inconveniente
— Hayek considera a liberdade como elemento
deter- minante de todo o progresso humano. Aliás,
em 1982, encaminhamos um resumo da Trilogia
Analítica a ele, que concordou com todos os seus
postulados básicos.
Em meu livro A Libertação mostro que ser
livre é estar de acordo com tudo o que é real, belo e
bom; deste modo, o único caminho para um
verdadeiro desenvol- vimento social, seja ele
científico, político e até mesmo econômico, só
poderá acontecer por este tipo de liber- dade — e
não por uma pretensa atitude de tudo poder: o sim e
o não, o certo e o errado, a tese e a sua antítese,
como Hegel queria e inundou a civilização com tal
vã esperança. E necessário voltar um pouco no
tempo e ver que Tomás de Aquino colocou a razão
como base da existência, enquanto Duns Scot o
afeto e Ockam a vontade; a Trilogia Analítica põe o
sentimento (amor) na base e o raciocínio sob a sua
dependência: o que sig- nifica que todo sistema
social (inclusive o econômico) tem que estar
fundamentado em uma ajuda efetiva ao ser humano,
isto é, de acordo com a sua vida emocio- nal e
racional, evidentemente — esta é a sua verdadeira
liberdade: amar e verbalizar o bem o belo e a
verdade da existência.

O ESTRUTURALISMO
O estruturalismo é uma orientação iniciada na
se- gunda metade do século XIX que visa ao estudo
da lin- guagem usando de um método próprio;
apesar de ser uma ciência autônoma, tem ligações

22
Saussure (1854-1913) Jakobson (1896-1982)
Ferdinand de Saussure nasceu em Genebra, Roman Jakobson nasceu em Moscou, ligando-se
Suíça, tornando-se professor nessa mesma cidade; três ao Formalismo Russo, que acreditava ser o mais im-
anos depois de sua morte os próprios alunos portante os procedimentos e não o conteúdo psicológi-
organizaram uma coletânea das aulas que administrou, co ou filosófico das obras; influenciado pelo linguista
causando grande sensação. Ele diz o seguinte: polonês Jan Niecislaw e pelo norte-americano Leonard
estrutura é enten- dida como um sistema que explica o Bloomfield, afirmou que o fonema é um feixe de
arranjo do todo em partes, as quais são solidárias — traços distintivos, passando a operar com eles. O
estabelecendo dois níveis no estudo da linguagem: um distúrbio da linguagem (afasia proveniente da
essencial, que é a língua, independente do indivíduo e deterioração da capa- cidade de seleção das unidades
outro secundário, a parte individual da linguagem, ou linguísticas, é chamado paradigmático e a deterioração
melhor, a fala; é de opinião que o signo tem caráter do poder de combinar tais unidades seria o distúrbio
arbitrário, pois não há razão alguma para que uma sintagmático. A partir daí, o linguista russo propôs
árvore, por exemplo, seja assim denominada — uma Teoria da Informação, colocando um modelo para
querendo dizer que não existe elo específico entre o a transmissão da comunica- ção, compreendendo um
significante e o significado; chama a esta ciência emissor e um receptor, ligados por um canal de
Semiologia, que é a vida dos signos no seio da vida transmissão, pelo qual passa uma men- sagem,
social (Leroy, M.: As Grandes Correntes da baseada em um código relativo à experiência que o
Linguistica Moderna). Vê-se no estruturalismo a mes- emissor tem do mundo, ou melhor, um referente
ma ideia da filosofia existencial e da fenomenologia, (Ruwet, N.: Essais de Linguistique Générale de Jakob-
quando concede importância fundamental ao secundá- son). Estamos assistindo aqui ao total absurdo de que-
rio, ou melhor, à linguagem, como se a língua rer transformar a filosofia em um verdadeiro jogo de
forneces- se significado ao que existe, inclusive às Linguagem, a ponto de Lacan pretender organizar uma
coisas em si; estamos em uma total inversão, psicoterapia baseada no estruturalismo; segundo a pro-
colocando o dependen- te como básico e o essencial posição de Jakobson, a realidade teria um milhão de
como se fosse dependente; tal fenômeno é constante fa- ces, conforme o tipo de captação do indivíduo
no Círculo de Viena, na Esco- la de Frankfurt e no emissor
Grupo de Oxford. — o que levaria o homem a realizar a maior confusão

22
Ferdinand de Saussure Piero Sraff

22
na Terra; a inveja de Jakobson a respeito da realidade
mostrou-se muito evidente, imitando Kant em sua GRUPO DE OXFORD
ideia de juiz e senhor da verdade.
Uma das características mais importantes do
sécu- lo XX foi a criação de Escolas, assim que um
Hjelmslev (1899-1965) pensador ou cientista descubra algo de valor;
(Linguista) exemplos são o Cír- culo de Viena, a Escola de
Frankfurt e agora o Grupo de Oxford, que tem duas
Louis Trolle Hjelmslev juntamente com seu com- orientações: o positivismo lingü- ístico e o terapêutico;
patriota Viggo Brôndal oficializou o estruturalismo na entre os representantes desse gru- po se encontram:
Europa, dedicando-se sobretudo aos aspectos metodo- Gilbert Ryle, John Langshaw Austin, Peter Frederick
lógicos da linguística e evitando qualquer elemento da Strawson e Willardvan Orman Quine (norte-
metafísica; propôs o princípio do empirismo, baseado americanos).
na 1) não-contradição, 2) na exaustividade e 3) na sim- Ryle (1900-1976)
plicidade absoluta, de maneira que o primeiro
predomi- ne sobre o segundo e este sobre o terceiro — Gilbert Ryle passou da filosofia de Kant e Hegel
dando im- portância às relações das partes com o todo, para o positivismo linguístico; sua preocupação foi
como mais tarde a Gestalt trabalhou com eficácia res- ponder a seguinte pergunta: o que é fazer
(Martinet, A.: Au Sujet des Fondements de La Théorie filosofia? Sua ideia era que a atividade filosófica
Linguistique de Louis Hjelmslev). Nota-se a sua consistia na remoção das confusões dos conceitos,
atitude de eliminar a fi- losofia (metafísica), tentando devido ao engano entre as construções gramaticais e
substituí-la por nada mais do que um jogo de palavras as lógicas. No seu livro Dilemas, publicado em 1954,
— a tal ponto que hoje em dia é comum o ser humano diz que a maior parte dos problemas surge em forma
colocar sua palavra como se fosse uma filosofia. de dilemas; por exemplo: o homem é responsável
pelos seus atos e o comporta- mento individual é
Chomsky (1928- ) resultado da influência do meio e das bases fisiológicas
(Ayer, A.J.: Philosophy and Lan-
(Linguista)
Avram Chomsky é norte-americano de origem ju-
daica (como Jakobson) e esquerdista; apesar de
linguis- ta, opõe-se ao estruturalismo e ao
behaviorismo. Diz que a linguagem humana tem
como propriedade geral o caráter aberto e a
criatividade — algo inconsciente e espontâneo;
acredita que através da gramática gerativa,
sintagmática e transformacional poderia responder a
to- das as perguntas (Lyons, J.: Chomsky). Chegamos
aqui ao auge do intelectualismo, como se fôssemos
destituí- dos totalmente de qualquer sentimento.
A influência do estruturalismo foi muito poderosa
em todo pensamento do século XX, seja na Escola de
Frankfurt, com Walter Benjamin, no Círculo de Viena
e principalmente no Grupo de Oxford, devido ao
desen- volvimento extremado do aspecto intelectual
— incen- tivando ao máximo a megalomania e a
teomania, como se fosse possível ao ser humano
controlar e resolver to- das as questões do universo.
através do conhecimento da linguagem.

22
Avram Noam Chomsky

22
guages). Vemos agora uma nova tentativa de respon- portamento em expressões verbais, algo exterior à von-
der a todas as interrogações através da percepção das
confusões gramaticais e da lógica que, afinal de
contas, é um processo de ensinar a raciocinar — e não
mais o raciocínio, em si; algo anterior à filosofia.
Ryle tenta retirar do ser humano qualquer culpa
de seus erros, levando-o a acreditar que não tem má
inten- ção ou uma deliberação interna que o leve aos
desatinos; até parece uma argumentação demoníaca,
para afundar toda a sociedade humana. Vemos de
imediato um país, de tradição empirista e, portanto,
emocional, abandonar tal caminho para penetrar
praticamente em um barco furado; ele aceitou a
filosofia racionalista e dialética de Hegel e o grupo
Estruturalista alemão, mas esquecendo que a
Alemanha conservou o idealismo kantiano em sua base,
bem como o espírito prático científico.

Austin (1911-1960)
John Langshaw Austin é o maior representante da
escola analítica de Oxford; sua descoberta mais impor-
tante é que ao lado do trabalho meramente descritivo
das expressões verbais, existe uma dimensão
executiva, a que deu o nome de perfomatória, isto é, a
realidade verbal e a não-verbal da linguagem em
funcionamento estão indissociavelmente ligadas.
Distingue três reali- dades linguísticas: um ato
locutório, outro ilocutório e o terceiro perlocutório;
por exemplo, na expressão “dis- pare nela”, existe um
ato locutório, outro ilocutório, porque foi um
aconselhamento, uma instigação e, final- mente,
perlocutório, porque persuadiu a disparar nela. Austin
estava convencido que emergeria uma nova ci- ência
que libertaria a filosofia do peso da linguagem —
assim como um dia nasceu a matemática que originou
a física, estaríamos assistindo o nascimento da lógica
matemática que iria dar origem à verdadeira filosofia
(Fann, K. T. Symposium on J. L. Austin). Parece
incrí- vel o que estamos vendo ultimamente, ao se
valorizar o secundário, pretendendo que ele assuma
função pri- mordial; acredito mesmo que a mente
humana esgotou sua capacidade de pensar, pois tudo o
que poderia ser raciocinado já foi feito. Estamos em
uma nova era, na qual temos de procurar caminho
diverso do que o estri- tamente filosófico, ou científico
no seu sentido positi- vista, ou teológico tradicional —
temos de uni-los em uma nova concepcão de vida.
Austin tentou colocar a origem do próprio com-
22
pensa ele, desfez a fronteira entre metafísica e ciência
natural, reforçando o pragma-

Willard van Orman Quine

tade do ser humano e a sua própria vida


psicológica: tal atitude é típica da desconfiança
paranóide, que vê todos os problemas provenientes
do mundo exterior — neste caso, podemos afirmar
que sua filosofia de vida agudi- za os chamados
“sentimentos” persecutórios, levando o indivíduo a
um aumento de sua psicopatologia, em prejuízo de
toda a nação.

Quine (1908-2000)
(Linguista)
Willard van Orman Quine teve desde muito
cedo interesse pela lógica; para estudar melhor o
assunto, es- teve em Viena, Varsóvia e Praga, onde
conviveu com Carnap; em 1936 tornou-se professor
em Harvard. Sua filosofia da lógica liga-se à
epistemologia e à filosofia da linguagem.
O argumento mais famoso de Quine está na
sua recusa à divisão entre analítico e sintético,
partindo da distinção que Leibniz realizou entre
verdade da razão e verdade de fato; por exemplo:
nenhum homem não ca- sado é casado (pensamento
analítico, logicamente ver- dadeiro). Tal argumento,

22
tismo de Pierce (Alston, W.: Philosophy of Language). psicossocial, para que a Terra volte a ser o Reino de
De modo geral, o fenômeno que acontecia, no grupo Deus.
de Oxford, sucedeu em todo Império Britânico, pela
subs- tituição de sua filosofia de vida empirista por um
racio- nalismo, ou pior ainda, pela tentativa de
compreender tudo através de jogos de palavras —
mais semelhante ao Estruturalismo do que ao Círculo
de Viena, ou mes- mo à Escola de Frankfurt.
Justamente por esta causa, a Inglaterra está em
situação precária, frente à Alemanha e a própria
Áustria (1983). Quine é norte-americano e tal
influência negativa está se difundindo nos Esta- dos
Unidos que precisam conscientizá-la, para evitar o
mesmo declínio que sucedeu ao Império Britânico.

Strawson (1919-2006)
Peter Frederick Strawson preocupou-se com a
filosofia da lógica e a reconstrução da metafísica; por
exemplo, se eu digo: o rei da França é calvo, estou su-
pondo que tal país tenha um imperador, sendo desne-
cessário afirmar tal coisa — porém, uma
pressuposição é errada, porque a França não tem rei.
Outro exemplo: é verdade que está chovendo,
revelando uma redundân- cia na palavra verdade; o
pensador britânico criou uma teoria metalinguística da
verdade (Gellner, E: Words and Things). Tal atitude
de Strawson ocasiona total alienação, porque distrai o
ser humano de sua vida psí- quica para algo
inteiramente secundário e consequente; a Trilogia
Analítica chama a esta conduta de inversão, porque
tenta colocar o superior na dependência do in- ferior,
causando toda a enorme confusão na vida social
contemporânea e um aumento assustador de doenças.

ALEMANHA
Sem dúvida alguma, desde o século XIX, o pen-
samento germânico domina a humanidade; começando
com Leibniz e principalmente com Kant e Hegel, os
pensadores alemães têm orientado a civilização con-
temporânea em todos os domínios: filosófico, artístico,
religioso e até mesmo econômico. De um lado, existe
um idealismo muito grande, amor pelo
desenvolvimen- to e ciência; de outro, uma patologia
acentuadíssima: teomania e megalomania em Kant,
alienação em Hegel e forte paranóia em Nietzche — a
finalidade deste livro é a de revelar tal grau de doença

23
Max Scheler (1874-1928)
Discípulo de Husserl e Eucken, Scheler afirma
que existe um mundo real e objetivo de valores ou
essências eternas que se captam intuitivamente, o
que denomina de intuição emocional; o belo, o bom
e o verdadeiro são valores intraduzíveis em termos
racionais — exis- tem a priori, porque são
extratemporais e necessários, independentes da
experiência e históricos, porque se manifestam nos
eventos — exemplificando: uma obra de arte é um
bem, uma determinação do valor univer- sal do
belo. Os próprios sentimentos têm um conteúdo a
priori, pois além do apriorismo racional, há o aprio-
rismo emocional. A metafísica é antropologia e não
há antropologia em sentido metafísico sem teologia;
a an- tropologia é teística: o problema do homem
implica o de Deus. O amor é essencialmente
teístico, por isso é transcendência. Depois de ter
elaborado tão bela filoso- fia, o filósofo alemão
mudou de pensamento, entrando por um verdadeiro
caos (Sciacca, M. F.: História da Fi- losofia, III
Volume).
A filosofia nórdica seguiu um
desenvolvimento contínuo, tendo a Alemanha
manifestado dois tipos de orientação: uma
destrutiva, fora da realidade: Hegel, Feuerbach, e
outra realística: Kant, Schelling e prin- cipalmente
Scheler; vemos como este último passou
definitivamente do campo racional, como base,
para o emocional; comparou a metafísica ao
sentimento e Deus ao afeto — infelizmente, não
tinha conhecimento da psicopatologia, motivo pelo
qual entrou pelo cami- nho da confusão, perecendo
com 54 anos de idade.

Peter Frederick Strawson

23
Wittgenstein (1889-1951) Peter Frederick Strawson

Ludwig Josef Johann Wittgenstein nasceu na


Áus- tria e estudou filosofia na Universidade de
Cambridge, sendo aluno de Bertrand Russel; pertencia
a uma famí- lia rica alemã, que havia emigrado da
Saxônia para a Áustria; sofria de acentuada depressão,
desejos de sui- cídio e procurava antes de tudo ser
puro; quis ingressar em um mosteiro.
Wittgenstein dizia que muitas coisas poderiam
ser ditas, enquanto que outras são mostradas; as
proposi- ções genuínas dizem apenas como as coisas
são e não como deveriam ser; no mundo não existe
necessidade e tudo é acidental; portanto, não existe
valor no universo; o que está no mundo nem é bom,
nem mau; a intuição sub specie aeternitatis é a
percepção da limitação que existe (Stenius, E.:
Wittgenstein’s Tratactus). O filósofo austríaco tinha a
mesma conduta de todos os pensadores atuais, no
sentido de possuir interesses variados, tentan- do
compreender todos os campos do conhecimento, para
sintetizá-los em um só — segundo a velha intenção
he- geliana (tese,antítese e síntese). A Trilogia Analítica
con- seguiu o que Arnold Keyserling chamou de
unificação dos três setores (ciência, filosofia e
teologia), algo dife- rente da ideia de Hegel, dada a
impossibilidade de jun- tar a realidade com a fantasia;
assim sendo, parece que nosso trabalho seja
restringente, porque mostra que o ser humano está
“restrito” dentro do que é real — basta per-

23
ceber que tudo o que existe, inclusive o infinito lado de seu problema de teomania e inveja, ao negar a
(Deus) é real; estaríamos então numa restrição existência de valor na criação, ten- tou elaborar um
irrestrita. quadro geral da civilização, mostran- do a não
Wittgenstein aproximou-se do estruturalismo existência de problemas e sim as fantasias, que nos
desenvolvido por Saussure (1857-1913), como criam obstáculos (perplexidades).
fez a maioria dos pensadores atuais; primeiramente,
diz que a linguagem engendra as mesmas
superstições das quais é necessário desfazer-se, para
que ela (linguagem) não enfeitice o pensamento:
mais importante ainda do que descobrir a essência
da linguagem seria desven- dar como funciona:
não há o que é considerado jogo da linguagem —
o que existe realmente são certas se- melhanças,
certo “familiar”, certos parentescos que se
combinam, se entrecruzam e se permutam. Na
verdade, não existem problemas filosóficos, mas
somente per- plexidades; com isto, o pensador
austríaco está dizendo que na filosofia não há nada
oculto e tudo aquilo, que é chamado de problema,
está ao alcance da inteligência
— pois a função da filosofia consiste em mostrar as
ra- ízes da perplexidade. Enquanto os positivistas
rejeitam a metafísica, ele admite a possibilidade de
apreensões intuitivas, mesmo que não possam ser
expressas pela linguagem (Russel, Moore, Carnap:
Ludwig Wittgens- tein: The Man and His
Philosophy). Vemos aqui um pensador de grande
capacidade, caminhando para o en- tendimento da
metafísica, estruturalismo, positivismo, das
proposições do Círculo de Viena e de Russel: Witt-
genstein esclareceu vários pontos para a Trilogia
Analí- tica: 1) que a filosofia era algo diferente,
atualmente; 2) que nem toda percepção, intuição
pode ser manifestada e 3) principalmente, que a
linguagem não é elemento essencial, podendo até
prejudicar o pensamento.
O filósofo vienense exerceu decisiva
influência tanto no Círculo de Viena, como no
Grupo de Oxford: Moore e John Wisdom são
seguidores, tendo este úl- timo desenvolvido na
Inglaterra a sua filosofia analíti- ca: um fato muito
importante foi o desejo de ser puro, ou melhor, de
não ter qualquer consciência dos erros; tal
escrúpulo de consciência o levou a querer ingressar
em um monastério, produzindo-lhe uma situação
mui- to aflitiva; como vemos, o pensador
extrapolou seu campo específico e só não se
desenvolveu no cientí- fico por faltar-lhe a
experimentação; de certa forma, Wittgenstein foi o
último grande filósofo dos tempos modernos — ao
23
CÍRCULO DE VIENA ascenção e os nazistas já mostravam sua pe-

Moritz Schlick (1882-1936)


No ano 1907 o matemático Hans Hahn, o econo-
mista Otto Neurath e o físico Philipp Frank reuniram-
se em Viena para discutir problemas de filosofia da
ciência, sob inspiração da orientação de Ernest Mach,
a respeito da importância da lógica, matemática e da
física teórica na elaboração de teorias; logo em segui-
da juntou-se a esse grupo o filósofo alemão Moritz
Schlik, que estava descontente com a filosofia tradi-
cional (neokantismo e fenomenologia) e procurava o
conhecimento da ciência.
Inicialmente, Schlick nega a possibilidade de ju-
ízos sintéticos a priori, dizendo que as proposições de
Kant podem ser consideradas verdades logicamente
necessárias e, portanto, a posteriori não havendo co-
nhecimento fatual a priori na essência da filosofia; era
da mesma opinião de Mach, quando dizia que todo co-
nhecimento consistia em uma descrição da
experiência. Via o racionalismo cartesiano coma uma
forma de ide- alismo (Pap, A.: The Vienna Circle).
Vê-se de imediato que sua intenção seria o retorno ao
empirismo clássico, com a invalidação das teses de
Kant.

Rudolf Carnap (1891-1970)


Nasceu na Alemanha, estudou matemática, físi-
ca e filosofia na Universidade de Jena; afastou-se do
ambiente filosófico alemão, por ser muito kantiano e
filiou-se ao Círculo Vienense. Primeiramente, Carnap
afirmou que seria possível formular a psicologia em
ter- mos fisicalistas, que seriam as condutas
manifestas dos seres humanos e animais; transcorria
uma discussão na época, influenciada pelo kantismo,
se haveria objetos exteriores, além daqueles captados
pelos sentidos e a posição do pensador alemão era a
procura de soluções solipsistas, ou melhor, uma volta
para o mesmo (ipso) (Goodman, N.: The Structure of
Appearance). É fá- cil notar que Carnap colocou a
resolução de todos os problemas em uma simples
atitude do ego, dando-lhe o nome de ipso, como se
desta maneira ele fosse in- falível — revelando aqui
toda a sua megalomania. De outro lado, o Círculo de
Viena quis reviver o velho em- pirismo, devido aos
desastres que a filosofia germânica vinha causando —
o nacional socialismo alemão estava em plena

23
fosse algo deter- minado e previsível e em A Miséria
do Historicismo reconheceu dois falsos pressupostos
do naturalismo:

Moritz Schlick

riculosidade, inclusive perseguindo os intelectuais


que não rezavam pela sua cartilha.

Karl Popper (1902- )


Karl Raimund Popper nasceu em Viena e
dedicou- se ao princípio de verificabilidade; em seu
livro Lógica da Investigação, publicado em 1935,
afirma que a dis- tinção entre as teorias científicas e
as pseudo-científicas não é a verificabilidade
empírica, mas a refutabilidade empírica — diz ele
que uma teoria científica deve ser reconhecida
coma tal, na medida em que for possível deduzir
proposições observáveis, cuja falsidade seria prova
da falsidade da teoria (Popper, K.: The Logical of
Scientific Discovery). Podemos notar o puro
dialetismo hegeliano, quando o pensador austríaco
pretendia tirar da falsidade a certeza de alguma
coisa. Em seguida, Popper diz que muitas
descobertas científicas vieram de mitos, como a
teoria corpuscular da luz — como se fosse possível
chegar a algo real através do irreal.
Em seu livro A Sociedade Aberta, critica
Platão, Hegel e Marx devido à ideia dos três sobre o
evolucio- nismo histórico, como se a sociedade

23
semelhança entre a evolução histórica e a biológica, portanto, o filósofo deve começar com a existência hu-
chegando ao ponto de dizer que o desenvolvimento filo-
genético confirma o autogenético e que a ciência da
his- tória deveria recorrer ao método das ciências
naturais. Note o leitor como o Círculo de Viena já via
a impossi- bilidade de aplicar os métodos das ciências
naturais ao ser humano, como sempre foi feito (desde
que a psico- logia se desligou da filosofia) e a
inconveniência de tal atitude; como se tornou
evidente, um número cada vez maior de pensadores
vinha observando a impossibili- dade, de um lado da
filosofia e, de outro, da ciência, de resolver todos os
problemas. É por este motivo que a Trilogia Analítica
é algo diferente tanto de um campo, como de outro
(ciência e filosofia), mas semelhante na essência: em
sua causa eficiente e final, sendo o senti- mento
(teologia) a mais importante de todas.
Os próprios pensadores germânicos e austríacos
notavam o desastre que a megalomania de seus filóso-
fos passados havia causado em seus próprios países,
tentando fazer renascer o velho empirismo inglês; tal
fenômeno prova que a experimentação é elemento
fun- damental para atingir a verdade, desde que
funcione dentro de uma conduta de afeto e verdade —
e a única maneira para atingir tal intento é através da
percepção dos erros e da atitude de inveja e oposição
que fazemos à verdade, como diz a Trilogia Analítica.

Heidegger (1889-1976)
Martin Heidegger nasceu em Messkirch (Baden),
Alemanha, estudou com Husserl e Heinrich Rickert na
Universidade de Freiburgim-Breisgau; em 1923 assu-
miu as cátedras de filosofia da Universidade de Mar-
burg; em 1927, publicou Ser e Tempo, considerado
seu maior e mais conhecido trabalho.
A preocupação de Heidegger era o problema do
ser, seu sentido, sua verdade; sua opinião era que os
gregos colocaram corretamente a questão e os
teólogos escolásticos a trivializaram, trabalhando com
um con- ceito de ser vazio e abstrato, dentro da lógica
formal; em seguida, procura abordar os objetos do
conhecimen- to, como se apresentam imediatamente
à consciência
— porque as pressuposições formadas por séculos de
metafísica distanciaram a filosofia do verdadeiro conhe-
cimento do ser. Diz ele que o método fenomenológico
leva a colocar como ponto de partida o ser que se dá
a conhecer imediatamente, ou seja, o próprio homem;
23
mana: serai (dasein).
O pensador alemão teve razão ao se referir à
ba- nalização que os escolásticos realizaram com a
filosofia grega, com suas pressuposições; a Trilogia
Analítica mostra que o grande erro do
medievalismo foi o de ten- tar explicar tudo pela
razão, através do silogismo aris- totélico (maior,
menor e conclusão), como se a filosofia fosse uma
espécie de jogo de palavras; e não haveria muita
desculpa com essa espécie de argumentação, por-
que o próprio Tomás de Aquino via a intuição,
como conhecimento imediato das coisas, conforme
Aristóte- les ensinara; precisamos mais de oito
séculos para reva- lorizar a percepção imediata
(Bergson, Husserl).
No seu livro Ser e Tempo, analisa a vida
cotidiana do homem, que seria constituída por três
aspectos fun- damentais: facticidade,
existencialidade e ruína: facti- cidade é estar no
mundo, sem que a própria vontade tenha
participado; existencialidade ou transcendência é
constituída pelos atos de apropriação das coisas;
ruína é o desvio de cada indivíduo de seu projeto
essencial, devido às preocupações cotidianas, que o
distraem e perturbam — tornando-o um ser
preguiçoso e acovar- dado, que acaba vegetando na
banalidade, como se fos- se um ente exilado de si
mesmo. Para encaminhar-se

Martin Heidegger

23
na direção do ser, é necessário desvendar a existência Karl Jarspers
autêntica, aquela que o faz o verdadeiro revelador do
ser (Corvez, M.: La Philosophie de Heidegger). Este
aspecto abordado pelo filósofo alemão mostra bem a
mentalidade do homem moderno: estar jogado no
mun- do e a sua ruína seria ocasionada pelo tipo de
suas pre- ocupações diárias, que nós chamamos de
alienação; a questão da ruína é magistral, porque
esclarece o resul- tado da procura de caminhos errados
durante a existên- cia; sua maneira de ver a vida é
incrível ao dizer que a apropriação às coisas seria
nossa principal função, seja o material ou o espiritual:
a ciência e Deus.
No seu livro Ser e Tempo, analisa o conceito de
angústia, atribuindo-a ao fato de o homem viver uma
existência inautêntica; aqui começa a aparecer um ver-
dadeiro psicoterapeuta, motivo pelo qual surgiu uma
orientação psicoterápica baseada na filosofia existen-
cialista. Heidegger diz que, sentindo angústia, o ser
humano tenta voltar a sua totalidade, juntando seus pe-
daços; porém, não vê uma causa para estar angustiado,
mas tal fenômeno teria sua fonte no mundo como um
todo e em estado puro. O pensador alemão introduz a
possibilidade de o homem poder atribuir um sentido
ao ser — tema central no processo de logoterapia, de
que Viktor E. Frankl lançou mão. Heidegger chegou a
dizer que poderemos até transcender-nos de nossa
situação;

23
haverá algum caminho que possa levar do tempo Deus, mas sentir-se diante de Deus; sábio não é quem
exis- tencial ao sentido do ser? — pergunta ele. foge do mundo, mas quem esclarece a própria existên-
(Waelhens, cia diante de si mesmo, dos outros e de Deus; no ins-
A. de: La Philosophie de Martin Heidegger). tante em que me suspendo na orla da Transcendência
No final de sua existência, o pensador alemão não existo mais, sou e não sou, porque existo diante
vol- tou-se para a questão da linguagem, afirmando do Ser (Jaspers K.: Philosophie). O pensador alemão
que ele- var-se até o ser é possível através da
linguagem científica
— afinal de contas, o ser é um mistério, no sentido
de não poder ser compreendido através de ente
algum (Cha- pele, A.: L’Ontologie
Phenomélologique de Heidegger). Como o leitor
notou, Heidegger deu grande impulso à chamada
filosofia existencialista, vinda de Kierkegaard e
aperfeiçoada através das ideias fenomenológicas de
Husserl; acredito mesmo que Martin poderia ter tido
um maior desenvolvimento se não tivesse se
envolvido com a política nacional-socialista de seu
país.
A grande contribuição do pensamento existen-
cialista alemão foi o de ter lidado diretamente
com a consciência, que está no centro da psique
humana; assim sendo, todas as principais
interrogações que o homem tem em relação à
existência, podem ser traba- lhadas no seu próprio
interior — algo bem diferente do que ocorre com
o idealismo kantiano, o dialetis- mo de Hegel e
mais ainda com o nacionalismo, seja o francês de
Descartes, o italiano de Aquino, e o grego de
Aristóteles. O trabalho da Trilogia Analítica usa a
consciência em primeiro plano, dentro das
descobertas de Sócrates e a filosofia de Cristo.
Heidegger levanta o problema existencial, porém
não dá uma resposta convincente; ele deixa a alma à
mostra, esperando a chegada de algum lenitivo para
sua angústia, mas que não se encontra na filosofia
existencialista.

Jaspers (1893-1969)
Karl Jaspers afirma que toda busca é limitada;
por mais vasto que seja um horizonte, é sempre
circunscrito por um outro — o horizonte é o limite
que nos apri- siona e é ao mesmo tempo a prova do
infinito; nosso pensamento perfila-se entre o limite
do horizonte e o abismo do infinito: nesse
momento, sentimos o próprio naufrágio e a
transcendência; neste ponto, a existência se
esclarece, pois não é uma questão de acreditar em

23
existência de Deus, mas um encontro com o ser da
exis- tência que naufraga diante dele. O exterior
permanece incognoscível, enquanto que o interior
constitui uma estrutura cifrada, ou melhor, os modos
de manifestação da Transcendência são simbólicos e
neles devemos pro- curar sua significação — todo
existente é uma cifra da Transcendência (Sciacca
M.F.: História da Filosofia, III Volume). Neste ponto,
o filósofo germânico deixa claro aquilo que a Trilogia
Analítica vê possível no processo de unificação entre
pensamento e sentimento (teologia), ou seja, a
percepção e amor a Deus e não sua compro- vação
experimental — porque somos raciocínio e afe- to:
enquanto o intelecto pensa, o sentimento usufrui e
conscientiza a verdade, bondade e beleza eternas.
Com todos os problemas desta era atual, temos de
convir que muitos homens atingiram altíssimo grau de
espiritualidade; um deles é Karl Jaspers, essa incrível
cabeça mergulhada na transcendência. Ele diz com in-
crível genialidade que não é possível a demonstração
da existência de Deus, pois estamos em contato com
ele. Heidegger e Karl Jaspers deram grande desenvol-
vimento à filosofia, levando-a ao campo da realização,
por tratarem diretamente com a consciência, que é
uma junção do sentimento com o raciocínio.

ESCOLA DE FRANKFURT
Walter Benjamin Fundado em 1924, o Instituto de Pesquisas
Sociais de Frankfurt contou com nomes importantes
teve uma incrível percepção a respeito da transcendên- do pensa- mento moderno, como Herbert Marcuse,
cia, aproximando-se bastante da descoberta da Erich Fromm, Hanna Arendt, Kracauer, Lowenthal,
Trilogia Analítica quando esta afirma que já estamos Wittfogel, Pollo- ck, Grossmann e principalmente
vivendo a transcendência — mesmo que fechemos os Walter Benjamin, The- odor Wiesengrund-Adorno,
olhos e ten- temos habitar um mundo antagônico a Max Horkheimer e Jürgen Habermas; estes quatro
Deus, por causa do ódio e luta dos demônios contra últimos formaram um grupo coeso, organizando a sua
ele; Lúcifer não foi chamado de príncipe deste estrutura teórica.
mundo? Pois bem, escravi- zando o ser humano a si
mesmo, conseguiu deturpar inteiramente a intenção Benjamin (1892-1940)
que Deus colocou na criação — daí a organização de
um sistema social, político, econô- mico, religioso e Walter Benjamin nasceu em Berlin; de
filosófico invertido. ascendência israelita, dedicou-se ao estudo da
Jaspers inspirou-se em Heidegger e Kierkegaard: reprodução das obras de arte, do cinema e suas
o primeiro levou-o ao trágico e o segundo à transcen- consequências sociais. Ele é de opinião que as técnicas
dência; diz ele que filosofar é uma busca interna do de reprodução e principal- mente o cinema, estavam
transcendente — quando pretendemos saber o que é destituindo a arte de sua con- dição de raridade — no
o ser, jamais encontraremos uma resposta, mas somos momento em que um trabalho fica excluído de sua
obrigados a admitir que há um externo, tão certo como atmosfera aristocrática e religiosa, a dissolução da
o interno, não sendo possível uma demonstração da
24
aura atinge a própria sociedade. A na- tureza vista
pelos olhos difere daquilo que é mostrado

24
pelas câmeras; Benjamin pensa que tal atitude provoca como o fez Marx), mas, quando coloca toda a causa de
a liquidação da herança cultural tradicional (Scholem, tal situação na estrutura capitalista, mostra-se tão
G.: Walter Benjamin, Mon Ami). Como podemos ob- superficial como
servar, o pensador berlinense fez uma análise correta
da grande mediocrização do ser humano atual, mas,
como seguia a concepção de vida marxista, colocou
toda a culpa de tal acontecimento nos fenômenos
exteriores (técnicas de reprodução dos trabalhos
artísticos e na chamada Sétima Arte), não percebendo
que a causa de todo problema atual é justamente a
ideia de que o ho- mem é vítima e o resultado dos
fatos sociais; como Karl Jaspers falou, a sociologia e a
psicologia puseram uma barreira entre o ser humano e
a realidade.
Tanto o cinema, como a televisão moderna, revis-
tas e jornais são o resultado da conduta do ser humano
que, com o crescimento de sua inveja e alienação, está
mediocrizando tudo o que faz: música, pintura, escul-
tura, construções, literatura e até máquinas e ciência. É
por este motivo que a psicopatologia tem de ser cons-
cientizada, para que cada indivíduo se volte para seu
próprio interior e permita o desabrochar de suas
capaci- dades que estão reprimidas, juntamente com a
percep- ção de seus problemas. De tal maneira Walter
Benjamin estava invertido, que optou pela morte,
suicidando-se.

Adorno (1903-1969)
Theodor Wiesengrund-Adorno nasceu em Frank-
furt, estudou na Universidade dessa cidade e mais
tarde composição musical em Viena com Alban Berg.
Diz ele que a técnica exerce enorme poder sobre a
sociedade, arquitetada pelo poder econômico e, tanto o
rádio como o cinema, não podem ser tomados como
arte, mas sim negócios; tal exploração denominou de
indústria cultu- ral, juntamente com Horkheimer, no
livro Dialética do lluminismo. Sua idéia é que o
capitalismo seria a cau- sa de tal fenômeno, porque
visa a impedir a formação de indivíduos autônomos,
independentes e capazes de julgar e decidir
conscientemente — tolhendo a cons- ciência das
massas e impondo o poder da mecaniza- ção, a
indústria cultural cria condições cada vez mais
favoráveis para a implantação de seu comércio frau-
dulento, no qual os consumidores são continuamente
enganados em relação ao que lhes é prometido (Cohn,
G.: Habermas, Adorno and Others). A critica que
Ador- no faz da sociedade é perfeita (exatamente
24
sensíveis são pré-formados socialmente, pelo caráter
histórico do

Max Horkheimer

o criador do marxismo; é claro que existe uma


medio- crização geral no ser humano e o rádio,
cinema e prin- cipalmente a televisão contribuem
com pesada parcela, mas o motivo preponderante
está na maneira do homem moderno raciocinar,
oriunda dos últimos grandes pen- sadores: Hegel,
Feuerbach, Schlick e agora Benjamin, Marcuse, o
próprio Freud, Erich Fromm e Adorno, que
inverteram a ordem das coisas, colocando o
acessório em primeiro lugar — se o essencial foi
abandonado, como pode a civilização melhorar?

Horkheimer (1895-1973)
Max Horkheimer nasceu em Stuttgart, foi
profes- sor em Frankfurt e depois na Universidade
de Colúmbia (Estados Unidos); no ano de 1949
retornou à Alemanha, reorganizando o Instituto de
Pesquisas Sociais, com Adorno, depois que os
nazistas o dissolveram em 1933. Ele dizia que a
teoria marxista preocupava-se mais com
o desenvolvimento concreto do pensamento, do que
com uma visão da totalidade e, a ciência tradicional,
por querer ser muito exata, acabou tornando-se mais
abstrata: a verificação prática de uma ideia e a
verdade não seriam coisas idênticas. Assim, os fatos

24
objetivo percebido e do órgão que percebe; a verdade fal- tava em Marx; o pai da psicanálise dizia que a
dependeria da consideração dos homens, vivendo sob civiliza-
determinadas condições (Axelos, K.; Arguments d’une
Recherche). Vemos aqui até que ponto chega a
inversão de um pensador ao colocar a verdade na
dependência do ser humano, podendo ser variável no
tempo e espaço e a etiologia social dos fatos sensíveis;
Horkheimer pro- curou ignorar a realidade em si,
colocando tudo o que existe na dependência do ser
humano — tal fato faz- nos lembrar do
existencialismo e dos doentes graves quando se
colocam como o centro do universo, como se fossem
deuses criadores de tudo (teomania).

Habermas (1929- )
Jürgen Habermas Nasem Gummersbach, sendo
considerado o último representante da Escola de
Frank- furt, em 1968 transferiu-se para New York,
passando a lecionar na New Yorker New School for
Social Resear- ch. Sua concepção de vida é que a
teoria deve ser crítica e revolucionária; tem ideias
negativas sobre o positivis- mo e o tecnicismo que, em
sua opinião, é a tentativa de fazer funcionar de
qualquer jeito o saber científico. Ha- bermas critica o
objetivismo ontológico e contemplati- vo da filosofia
tradicional; a filosofia não é uma ciência exata, é uma
especialidade entre outras (Habermas, J.: La
Technique et la Science Comme “Idéologie “). Nes- te
último pensador do grupo de Frankfurt nota-se até que
ponto chegou o processo de inversão no campo da
cultura, que está colocando a humanidade em perigo,
pois está vendo o desenvolvimento técnico como algo
negativo; é por este motivo que os jovens se sentem
cada vez mais atraídos por um tipo de vida vegetativo
e animal, pensando que o atraso e o primitivismo
sejam o ideal supremo da existência.

Marcuse (1898-1979)
Herbert Marcuse nasceu em Berlin, estudou com
Heidegger, doutorando-se em filosofia com uma tese
sobre a ontologia de Hegel; foi colega de magistério
de Max Horkheimer na Suiça (Genebra) e escreveu o
Marxismo Soviético, usando as pesquisas realizadas
em Havard sobre o assunto.
Marcuse era freudiano e marxista ao mesmo tem-
po, pois procurava em Freud a psicologia social que

24
ção se baseava no processo de repressão e somente
pela renúncia ascética aos prazeres instintivos
(através da sublimação) é que poderíamos criar
formas superiores de cultura; ser feliz é ser livre dos
desejos instintivos, ou melhor, do id; enquanto
Freud considerava essencial a renúncia, Marcuse
advoga uma ordem social moldada pela libertação
sexual. A história da humanidade pode- ria ser
dividida em duas etapas: a primeira que perdurou
até a Idade Moderna foi necessária para lançar as
bases tecnológicas da abundância, mas agora a
repressão da libido e a limitada sexualidade
monogâmica familiar são desnecessárias — o ser
humano deve libertar a sua sexualidade para ser
livre. O pensador alemão vê a tec- nologia moderna
como resultado do instinto de morte e a sociedade
um poder alienado que aliena o homem
— toda a ordem social seria parte dos fenômenos
de alienação (Marcuse, H.: Eros e Civilização). Vê-
se que Marcuse notou a enorme falha que havia na
sociologia (inclusive no marxismo), por não ter
incluído dentro de suas explicações os elementos
psicológicos; procurou então o freudismo, tentando
encaixar seus princípios no estudo da sociedade: o
seu primeiro e grande erro foi a ideia antagônica e
também falsa que a felicidade depen- deria de uma
total libertação sexual, no sentido de agir sem
nenhuma repressão; tal ideia gerou uma conduta de
inteira promiscuidade na década de 1960, que em
nada ajudou o ser humano na busca de sua
felicidade — o homem deve ser livre, isso sim, da
grande censura que faz à libido porque, tanto o
“ascetismo” de Freud, como a liberação de Marcuse
pertencem ao mesmo processo de enorme censura,
causando o mesmo desespero em

Jüngen Habermas

24
todos aqueles que se aventuram por tais caminhos. O originário (Merleau-Ponti, M. De Mauss à Claude Lévi-
mais grave ainda é quando Herbert Marcuse vê a Strauss, in Signes). A ideia fundamental de Lévis-
tecno- logia como resultado do instinto de morte e a Strauss quanto
sociedade alienando o homem; esta ideia gerou uma
séria oposi- ção ao progresso científico e
desenvolvimento psicos- social, bem como cerrada
oposição ao próprio ambiente social, como se
fôssemos vítimas dele.
Marcuse era hegeliano, partidário de seu dialetis-
mo platônico, absurdo, a tal ponto que imaginou um
pensamento negativo poderoso, gerando grandes coi-
sas; pensando assim, misturava o sim com o não, afir-
mando que o totalitarismo é filho do liberalismo; seu
livro O Homem Unidimensional aconselha uma ação
radical para ajudar os párias, marginalizados, explora-
dos e perseguidos — em uma verdadeira explosão de
paranóia incontida.

Lévi-Strauss (1908-2009)
(Antropólogo)
Claude Lévi-Strauss nasceu na Bélgica e dedi-
cou-se ao estudo da antropologia, baseando-se no
estru- turalismo; no ano de 1934 esteve no Brasil,
cooperando na fundação da Universidade de São
Paulo; mais tarde lecionou na New School for Social
Research, voltando para a França e dirigindo uma
seção da Ècole Pratique des Hautes Études, da
Universidade de Paris.
Em sua Antropologia Estrutural, Lévi-Strauss
afirma que uma estrutura científica exige quatro
condi- ções: 1) ser um sistema coeso; 2) constituir um
grupo de modelos; 3) ser possível prever o modo de
reação dos modelos, frente a uma modificação; 4) que
seu fun- cionamento possa explicar todos os fatos
observados. O antropologista belga afirma que,
quanto mais nítida é a estrutura aparente, mais difícil
se torna apreender a estrutura profunda; no seu estudo
sobre as culturas pri- mitivas, notou que o incesto era
a única proibição séria
— confirmando as descobertas de Malinowsky sobre
a promiscuidade de tais povos. Lévi-Strauss também
observou um denominador comum entre a antropolo-
gia cultural e a linguistica — o pensamento dos povos
primitivos não é o mesmo dos selvagens e nem da hu-
manidade arcaica, mas uma concepção de vida em es-
tado selvagem, distinto do homem domesticado: seria
o mesmo pensamento civilizado em seu caráter

24
ao primitivismo seria um estado de total realidade, confundindo a visão (consciência) com o
agressividade, que deveria ser domesticada com o que vê — por esse motivo, comete erros crassos,
tempo — colocan- do a natureza como inimiga da como o de atribuir a decadência de um povo à sua
civilização; tal inversão também se nota no seu Revolução Industrial; como explicar então o declínio
desejo de que a cultura seja algo superficial, desde do Império Romano, ou
que a estrutura profunda não pode ser apreendida
— em uma clara aproximação às fantasias de
Sigmund Freud.
De modo geral, a humanidade sempre pensou
que veio de um estágio muito primitivo (como a
ideia do homem das cavernas), devido a sua
extremada mega- lomania; o ser humano procura
ver-se sempre em uma situação superior,
acreditando em evolução e progresso indefinido,
porque não consegue admitir a consciência dos
desastres que faz — e, justamente, este é o ponto X:
ou vemos nossos erros, fracassos e misérias, ou
nossa civilização é que irá entrar pela senda de
degeneração.

Spengler (1880-1936)
Oswald Spengler tornou-se famoso pelo seu
livro O Declínio do Ocidente (Der Untergang des
Abendlan- des) publicado na Alemanha em 1922.
Ele esposou a ideia de que toda civilização tem o
seu tempo de prima- vera, verão e outono, quando
se inicia o seu crepúsculo
— algo automático, praticamente sem saída. E
coloca como causa inicial de sua decadência o surto
da máqui- na, ou melhor, a Revolução Industrial;
depois, fala que as megalópolis, como Londres,
Berlim, New York são características da decadência
— ainda que esta última tenha se tornado a cidade-
mundial; é de opinião que Pa- ris e Berlim possuem
cérebros, enquanto as moribundas Munich e Viena
têm alma. Percebeu a extinção da força criadora na
literatura e artes, vendo o progresso sobre- tudo na
mecânica e engenharia; acredita que o estágio final
do declínio ocorra pela política e a imprensa seja
culpada peia destruição da aristocracia e da
democra- cia (Durant, Will: Os Grandes
Pensadores). Notamos aqui um pessimismo
generalizado e total inversão ao analisar a história
da humanidade, por colocar sua de- cadência na
industrialização; Spengler é inteiramente contrário
ao desenvolvimento, vendo o progresso como
prejudicial; de tal maneira ele está vendo tudo ao
con- trário, que culpa a imprensa por mostrar a
24
ção lógica; procurou então conciliar filosofia com psi-
cologia através da experimentação.
Em sua epistemologia genética, Piaget vê como
função da inteligência estruturar o universo, assim
como o organismo estrutura o meio ambiente; conhe-
cer é o processo de operar sobre o real e transformá-lo;
distingue os estágios do desenvolvimento: 1) sensório-
motor (0 a 2 anos); 2) preparação de operações lógico-
concretas (2 a 7 anos) e operações lógico-concretas (7
anos, até a adolescência); 3) estágio da lógica-formal
(adolescência, até a fase adulta). Segundo a Trilogia
Analítica, o seu momento mais brilhante foi após ter
escrito o Juízo Moral na Criança, em 1932, quando
usou a noção de egocentrismo, acusando-o de respon-
sável pelo pensamento pré-lógico, pré-causal, mágico,
animista e artificialista; com o tempo, o indivíduo sai-
ria de seu egoísmo, por compreender a necessidade de
justiça e responsabilidade (Baldwin, A.L.: The Theory
of Jean Piaget, in Theories of Child Development). O
que mais salta a vista é o total intelectualismo do
peda- gogo suíço, pois ele acreditou piamente que
educar é intelectualizar; deste modo, elaborou todo um
sistema educacional de fases (como era moda na
época), com a ideia de evolucionismo: considerava
Jean Piaget (à semelhan- ça do freudismo) a criança como um ser
egocêntrico, ilógico e artificial, que deveria pouco a
pouco ser en- sinado a viver corretamente; tal ideia é
invertida, por- que alimenta sobremaneira a teomania
o de Carlos Magno?
e o narcisismo,
A maior parte dos pensadores modernos tem re- como se nós fornecêssemos saúde e equilíbrio a nós
alizado tal inversão em sua filosofia de vida, porque mesmos (ideia semelhante à do existencialismo sar-
coloca a culpa dos problemas humanos na criação das treano). Jean Piaget considera a criança como se fosse
máquinas e não no mau uso que fazemos delas — que um bobinho, projetando todos os problemas do adulto
é algo bem diferente — e, pelo contrário, a Revolução nela; aliás, o início do tempo escolar, aos 7 anos de
Industrial é o mais belo capítulo da História no que idade, é usual na maioria dos países e influenciado por
con- cerne à engenhosidade do homem. seus conceitos; o pior resultado de tal pensamento foi
o de conceder à doença uma grande desculpa, pois co-
locou a etiologia das neuroses na natureza, como se
Piaget (1896-1980) fôssemos vítimas do Criador.
Jean Piaget tem a mesma ideia dos psicólogos,
Nascido na Suíça, em Neuchâtel, Jean Piaget é o
sociólogos e economistas que, segundo a opinião de
criador da epistemologia genética, definindo-a como o
Hayek, pensam que teriam capacidade de criar um sis-
estudo da passagem dos estados inferiores do conheci-
tema racional de conduta; tanto Freud, Melanie Klein,
mento aos estados mais complexos ou rigorosos — o
psicanalistas e estruturalistas imaginaram ser possí-
pedagogo suíço via o processo educacional pelo plano
vel organizar uma segunda natureza perfeita, como o
totalmente intelectual; por esse motivo dizia que todo
Criador não o conseguiu; esta é a imagem do homem
homem que não passou pela filosofia é incuravelmente
contemporâneo que pretende desfazer tudo o que foi
incompleto; possuindo uma acurada percepção, sus-
re- alizado, considerando-o errado, para começar tudo
peitou que o processo de conhecimento, dependeria do
no- vamente de sua cabeça. O pedagogo suíço, assim
equilíbrio orgânico e, de outro lado, de uma organiza-
24
como

24
todos os profissionais modernos, viciaram-se em sificadas e compensadoras e cada pessoa poderia se
pensar que toda criança é egocêntrica e doente, porque desenvolver como quisesse — tudo isto acontecen-
gene- ralizaram a sua observação sobre os casos de do com a aplicação da teoria do reforço (Ver Plank,
crianças- problemas, imaginando-os regra geral. É W. S.: Burrhus Frederic Skinner, in Modern Lear-
necessário que o pesquisador veja primeiro sua ning Theories). O leitor poderá notar de imediato a
psicopatologia, para não projetá-la erroneamente sobre enorme distância entre o pensamento de um filósofo,
os outros. ou até mesmo do sociólogo, economista, antropolo-
gista, pedagogo do psicólogo — pois este último
Skinner (1904-1990) mostra-se o mais alienado à realidade, apresentando
as ideias mais absurdas possíveis, dando a perfeita
Burrhus Frederic Skinner é o exemplo do grande impressão de que o indivíduo mais doente de todos,
desastre que a chamada psicologia “experimental” em lugar de se tratar, procura ser psicólogo (ou psi-
vem causando para a humanidade; nascido na quiatra). Especificamente Skinner não via a enorme
Pennsylvania, Estados Unidos, dedicou-se aos diferença entre seres humanos e os animais; depois,
fenômenos aparentes do homem, ao considerar quis reduzir a mente do homem a de no mínimo um
psicológico só a conduta ob- servável exteriormente imbecil, à procura só de status social, ou de dinhei-
— sem se preocupar com o seu interior, ou seja, ro; em seguida, pensou em uma maneira de trans-
pensamentos e sentimentos. formar a pessoa em uma simples máquina, contente
Inspirado nas hipóteses paviovianas, acrescen- em ser lubrificada continuamente, programada a um
tou ainda o conceito de condicionamento operante, determinado trabalho, com intervalos regulares para
que seria responsável pelo que denominou modela- descansar — enfim, uma sociedade sem patrão ou
gem: base de toda conduta. Skinner colocou toda a empregados, ou melhor, uma existência totalmente
motivação em fatores externos, como o dinheiro ou a alienada, sem contato algum com qualquer dificul-
aprovação social — aprendendo tal comportamento dade, como imaginam os indivíduos internados nos
com os ratos, pois o psicólogo norte-americano eli- sanatórios de doenças mentais; esse é o ideal do psi-
minou qualquer conceito de liberdade no ser huma- cólogo para a sociedade.
no. Em seu livro Tecnologia do Ensino (1967) chega Esta parte do livro está sendo terminada com
ao cúmulo de querer ensinar as crianças através de um psicólogo para que seja conscientizada a grande
máquinas e eliminar qualquer processo de punição psicopatologia a que chegou uma classe profissional,
ou repressão; no livro Walden 11 preconiza uma so- que estaria destinada a conhecer o ser humano para
ciedade ideal, onde não haveria violência, autorida- melhorar sua existência e mais contribuiu para atra-
de, privilégio, classes sociais, propriedade privada, palhar e desnorteá-lo.
bandidos ou heróis; o trabalho seria agradável, o la-
zer frequente e produtivo, as relações sociais diver-

25
Trilogia
Analítica

Norberto Keppe

HISTÓRICO DA TRILOGIA ANALÍTICA


Primeira sede oficial da Sociedade Internacional de Trilogia Analítica
(SITA) nos Jardins (Av. Rebouças, 3115)

1 — Histórico da Trilogia se considerava um novo deus que vinha modificar os

Analítica (Psicanálise
Integral)
A Trilogia Analítica (ou Psicanálise Integral) co-
meçou a ser formada definitivamente no ano de 1977,
com a descoberta do processo de inversão que invali-
dou a hipótese da existência de um inconsciente, como
Freud havia lançado no início do século XX
(baseando- se nas ideias de Arthur Schopenhauer);
após tal evento, todo o edifício da psicanálise e da
própria psicopatolo- gia pôde ser revisto e corrigido.
Freud construiu um sistema terapêutico psico-
patológico. Basicamente, ele via nos sentimentos de
culpa o grande empecilho para que o indivíduo fosse
feliz, tentando eliminá-los. Porém, o mais importante
era a sua ideia de que sofreríamos por habitar uma
sociedade muito errônea, tanto no tocante às ideias,
como ao modo de viver — sendo o seu papel libertar
o ser humano das peias sociais, para conseguir se re-
alizar em todas as suas aspirações. Praticamente ele
22
enganos que o Criador tinha cometido —
incentivan- do a paranóia individual de todos
aqueles que se sub- metiam à psicanálise e dos
que se interessavam pe- los seus trabalhos. Aliás,
ele viveu em um período de grande ilusão a respeito
do homem.
No entanto, temos de admitir que fez uma
desco- berta muito mais importante do que pensava
e do que parece a uma primeira vista, pois começou
com uma reforma em todo o conceito de ciência:
fugiu ao positi- vismo crasso, demonstrando como
seria possível cons- truir uma verdadeira ciência
sem recorrer aos padrões sensistas tão comuns na
época; a partir daí: foi possível lidar cientificamente
com a vida psicológica, pela pri- meira vez na
história da humanidade. E, se existe uma ciência
que possa salvar o gênero humano, é justamente
aquela que visa ao reconhecimento dos problemas
pes- soais e cujos maiores propugnadores foram
Sócrates, Freud e principalmente Cristo.
Alfredo Moffatt, psiquiatra argentino,
discípulo de Enrique Pichón Rivière, diz no seu
livro Psico- terapia do Oprimido, à página 167:
“o médico com

22
Sede atual da SITA (Av. Rebouças, 3819). Aquarela do finlandês Markku Lyyra

uma sólida formação em anatomia, biologia, cirur- objetivos: aos sociais e aos
gia, etc., tem de reconhecer que, diante de uma per-
turbação psíquica, 90% do que sabe não lhe serve”.
Tal fato é que propiciou a pesquisa que realizei no
campo do pensamento (filosofia) e principalmente do
sentimento (teologia) para chegar à verdadeira causa
dos transtornos psicofisiológicos.
Procurando a etiologia da neurose no campo do
pensamento, foi possível notar alguns filósofos que
ser- viram de grande auxílio ao ser humano e aqueles
que se tornaram empecilhos; dentre estes últimos,
podemos ci- tar Platão e Hegel como os principais e os
que mais nos beneficiaram foram: Sócrates, John Duns
Scot, Leibniz, Kant, Kierkegaard, Scheler, Bergson,
Husserl, Heideg- ger e o maior de todos os
“pensadores “, Cristo.
O afastamento que o ser humano fez atualmente
em relação à filosofia, mais no sentido de uma
concepção de vida (Weltanschauung), veio também
em decorrên- cia da carência de urna visão global
desta última, sobre o homem; os sistemas filosóficos
deram mais atenção aos elementos chamados
23
fisiológicos, do que aos humanos propriamente
ditos. Deste modo, o homem não encontrou nos
pensadores uma resposta satisfatória aos seus
verdadeiros proble- mas; então, voltou-se para a
ciência — e esta última também não estava
alicerçada em uma maneira correta de pensar, tendo
um de seus pés quebrados. A maior parte da
humanidade tem uma filosofia de vida muito
pessimista sobre o homem — como Samuel T.
Cohen, que é chamado o pai da bomba de nêutrons.
Ele de- clarou ao repórter da revista alemã Der
Spiegel que “a guerra é inevitável, pois está na
natureza dos homens”; ora, tal pensamento é
redondamente errôneo, em sua base, mas
infelizmente é a ideia de toda a psicopatolo- gia que
herdou dos filósofos.
Uma verdadeira ciência deve estar de acordo
com uma real filosofia e esta, por sua vez, em
conformida- de com uma autêntica religiosidade; a
este fenômeno chamamos de Trilogia. Existe uma
nova visão sobre o universo (cosmovisão), ou
melhor, a descoberta de uma filosofia de vida
(Weltanschauung), que é tão antiga como a criação
e permaneceu oculta por todos estes sé-

23
culos; o motivo principal deste fato pode ser encontra- lado e que não é inimigo do que foi realizado, antes e
do no transcurso da própria civilização, que caminhou depois. Temos que admitir que tanto os brâmanes,
parcialmente todo esse tempo. Sempre desconfiei que
estava havendo algo muito errado com a civilização,
desde que não conseguiu construir um mundo de paz e
desenvolvimento contínuo.
Vários clientes e pessoas, que leram meus livros e
assistiram a meus programas de televisão têm
afirmado que a Trilogia Analítica é mais próxima do
cristianismo (autêntico) do que de qualquer filosofia,
ou forma de existência. Eu pessoalmente penso que
estamos em uma melhor compreensão da intenção de
Cristo — que foi muito deturpada, seja por religiosos,
filósofos, ou pelas pessoas de modo geral. O que houve
até agora foi, duran- te a Idade Média (pelo menos até
o século XII), um acen- tuado platonismo sob a
máscara de cristianismo; a partir dessa época, as bases
da civilização tornaram-se raciona- listas. De modo que
a filosofia do Verbo Divino não foi ainda posta em
ação, contrariando-se a própria função de quem
representa o pensamento de Deus. Este fenô- meno
pode ser esclarecido da seguinte forma: se Deus é a
realidade — (é o que é) — e o que é, basicamente, é o
amor, somente a ciência (do psicopatológico) que lida
com o sentimento, alcançaria tal dimensão — podendo
experimentar a filosofia (como faz com suas
hipóteses). Posso afirmar que a ciência trilógica tem
condições para entender melhor a verdade, porque ela
trata apenas de experimentar o que existe,
comparando, dialetizando o fato com a hipótese e
principalmente sanando os empeci- lhos que o ser
humano colocou entre ele e a realidade.
Ao se avaliar o trabalho de uma pessoa, temos
que ver a sua psicopatologia; este é o grande mérito da
ciên- cia e principalmente de Sigmund Freud, que
forneceu uma verdadeira base científica, que nos
possibilita ana- lisar as grandes realizações do passado
e o cristianismo não faz exceção, tendo os seus nomes
mais famosos im- pregnado suas orientações com seus
problemas.
Sem dúvida alguma, Cristo é o centro da História
do Homem, não apenas no seu sentido social, como
principalmente no humano; ele constitui uma ponte
de ligação entre todo o passado e futuro, a filosofia, a
ciência e a espiritualidade. De maneira que não pode-
mos isolá-lo de todo o contexto da civilização, porque
tudo o que existiu antes e depois dele pertence a ele,
no que existe de verdadeiro, formoso e bom. Esta é
a minha intenção: mostrar que o Cristo não está iso-

23
budistas, Lao-Tsé, Confúcio, Anoxágoras. Platão, atitudes artificiais, portanto, enxertadas, impostas ao
Plo- tino, Cícero, como Paulo, Agostinho, Tomás que é natural, que só pode ser bom, verdadeiro e belo;
de Aqui no, Descartes, Kant, Kierkegaard, Freud não somos obrigados a produzir maus “sentimentos”,
foram seus filhos — e, apesar dos erros que mas temos obrigação absoluta de evitá-los porque,
cometeram, de qual- quer modo, contribuíram para naturalmente, somos ge-
a conscientização e o desenvolvimento da
civilização.
Se quisermos realmente fazer o Reino de Deus
nesta terra, temos que acolher a todos, gregos,
roma- nos, chineses, budistas, maometanos e até os
ateus, por- que todos eles sempre trazem alguma
verdade. De ou- tro lado, não podemos afirmar que
a verdade está toda neste, ou em outro autor, porque
em todos eles existem verdades e erros, sem
exceção — assim como a realida- de é oriunda de
todos e não apenas de alguns.
As pessoas, que organizaram as instituições
reli- giosas, colocaram nela a sua psicopatologia,
que tem o seu centro principal na persecutoriedade
(paranóia). Assim sendo, criaram um tipo de
concepção de vida, por vezes, desconfiada, inimiga
dos que não as seguis- sem, cometendo injustiças de
toda ordem. Pois bem, chegamos a uma era possível
de corrigir tais enganos, devido à ciência trilógica.
E tal ciência pode perfeita- mente melhorar nossa
visão do Criador, porque a cons- ciência tem uma
dimensão maior do que o raciocínio
— que praticamente construiu a teologia
tradicional. A Trilogia poderia se tornar na mais
bela flor de toda a re- alização humana, devido ao
seu caráter de junção entre o homem, a criação e
Deus.

2 — Etiologia da Neurose
A maior parte dos seres humanos acusa a
socie- dade de ser culpada de todos os seus
problemas; seja o campo da psicoterapia,
psicologia, política, religião, todos eles atribuem ao
meio-ambiente a causa de to- dos os males. Em uma
rápida vista de olhos, parece mesmo assim; no
entanto, se nos aprofundarmos um pouco,
chegaremos a uma causa anterior, que geral- mente
é rejeitada, por apontar como motivo principal a
nossa própria conduta; afinal, a sociedade é
formada por seres humanos, que a criaram, de
acordo com suas ideias e desejos.
A patologia não é a essência, porque é o
resultado da inveja, do ódio e da raiva, que são

23
nerosos, amigáveis e simples, não havendo dizer que tal
necessidade alguma de inverter tal ordem, negando,
omitindo ou de- turpando o infinito amor, do qual
participamos e com o qual estamos totalmente
comprometidos.
A humanidade tem vivido em função de sua
doen- ça; quase todas as suas ações e pensamentos
estão vol- tados para a sua patologia, que constitui
praticamente 90% de toda a existência; assim sendo,
pouco tempo nos sobra para cuidar do que é realmente
importante, ou seja, o verdadeiro desenvolvimento da
ciência, a cons- trução de uma vida social e material
de acordo com a dignidade humana. A maior parte do
tempo é gasta na organização da defesa pessoal e
social: construção de armas de guerras, proteção aos
próprios interesses ego- ístas e o desejo de impedir o
crescimento dos rivais no campo econômico.
É fácil de notar que a humanidade está dividida
entre dois grupos de pessoas: uma grande maioria vive
segundo padrões megalômanos, tentando organizar
uma sociedade para servi-los. Por este motivo, os que
nascem hoje são obrigados a se encaixar dentro de um
esquema de existência paranóide, praticamente ao con-
trário do que deveria ser; um sistema econômico
restri- to, um sistema político mentiroso, grupos que se
apos- sam do poder social, ou porque são mais fortes,
como os militares, ou porque são mais teomânicos,
como os religiosos. A paranóia é o centro de toda
problemática humana, porque está ligada diretamente
ao processo de inversão que realizamos, vendo o mal
no bem e tentan- do impedir que a vida, o afeto e o
trabalho predominem sobre a face da terra.
Melanie Klein tomou o tema da inveja, que Freud
vira nos doentes mentais graves e aplicou nos casos
de neurose, dando um grande impulso ao estudo da
psicopatologia; a Trilogia Analítica continuou esse
trabalho, percebendo que tal procedimento invejoso é
a causa da inversão e praticamente de todo problema
psicossocial. Deste modo, tornou-se possível compre-
ender a conduta dos indivíduos doentes e até dos anjos
decaídos (que lutam contra Deus), porque colocam no
outro, na sociedade e no Criador a origem de todos os
seus infortúnios.
Geralmente percebe-se no paranóico uma quase
absoluta censura à visão dos próprios erros, com o
con- comitante esquecimento de toda grandeza e
magnificên- cia que nos rodeiam; porém, não se pode

23
raciocínio está no afeto, seguindo sua direção.

época da
formação

pessoa tenha apagado toda a sua consciência, mas


sim impedido constantemente que ela exista
corretamente. O ser humano tem de notar que
pensa de acordo com os sentimentos, podendo-se
estabelecer uma regra infa- lível: quanto mais
afeto, mais realista; quanto mais in- veja, ódio,
megalomania e teomania, mais deturpação,
negação e omissão da realidade; a origem do

23
Consequência

O Ação
(Atitude) Perseguição
Alheamento Desvalorização Fuga

,ú_- Pensamento Correto


Pensamento Pensamento Abafado Pensamento
Dividido Depressão Paralógico,
Paranóia

O Aceitação
(humanidade) Negação - Omissão - Deturpação
(Arrogãncia)
*c’ Sentimento
(Amor) Inveja, Ódio, Ciúmes, Ira

SENSAÇOES
O MUNDO EXTERIOR
Quando Freud elaborou seu primeiro estudo sobre E tal fenômeno invadiu todas as áreas, inclusive a da
a origem da neurose, dizendo que ela viria em psicoterapia.
conseqüên- cia de um desvio da elaboração consciente
normal, acer- tou magistralmente; mas depois que
colocou a sua causa no sexo, imaginando a existência
de um inconsciente, desviou-se totalmente do rumo
certo, influenciando todo estudo da psicopatologia. O
Complexo de Édipo, de Cas- tração, a Inveja do Pênis
e um Superego formado pelas regras impostas pelos
pais e educadores constituem um incentivo à
persecutoriedade de cada pessoa.
Freud pensou que os chamados mecanismos de
defesa que se constituem justamente no motivo da
neu- rose, fossem destinados a preservar a sanidade,
ou seja: a regressão, recalque conversão, auto-
agressão, identi- ficação, super-compensação,
sublimação, racionaliza- ção, substituição e projeção.
Se a pessoa conseguir evi- tar tal conduta, será sã
exatamente ao contrário do que imaginava o pai da
psicanálise e toda a psicopatologia moderna
influenciada por ele.

3 — Teomania e Megalomania
Temos de admitir que os problemas mais agu-
dos da humanidade ainda não foram cuidados; sou
de opinião que o ser humano está demorando muito
para colocar o dedo em suas feridas mais dolorosas; e
elas são: sua mania em querer ser Deus, sua empáfia
e arrogância. Parece que este campo foi reservado ao
cientista da psicopatologia, por absoluta necessidade
da experimentação.
O maior problema do homem não são os erros,
que comete, mas o seu desejo de ser perfeito, de pre-
ferência um outro deus (teomania); esta é a fonte de
todos os males que a humanidade vem passando,
desde que Adão e Eva “renunciaram” a sua condição
humana e, de maneira muito sutil, atribuimos-lhe as
falhas que cometemos. Por este motivo toda a
organização social visa à repressão aos erros e
jamais à conscientização da arrogância, megalomania
e soberba. Fizemos uma sociedade baseada na nossa
fantasia, para tentar viver na ilusão.
Se verificarmos as organizações sociais, políticas,
econômicas, científicas, religiosas, filosóficas,
verifica- remos que todas elas têm um só fito: a
egolatria do ser humano. Neste caso, podemos afirmar
com certeza que toda a estrutura social tem base falsa,
exatamente ao contrário do que deveria ter sido feito.
23
Quando um analista trilógico atende o seu a instituição cristã foi eivada com um espírito negro,
clien- te, procura torná-lo consciente dos erros que ao combater um fator, contra o qual era quase
comete, denominados de psicopatologia, para desnecessário lutar. E o resul- tado foi a preservação
corrigi-los, por- que a intenção de esconder tal do paganismo, em uma pretensa sociedade
percepção é justamente a causa de todos os espiritualizada que até hoje é injusta e hipó-
problemas, pois o homem procura de toda maneira
parecer perfeito, incentivando a sua me- galomania;
a conclusão a que podemos chegar é que o campo
tradicional freudiano da psicoterapia em geral
colocou como fito principal (à semelhança de todas
as outras finalidades humanas) a realização
“suprema” da aspiração do homem: ser um deus
perfeito.
Todo sofrimento em nossa existência é
provenien- te do afastamento do Criador; não existe
outro, pois tal atitude constitui uma rejeição à vida,
à realidade e à beleza que formam nossa estrutura
fundamental. Por exemplo: sempre pensamos que
temos a vida dentro de nós e não que estejamos
dentro da vida — em uma ideia teomânica de
doadores da existência. Esta maneira de pensar leva-
nos a uma terrível tensão, causa das doen- ças,
envelhecimento e perecimento rápido.
Quando se fala que Deus tem todo o poder para
realizar qualquer coisa e nos deparamos com a
incrível agressão que os seres humanos fizeram à
Cristo, pensa- mos que tal fato poderia ter sido
evitado por ele; mas, como concedeu total liberdade
ao homem, não poderia ter tomado outra atitude do
que aguentar essa conduta
— estou dizendo que o Criador quis, inclusive,
supor- tar a liberdade total. Tendo se tornado
também um ho- mem, sabia exatamente qual seria
seu destino e como seu amor era absoluto aceitou o
terrível martírio de sua paixão e morte.
O próprio cristianismo foi desde o seu início
en- sinado de maneira invertida; Cristo realizou e
falou de um modo e os seus seguidores imediatos
realizaram e disseram muitas vezes ao contrário,
mesmo que muitos deles tivessem sido santos. O
mestre dos mestres indig- nava-se com a atitude
hipócrita dos fariseus (Mateus, cap. 23) e os
combatia veementemente; os cristãos pos- teriores
irritavam-se com a chamada concupiscência,
reduzindo toda a sua pregação ao combate do
chamado materialismo. É evidente que a verdadeira
ideia cristã foi totalmente distorcida, passando-se a
dar atenção a um fator secundário e olvidando o
mais importante, que é a soberba e a megalomania;

23
crita, sejam os leigos, os militares e os chamados fun- Não existe pessoa alguma que não se comova diante da
cionários religiosos. pesquisa filosófica, principalmente
Toda vez que se dá uma importância muito alta
ao erotismo, ele cresce na vida de uma pessoa ou da
so- ciedade, apagando toda a consciência que deveria
estar voltada para os elementos mais fundamentais da
vida; na própria análise individual, se o psicanalista
quiser tratar o sexo, pelo sexo, a gula, pela gula, só
aumentará o desejo fisiológico, desde que os
elementos físicos ser- vem de esconderijo para a
inveja, o ódio e a soberba.
A ideia de se procurar o que fazer, para corrigir o
que somos, é inteiramente invertida porque tudo o que
fizermos já é a manifestação do que temos; de maneira
que devemos sempre procurar ver em nossa conduta o
que há de errado, porque o que é certo está também lá,
na base. A pessoa que deseja se ver perfeita quer ser
um deus, enquanto que o indivíduo que aceita olhar
para as suas imperfeições, admite que é um ser
humano e acata sua condição de dependência à
realidade.
Quem é dominado pela sua arrogância, é domina-
do pelas pessoas mais arrogantes e a pessoa dominada
pela arrogância é dominada pelo artificialismo. A huma-
nidade sofre e luta porque renunciou à situação de fe-
licidade que tinha no começo de sua criação; podemos
afirmar que todo o esforço que temos de realizar agora
é no sentido de voltar à situação antiga que tínhamos
— e só depois partir para todo o desenvolvimento
científico e social que já deveríamos ter realizado.
Estou dizendo que no momento temos de entrar em
contato com todos os erros que cometemos, para que
possamos iniciar a jornada para a qual fomos criados.

4 — Inversão e Inveja
A grande luta da humanidade foi sempre a espiri-
tual, ou melhor, a batalha que o ser humano trava
contra a realidade, o bem e a beleza. A filosofia,
bem antes de qualquer explicação teológica, sempre
deu ênfase a esse nosso desejo fundamental de
conhecer a verda- de — tornando-se a mais bela de
todas as “ciências”. Com o advento do cristianismo, os
seus maiores dou- tores voltaram-se para esse campo,
transmitindo-nos raras jóias de sabedoria, porque
estavam convencidos de que não havia em todo o
mundo o que fosse mais formoso. Basta percorrer
algumas regiões da Grécia e do Oriente Antigo, para
aquilatar o que foi o chamado berço da civilização.
23
dos helênicos, porque constituem o reflexo de toda o pecado original durante toda a sua existência, isto é,
uma sabedoria perdida nas brumas do passado e to- mando uma atitude de oposição ao Criador, à vida,
parece que está podendo voltar agora a fazer parte ao amor e à própria felicidade, não querendo receber o
da nova civili- zação do terceiro milênio. que é bom: o incrível gozo que há no ser divino;
Durante muitos anos pensei que a humanidade estamos
aceitasse o que é certo, no sentido científico,
bastando apresentá-lo. Porém, com toda
megalomania e teoma- nia de que o ser humano se
revestiu, como poderia de imediato preferir algo que
fosse contra isso? Partindo desse fenômeno, temos
de convir que existe uma atitu- de generalizada
contra tudo o que é realmente benéfico para nós. É
por este motivo que há necessidade de uma
conscientização da psicopatologia, para que
encontre- mos o verdadeiro caminho que nos
conduza para a gló- ria e o apogeu.
O que temos feito é secundário no processo
vital; o fator principal é o motivo que nos move para
determi- nadas ações. É o que acontece quando uma
pessoa pro- cura o roubo, a luxúria, o poder social;
ela acredita que está em busca de algo que lhe
trará grande felicidade e, portanto, está realizando
uma inversão; a cada nova experiência aparece
outra decepção, motivo pelo qual deverá perceber o
processo invertido que está fazendo. O campo da
psicoterapia seguiu um caminho con- trário ao que
deveria ser — em lugar de incentivar a per- cepção
dos erros, procurou “resolver” os problemas, isto é,
escondê-los, para alimentar a megalomania e a arro-
gância; é por este motivo que na maior parte das
vezes todo aquele que se submete a um processo
de terapia
acaba se tornando muito mais arrogante do que era.
O espírito, por si, não foi obnubilado, mas
deixou de captar toda a beleza e bondade do
Criador, por ter invertido sua função, colocando os
sentidos na base, como fonte de todo conhecimento
(aristotelismo e to- mismo). Desde que Cristo
trouxe-nos a revelação, o ser humano tem feito tudo
para provar que ele não estava certo; seja no
pensamento filosófico, na ciência atual e até mesmo
na teologia existe esta preocupação funda- mental
— a ponto de alguns religiosos e parapsicólogos
atuais terem a ousadia de afirmar que o próprio
Deus (Jesus) poderia ter tido visões e ser doente —
e não eles (os eclesiásticos e pseudo-cientistas)
estarem projetan- do no filho do Criador a sua
psicopatologia.
O ser humano não quer ver que está cometendo

23
chamada desvalorização da existência é típica de uma
pessoa suicida, que quer se diminuir; é uma agressão
que ela faz contra toda a realidade — redundando em
uma destruição de si mesma, desde que ela também
vive e é uma realidade.

O sr. J.T., de 36 anos possuía uma loja com


um sócio; este último era muito preguiçoso e di-
ficultava seu serviço, que era realizado com uma
irmã. Certo dia J.T., descobriu que sua mana
W.T., trabalhava também para seu próprio
interesse, re- alizando negócios à parte; quando
o sócio soube disso exigiu que a despedisse, o
que foi feito, em prejuízo da própria loja, que
perdeu uma pessoa ativa (mesmo que também
fosse para si própria).

Um fenômeno extremamente curioso é que a cen-


sura é proveniente da inveja, digo, censura à consciên-
cia, pelo fato de que o indivíduo muito arrogante não
admite ter a visão de seus erros; poderíamos mesmo
William Adolphe

dizer que a enfermidade psicofísica é a atitude de cen-


sura à consciência.

5 — Fantasia e Realidade
O ser humano imagina que a realidade é ruim e o
Desde que Cristo trouxe-nos a revelação, o ser humano tem
feito tudo para provar que ele não estava certo; seja no Criador um ser interessado em nosso sofrimento; ele
pensamento filosófico, na ciência atual e até mesmo na acredita que sua fantasia é muito poderosa, podendo
teologia existe esta preocupação fundamental substituir a vontade do Criador; é o que se denominou
de onipotência do homem. Sabemos que uma verdade,
uma ação dentro do real, isto é, de acordo com Deus
diante do mais incrível palácio de delicias e venturas tem uma dimensão infinita, porque o provisório une-se
e recusamos ingressar nele para usufruir o que nem os ao eterno; no entanto, tudo aquilo que estiver
mais belos sonhos são capazes de revelar — só por um desligado, em oposição, ou alterando o certo, não tem
motivo: a recusa em admitir que Deus é melhor, o qualquer repercussão maior, porque é vazio.
dono e senhor de tudo o que existe. A inveja embotece O indivíduo muito narcisista, megalômano e teo-
a sensi- bilidade, impedindo que o indivíduo perceba, mânico costuma adorar o que não existe, ou seja, a sua
não apenas as nuances de cores, sons, perfumes, o tato fantasia e imaginação — desprezando toda a beleza,
e o paladar, coma principalmente o seu bondade e verdade que existem. Porém, se aceitasse a
relacionamento afetivo com todo o universo em que verdadeira ciência, a humanidade poderia, em um ano,
vive; se não fosse assim, falarí- amos com os pássaros, ter maior desenvolvimento do que em todos os séculos
compreenderíamos os animais e principalmente a vida que já viveu.
espiritual que nos rodeia. Nossa atitude errônea não é quanto ao futuro,
A atitude chamada de destruição, ou melhor, de mas ao passado, no sentido de recusar tudo o que
autodestruição, é basicamente uma conduta de ataque recebe- mos: todas as coisas boas estão nos tempos já
ao que a vida apresenta: sua beleza, verdade e gran- idos, que continuam nos fornecendo toda a sabedoria e
deza, acarretando como conseqüência, um prejuízo bem de que carecemos — e só não usufruímos,
para o próprio indivíduo que faz isso. Parece que a devido à for- te conduta de inveja e megalomania.
23
De maneira que

23
nosso esforço deveria estar sempre dirigido para a in- dícios que as civilizações antigas nos deixaram,
fina- lidade de abrir a mente e o coração para o que já eviden- ciando um grau muito maior de desenvolvimento
existe. do que possuímos atualmente — se não o admitirmos,
W.R. Bion escreveu o livro Remember of the Future, será uni-
percebendo com a sua rara intuição uma equivalência
entre o que pensamos, sobre o futuro, com o que foi o
passado. Freud e Jung, os grandes artífices da psicaná-
lise tradicional, deram grande importância aos fatos do
passado porque pressentiram o grande valor que estes
tinham — o segundo famoso psicanalista procurou,
em um suposto inconsciente coletivo, os arquétipos,
res- ponsáveis pelo estado atual de nossa existência.
Muitos historiadores, como o próprio Toynbee,
mostraram uma semelhança muito grande entre os
acontecimentos pas- sados e os atuais no
desenvolvimento e decadência de um povo (A Study
of History), acompanhando as ideias de Spengler, em
seu livro Decadência do Ocidente.
Eu poderia afirmar que tanto a patologia, como a
saúde, não só o erro, como o bem, a decadência e prin-
cipalmente o formidável progresso e desenvolvimento
estão no passado — o que equivale dizer que não pre-
cisamos criar coisa alguma, mas descobrir as leis que
existem e trabalhar com a realidade; em nosso íntimo,
temos tudo o que precisamos para construir, em pou-
quíssimo tempo, a mais incrível civilização jamais ha-
vida sobre a face da Terra.
A vida psíquica não sofre as contingências do
tem- po: a mesma estrutura que tínhamos, no estado
fetal, possuímos hoje, como a teremos por toda a
eternidade. O último livro que escrevi tem o nome de
Contempla- ção e Ação, justamente para elucidar tal
fenômeno de relacionamento da percepção e
conscientização, com a atividade: quanto mais voltado
para a realidade interna, maior o contacto com tudo o
que existe — o inverso também é válido: quanto mais
estivermos interessados pelas coisas exteriores, maior
distância teremos da rea- lidade, a ponto do povo dizer
ao alienado: ele está fora de si mesmo. O
conhecimento é uma simples manifes- tação do que já
possuímos no íntimo, que é retirado do contacto com a
verdade, beleza e bondade existentes em todas as
coisas, lugares e pessoas; os sentidos captam
facilmente todas as leis, porque eles mesmos as
vivem; basta que deixemos o sentimento de amor e
gratidão predominarem, para tal percepção chegar ao
intelecto.
Tais fatos psicológicos, que estou apontando, têm
o seu correspondente histórico-social: é só verificar os

23
camente devido a nossa extremada inveja, que nos dentro dos limites que os primeiros lhe fizeram,
leva a fechar os olhos diante de fatos tão evidentes. mesmo tendo consciência de tal situação. A finalidade
Em vista do exposto, podemos afirmar que a deste livro é ajudar a quebrar este aguilhão, para
conduta neurótica está mais relacionada com o permitir que todos participem de tudo o
futuro, quando pretendemos vi- ver de acordo com a
idealização que nos fazemos — em lugar de olhar
realmente como somos porque, ao lado dos erros e
enganos que cometemos, está toda a verdade, beleza
e bondade que precisamos; tudo o que necessita-
mos já existe e em super-abundância.
Realizamos uma inversão no modo de
considerar o que chamamos de amadurecimento
pessoal e social; temos urgentemente de ver o que
pensamos sobre todo o desenvolvimento que já
existe, esperando unicamente que lancemos mãos
dele — portanto, o problema reside só em nossa
atitude de o recusarmos. O que está antes é muito
maior do que tudo o que poderíamos almejar sobre o
futuro. Estamos assentados sobre uma incrí- vel
sabedoria e riqueza, que só não temos aproveitado
suficientemente, porque a rejeitamos —
pretendendo substituí-la pelas nossas ideias
megalômanas. Nunca se deveria pensar sobre o que
fazer, mas sim porque não o fizemos — algo em
relação a uma atitude passada, porque todo futuro
está nela: faremos amanhã o que re- alizamos hoje e
fizemos no passado — a consciência deste
fenômeno é fundamental.

6 — Alienação ou Inconscientização
Estivemos encobertos por um grande manto de
alienação, que não nos tem permitido ver toda a
incrível realidade que se descortina diante da vista;
temos toda possibilidade de nos deslumbrarmos com
a maravilha da criação e de a usufruirmos, como
jamais foi possível até este momento; estamos no
tempo de aceitarmos a consciência de nossa neurose
e de toda a preocupação com as coisas comezinhas
ou sem importância: os regi- mes políticos,
econômicos e sociais; a postura diante da sociedade
e o extremo valor que damos aos que pensam que
nos conduzem: presidentes, governadores, prefei-
tos, senadores, deputados, militares e religiosos.
Este nosso “universo” é habitado por dois tipos
de pessoas: um pequeno grupo, formado pelos mais
esper- tos que se apoderaram do poder econômico,
político e social, usufruindo de todo benefício
material e a grande população, que é encarcerada

24
Plenária de Norberto Keppe, Hilton, São Paulo

que existe, como única maneira de construir uma ver- os educado-


dadeira civilização, em benefício também do primei-
ro grupo, que acredita estar no melhor dos mundos, só
porque agride e se vangloria de sua posição. A
humani- dade precisa se conscientizar deste fenômeno,
para que haja uma desinversão de valores e o que seja
realmente melhor ocupe o cume da vida psicossocial.
Existe um universo maravilhoso, que toda pessoa
aprecia e com que se encanta, que é praticamente o
mais constante: a cultura; porém, a Escola de
Frankfurt (Benjamin, Adorno, Horkheimer, Habermas,
Marcuse) coloca a técnica, a ciência tradicional e a
própria civili- zação sob suspeita insuflando o ser
humano a destruí-la
— fenômeno que vem sucedendo desde Hegel, Feuer-
bach , os economistas mais recentes (Keynes,
Kalecki), os sociólogos (Durkheim e principalmente

24
res (Piaget) e os psicólogos (Skinner, Rogers). A
Tri- logia Analítica mostra como a cultura é um
meio para conscientizar todos os problemas que o
homem cria em sua existência — e não que ela
mesma (a cultura) seja a dificuldade. Karl Marx
cometeu o mesmo erro de Freud, ao colocar no
capital (praticamente no dinheiro) a causa de todos
os males humanos — só que S. Freud viu tal
problema na libido contrariada; como se pode notar,
foi um desvio da verdadeira etiologia das nossas
perturbações, tornando-nos mais alienados ainda.
Os historiadores geralmente classificam a
Idade Média, como sendo um período religioso e o
Renasci- mento, a volta ao ateísmo, agnosticismo,
etc.. Ora, ven- do-se bem o sentido do
espiritualismo da época medie- val, facilmente
notaremos que houve mais uma máscara religiosa,
uma hipocrisia muito grande, dentro da qual os

24
indivíduos se acreditavam um deus, senhores do bem e O complexo de Édipo constitui a maior atenuação
do mal, donos da vida de seus dominados. E tal que existe da causa da neurose; ao dizer que o garoto
fenôme- no poderia ser aplicado a toda instituição
religiosa que, a partir do século IV, desviou totalmente
o homem da verdadeira realizado; estou dizendo que,
enquanto o ser humano não conscientizar sua atitude
de inveja a toda a manifestação divina (sua criação),
não poderá estancar tal conduta desastrosa. Se o mal
fosse uma criação, o ser humano já teria destruído o
universo; por exemplo: se ele pudesse criar uma anti-
célula, que pudesse destruir todas as outras células, ou
um anti-átomo, para deglutir o pró- prio ar, já o teria
realizado há muito tempo; no entanto, o mal é apenas
uma privação, uma conduta de impedir a existência do
bem — o que jamais poderá prevalecer sobre o plano
divino da criação.
Não é difícil notar o desejo de homens e
mulheres de substituir a figura do pai ou da mãe em
suas funções familiares ou profissionais; Freud
chamou a este fenô- meno de Complexo de Edipo
(Electra), julgando que haveria um desejo libidinoso
de conquista ao progeni- tor de sexo oposto. Tal fato
existe; porém, a sua causa foi vista de maneira
errônea: não é a intenção sexual, mas uma grande
inveja que nos leva a querer eliminar o pai (ou a mãe)
para substituí-los; aliás, isto constitui um excelente
barômetro para ver o grau desses “sentimen- to” em
cada pessoa. No Brasil, um famoso bandeirante
condenou seu filho à forca por causa de uma rebelião
que comandou contra a bandeira; não é difícil ver inú-
meros casos de inveja através da qual muitos indivídu-
os eliminaram seus progenitores, alegando questão de
herança, maus tratos, avareza.

A srta. S.M. permitiu que a mãe morresse,


sem lhe dar a devida atenção; imediatamente
após tal acontecimento, tentou agradar ao pai,
fazendo- lhe companhia ao jantar e procurando
conversar com ele, como a mãe o fazia; tomava
de cuidados com o irmão, julgando-se
responsável por ele.

Em uma análise freudiana, ver-se-ia de ime-


diato a famosa fantasia pela qual a cliente gostaria de
substituir a mãe no leito conjugal; neste caso, toda a
sua problemática fundamental de inveja e ódio ficaria
resguardada — imagem de toda a estrutura teórica ela-
borada pelo pai da psicanálise, para amenizar o verda-
deiro motivo das desgraças da humanidade.

24
quer agredir o pai, só para conquistar a mãe, Freud comprovação da inexistência de um inconsciente,
estava dizendo que o ser humano é bem como se fosse uma estrutura psíquica monstruosa, cau-
intencionado, no sentido de querer defender sua vida sando estragos em nossa vida.
afetiva, pro- curando ignorar toda a inveja e ódio
que tem; prati- camente, concedendo ao homem o
direito de agredir o seu semelhante, com a desculpa
de resguardar seu amor próprio ofendido.
Para desenvolvermos nossa civilização, é
neces- sário abrir espaço, onde os espíritos
ma¬lignos fixaram residência, pensando em fazer de
nosso planeta o seu próprio Inferno; para isso é
necessário compreender e principalmente
conscientizar tal fenômeno, único meio de impedir
que os demônios espirituais con¬tinuem aqui e os
(demônios) humanos prossigam com sua for- ça
neste Reino do Homem, que vem pouco a pouco
des- moronando definitivamente.

7 — Censura
Estou escrevendo este capítulo para esclarecer
o erro fundamental que Freud cometeu, influenciando
toda a pedagogia e psicologia modernas. A ideia
seria que o homem não deveria aceitar qualquer
censura às suas ati- tudes, se quisesse ser feliz, ou
melhor, que a causa de seus problemas seria a
censura ao seu comportamento — como se fôssemos
deuses, capazes de realizar tudo o que fosse possível,
sem qualquer erro (teomania).
Várias instituições foram organizadas sob essa
hi- pótese, como a Sumerhill, por Neil, na
Inglaterra, com resultado totalmente negativo, pois
todo aluno, que passou por lá, tornou-se medíocre;
nos Estados Unidos, o famoso Dr. Beck difundiu tal
princípio em seu livro Meu Filho, Meu Tesouro,
causando grandes transtornos à educação infantil;
Carl Rogers incentivou a aliena- ção, ensinando que
seus clientes, deixados à vontade, espontaneamente
chegariam à realidade.
A Trilogia Analítica esclarece que não pode
ha- ver censura em relação à consciência, seja do
bem e da verdade, mas principalmente dos erros;
podemos mes- mo afirmar que a neurose, psicose,
doenças físicas e todo problema social têm sua
origem nessa atitude de impedir a existência da
consciência. Não é difícil ver como a pessoa muito
doente é tão censurada que não permite nem mesmo
que o seu corpo se movimente, conservando-o
rígido. Justamente esta foi a descober- ta da

24
Consciência é percepção, seja dos erros, ou da ainda do que isto, exis- te uma concepção de vida errônea
ver- dade e não censura aos enganos que se cometem, que, só agora, com o
ou à magnificência que se vê em Deus; ambas as
atitudes são contrárias à realidade. Para se saber se a
pessoa está conscientizando, ou censurando, basta
verificar os se- guintes sinais:

Na Conscientização Na Censura

1) Há entusiasmo 1) Há medo
2) Há realização 2) Há estancamento
3) Há alegria 3) Há tristeza
4) Há conversação 4) Há silêncio
5) Há audácia 5) Há covardia

Quando se admite realmente a consciência,


imedia- tamente tomando-nos de entusiasmo: 1)
porque vemos a possibilidade de errar menos,
aceitando a sua consci- ência, 2) aumentamos nosso
brilho e fulgor, aceitando e percebendo
concomitantemente a verdade e o bem; quem
realmente aceita a Deus, admite seus pecados, porque
uma percepção exige a outra e, ambas, causam grande
tranquilidade. Ao se aceitar ver o Criador, auto-
maticamente vemos nossos erros, porque a bondade é
inseparável da consciência e o ódio é jungido à
censura, à omissão e negação de qualquer visão.
Censura não é sinônimo de problema, mas o seu
escondedor; assim sendo, a censura é o maior
problema que existe, porque impede que o erro seja
conhecido, e com isso sanado.
Como realizar melhor o ideal de perfeição de que
nos falou Cristo? Em um mosteiro, convento ou semi-
nário, como foi apregoado até aqui, ou em uma exis-
tência verdadeiramente espiritualizada? Neste último
caso, haverá possibilidade de conseguirmos organizar
uma sociedade verdadeiramente agradável, onde a lei
do homem seja substituída pelo amor? Eu creio que
sim, porque não somente é mais fácil viver assim,
como já a temos em nosso interior, bastando aceitá-la.
O prin- cipal elemento para nos levar a isto é a
aceitação do que a consciência nos mostra, em matéria
de erros.
É difícil falar sobre o cristianismo porque
aprende- mos, através dele, a arte de perdoar, transigir
e tolerar os erros alheios e, ao mesmo tempo, notar
toda a atitude de intolerância, intransigência e desamor
dos seus divulga- dores, mostrando um contrasenso
muito grande entre a teoria e a prática. Penso que, mais

24
desenvolvimento cientifico, está sendo percebida: o
erro tem de ser conscientizado, notado — e não
propriamente eliminado, isto é, escondido
(inconscientizado).
Muito foi dito sobre a consciência, mas o que
me causou muita satisfação ultimamente foi a
constatação da grande calmaria que ela realmente
nos traz. Viktor E. Frankl já disse que consciência
é sinônimo de respon- sabilidade — e eu
acrescento muito mais do que isso, ela é a
finalidade da existência humana, social e espi-
ritual — a consciência é o Espírito de Deus em
nossa existência; ela é a paz, a felicidade, o nosso
fim último. Somos semelhantes ao Criador
inclusive nesse aspecto, ou seja, o terceiro setor da
existência em desenvolvi- mento definitivo neste
início do Terceiro Milênio.

Quem realmente aceita a Deus, admite seus pecados, porque uma


percepção exige a outra e, ambas, causam grande tranquilidade.
Ao se aceitar ver o Criador, automaticamente vemos nossos
erros, porque a bondade é inseparável da consciência e o ódio é
jungido à censura, à omissão e negação de qualquer visão.

24
Norberto Keppe em Viena, Áustria, ao lado de Viktor E. Frankl

os olhos ao vasto mundo exterior, cheio de tanta bele-


za, bondade e verdade.
8 — Libido Acredito que a civilização vem cometendo um
grande engano, a respeito de seu fator básico, o espiri-
Tanto os religiosos (católicos ou protestantes)
tual. Desde o helenismo, veio desenvolvendo uma
como os psicanalistas tradicionais, reduziram a visão
ideia de paralelismo entre o espírito e a matéria,
do mundo a um nível extremamente precário — fe-
colocando- se nesta última a causa de todas as suas
chando todas as portas a esse incrível universo criado,
desavenças. Tal fenômeno passou para o cristianismo,
físico e espiritual, que existe além da temática da li-
recebendo o nome de concupiscência e atingindo a
bido. Trata-se de uma atitude totalmente materialista,
ciência moderna com a designação de libido. Tal
quando se olha o ser humano em função da sua exis-
acontecimento tem me parecido como algo em acordo
tência sexual, ignorando todo o contingente anterior
com os espíritos ma- lignos, que se empenharam
básico, que está em sua organização afetiva, no senti-
profundamente, desde que Adão e Eva resolveram
do de negar, omitir ou deturpar a verdade, a beleza e a
construir um Reino Humano em oposição ao Divino.
bondade. Provavelmente, a caverna escura como Pla-
E o que me vem à mente, sobre esse fenômeno, é que
tão designa nossa existência aqui na terra é justamente
o ser mais sem concuspicência que existe é o próprio
a prisão da libido em que nos colocamos — fechando
demônio — espírito puro não dotado de qualquer

24
matéria e portanto de sexo.

24
Pois bem, a primeira grande mentira do homem que seja, jamais fornece satisfação integral; pelo
foi a sutil elaboração de que o físico não nos era contrário, frequentemente traz uma terrível insatisfação,
adequado; desde o instante em que desejamos, ser porque
deuses, eviden- temente deve ríamos nos despojar do
corpo. Onde se viu um possuidor de matéria! Daí em
diante, fizemos tudo para organizar o nosso Reino dc
Homem — inclu- sive renunciando ao corpo, que
passamos a abandonar com a morte. Enchemo nos de
doenças, dificuldades de percepção e entendimento.
Por último, demos a mão ao satanás, aliando-nos em
sua milenar empresa de re- construir o mundo a sua
maneira. Uma conclusão se nos impõe: toda pessoa
que rejeita este universo, como ele é, está
mancomunado com os espíritos diabólicos.
A libido é igualmente vista como algo muito
forte, como se fosse a própria fonte de vida jorrando
do ser humano. Assim sendo, diante da
companheira(o) senti- mos como se ela fosse
possuidora de um poder mágico, inebriante realizador.
É por este motivo que Freud lhe concedeu tanta
importância. Porém, analisando bem tal questão,
notaremos que tal impressão vem mais da fan- tasia
que elaboramos sobre libido, por identificá-la com a
megalomania; ta atitude fez aumentar o grau de alie-
nação em que estava a humanidade; podemos dizer
que o indivíduo analisado pelo processo freudiana
aumenta assustadoramente a própria imaginação
tornando-se ir- recuperável para a vida normal.
Freud e a psicanálise tentaram substitui o
espiritu- alismo pela libido, porque alimentaram a
megalomania do ser humano, incentivando-i a ser um
deusinho; tal atitude vem perturbando de tal maneira a
conduta que aumentou muito mais ainda a
psicopatologia. Essa ideia vem estimulando o
comportamento sexual, no sentido de aumentar sua
potencialidade, como se tal coisa fos- se de
importância fundamental os seus resultados têm sido
desastrosos, contrário mesmo do pretendido. Se a
humanidade conseguir cuidar da verdadeira causa de
seus problemas (atitude de soberba, arrogância e me-
galomania) tirará um peso enorme que angústia, que é
a preocupação com a libido suas consequências; seria
o retorno à paz almejada e um alívio ao próprio corpo,
que tem aguentado uma aguerrida luta contra ele.
O sexo foi considerado como sendo uma neces-
sidade primária (como a alimentação), por causa de
um grande erro de perspectiva; facilmente, poder-se-á
notar que o relacionamento sexual permanece sempre
aquém de nossa aspiração e, o orgasmo, por melhor

24
existe um abismo entre o que pensamos sobre ele e a A paciente S.A. disse que julgava o seu
sua realidade. Procuramos o sexo, não por ele em si psica- nalista invertido, vendo a doença no bem e
mesmo, mas com o intuito de amenizar a percepção a saúde no mal; não é difícil perceber que a
da consciência, que é a voz de Deus. cliente coloca-
Muitas pessoas perguntam se é necessário
cuidar também da sexualidade patológica, desde que
afirmo que é um processo secundário. É claro que,
quando se trata do principal, os consequentes são
atingidos tam- bém; cuidando da teomania,
megalomania e inveja, au- tomaticamente o
indivíduo ficará livre dos problemas sexuais. Caso
contrário, viverá em uma contínua hipo- crisia,
acreditando que atingiu um alto grau de santi- dade,
só porque evitou uma conduta aparente (social)
louvável. Este foi o grande engano da humanidade
pós- cristianismo, que colocou toda a sua
importância em um evitar continuo da libido,
conservando intacta toda a arrogância, soberba e
inveja.

9 — Metodologia: A
Dialética
Assim coma não pode haver a negação, senão
so- bre a afirmação, o mal só pode existir sobre o
bem e a doença sobre o que é são, em forma de
negação, omis- são ou deturpação da realidade.
Assim sendo, é neces- sário perceber o que o
indivíduo está negando, omitin- do ou deturpando.

O sr. J.L. sonhou que estava dentro de


uma piscina, sentindo-se muito mal e em
perigo de se afogar; associou a água com a
vida, demonstran- do que via perigo na
existência em si.

Uma senhora extremamente agressiva e


de- sagradável aproximou-se dele e ele sentiu
atração física; associou o físico dessa mulher à
beleza, es- clarecendo que via a beleza como
algo agressivo e desagradável.

O método dialético tem a finalidade de esclare-


cer o erro, para que o indivíduo possa conscientizar
a verdade, ou melhor, como a doença é ocasionada
pela inversão, somente pela percepção de tal atitude
é que o ser humano poderá se recuperar de sua
neurose, psicose ou mesmo do mal físico.

25
va no seu analista o que ela fazia, desde que pensadores, vê-se que eles sempre misturavam a
inver- tia tudo, vendo no outro o que pertencia a dialética real com a pseudo-dialética, por
ela.

Não existe algo mais difícil, do que trabalhar com


o ser humano, porque é o único ente colocado entre
dois mundos (o material e o espiritual), entre duas
atitudes (uma certa e outra errada) e podendo escolher
o que lhe é benéfico, ou a sua total ruína. Às vezes,
estamos sob a orientação de indivíduos, ou
organizações voltadas aos seus próprios interesses
egoístas, outras vezes, temos a ventura de nos ligar a
pessoas e grupos que se voltam para a verdade e o
bem, que não são eles, mas existem por si mesmos.
Quando a Trilogia Analítica fala da necessidade
de aceitar a consciência dos problemas, se não houver
uma correção concomitante (dos erros), pessoa algu-
ma aceitará tal percepção, ou melhor, a aceitação da
percepção dos próprios erros é sinal de que o indiví-
duo já está mudando de conduta. Quanto maior pato-
logia vejo em mim, parece que sou “infinito” em meus
males, vendo concomitantemente que Deus é infinito
em suas qualidades.
A dialética que a Trilogia Analítica usa é a
socráti- ca, ou cristã, que visa ao encontro com a
verdade que já reside no interior do ser humano; como
o grande pen- sador grego, falava, temos de agir como
parteiros que apenas fazem com que a realidade
apareça — Sócrates chamou-a pelo nome de diálogo;
este processo está em oposição ao platônico e ao
hegeliano, que pretendem unir a fantasia à realidade,
dialogando com o que não existe: o não.
Exemplificando, se eu basear minha vida em um
inconsciente, estarei totalmente errôneo, pois o que
não é (in=não; consciência=percepção), a não per-
cepção, não pode ser origem da percepção.
A dialética é responsável pelo conhecimento e de-
senvolvimento humano, pela criação da filosofia, teo-
logia, ciência e do próprio universo. A civilização
atual começou na Grécia devido ã comparação que os
filóso- fos pré-socráticos já faziam: Anaximandro
dizia que ao longo do tempo os opostos pagam entre si
as injustiças reciprocamente cometidas; Pitágoras de
Sam os estabe- leceu uma tábua dos opostos: finito e
infinito ímpar e par, bem e mal; Heráclito de Éfeso
afirmou que Deus é dia-noite, guerra-paz; Empédocles
desejava uma com- pensação cíclica entre amor e
ódio, saúde e doença (O Reino do Homem, 1.°
volume, pág. 15, 16, 17). Notan- do-se cada um desses

25
não ter consciência de seus erros; por exemplo: bem A cliente M. S. disse em uma sessão de
e mal, amor e ódio, saúde e doença. Sócrates aná- lise que era de opinião que pessoa alguma
percebeu tal erro, mas, imediatamente depois, Platão seria responsável pelo que não conhece
oficializou tal reino da fantasia, colocando o não (30.10.1981); era uma ex-religiosa e fora
coma se fosse a alteridade do sim, para grande obrigada a deixar o mosteiro com grande pesar.
satisfação dos demônios e dos seres humanos
endemoninhados.
Psicoterapia trilógica é o processo de
conscientiza- ção da dialética errônea e a
recuperação e desenvolvi- mento da humanidade
dependem só dessa percepção.

A sra. P. C. sempre acreditou que seu


traba- lho era muito mais importante na firma,
do que o de seu chefe, pensando reiteradas
vezes que a in- dústria precisava mais dela, do
que ela da fábrica. Evidentemente, censurava
tal “sentimento”, refe- rindo-se a toda a
capacidade do diretor, alegando que estava
muito feliz naquela atividade.

Facilmente o leitor notará a atitude de


megaloma- nia da senhora P. C., pois os que estão
subordinados ao que é melhor, costumam pensar
que são os seus cria- dores e isso vem desde Adão e
Eva, acarretando graves prejuízos para a
humanidade.

O Dr. C. J., trabalhando como analista na


Sociedade de Psicanálise Integral, contou que
seu cliente M. A. era muito agressivo com a
namora- da; uma boba nas mãos dele, muito
produtiva e trabalhadora. Mostrei ao Dr. C. J.
que ele partia por cima de sua capacidade de
trabalho, porque achava que tal atitude era
muito boba, vendo na preguiça uma grande
vantagem.

Pela explicação da psicanálise tradicional,


tería- mos de encontrar qualquer evento na libido,
principal- mente no relacionamento entre o cliente e
seus pais, em um interpretacionismo desnecessário e
prejudicial. O leitor poderá notar que tanto a sra. P.
C., como o Dr. C.
J. enxergavam o trabalho como algo inferior,
colocan- do-se em uma situação incrível de
superioridade, em prejuízo da sociedade e de si
próprios.

25
Esta ideia me fez remontar aos anseios da maioria gico é secundário, porque vem em decorrência de um
das pessoas entregues aos afazeres religiosos, no sen- problema anterior situado na vontade, no psíquico —
tido de se alienarem inteiramente da realidade — por podendo-se considerar a histeria como o resultado de
cultivarem uma filosofia de vida errônea.

A madre superiore de um convento estava


to- mada de verdadeiro pavor, ao ter de enfrentar
um juiz, que iria julgar um processo movido por
uma professora de seu colégio, reclamando alta
indeni- zação. Associou esta atitude (da
professora) a pro- blemas e a seção do tribunal a
dificuldades.

Este foi o grande engano de grande parte da


huma- nidade, religiosos, nobres, políticos, militares e
cientis- tas ao desejarem viver sem problemas,
transformando o mundo em uma ilha de tranquilidade
no espaço; por este motivo alguns pensadores
escreveram sobre um tipo de vivência ideal: Thomas
Morus: Utopia; Tomma- so Campanella: Cidade do
Sol; Francis Bacon: A Nova Atlântida; Aldous
Huxley: Admirável Mundo Novo e Skinner: Walden
II.
Não é necessário fazer a dialética certa e sim
conscientizar a errada, para que deixemos funcionar
a correta; é o mesmo fenômeno a respeito da verda-
de: ela existe por si e, para que a vivamos, temos de
descobrir nossa mentira, para que não a impeçamos de
existir em nossa vida. Afinal, a realidade é maior do
que nosso entendimento.
Freud cometeu um engano fundamental, vendo as
pessoas paranóicas como se fossem histéricas; quando
analisava as mulheres vienenses, que forneceram todo
o principal material de sua pesquisa sobre a libido,
procu- rava sempre uma causa sexual (repressão,
recalque) para explicar o motivo da neurose —
impedindo-se de che- gar a sua verdadeira causa, a
persecutoriedade diante do afeto. Foi esta atitude que
tornou a ciência psicanalítica superficial em suas
hipóteses: a verdadeira etiologia dos males
psicofisiológicos parou a meio caminho, permane-
cendo no aspecto orgânico e não no psicológico;
vamos dizer que não foi organizada uma dialética
entre corpo e alma, com a redução do psíquico ao
físico.
Tudo o que se passa no campo orgânico, fisioló-
25
uma grave paranóia; por este motivo, as pessoas realizando um pacto com o demônio, que continua
tidas como histéricas preparam a maior confusão, firme até hoje.
colocando um indivíduo contra outro e fazendo
intriga.

A sra. V. S. falou perante o seu marido,


no grupo de análise, que estava sendo
cortejada pelo sr. A. M.; com o correr da sessão
ficou comprova- do que a sra. V. S. é que se
colocava em atitudes sedutoras, não só diante
de A. M., como dos ou- tros homens do grupo.

Ficou evidente que a cliente visou: a)


agre- dir o sr. A. M.; b) agredir o marido; c)
mostrar-se muito atraente, desejada pelos
homens; d) tinha atitude invertida: alto
interesse pelas pessoas do sexo masculino e
dizia que eles é que a deseja- vam; e) e
principalmente uma hostilidade enorme ao
amor, pois A. M. sentia um real afeto por ela.

Somente pelo processo dialético é possível che-


gar à verdadeira etiologia da neurose, pois uma
causa é sempre anterior ao fenômeno apresentado; o
próprio Freud não afirmou que o motivo de uma
perturbação era inconsciente? Então, por que
acreditou que uma queixa de sexo era realmente de
fundo sexual?
A dialética mostra o processo fundamental da
cria- ção da vida e, como consequência, da estrutura
do ser humano, que age sempre de maneira dupla
em todos os seus aspectos: para conhecer
(inteligência), no campo afetivo e principalmente
em sua conduta doentia. Se o homem é formado por
sentimento e intelecto, tem de considerar essas duas
bases, se quiser entrar em contac- to com a sua
verdadeira realidade.
De modo geral, podemos considerar o grande
pro- blema da humanidade como sendo a sua luta
contra o afeto: sejam os racionalistas, os religiosos,
pedagogos e cientistas colocam no amor o principal
sofrimento do ser humano; quando Bento fundou o
primeiro conven- to, constituído por indivíduos
masculinos, ou quando houve a lei do celibato para
todos os funcionários re- ligiosos, estava decretado
o processo de inconscienti- zação da paranóia, que
sempre aparece no comporta- mento afetivo. Vamos
dizer que Adão e Eva disseram não ao amor,

25
Não estamos vivendo agora em outro tempo diferente do que Cristo viveu, quando esteve aqui; os mesmos fenômenos que aconteciam
lá, sucedem agora; assim sendo, a doença do ser humano está sempre acompanhada pelas influências diabólicas, isto é, os demônios
nos rodeiam e nos atacam vinte e quatro horas por dia, sem parar.

10 — Conscientização e
rém, ele constitui sempre a junção de ambos, para for-
Interiorização mar um terceiro, que já não é nem um e nem outro,
mas a virtude dos dois em uma só ação tríplice, de
O trabalho principal do demônio foi fazer o ser
poder e realização. É por este motivo que a Trilogia
hu- mano perder a consciência — porque assim ele
Analítica tem grande poder de difusão e penetração,
trabalha livremente; por consciência temos de entender a
podendo-se prever dentro de pouco tempo uma
percep- ção dos próprios erros, que é vista,
aceitação excepcio- nal pela humanidade.
concomitantemente com a grandeza de Deus. Não
Está sendo quebrado o ciclo fatídico de nossa hu-
estamos vivendo agora em outro tempo diferente do
manidade terrestre, que veio por todos estes séculos
que Cristo viveu, quando esteve aqui; os mesmos
em uma contínua conduta de destruição; e tal fenôme-
fenômenos que aconteciam lá, sucedem agora; assim
no ocorre agora por força do próprio desenvolvimen-
sendo, a doença do ser humano está sempre
to, que exige a conscientização de todas as falhas que
acompanhada pelas influências diabólicas, isto é, os
foram cometidas, para que finalmente cheguemos ao
demônios nos rodeiam e nos atacam vinte e quatro
caminho do bem, do belo e da verdade. A função da
horas por dia, sem parar.
Trilogia Analítica não é só de conseguir a cura dos
A consciência é um fenômeno intermediário entre
pro- blemas psicológicos e orgânicos, mas está
sentimento e o intelecto, dependendo dos dois, para se
relacionada principalmente com toda a existência, seja
fazer valer — do primeiro (o sentimento), como base e
a filosofia de vida, a teologia e a própria criação.
do segundo (o intelecto), como sua manifestação. Po-
25
A consciência constitui uma janela aberta entre o desenvolvimento, girando a roda do tempo alguns
ser humano e a transcendência; ela é o elo que o séculos à frente.
homem tem com a enorme realidade que paira sobre
todo o uni- verso — mas, para que penetre por esta
janela até esse incrível mundo exterior, tem de
trabalhar com todos os empecilhos que colocou à sua
frente: a inveja, o ódio, a ira, a megalomania e
principalmente a teomania. A estes últimos, chamamos
de psicopatologia, ou seja, a fantasia e imaginação que
elaboramos para esconder a verdade, o bem e a beleza
que existem em toda realida- de, inclusive no próprio
interior.
O grande encontro que o ser humano tem de rea-
lizar é com a sua patologia; todas as pessoas, sejam as
do povo, de instituições, ou de grupos sabem de nossa
dignidade como filhos de Deus, mas poucos querem
ver sua conduta de oposição, omissão e de deturpação
à realidade; poucos indivíduos, é bom repetir, querem
ver seu pacto com o príncipe deste mundo, o satanás
— pois o encontro com a doença é a visão de seu
pacto com o demônio. Estamos de volta a um tema do
passa- do e que ficou escondido por muito tempo,
ocasionando enormes prejuízos para todos.
A consciência é um fator dialético: ao mesmo
tem- po que vê os erros, abre a percepção ao vasto
universo da verdade, beleza e bondade; assim sendo, o
único ca- minho para o progresso e a civilização é o da
descida ao mundo psicopatológico. Se a pessoa aceita
a cons- ciência dos erros, automaticamente estará
admitindo a existência da verdade, porque é um
fenômeno dialético: para admitir as próprias faltas,
tem-se de acatar o bem, que está só em Deus — e, em
nós, pela criação.
Não somos herdeiros de um inconsciente coleti-
vo, como falava Jung, ou de um inconsciente familiar,
conforme Szondi; trazemos em nossas vidas hábitos
seculares, muitos certos e outros errôneos, de que de-
vemos tomar consciência — para voltar a uma conduta
adequada. Não somos destinados a um tipo de existên-
cia, mas geralmente aceitamos viver de determinada
maneira, segundo nossos interesses e convicções;
deste modo, temos de rever a própria maneira de
pensar, para ver que estamos invertidos, escolhendo
geralmente o que nos prejudica. Para se chegar à
sanidade, temos que aceitar a consciência dos erros,
porque, para alcançar o equilíbrio, somos obrigados a
perceber o próprio de- sequilíbrio. Se cada pessoa,
neste momento, aceitasse toda a consciência que tem,
sofreria imediatamente um processo de incrível

25
A conscientização faz parte também de um que sempre sonhamos é Deus; como somos feitos
proces- so histórico, isto é, vem funcionando há segundo sua imagem e semelhança, con- servamos na
tempos dentro de uma família, de um grupo, ou mente sua lembrança, quando nos formou
mesmo de uma civi- lização; assim sendo, podemos
admitir que um grupo de pessoas tem uma estrutura
típica por força de um acúmulo de dados tirados de
uma vivência passada, ou do campo filosófico,
teológico, ou mesmo da tradição. No meu primeiro
livro Psicanálise Integral chamei a este fenômeno de
transtipos, ou seja, tipos de conscien- tização, de que
alguns se apossam, organizando uma maneira de
viver característica. Por exemplo: a tradição judaica,
baseada nos profetas; a cristã, fundamentada em
Cristo; a chinesa que escolheu Confúcio e depois
Lao-Tsé; a japonesa que se voltou para Buda e agora
aos padrões ocidentais.
Como a consciência é um acontecimento geral
em todos os seres humanos, todas as descobertas,
seja no campo científico, filosófico ou teológico vão
repercu- tindo, atingindo progressivamente a
humanidade intei- ra; não é difícil notar que estamos
entrando em uma era de conscientização — a última
e definitiva dentro de nossa civilização — e com as
seguintes características:
1) unidade de todos os povos e pessoas dentro de um
mesmo espírito; 2) enorme desenvolvimento
científico e moral; 3) era de paz absoluta.
Temos de convir que a sociedade humana está
constituída pelos mesmos erros dos seres humanos
que a formam; de maneira que é de fundamental
importân- cia conscientizar quais são esses enganos
e o campo mais propício é o da ciência do
psicopatológico. Mas o que é realmente básico é a
percepção e não propria- mente a preocupação com
a sua correção, que seria uma simples alteração do
comportamento atual.
A intenção da filosofia e da religião, de per si, é
sempre teleológica, isto é, corrigir os erros como
apa- recem e tomar uma nova atitude, enquanto que
o da ciência é tomar consciência dos fatos que estão
atrás daquele comportamento para evitar a
continuação de uma conduta patológica; a teologia e
filosofia acredi- tam rio fato em si, enquanto que a
psicopatologia vê a causa (anterior) do fenômeno.
Se não tivéssemos as mesmas características de
Deus (sentimento e intelecto), não poderíamos
compre- ender coisa alguma, porque tudo o que
existe foi organi- zado segundo o afeto e
entendimento dele (Deus). Toda essa beleza com

25
— assim como o relógio veio do relojoeiro, tido defe-
permanece em nossa mente a memória de uma incrível
felicidade que havia no momento da criação e que
haverá futura- mente e para sempre.
A consciência é sempre algo divino, porque o de-
mônio não percebe seus erros e toda a bondade, verda-
de e beleza que existem, seja em Deus, ou na Criação.
O que é o Espírito de Deus? Se o amor não for
difundi- do, será inútil; se a verdade não for dita, não
terá valor algum — o Espírito Santo é a manifestação,
a cons- cientização dos dois, primeiro no próprio
Criador, de- pois, entre os seres humanos; o Espírito
de Deus é o que alimenta as plantas, os animais, as
correntes de água, o sol, estrelas, cometas e planetas
no espaço; é a luz que abre nossos olhos, o calor, a
existência do belo, é a vida de tudo o que existe.
A aceitação é anterior à visão, de maneira que só
entendemos o que acatamos; esta questão é fundamen-
tal para que se compreenda todo o processo de conhe-
cimento, o que acontece com os pensadores, as
orienta- ções filosóficas, a maneira de raciocinar de
um povo e principalmente a problemática
psicopatológica de toda a humanidade. Posso dar
alguns exemplos: os anjos (demônios) que rejeitaram
o Criador não o vêem mais, assim como os seres
humanos que não o desejam — mesmo que saibam de
sua existência — não têm mais consciência da enorme
felicidade e alegria em partilhar a vida do Criador e da
terrível agonia e sofrimento que a existência
demoníaca fornece.
Os pensadores racionalistas (Aristóteles, To-
más de Aquino, Descartes) colocaram a ideia de que
o raciocínio seria a base da civilização, em oposição
a Bernardo, Boaventura, John Duns Scot, Guilherme
d’Ockam, Bergson, Husserl, Kierkegaard, Heidegger
que viam o sentimento como principal; quando Aqui-
no teve uma visão do céu, quis queimar todos os seus
manuscritos, considerando-os palha diante do que ti-
nha apreciado (sentido).
É importante notar que interiorizar é um tanto
diferente de conscientizar, porque visa colocar, na
vida psíquica, o que se tem visto fora, na sociedade,
família e política; interiorizar significa mais ainda,
ou melhor, perceber o processo que se desenrola na
vida interior, que verdadeiramente comanda tudo o
que se passa no exterior.
O ser humano tem medo de entrar em seu
interior, porque confunde os outros (inclusive os seres
espiritu- ais) com o seu próprio íntimo, pois não tem

25
sa para lidar com os demônios espirituais e Existe um erro sobre o sexo, pelo fato de o ter-
humanos; acredito que a Trilogia Analítica fornece mos visto como algo fundamental para a vida huma-
todos os meios para trabalhar com eles, por oferecer na e principalmente para a psicológica, escondendo a
uma vivência tri- lógica (amor, pensamento e verdadeira causa da doença: teomania, megalomania
consciência) que tais seres não conseguem sentir e
entender. A Trilogia Analítica constitui uma
estrutura coesa: quando fala em conscien- tização e
interiorização, está usando o método dialético, bem
como percebendo a teomania, inveja e inversão,
assim como, trabalhando com o processo de
alienação (inconscientização), vendo a fantasia e a
realidade.
Todo problema tem de ser resolvido do interior
(para o exterior), sem exceção; qualquer
circunstância externa tem de ser analisada, para
chegar a sua verdadeira etiolo- gia, que é
psicológica, espiritual. Se o inconsciente não existe
por si, tudo o que foi imaginado, ou escrito sobre
ele, não é nada mais do que o incentivo às chamadas
for- ças diabólicas; vamos dizer que o principal
estudo, sobre a psicopatologia tradicional, é um
pacto com o Reino do Satã, que é necessário
desmascarar agora.

11 — A Vontade
A Trilogia Analítica descobriu que o ser
hu- mano é doente devido à escolha livre da
vontade, o que causou estranheza para a maioria
dos indivíduos aficionados ao estudo da
psicopatologia. Somente um louco poderia escolher
ser enfermo, dizem eles; é por este motivo que são
doentes, dizemos nós. Porém, é ne- cessário
compreender que vontade é essa.
Já dissemos que a humanidade está invertida,
por causa de sua inveja; tal atitude a leva a procurar
a fanta- sia e a rejeitar a realidade, porque formamos
a ideia de que Deus, o bem, o amor, a verdade nos
fazem sofrer, enquanto que o demônio, o mal, o
ódio, a mentira nos trazem grande vantagem; e tal
decisão foi tomada por nossos primeiros pais,
quando viraram as costas para o Criador, entregando
o Paraíso Terrestre para os maus espíritos, em um
pacto de morte. A maior parte das pes- soas pensa
que somente pela desonestidade é que seria possível
enriquecer, enquanto que a honestidade causa
transtornos; as próprias drogas (maconha, ácido
lisérgi- co) são difundidas pelos indivíduos que
falam contra, porque atacam o que apreciam.
25
e inveja; Freud realizou um desvio total da psicopato- a consciência do que realizamos de errado, para permitir
logia, logo no início de sua pesquisa — praticamente, que o bem exista em nós; automaticamente, passamos a
quando analisou o problema da histeria, seu primeiro aceitar o
livro sobre a neurose. Na página 185 diz o seguinte:
“em primeiro lugar, tive de reconhecer que dentro do
que se podia falar de motivação, mediante a qual se
ad- quiriam as neuroses, tínhamos de buscar a
etiologia em fatores sexuais”. Porém, à página 94,
disse: “parece-me que em todas as confissões íntimas
feitas pela paciente não houvesse alusão ao elemento
sexual”, demonstran- do que o sexo não constava de
todo o relato.
O sexo não é tanto procurado pelo prazer que ofe-
rece, mas pela ideia (inconscientizada) de que ele é
uma defesa contra a conscientização, mera atitude
agressi- va de oposição à realidade; é por este motivo
que toda pessoa sofre enorme decepção ao pretender
alcançar a felicidade, o bem-estar através da libido:
além de não encontrar o ‘que procurava, perderá
enorme tempo em busca do que não existe.
A proposta da Trilogia Analítica é de extrema
sim- plicidade; o que ela pretende unicamente é fazer
o ser humano olhar para seus erros encerrando tantos
séculos de hipocrisia. Exemplificando: uma pessoa,
que procu- re a vida religiosa, geralmente é para não
conscientizar como ele próprio é irreligioso; quem
defende o socialis- mo ou o comunismo, é para ignorar
como é explorador e desonesto, econômica e
socialmente; os que se tor- nam políticos ou militares,
para defender os interesses nacionais, na maior parte
das vezes, é para não perceber que só cuidam de seus
próprios interesses.
A Trilogia Analítica pretende que o ser humano
se volte para a verdadeira percepção de seu estado
psicos- social, que foi ocasionado pelos maus
“sentimentos”: inveja, ódio, desonestidade e
agressividade. A inveja e o ódio dirigem-se contra a
consciência, ao se pensar que a desonestidade, a
luxúria, a mentira e o roubo trazem uma grande
vantagem; dificilmente sentimos inveja do indivíduo
honesto e trabalhador, porque pensamos que ele se
prejudica — acusando-o muita vez de vícios que ele
não tem.
A mudança de atitude em uma pessoa não depen-
de de sua deliberação, mas da aceitação da consciência
dos erros; estou dizendo que, para ser bom, são,
correto, não é necessário realizar algo, porque a
bondade, a sa- nidade e a correção são provenientes do
Criador (atra- vés da natureza criada) — mas aceitar

26
único autor de tudo o que existe verdadeiramente (e indiferente diante de um grande pensador, a ponto dos
que é bom): Deus. famosos doutores da igreja terem se enfronhado em
A pessoa não acredita tanto no que pensa, seus ensinamentos,
mas no que faz, porque a conduta (que é baseada na
von- tade) constitui o fundamento da existência
humana. O mundo chamado da filosofia pode ser
comparado ao universo das ideias, típico do
indivíduo que passa a vida pensando, sem realizar
nada, exatamente como o doente invejoso.
Atualmente, estamos entrando na fase de ouro
da história da humanidade, por colocar a ação em
primeiro lugar, como sendo o resultado da livre
escolha do bem e da verdade — retornando ao
tempo do ato puro da Gré- cia ancestral, cuja
sabedoria, com toda certeza, é ligada a uma
formidável civilização perdida, mais adiantada do
que a nossa presentemente. Enquanto estamos vi-
vos, temos a enorme oportunidade de desvendar o
ma- ravilhoso universo, não só material, como
psicológico e principalmente espiritual que nos
envolve, porque fo- mos criados exatamente para
essa finalidade.
A volta ao passado é praticamente o reencontro
com a sanidade perdida, devido a nossa escolha
errô- nea; trata-se de uma volta ao paraíso perdido
de Adão e Eva, que desenvolveu uma incrível
civilização espa- cial, que nem mesmo podemos
fazer ideia do grau de sua grandeza.

12 — O Pensamento
A filosofia constitui a mais bela flor da
civilização; ela é o que de melhor, mais bonito e
radioso o ser huma- no conseguiu realizar; um povo,
um país, uma região é mais ou menos formoso, de
acordo com a sua cultura e maneira de pensar: as
edificações podem parar, suas es- tradas e
monumentos, mas o pensamento permanecerá para
sempre na mente de todas as gerações que se su-
cederem. Se a civilização teve algo de incrível
impor- tância e enorme beleza, foi a filosofia que
organizou, mesmo com todos os erros que fez; e o
país, que des- ponta em primeiro lugar é a antiga
Grécia, que parece ter herdado uma cultura oriunda
de um povo extrema- mente desenvolvido.
De tal maneira a filosofia foi importante para a
hu- manidade, que os maiores místicos e homens de
todos os outros setores de atividades procuraram
conhecê-la; não houve uma pessoa que ficasse

26
como forma de compreender melhor o cristianismo. A filosofia deve ser apenas um meio para manifes-
Só esse fato comprova a veracidade e a mão de Deus tar a realidade, que já existe muito antes do
no mundo dos pensadores. pensamento; a mente humana deveria agir como se
Os maiores gênios, cientistas e pesquisadores fosse um receptor, por estar sempre em contato com o
sempre se dobraram diante da magnificência do pen- que existe. No en- tanto, por causa da teomania,
samento filosófico, como se fosse a grande chama, que tentamos criar uma outra existência, que só poderia
reluz sobre cada um de nós. Parece-me que é através haver dentro da imaginação. A mente humana vive
de sua cosmo-visão, que o ser humano manifestou me- dentro de um universo de beleza e grandeza ilimitado;
lhor a luz eterna da verdade e da beleza. De tal consegue apreender um pequeno aspecto dele e o
maneira o pensamento é importante, que justamente a transmite através do raciocínio; porém, a maior parte
Segunda Pessoa da Trindade Divina, o Verbo, é que do que apreendemos não conseguimos ma- nifestar por
veio à ter- ra; e o tempo todo falou e recomendou que absoluta carência de meios transmissores. Somos
falássemos, porque não há o que mova mais a como os radares que registram os fenômenos e nem
humanidade do que a palavra: intermediária e ponte sempre sabemos como analisá-los; assim acontece
de união entre o senti- mento (o amor) e a ação. com a vida psíquica que está em contato direto com o
mundo material e espiritual e conta com um
mecanismo relativamente pobre para manifestá-los.
Aristóteles dizia que não há necessidade de pro-
var os primeiros princípios, porque são evidentes; eu
digo mais ainda, que não precisamos comprovar ver-
dade alguma para aceitá-la, pois o espírito humano foi
criado de acordo com ela, e tudo o que é uma
realidade imediatamente é captado por ele. A questão
básica está na aceitação, ou na rejeição ao que
sabemos, não espe- cificamente com o intelecto, mas
com todo o ser, que é bem maior do que só a
intelecção.
Tem se acreditado muito em opiniões invejosas
de pensadores, com a consequente limitação ao
raciocínio, que padece de uma incrível diminuição,
impedindo o verdadeiro conhecimento de se
manifestar; a felicida- de está um pouco adiante da
restrição que fazemos à apreensão, mas não deixa de
estar ao próprio alcance. Assim sendo, é necessária
uma correção nas ideias fi- losóficas, para que o
pensamento penetre em toda essa amplidão material-
espiritual, que só espera a decisão de nossa vontade
para ser conquistada.
A ideia do conhecimento fornecida por Aristóteles
que, afinal de contas, é a da formação da vida psíquica
(endossada por Tomás de Aquino) é bastante materia-
lista, se me permitem a expressão; é por isso que os
pensadores do Renascimento viam na escolástica uma
esterilidade muito grande, pois nivelou o ser humano
De tal maneira o pensamento é importante, que justamente a por baixo, negando-lhe o que é mais autêntico: a es-
Segunda Pessoa da Trindade Divina, o Verbo, é que veio à terra; piritualidade. Depois Leibniz percebeu a existência de
e o tempo todo falou e recomendou que falássemos, porque não conhecimentos a priori (mônadas), que Kant endossou
há fornecendo grande impulso ao conhecimento; mais
o que mova mais a humanidade do que a palavra: intermediária e tar- de, Kierkegaard, Bergson, Husserl, Heidegger,
ponte de união entre o sentimento (o amor) e a ação.
26
Sche- ler, Schleiermacher e Jaspers notaram que o
intelecto funciona imediatamente na percepção da
realidade —

26
não havendo necessidade de elaborar um método de conhecimento do ser humano depende
raciocínio para funcionar. Temos de nos libertar des-
ses grilhões da intransigência para bater asas para o
espaço infinito.
Se o raciocínio resolvesse os problemas do ser
humano, a humanidade já estaria em uma época de
grande felicidade. Cada um de nós sabe exatamente o
que fazer, porém poucos o realizam — porque o inte-
lecto não é o elemento básico da existência — existe
outro mais importante, que geralmente não é tocado, o
afeto, pois ele é visto em plano secundário e projetivo,
devido ao processo de inversão que fizemos, causado
pela inveja. Sempre se falou tanto em razão e a dita
cuja jamais governou o mundo; aliás, usa-se tanto a
palavra razão, para não se ter consciência de quanto
sempre a rejeitamos.
O mais importante não é o que a pessoa pensa e
diz, mas o que existe atrás disso, o seu significado,
pois a sociedade e o ser humano não vivem conforme
o ra- ciocínio, mas segundo as intenções, que
geralmente são ocultadas; e essa atitude de esconder é
a causa de todas as desavenças humanas e sociais.
Freud deu essa enor- me contribuição à humanidade,
quando demonstrou a luta que realizamos contra os
desejos indecentes a que nós acrescentamos: ensejos
desonestos, agressivos, de ciúme, inveja e cólera,
querendo acreditar que a felici- dade é proveniente de
tais atitudes.
O intelecto pensa ao contrário da realidade, isto
é, de modo inverso ao sentimento (afeto); por este mo-
tivo, o que uma pessoa diz, raramente está de acordo
com sua maneira de “sentir”, colocando uma máscara
de correção (totalmente aparente), para não revelar a
verdadeira intenção. Com Kant, o racionalismo filosó-
fico perdeu seu primado dentro do pensamento huma-
no sendo, pouco a pouco, substituído pelos elementos
éticos e emocionais — não é necessário citar Bergson,
Kierkegaard, Biswanger e todo o interesse que a so-
ciedade devotou a esse assunto, motivo pelo qual che-
gamos a nossa ciência trilógica atual, que condensa a
razão com o sentimento em uma terceira maneira de
considerar o universo e os seres humanos.
Os grandes sistemas filosóficos, como o platonismo
e o hegelismo protegeram sobre-maneira a influência e
permanência dos demônios aqui na Terra. E o motivo
é simples: tanto o primeiro como o segundo
consideram o não como se fosse uma alteridade do
sim — havendo possibilidade agora de
desmascaramento pelas nossas descobertas. O

26
do contacto com a realidade (ciência), com a porque desviou a atenção do principal para o
verdade (filosofia) e com o sentimento (a secundário, es- condendo a causa real da moléstia. O
espiritualidade) em um corpo único de percepção. que pensamos não

13 — O Sentimento
O grande problema do ser humano está
localizado no setor básico do sentimento, quando
realizamos uma total inversão, substituindo o amor
pela inveja, ciúme e ódio. Este fenômeno redundou
em uma divisão na per- sonalidade, que a
psicopatologia moderna denominou esquizofrenia,
ou simplesmente esquizoidia nas pessoas comuns.
Fizemos uma ruptura com a realidade, que é a
bondade, a beleza e a verdade, devido a uma atitude
de soberba e arrogância extremada com o Criador
— que- rendo negá-lo, omiti-lo, ou deturpá-lo em
sua essência, elaborando noções errôneas a seu
respeito.
Quando a psiquiatria tradicional fala que a
perso- nalidade esquizóide perdeu o contato com os
seus sen- timentos, podemos acrescentar que ela se
desligou de qualquer percepção de suas atitudes de
inveja, cólera, ciúme e ódio devido à grande censura
que faz, não se permitindo ver erro em si própria e,
com isso, sofrendo aflições, psicossomatizações e
toda sorte de desajusta- mento social.
Geralmente deixamos as emoções livres
(como se fossem pássaros) vagarem pelo espaço da
imagi- nação, mas depois temos vergonha delas.
Freud des- creveu esse fenômeno em seu livro
Psicopatologia da Vida Quotidiana, considerando tal
conduta provenien- te de um inconsciente (página
286) — enquanto que eu a atribuo a uma forte
atitude de inveja e teomania, da qual temos pejo.
Diante do raciocínio, achamos um absurdo tal
comportamento; então, o reprimimos e aqui aparece
a sintomatologia.
O ser humano sempre acreditou que poderia
resol- ver todos os seus problemas através do
raciocínio; criou sistemas filosóficos, organizou
universidades, cursos especializados, mas não
encontrou o seu equilíbrio, simplesmente porque
não agimos conforme pensamos. Esta foi a grande
descoberta da ciência, que Freud atri- buiu à
existência de um inconsciente e nós ampliamos para
uma questão de atitude de inconscientização. Não é
difícil de ver que excesso de intelectualismo foi
muito prejudicial para o homem e toda a sociedade,
26
Fizemos uma ruptura com a realidade, que é a
bondade, a beleza e a verdade, devido a uma
atitude de soberba e arrogância extremada
com o Criador — querendo negá-lo, omiti-lo,
ou deturpá-lo em sua essência, elaborando
noções errôneas a seu respeito.

2
coincide com o que “sentimos” porque, se a atitude de também não aconteceu com os primeiros cristãos? Pois
inveja for muito forte, todo sentimento estará bem, Deus
invertido; assim sendo, agimos aparentemente de um
modo certo (mascaradamente) por força da educação e
da censura, mas desejamos o contrário.
Quando entendo algo, isto não quer dizer que já
percebi, ou melhor, que conscientizei o que
compreendi pois a conscientização depende mais do
aspecto afe- tivo: do meu assentimento, de sentir,
portanto de um fator duplo: conhecimento e
sentimento. A maior par- te do que conheço não
exerce importância alguma em minha vida, porque
permanece no aspecto intelectual
— “entra por um ouvido e sai pelo outro”, como fala o
povo. Porém, quando eu sinto algo (conscientizo), ja-
mais esqueço.
A espiritualidade pode ser identificada com o afe-
to e secundariamente com a verdade, no seu sentido
intelectual — de maneira que Deus está primeiramen-
te no sentimento (de amor), depois no verbo e a sua
manifestação se dá através da conscientização. Vamos
dizer que vida espiritual é o amor que a pessoa tem,
difundindo-o em todas as coisas, como se fosse um
novo ato criador, à semelhança com o próprio. Estou
dizendo que fé é sinônimo de amor: nosso “proble-
ma” de crença não é acreditar ou não em Deus — mas
aceitá-lo ou não, pois, quem ama, adora basicamente
quem o criou e depois dirige tal afeto para todas as
outras criaturas e coisas; quem vive mais a sua inveja
e ódio (e, na maior parte das vezes, não o percebe, por
causa da censura), deturpa, nega ou omite a existência
de Deus, altera a verdade, opõe-se ou então simples-
mente afasta-se da realidade.
O processo de verdadeira espiritualização traz
con- sigo sempre uma certa decepção com o
relacionamento humano pelo simples motivo que a
maioria das pessoas está demasiadamente voltada para
o próprio egocen- trismo, procurando alimentar o seu
narcisismo. Deste modo, tal relação se torna um
desgaste muito grande, principalmente para quem
procura algo espiritual.
A ideia da satisfação superabundante que o Filho
de Deus levaria ao pai parece redundante. O que penso
sobre o assunto é mais o total amor do Criador pela
hu- manidade, que o levou a se tornar um ser humano,
com todos os perigos inerentes: a orientação que
forneceu não poderia deixar de entrar em choque com
a estru- tura social e qualquer homem, que fizesse o
mesmo, teria sofrido a mesma condenação. Tal fato

25
aceitou tal consequência, desde que seu amor é família e separar os filhos dos pais para não se
absolu- to; sua bondade, total. tornarem egoístas (O Reino do Homem, volume 1,
Não é possível ter contacto com o próprio pág. 27). Durante todo o período
senti- mento, se não houver percepção da patologia,
porque os dois caminham juntos: a consciência do
processo de amor é concomitante ao da inveja e
ódio. O afeto geralmente é rejeitado, porque é
identificado com os problemas, que são também
relacionados com o setor emocional; não existe uma
dificuldade maior com o ra- ciocínio porque, se um
pensamento não dá certo, usa- se outro. Por
exemplo: quando o governo brasileiro é acusado de
ditador, por não ter eleição direta, diz que a indireta
(eleição) é democrática; quando se diz que a di-
tadura militar afundou o país, ela diz que os
presidentes não eram militares, porque foram
reformados; quando se fala da corrupção da cúpula
brasileira, ela diz que a corrupção é dos credores
que exploram o país. Assim sendo, o raciocínio fala
todas as mentiras, “acreditan- do” que é verdade.
Pensa-se de modo geral que algo, para ser
aceito, tem de ser conhecido; é justamente o
contrário, nós só conhecemos o que acatamos:
qualquer coisa, para ser entendida, tem de ser
amada. A inveja não é sentimen- to: é um mal-estar,
um contínuo rancor, desespero, é oposição ao amor;
quando a pessoa tem muita inveja, não consegue
compreender o mundo, as pessoas e o Criador
porque se desligou de tudo, passando a viver sua
fantasia desbragada.

14 — A Liberdade
A História da Humanidade é praticamente a
nar- ração do esforço do ser humano para a
conquista de sua felicidade; para chegar a isso, o
primeiro e grande trabalho inicial foi em prol de sua
libertação. Durante muitos séculos, viu a sua prisão
na estrutura social ou familiar, para só agora estar
podendo enxergar o princi- pal empecilho como
sendo de ordem psicológica (inter- na): a Trilogia
Analítica tem demonstrado que o homem é vítima
de si mesmo, construindo depois uma socieda- de
antagônica a sua própria natureza.
Em todos os tempos, os pensadores foram de
opi- nião que o ser humano seria vítima da situação
social, econômica ou política; Platão, com o seu
livro Repúbli- ca já tentava construir uma sociedade
diferente aconse- lhando o rei Dionísio II a abolir a
da Idade Média, papa, bispos e religiosos imaginaram recusaram a ser
uma parusia (paraíso terrestre) no sentido social, onde 252
teriam todos os bens, posição e felicidade, de acordo
com a estrutura vigente na sociedade — e sabemos
que não foi assim. Na Idade Moderna, Erasmo preten-
deu encontrar o bem-estar na loucura e Thomas More,
Campanella, Francis Bacon e Huxley, imaginaram
uma sociedade utópica, ideal.
Lutero, Zwingle e Calvino começaram a aceitar o
mundo leigo, incluindo-o no Reino Divino; Inácio de
Loyola, Tereza D’Avila, João da Cruz e Francisco de
Sales comandaram a contra-reforma, para impedir que
Deus escapasse de sua instituição e fosse difundido na
grande sociedade. Somente no século do iluminismo
(XVIII) é que houve uma grande libertação da
humani- dade, quando Voltaire afirmou que o
progresso era pro- veniente da consciência dos
próprios erros e acertos; porém, os homens não
conseguiram ainda olhar para os maus desejos
provenientes do seu íntimo — Jean- Jacques Rousseau
dizia que o ser humano nascia bom e a sociedade o
prejudicava e Diderot apregoava que liberdade seria
viver plenamente o biológico.
Quando o pensamento alemão entrou em cena,
houve duas correntes oriundas de Kant-Hegel, que
pre- dominam atualmente: a primeira, espiritualista,
não encontrou muita aceitação (Scheling,
Schleiermacher, Scheler e Jaspers); a segunda foi
mais admitida, não só por ser mais patológica, mas
porque é mais realis- ta (Feuerbach, Marx, Strauss,
Schopenhauer, Freud e a Escola de Frankfurt:
Marcuse, Benjamin, Adorno, Horkheimer e
Habermas); esta segunda orientação co- loca a causa
de todas as dificuldades humanas em fa- tores sociais
e biológicos, insuflando o ser humano à intriga, inveja
e ódio.
A liberdade geralmente é imaginada como sendo
a possibilidade de fazer o que se quiser; no paraíso
terres- tre o Criador avisou que Adão e Eva poderiam
usar de tudo o que foi criado, contanto que aceitassem
a vida, o bem, a beleza e a ele próprio, que lhes havia
dado tudo; porém, nossos primeiros avoengas se 25
o que eram e pretenderam tomar o lugar de Deus,
para criar um outro mundo e uma nova existência —
desse momento em diante, passaram a sofrer todas
as limi- tações de sua natureza: a morte, doenças,
dificuldades no trabalho, obscurecimento do
intelecto e dificuldade no relacionamento. Naquele
momento, o ser humano identificou-se com os
demônios, passando a viver mais de acordo com
eles, isto é, na falsidade, corrupção e agressividade,
em lugar de sua verdadeira base, que é semelhante à
divina.
Se o homem não conseguiu ainda total
liberdade, estando sempre em perigo de ver-se
restringido por outro, é porque a humanidade não
percebeu ainda que só a escolha da realidade
conseguirá torná-la inteira- mente livre — enquanto
houver indivíduos escolhendo a imaginação e a
fantasia, haverá também o perigo de querer sufocar
o outro. Por este motivo, o máximo de liberdade se
encontra na aceitação da realidade e a total prisão na
aceitação da imaginação. Como a realidade tem
uma dimensão infinita, o ser humano, que se une a
ela, pe¬netra no universo ilimitado, onde não existe
restrição alguma — pela volta do Criador que foi
um dia rejeitado e agora está sendo de novo aceito.
Immanuel Kant dizia que ser livre é poder
negar a Deus, isto é, praticar o mal; nós dizemos que
a liber- dade consiste em agir bem. Para
compreender melhor esta questão, é necessário
saber a base da personalidade humana. Tomás de
Aquino colocou a razão como sendo
o fundamento divino; Duns Scot viu o amor,
dizendo que o Pai gerou o Filho por causa do afeto e
Guilherme D’Ockam era de opinião que a liberdade
era a essência; a Trilogia Analítica conseguiu
realizar a dialética corre- ta vendo no Pai, o afeto,
no Filho, a razão e no Espírito Santo, a consciência.
O fundamental no ser humano é semelhante ao
Criador: o sentimento (amor), a razão e a
consciência de ambos, quando há junção entre os
dois; estou mos- trando que somos totalmente livres
para o amor e para
o raciocínio correto, que formam nossa realidade
básica
— tudo o que estiver contra é prejuízo e destruição.
Te-
me-

mos total liberdade para a consciência, que é a percep-


ção do que existe infinitamente — desde que estamos
inseridos no infinito, podemos sentir, pensar e agir
com toda intensidade e amplidão que jamais
chegaremos a um fim — enquanto que a fantasia e
imaginação sofrem de limites estreitos. A grande luta
do ser humano tem sido em prol de sua liberdade — o
que equivale a di- zer: deixar os limites de sua
imaginação, para alcançar o infinito.
Esse esquema mostra que estamos vivendo dentro
de um universo material e espiritual de incrível dimen-
são e beleza, tendo contacto com ele através do senti-
mento (amor) e do intelecto, que se manifestam pela
conscientização; nosso ego constitui o ponto de vivên-
cia, ou em sua negação, omissão e deturpação — só
que, neste último caso, pela escolha da fantasia, mega-
lomania e egocentrismo, baixamos para um mundo de
sofrimento e doença, com a identificação com os espí-
ritos malignos.
Temos de atrair Deus para este planeta em que
vi- vemos, a fim de que consigamos ter uma existência

25
lhor, pois ele é um Ser que espe¬ra nossa aceita pelo próprio Tomás de Aquino), a ignorância é
aquiescência para com ele. Quando esteve aqui, na o próprio mal em si, porque é a repressão à recusa ao
pessoa de Cristo, nós o perse¬guimos e sacrificamos bem, ao conhecimento e ao amor; no cam-
— agora estamos no momento de realizar um sério
exame de consciência, aceitar a culpa e realizar uma
verda¬deira união afe- tiva — o que equivale a
aceitar a verdadeira realidade e chegar a um enorme
desenvolvimento já pressentido pelos indivíduos
mais sensíveis. Só com o Criador é que seremos
livres.

15 — A Ação

A ciência é fundamentalmente experimentação,


podendo-se afirmar que ela existe em função do que
re- aliza; aliás, é pelo fruto que podemos conhecer a
árvore (Mateus, cap. 7 vers. 17), pois é impossível
saber o que é o ser humano, senão pelo que faz. O
pensamento, por si, consegue organizar muitos
devaneios; o sentimen- to é uma incógnita, que só se
consegue distinguir com muita dificuldade; porém,
o trabalho se mostra clara- mente: quem tem
capacidade ou não, jamais consegue esconder; é
notório que o indivíduo acentuadamente enfermo é
incapaz de produzir.
Toda pessoa que fizer algum trabalho de muito
va- lor é porque tem grandes qualidades — e os
erros que comete são devidos também a suas
atitudes errôneas. Se alguma coisa, seja no campo
social, do pensamen- to, da educação, do trabalho,
da economia, não estiver dando bons resultados,
deve ser revista porque não está no seu caminho
certo — de maneira que poderemos di- zer que não
existe outro avaliador para o ser vivente senão o que
realiza.
O bem reprimido é um mal; a chamada
filoso- fia aristotélica-tomista vê a salvação na
ignorância, conforme entrevista dada por Alceu
Amoroso Lima a uma revista brasileira (Cláudia) no
ano de 1983; aliás, o próprio Tomás de Aquino fala
na Suma Teológica, questão 54, artigo 1 a 3 que a
ignorância pode descul- par totalmente ou em parte
uma falta; na Suma Teoló- gica, I e II livros, nas
questões 2 a 6 explica que a fe- licidade consiste em
desprender-se cada vez mais dos elementos afetivos
para tornar-se essencial e exclu- sivamente um ato
de inteligência, um conhecimento. Como sabemos,
o mal sendo a ausência do bem (tese de Taciano
254 25
po afetivo e ético é a omissão, deturpação ou negação der. Quanto à origem, Deus é o Pai, que gerou o Filho
à verdade e bondade divinas. A pessoa ativa é aquela e, como consequência, surgiu o Espírito Santo. Este
que admite seus erros, enquanto a inativa não aceita fato é explicado desta maneira, como único modo de
tal consciência. Portanto, a questão de produzir está entender um pouco este mistério. Realmente, tanto o
ligada a uma admissão da vontade. Pai, como seu Filho e o Espírito existiram sempre,
Sem dúvida alguma, existe um encadeamento havendo ape- nas uma ordem hierárquica para
perfeito em toda realização humana, podendo-se afir- elucidação da função de cada um. No ser humano,
mar que tudo o que temos presentemente é o resulta- para haver um filho, tem de existir o pai e, para que o
do da civilização passada — de milhares de pensado- primeiro ame o genitor (ou vice-versa) tem de haver a
res, místicos e cientistas — até mesmo um trabalho consciência desse amor recíproco, que é manifestado
que pareça original, como o freudismo, o marxismo pelo Espírito. Deus criou a humanidade, dando-lhe as
e o evolucionismo, tem suas bases em outras pessoas: mesmas prerrogativas que possuem as Três Pessoas,
Aristóteles combatia a ideia evolucionista; Marx en- isto é, a bondade e amor, a verdade e a razão e a
dossou o processo de inveja, que a Bíblia já relata no consciência e ação; assim sendo, a realização é o
histórico de Caim e Abel e Freud constitui uma repeti- transbordamento do amor e da verdade, que só os
ção do Epicurismo; este último, na Grécia decadente e indivíduos mais equilibrados possuem.
o pai da psicanálise, nos últimos estertores do Império O trabalho é o grande valor por si; se eu o coloco
Austro-Húngaro. em função de um lucro econômico, estou reduzindo
Para compreender melhor a Deus, é necessário sua utilidade e impedindo o ser humano de ser
entender toda a realidade, porque tudo o que existe é produtivo. De outro lado, um elemento material não
proveniente dele; de maneira que cada percepção de pode servir em todo lugar para dar só lucro — porque
uma verdade (seja ela qual for e em qualquer setor) ele não tem valor variável, mas fixo, por si. Quando
constitui sempre uma aproximação maior ao Criador; uma pessoa co- loca sua atividade em função de um
esta é a nova filosofia de vida (Weltanschauung) que elemento material
percebeu a espiritualidade ligada a tudo o que exis- — mesmo que este último permita a aquisição de ou-
te, não havendo necessidade de criar grupos fechados tros bens, está reduzindo sobre-maneira sua
para que a divindade se manifeste, Todas as coisas são capacidade produtiva, unilateralizando-a e até
realizadas pelo espírito; é fácil verificar que os seres impedindo-a.
que não possuem tal qualidade, como os animais e as O capital aparentemente parece o fator que ofere-
plantas, estão completamente parados, sem desenvol- ce progresso para a sociedade; no entanto, é exatamen-
vimento. De maneira que podemos afirmar que o Cria- te o contrário; ele constitui o maior empecilho para o
dor realizou tudo através de seu espírito, que forma a desenvolvimento do ser humano e de sua vida social
Terceira Pessoa da Trindade. — idêntico fenômeno ao do sexo, quando se pretendeu
Estamos agora entrando em contacto com a Ter- alcançar a felicidade através dele — no entanto, o di-
ceira Pessoa Divina que constitui uma soma das Duas nheiro é algo mais grave ainda, porque se trata de um
Primeiras e, portanto, dotada de uma incrível força e convencionalismo, dentro do qual se tentou encaixar o
po- homem, tornando-o inferior a ele.
O resultado de tal atitude foi trágico: primeira-
mente, ao impedir o desabrochamento da capacidade

Temos de atrair Deus para este planeta em que vivemos, a fim de que consigamos ter uma
existência melhor, pois ele é um Ser que espera nossa aquiescência para com ele. Quando
esteve aqui, na pessoa de Cristo, nós o perseguimos e sacrificamos — agora estamos no
momento de realizar um sério exame de consciência, aceitar a culpa e realizar uma verdadeira
união afetiva
— o que equivale a aceitar a verdadeira realidade e chegar a um enorme desenvolvimento já
pressentido pelos indivíduos mais sensíveis. Só com o Criador é que seremos livres.
Estamos agora entrando em contacto com a Terceira Pessoa Divina que constitui uma soma das Duas Primeiras
e, portanto, dotada de uma incrível força e poder. Quanto à origem, Deus é o Pai, que gerou o Filho e, como
con- sequência, surgiu o Espírito Santo. Este fato é explicado desta maneira, como único modo de entender um
pouco este mistério. Realmente, tanto o Pai, como seu Filho e o Espírito existiram sempre, havendo apenas uma
ordem hierárquica para elucidação da função de cada um.

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do ser humano, restringindo-a aos interesses do produção. A realização, em si, automaticamente dará
capital; segundo, incutindo-lhe a ideia de que ele é o ao ser humano a melhor posição social, desde que sua
elemento de menor valia, subordinando-o ao poder presença passa a se constituir no elemento
econômico; terceiro, colocando os indivíduos donos fundamental para a existência.
do capital na direção de toda a sociedade, que O significado psicológico é bem diferente do in-
justamente tem sua verdadeira estrutura baseada em telectual, ou melhor, do racional, filosófico, porque
elementos mais impor- tantes, como a cultura, a é mais abrangente, atingindo também o sentimento.
ciência e as artes. Temos de admitir que tal De maneira que o homem é realmente o centro irra-
valorização do capital veio em decor- rência da diador de todo o universo criado, superando sistemas
inversão que o ser humano vem realizando, colocando filosóficos, religiosos e científicos — predominando
o essencial em lugar inferior e o secundário em na face da terra a sua ação. O que faz (ou deixa de fa-
posição primordial. Este fenômeno somente será re- zer, omitindo-se, ou negando-se) é realmente o que de
solvido com a sua conscientização. mais importante existe, depois que Deus terminou seu
O alimento, por exemplo, a moradia, a formação trabalho criador. Por este motivo, Sócrates despontou
escolar, o transporte são usados em forma de doação como o gênio central, que determinou o nascimento da
ou de concessão que alguns homens afortunados con- verdadeira civilização. É claro que, se o ser humano
cedem ao povo — e não como um direito natural se desenvolver, regredir ou estacionar, toda a cultura
como é a própria vida. Mas uma pessoa poderá dizer: e civilização sofrerá o mesmo fenômeno. Portanto, a
como realizar tal empresa sem o dinheiro? Pelo ciência deverá resolver, daqui por diante, o que fará
simples fato que o trabalho livre da necessidade de com o universo.
remuneração é muitíssimo mais produtivo, porque não
existe preocu- pação alguma de entremeio entre o
indivíduo e a sua

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