You are on page 1of 13
0 objeto da fonética e da fonologia 35 Nos estudos sobre 0 portugués é bastante difundido o alfabeto de LACERDA & HAMMARSTROM (1952). Uma comparagao entre as varias propostas de alfabetos fonéticos mostra que h4 uma base comum advinda do alfabeto fonético inter- nacional. F, na pratica, qualquer que seja o alfabeto adotado ocorrem sempre adaptagdes determinadas por conveniéncias ocasionais tais como facilidades de datilografia, tipograficas, maior legibilidade etc. 2. FONOLOGIA a) O fonema A distingao feita tradicionalmente entre fonologia e fonética na lin- giifstica € a base do conceito original de fonema, desenvolvido por volta de 1920. Através dos tempos, desde o aparecimento do termo, o fonema tem sido encarado sob diversas formas: de inicio, igualado a som da linguagem; depois conhecido sob um prisma essencialmente psiquico, como inteng’o de significado; mais tarde, sob um prisma_fisico, funcional e abstrato. O termo fonema ja era usado no século XIX, mas se referia a uma unidade de som, isto é, a uma unidade fonética (a que hoje se chamaria fone) e no a uma nogao absirata, que envolve oposigao. Em fins daquele século, nos trabalhos de Baudouin de Courtenay, surge, a0 lado da nogao de som da fala, a nogao de fonema, a partir de uma conceituagao psicolégica. Courtenay via o fonema como um som ideal que o falante almejava alcangar no exercicio da fala, na qual realizava sons préximos a esse prottipo idealizado. Segundo ele o fonema era O equivalente psiquico do som da fala. A figura 9, que mostra a variabilidade de prontincia para as vogais do tikuna, é um exemplo da variabilidade encontrada na fala, e dentro de uma concepgao de Baudouin de Courtenay as realizagdes do falante em suas tentativas de reproduzir seus equivalentes psiquicos seriam os fonemas. O conceito de fonema, porém, sé foi formulado com maior pre- cisao a partir de 1930 nos trabalhos do Circulo Lingiifstico de Praga. A nogao tal como usada hoje em dia ja estava implicita em Saussure em sua dicotomia langue-parole (lingua-fala). © fonema é uma uni- dade da lingua e sons ou fones sao unidades da fala. Até aquela data € muitas vezes dificil saber quando os autores se referem ao fonema 36 iniciagao a fonética e & fonologia (na sua concepgao atual) ou a um som da linguagem. O primeiro passo para sua conceituagao foi dado por Saussure ao fazer a distingao entre 0 estudo sincr6nico e€ 0 estudo diacrénico das linguas. Antes a fonética competia a descrigao dos sons das Iinguas ¢ a fonologia o estudo hist6rico da mudanga. A nogao atual do termo fonema estava latente, portanto, na dis- ting langue-parole de Saussure e a idéia do contraste fonémico estava presente nos trabalhos iniciais de E. Sapir. Saussure nao chegou a formular sua conceituagao, mas ja tinha uma idéia bastante clara de que os fonemas sao antes de tudo entidades opositivas, relativas e negativas. Essa concep¢ao de entidades opositivas em Saussure apli ca-se a todas as unidades lingiifsticas. Os fonemas se caracterizam nao por uma qualidade particular positiva de cada um, mas simplesmente pelo fato de que nao se confundem uns com os outros. O primeiro tratamento de profundidade dado ao conceito de fo- nema encontra-se nos trabalhos dos lingiiistas do Circulo Lingiifstico de Praga. Para Trubetzkoy, 0 fonema passou a ter uma conceituagao funcional abstrata, a unidade minima distintiva do sistema de som, ¢ € como uma unidade funcional que deve ser definido. O fonema é entdo a menor unidade fonoldgica da lingua, BLOOMFIELD (1933) definiu o fonema como uma unidade minima de trago fénico distintivo, indivisivel. Foi 0 conceito de fonema como elemento minimo do sistema da lingua que permitiu a lingiifstica moderna um enorme avango meto- dolégico, pois Ihe forneceu uma unidade discreta, isto é, segmentavel, de-andlise. As técnicas seguidas para o estabelecimento dos fonemas foram estendidas aos demais niveis de descrigao gramatical. Roman Jakobson veio a ter um papel decisivo dentro dos estudos fonoldgicos, contribuindo para reformular 0 conceito de unidade mf- nima, indivisivel, do fonema como unidade nao suscetivel de disso- ciar-se em unidades inferiores ou mais simples — os tracos fonicos. f Foi ele quem definiu o fonema como um ‘feixe de tragos distin- tivos’, com base na idéia de que o fonema era divisivel em unidades menores. A partir de entdo o fonema passou a ser Visto pelos seguidores da escola de Praga como a soma das particularidades fonologicamente pertinentes que uma unidade fénica.comporta, Nesse novo conceito “de fonema, em termos mais abstratos e menos fisicos, salientava-se 0 papel funcional que o elemento fénico desempenha na lingua. Com essa conceituagao estruturalista do fonema, atingia-se o plano abstrato e a superagao do plano natural. a = Especialmente preocupado em determinar_o_valor s .0\do fonema, viu Jakobson esse valor na fungdo que tem de distinguir entre 0 objeto da fonética e da fonologia 37 si os elementos lexicais —enquanto estes apresentam uma signi ago propria ¢_constante, jaquele)nao_apresenta_uma significagao prépria Positiva. Citando Husserl, JAKOBSON (1967, p.30) chama a atengao para © fato de corresponder 0 fonema a um ‘ato de atribuigao de significado e jamais um ato de plenitude de significagéo’. O fonema é, assim, uma subunidade carente de significado, A visao abstrata do fonema é defendida com maior vigor na escola conhecida como glossemdtica, criada pelo lingiista dinamarqués Hjelmslev. Na glossemética, onde nao se leva em consideragao a substancia fénica, a definigao de fonema tem de ser diversa e mesmo a palavra fonema € substitufda pela de cenema, mais neutra no que se refere A substdncia. Para Hjelmslev, cenemas sio figuras do plano de expresso, ‘unidades vazias’, sem contetido correspondente. A cene- mdtica designaria a ciéncia que trata dos cenemas como elementos de lingua. Uma das vantagens da preferéncia pelo termo cenema para 0 lingitista dinamarqués residiria no fato de aquele ser formado sobre a raiz grega de kends, ‘vazio’, 0 que caracterizaria melhor © aspecto nao substancial da unidade. O fonema é um som que, dentro de um sistema fonico determinado, tem um valor diferenciador entre dois vocébulos. A realizagao fénica em si vai interessar fonética, a fonologia interessa a oposigao dos sons dentro do contexto de uma lingua dada. Nossa percep¢ao da fala sofre influéncia do sistema fonolégico. Um falante do portugués sabe produzir 0 som [p] e sabe que este som ocorre em palavras como ‘pata’, ‘pingo’ etc. Da mesma forma conhece © som [b] em palavras como ‘bata’, ‘bingo’ etc. Os segmentos fonicos [p] e [b] ocorrem, portanto, em portugués e a diferenga entre eles constitui uma diferenga fonolégica, pois corfesponde a uma diferenga no significado das palavras pata: bata, pingo: bingo. Esses dois sons Possuem Caracteristicas Comuns e¢ opdem-se apenas pelo fato de um ser sonoro (b] ¢ 0 outro surdo [p]. Nao é verdade, porém, que a mesma unidade fonolégica se manifeste sempre como a mesma unidade fonética. A lingua é, como sabemos, um_ sistema de identidades e diferengas: as unidades lingiifsticas conhecem-se por suas identidades ¢ distinguem-se por suas diferencas. A gramatica de uma Ifngua in- forma quais as unidades fonoldgicas, distintivas, de uma lingua, quais tragos fonéticos.sdo fonoldgicos ¢ quais sio.ndo-fonolégicos ou pre- diziveis. A fonologia interessam apenas 0s tracos distintivos enquanto 4 fonética interessam todos os trago: Além da fungao opositiva, que diferencia palavras, assinala Tru- betzkoy uma outra fungao, delimitativa ou demarcativa, que o fonema 308 iniciagao a fonética e 4 fonologia pode ter dentro da cadeia fénica. A debilidade maxima da silaba atona final e a mfnima da silaba 4tona inicial concorrem para a delimitagao de vocdbulo, por exemplo em de leite: deleite; de vida: divida; contra por: contrapor; de sabores: dissabores; s6 sobraram: sogobraram No tiltimo exemplo a delimitagio se faz a partir da tonicidade do monossflabo e a atonicidade da silaba inicial. Vale lembrar, a esta altura, que numa anélise fonética elementar podemos distinguir silabas acentuadas (fénicas) e inacentuadas (dtonas). O acento ténico em portugués tem valor fonémico — oposicao significativa a partir da sua posi¢éo — e pode ser denominado fonema supra-segmental, ¢ € expresso foneticamente nao sé pelo aumento da intensidade como também pela duragdo ¢ por uma variagio da altura melédica (som). A posicao da sflaba ténica no vocdbulo é varidvel (dltima, pentltima ¢ antepentiltima) ¢ é pela variabilidade de sua posigao que 0 acento tonico tem valor fonémico, isto é, distintivo. Em ‘sabia’, ‘sabia’, ‘s4bia’ 0 tinico trago a diferir os vocabulos é o_acento.ténico. Em relagdo as silabas dtonas 6 possivel a depreensio de graus varidveis de atonicidade a partir de sua posigfo no sintagma: pretonica (inicial de vocdbulo ou nao), postonica (final ou nao-final). Sao estes graus (maximo, médio, minimo) de atonicidade que concorrem pata a deli- mitagao do vocdbulo dentro da cadeia fénica, como assinalamos ha pouco. Os tragos prosddicos ou supra-segmentais, como a duragao, o tom, a intensidade, tém também fungées expressivas e, portanto, devem ser Jevados em conta numa descrigao fonolégica. Um outro elemento prosddico que deve ser considerado € a pausa que, na escrita, € representada pelos sinais de pontuagao. A pausa pode _ter uma fungao distintiva ou apenas expressiva. re b) Os tracos distintivos Em fonologia tragos distintivos, também chamados funcionais, perti- nentes ou relevantes, referem-se a unidades minimas, contrastivas, € sfo aqueles que para alguns lingiiistas, especialmente os seguidores da escola de Praga, irfo distinguir entre si os elementos lexicais. O carater infinito das possibilidades humanas de articulagao e 0 fato admitido de que um mesmo individuo nao realiza nunca, duas vezes seguidas, 0 mesmo som de maneira idéntica, nao impedem que se identifique sempre determinado som de uma lingua, cada vez que € ouvido, como sendo 0 mesmo som e nao outro. Para aqueles lingiiistas, 0 objeto da fonética e da fonologia 39 © que torna essa identificag’o possivel é 0 chamado trago distintivo, que pode ser definido, por seus componentes articulat6rios e/ou actis- ucos. A. Martinet define o traco distintivo ou pertinente como aquele trago fOnico que, sozinho, permite distinguir um signo, uma palavra ou um enunciado de outro signo, palavra ou enunciado. O fonema pode ser realizado por varios tragos de sons. A presenga ou auséncia de certos tragos opde, por sua vez, 0 fonema a todos os demais fonemas da lingua. Sao esses tragos que constituem as unidades minimas e indivisfveis, e Jakobson vem a estabelecer mais tarde nao © quadro de fonemas, mas 0 de tracos fonicos que funcionam numa lingua e caracterizam os fonemas. Resta depreenderem-se os tragos distintivos da fonémica de uma lingua dentre todos os que a fonética nos faz conhecer. Sabe-se que nem todas as particularidades fonicas do fonema so relevantes (ou pertinentes), isto é, desempenham fungao lingiifstica dentro do sistema — cada fonema se caracteriza por algu- mas de suas particularidades fénicas em oposi¢ao a outro. Muitos sons diferentes podem ter a mesma fungao de distinguir palavras. O lingiiista ira considera-los variantes nao distintivas de uma nica unidade estrutural, o fonema. Os fonemas, por sua vez, podem ser organizados em sistemas maiores, tais como um sistema de vocé- licos e um sistema de fonemas consonanticos. As Sao os tracos articulatérios ou actisticos pertinentes — aqueles que servem para caracterizar um fonema em face de outro que tem com ele tragos comuns — que importam ao lingijista. E a partir desses tragos que se organizam os sistemas fonolégicos das linguas. Nem todos os sistemas sao iguais, eles apresentam divergéncias de lingua para Iingua, seja pelo nimero diferente de fonemas, seja pela distri- buigdo desses fonemas no sistema (cf. Il, 2). ‘Uma diferenca_minima entre duas unidades da lingua constitui um_trago distintivo. Mediante um ou outro trago distintivo, uma unidade lingiifstica opde-se a outros elementos. Tomando por base 0 sistema fonolégico da lingua portuguesa, a consoante [b] funciona como sonora — e nao surda — em relacio ao [p], como nao-nasal em relag4o ao [m], como nao-continua em relagao ao [v]. A articulagao labial € comum aos trés segmentos fOnicos, a sonoridade e a articulagao labial a [b] e [m] e a niao-nasalidade a [b] e [p]. A oralidade, a labialidade e a sonoridade sio comuns a [b] e [v]. Certos elementos constantes numa unidade nao implicam uma oposigao: diante de [i], as consoantes [t] e [d] apresentam freqiientemente palatalizagao sem que nenhum par de palavras da lingua portuguesa se oponha porque 40 iniciagdo a fonética e a fonologia ssa palatalizagao existe ou nao: o significado da palavra sera sempre © mesmo, independente da forma como é pronunciado. Aos elementos que, a0 menos em certos contextos, sdo constantes embora nao constituam uma oposigio, chamamos de redundantes: naio sao funcionais e tém apenas uma fungao auxiliar. Duas unidades sao opostas entre si quando possuem um trago ou tragos comuns e outro diferente. O trago de sonoridade que distingue as consoantes [b] e (p] distingue também [t] e [d], [f] e [v] etc. O elemento, marcado, tem valor positivo ao passo que 0 outro sera negativo: ({b] & [+ sonora] e [p] é [- sonora], 0 que equivale a dizer que o primeiro é sonoro e 0 segundo surdo, sem vibragio das cordas vocais. Os tragos tém de abranger todos os contrastes necessdrios dentro de uma lingua, j4 que devem diferengar fonemas. Com referéncia\a | tragos que indicam caracteristicas opostas podemos empregar um sistema bindrio. O esquema classificatério tradicional, em que ha trés alturas para as vogais (alta, média, baixa) ou varios pontos de articu- lagio para a consoante (bilabial, labiodental, linguodental) é uma classificag&o néo-bindria. Num sistema binario, ao invés de dois rétulos separados como, por exemplo, surdo e sonoro, podemos estabelecer apenas um trago distintivo sonoro, antepondo um sinal positivo (+) ou negativo (—) para mostrar se o atributo se faz presente ou nao. Os tragos distintivos sao bindrios apenas no nivel fonémico clas- sificatério ou sistemdtico, nao necessariamente no nivel fonético. Neste, diferentes graus de sonoridade, nasalidade, aspiragao etc. podem ser expressos por meio de digitos. Qualquer sistema lingiifstico pode ser descrito em termos dos valores (+) ou (—). Dois segmentos sao distintos se os valores (+) ou (—) se contrapdem apenas por um dos tragos, j4 que certas caracteris- ticas fisicas sao decisivas para a identificagéo de unidades e outras * nao 0 sio. Os tragos tém sua base na fonética. Podem ser articulatérios (+ alto, + soante etc.), perceptual (+ silabico, + acento), actistico (+ compacto). Estabelecer um conjunto de tragos suficientes e necessdrios) para dar conta dos contrastes e processos € uma das tarefas da fonologia (cf. H. 3). Os mais difundidos nos trabalhos sobre 0 portugués sao os de JAKOBSON, FANT & HALLE (1961) e os de CHOMSKY & HALLE (1968). Estes dois sistemas diferem em seus objetivos e em seus pontos de partida. O de Jakobson, Fant & Halle parte da caracterizagao aciistica dos sons e visa a fornecer um ntimero mfnimo de tragos capazes de distinguir todos os contrastes existentes nas linguas. Jé o de Chomsky © objeto da fonética e da fonologia a & Halle tem uma base articulat6ria e foi construfdo nao apenas para dar conta de todas as oposigées mas também formular as regras fonoldgicas de forma a mostrar a naturalidade dos processos gerais comuns aos diferentes niveis. MARTINET (1968) critica o sistema de tragos distintivos de Jakobson-Fant-Halle por consider4-lo aprioristico, um sistema preestabelecido para o qual seus autores postularam uma validez geral. Admite aquele lingiiista a necessidade de definir as oposi¢gGes em termos da substancia sonora, mas nao aceita a validade ral do principio de eleigdo bindria. “A gramatica gerativa contestou o arcabougo organizacional da gramtica estruturalista. Para os estruturalistas, a gramética de uma lingua se constituiria em diversos niveis de descrigaéo. O nivel fono- légico seria distinto do morfofonémico e morfolégico. Segundo os gerativistas esta concepgao de gramatica — na qual o fonema repre- senta um papel capital — sé servia para atomizar a descrigao do processo, A gran tica_gerativa passou a operar com os tragos, aban- donando o fonema como unidade necessari Nao se chegou a um acordo satisfatério sobre as propriedades formais da teoria fonolégica, se a andlise em termos de tragos distin- tivos é por demais complexa, ou se pressup6em sempre os fonemas como unidades. Ainda parece titil para alguns admitir um conjunto de abstragdes subjacentes — fonemas, ou algo semelhante — que podem manifestar-se de diversas formas sob certas condi¢des. HALLE (1964) dizia textualmente que o status do fonema da lingiifstica € andlogo ao dos eléctrons na fisica, e, assim como nao se considera serem estes ficgdes, nio ha motivo para se aplicar 0 termo aos fonemas. Eles sao tio reais quanto qualquer outra unidade te6rica na ciéncia. Nos estudos fonolégicos, nesses tiltimos anos, novas teorias foram surgindo. A fonologia estrutural e 4 fonologia gerativa seguem-se a fonologia natural, a fonologia gerativa natural, a fonologia auto-seg- mental etc., sempre visando a solucionar e/ou simplificar problemas de descrigao levantados por cada uma dessas ao longo do tempo. O trabalho atual em fonologia est4 demonstrando que a riqueza dos sistemas fonolégicos nao consiste nos arranjos estruturais de fonemas, mas antes nos intrincados sistemas de regras pelas quais esses arranjos sio formados, modificados ¢ elaborados. c) Fonemas e variantes. O arquifonema | lingiifs Mantenha-se ou nao o conceito de fonema_n: sido ele extremamente valioso para outros aspectos da estrutura lin- giifstica. 42 iniciagao a fonética e 4 fonologia Ha, como sabemos, varias definigdes de fonema. O que importa € que todas © véem como uma entidadeabstrata que se manifesta através de segmentos fénicos. Se climinarmos os detalhes fonéticos, que nao tém papel distintivo na lingua, poderemos representar 9s segmentos fOnicos através de uma escrita fonéi O fonema individualiza-se e ganha realidade pelo seu contraste com outros feixes em idénticos (ou andlogos) ambientes fonéticos. A operacao de comutagdo, usada para depreender os fone- mas de uma lingua determinada, consiste em substituir num vocabulo uma parte f6nica por outra de maneira a obter um outro vocdbulo da lingua: pala: bala: mala: sala: fala: vala etc.°~ Cada lingua tem os seus préprios fonemas, que so elementos fénicos dotados de fungo representativa no sistema. Vimos que ne todas as particularidadesf6nicas do fonema sao relevantes ou perti- nentes, isto é, tém fungao distintiva. Cada fonema se caracteriza por algumas de suas particularidades fOnicas em oposigao a outro. Se examinarmos os vocabulos pala, bala, tua, sua, cinco, zinco, podemos concluir que segmentos que se diferenciam por apenas um trago podem representar dois fonemas distintos. 9 x Temos na lingua portuguesa 26 fonemas segmeniais (19 consoan- tes e 7 vogais). Possuimos, ainda, um fonema-supra-segmental, o- acento, que niio é um segmento e sim uma qualidade que se superpoe a certos segmentos. Formas como pique:piqui, beijo:beiju, divida:di- vida opdem-se entre si apenas pela posi¢’o do acento ténico. O fonema pode variar na sua realizagdo. Aos varios sons que realizam 0 mesmo fonema damos 0 nome de variantes, elementos que a descrigao fonoldgica de uma Ifngua nao deve deixar de lado. variante apresenta-se como manifestagao substancial de uma unidade abstrata_ ou-como-variante do padrao que-representaria essa unidade. A fonemizagao implica a redugao de um ntimero ilimitado de variantes ~ | a um numero limitado de invariantes. Diz-se tradicionalmente que as variantes ou alofones podem ser de varios tipos:_posicionais, regionais, estilisticas, livres ou facultati- vas. As variantes posicionais ou combinatérias sio as qué mais inte- ressam aos foneticistas, pois decorrem do proprio contexto fénico em que ele 6 realizado. Por exemplo, os fonemas /t/ ¢ /d/_apresentam em certos dialetos do portugués uma realizagao palatal diante de /i/ (tira, ditado, limite) e uma realizagao alveolar ou dental diante das outras vogais (tua, tela, docas, dado). O tipo de variagio que os lingiiistas chamavam, tradicionalmente, variagdo livre, era explicado como decorrente de caracteristicas indi- 0 objeto da fonética e da fonologia © 43 viduais do falante, independente de qualquer fator condicionante. LABOV (1969) veio a demonstrar que a variagdo aparentemente livre é sempre determinada por fatores extra-e-intra-lingiifsticos de forma predizivel e existe até_no nivel _do_idioleto. O pesquisador nao tera condigdes de predizer em que ocasiao um individuo falaré desta ou daquela maneira, dir4 (kafu) ou [kahu] (carro), por exemplo, mas poderé mostrar que, dependendo da classe social a que pertenga, do sexo, da idade etc., ele usar4 uma outra variante, aproximadamente x por cento em média numa dada situagdo. A variagao lingiifsti geral, € condicionada de forma consistente » dentro de cada grupo social, dentro de cada regiao e seria parte integrante da competéncia lingi tica. A formulagio de Labov pressupde, portanto, ser a variagao inerente ao sistema da lingua. Dentro do estruturalismo europeu, temos de lembrar ainda o conceito de neutralizagio, que nfo deve ser confundido com o de variagao. Existe neutralizagao quando hé uma supressao das oposigdes entre dois ou mais fonemas em determinados contextos, isto é, quando uma oposigao é anulada ou neutralizada. No sistema fonoldgico do portugués, em posigao) preténica, ha uma neutralizagao entre [e] e [€] e [ole [9], cuja opesteaa funcional em posigao ténica. Em posigao Atona os dois fonemas correlativos tornam-se intercambidveis sem que isso altere o significado da forma. O conceito de neutralizagao ¢ 0 de arquifonema (realizagao nao- marcada resultante da neutralizagao) apa- rece com Trubetzkoy e seus companheiros do Circulo Lingiifstico de Praga. Em casos de neutralizagdo a realizago actistica j4 nado corres- ponde a um dos fonemas intercambidveis, mas a um arquifonema que compreende ambos. Lembrando a distingao do lingtiista Eugenio Co- seriu entre sistema — norma — fala, vale observar que a ‘Tealizagao € indiferente d p de vista do sistema funcional mas poucas vezes sera indiferente do ponto de vista da norma. No Rio de Janeiro e no Sul do pafs, em geral, esse arquifonema ser4 realizado com timbre mais fechado, [e] ou [0], enquanto no Nordeste o timbre mais aberto ocorre com maior freqiiéncia, [€] e [2] As normas variam, portanto, de regiao para regiao. eee Algumas-correntes nao aceitam a nogao de neutralizag4o e prefe- rem tratar o fendmeno dentro da morfofonologia ou morfofonémica. d) Processos fonolégicos \ A lingua € dindmica por sua prépria natureza e estd sujeita a modifi- cages. Em qualquer momento, quando se combinam elementos para » a4 iniciagao a fonética e a fonologia formar palavras ou frases ocorre uma série de modificag6es, determi- nadas por fatores fonéticos, morfoldgicos e sintéticos. Fatores pros6- dicos como o acento da palavra ou da frase, a entoacao.ou a velocidade da elocugao sio aspectos que também devem ser levados em consi- deragdo. Por exemplo, uma vogal em sflaba nao-acentuada nao se comporta da mesma forma que a sua correspondente ténica. As posi- Ges Atonas, por serem mais débeis, favorecem 0 processo fonolégico da neutralizagao, j referido em item anterior. Temos de levar em consideragao tanto os processos fénicos que ocorrem nas palavras isoladamente quanto as modificagdes que sofrem as palavras por influéncia de outras com que estiio em contato na frase. As modificag6es sofridas pelos segmentos no eixo sintagmatico podem _alterar ou_acrescentar tragos, eliminar ou inserir segmentos. Algumas dessas alteragdes ocorrem sistematicamente e atuam sobre o nivel fonoldgico da lingua, outras afetam apenas 0 nivel fonético, ocorrendo assistematicamente. Podemos observar o funcionamento desses processos fonoldgicos (e/ou fonéticos) do portugués no mo- mento sincrénico, assim como € possivel encontrar exemplos na evo- lugdo do latim para 0 portugués. Os processos que produziram mu- dangas hist6ricas séo os mesmos que estamos testemunhando a cada momento hoje. O comportamento fonoldégico nao é amorfo, mas, a0 contrario, 0 aspecto mais estruturado da lingua. Podemos agrupar esses processos fonolégicos em: 1) processos que acrescentam tragos ou mudam a especificagao dos tragos (0 processo de assimilagdo é um dos mais conhecidos e & também responsdvel por um grande némero de alteragdes fonicas). Podemos citar os processos de nasalizagao e palata lizagio que fazem com que, por exemplo, uma vogal se torne nasalizada diante de consoante nasal (cama, t6nica) ou uma consoante se realize como palatal quando diante de vogal anterior palatal (tira, diabo) etc. Os processos conhecidos como harmonizagao vocdlica e metafonia também se incluem neste item. No primeiro caso, ocorre uma ago assimilatéria da vogal tonica sobre a pretonica (m[iJnino, ffiJliz, f[u}rmiga, c[u]stu- me); no segundo, ago assimilatéria da dtona sobre a t6nica. A metafonia é 0 processo diacrénico que ira explicar a passagem de metu a m[e]du; sincronicamente, plurais como formfo]sos, comp[o]stos que a norma culta rejeita explicam-se também por extensio da regra de metafonia; 2) processos que inserem segmentos (por exemplo, a ditongagdo, a epéntese etc., que irio explicar 0 aparecimento de uma 0 objeto da fonética e da fonologia 45 semivogal em rapa[y]z e de uma vogal em ab[i]soluto, ad[i]vo- gado, t(aJramela, respectivamente); 3) processos que apagam segmentos (prontincias como o[kl]os, xi[kr]a, ‘peraf’ por ‘espera af’, tradicionalmente denominados sincope, aférese, apécope, a depender da posig¢do em que se encontre a vogal). Esses trés grupos de processos abarcam numerosos exemplos de mudangas e atuam sobre a estrutura da sflaba. Podem ocorrer alteragdes na distribuigao de vogais e consoantes, mudanga de classe principal, enfraquecimento ou reforgo, sempre segundo a posigio do segmento no vocdbulo ou no sintagma. No registro informal ¢ na linguagem popular podemos encontrar a cada passo exemplos que demonstram essa dindmica da lingua. Tratamos aqui apenas de alguns processos, mas queremos deixar assinalado que a maioria deles pode ser explicada por fenémenos articulatrios e perceptuais. e) Relagao grafema-som-fonema Para reproduzirmos na escrita as seqiiéncias fonicas da nossa lingua, usamos sinais graficos representativos desses sons: so os chamados grafemas ou letras. Nao ha uma correspondéncia exata entre o ntimero de grafemas e o de fonemas na lingua. Dois grafemas (digrafos) podem representar um fonema, como é 0 caso de rr, ss, ch etc. Existe um sistema ortografico que rege essa representagao na lingua escrita. A ortografia vigente até hoje no Brasil é a oficialmente adotada nas normas do Vocabulario Ortografico de 1943 com as alteragdes deter- minadas pela Lei n® 5.765 de 18 de dezembro de 1971. Discute-se muito atualmente a possibilidade de uma reforma or- togrdfica que leve em conta nao apenas as relagGes entre a pronincia € a ortografia portuguesas (do Brasil e de Portugal) mas também procure aproximar o sistema de fonemas do sistema de grafemas. Nao_| podemos esquecer, no entanto, que quanto-mais-uma lingua se‘desen— | volve, mais 0 sistema ortografico se afasta do sistema ‘fonolégico, | como ocorre no inglés eno francés. Um sistema integrado grafema-fonema parece ser invidvel. Num pafs como 0 Brasil (oito e meio milhdes de quilémetros quadrados e cerca de cento ¢ cingiienta milhdes de habitantes) qualquer tentativa de aproximagao seria precaria e deixaria a desejar, j4 que terfamos de levar em conta todas as diferengas regionais, s6cio-culturais e até 46 iniciagao a fonética e a fonologia mesmo — se chegarmos as tiltimas conseqiiéncias — individuais. Que prontincia, que variante tomar como base, como modelo? A dos grandes centros urbanos (que no sao tantos e so tao diferenciados), a da classe social mais privilegiada, que representa uma minoria, em nosso pais? O problema da relagfio grafema-som-fonema coloca-se de imedia- to no momento da alfabetizagdo (ler e escrever) (cf. V. 2). A esta altura, nao podemos esquecer que a) quando falamos nao realizamos fonemas (entidade abstrata), realizamos fones (elemento concreto) e b) quando escrevemos devemos representar esses sons através de grafemas ou letras. Nao nos parece impossfvel procurar mostrar Aque- les que se alfabetizam que um determinado som da nossa lingua pode ser representado por diferentes grafemas e, por outro lado, que um Unico grafema pode corresponder a diversas realizagdes fonicas. As raz6es para 0 alto indice de analfabetismo em nosso pafs so muito mais polftico-sociais que lingiifsticas. Sistemas de transcrigdo fonética e fonémica existem varios e j4 nos dao a indicagio da dificuldade de uma Gnica forma de repre- sentacao gréfica. Um exemplo classico dessa simplificacao ortografica por muitos proposta é a da letra s para representar 0 som [z] (casa, mesa) e de ss, c, ¢ € x (posso, cedo, laco, préximo) para representarem © som [s]. Por que nao representar 0 som [s] sempre por s € 0 som [z] pela letra z, indagam alguns. Poderfamos lembrar: 1) 0 problema das palavras hom6fonas como coser, cozer; expiar, espiar; cessao, sesso, secdo etc.; 2) um exemplo como o das palavras aterrisar e subsidios, para as quais existem normalmente duas prontincias — aterri[sJar e aterri[z]ar, sub[s]idios e sub[z]idios. Para resolver 0 caso dessa variagdo transcreverfamos, opcionalmente, das duas maneiras, (s ou ss) como ja o fazem alguns lexicégrafos brasileiros para o primeiro exemplo? Para a alternancia do tipo R[elcife, RliJcife, R[e]cife, terfamos uma dupla possibilidade, também? O estudo das relages entre grafemas ¢ sons tem sido objeto de reflexdo por parte de lingiiistas, nacionais ou nao, sempre atentos ao aspecto da variagao dialetal. Deixando de lado o problema de uma reforma ortografica radical, poderiamos tentar estabelecer quadros de correspondéncias dos dois sistemas. No primeiro estagio do processo de alfabetizacao, a crianga (ou adulto) vai aprender que as letras servem de simbolo para os segmentos fOnicos da lingua. A dificuldade inicial é que a hipdtese de biunivo- cidade letra-fone é limitada e varia de dialeto para dialeto. Um exame de erros de ortografia na escola deveria constituir um método valioso 0 objeto da fonética e da fonologia a7 de investigagao para o lingilista, pois esses erros refletem geralmente uma falta de correspondéncia entre o sistema de fonemas e o sistema de grafemas (cf. V. 2). Os estudiosos que preconizam uma reforma ortografica pautada na proniincia parecem partir do pressuposto de que s6 existe uma — apenas uma — prontincia aceitavel para cada palavra da lingua. As pesquisas empreendidas nos tiltimos anos mostram que nao hé uma unidade de prontincia no Brasil e que o nivel fonético é aquele que reflete mais imediatamente as diferengas regionais e sociais. Nao se pode tomar como modelo, como norma, a pronincia de uma pessoa, de uma tnica classe social e até de uma tinica regiao. Tomar como base o sistema fonolégico — que talvez seja um s6 — seria também complexo, pois aquele deveria reproduzir 0 que o falante tem inter- nalizado. Mudangas fonéticas e fonolégicas estao sempre em curso e um sistema ortogréfico nfo poderd nunca acompanhé-las. A ortografia nao acompanhou, por exemplo, as mudangas do [1] velarizado de final de sflaba em [w] nem tampouco a monotongacao do ditongo [ow] em {o] ocorridas em grande parte do Brasil. Para as dificuldades ortogrdficas que os estudantes (até mesmo universitarios) muitas vezes apresentam nao haveria também razGes de carater educacional, da prépria politica de ensino no pais? A reforma que acabou com a obrigatoriedade do ensino do latim no primeiro e segundo graus em nossas escolas certamente trouxe prejuizos numa aprendizagem mais globalizante, j que se passou a conhecer menos a historia de nossa Ifngua e conseqiientemente a nao reconhecer, por exemplo, a grafia de uma palavra por motivos etimolégicos. Também o enfoque puramente sincrénico dado ao ensino contribui negativa- mente para um conhecimento mais aprofundado da lingua portuguesa. Acreditar que se possa chegar a um sistema de escrita homogéneo e que reproduza de forma biunfvoca a fala, como solugio para o problema dos erros ortograficos, € ignorar a enorme variabilidade do comportamento lingiifstico e sécio-cultural.

You might also like