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Vol.

5 – Nº 5 – 2005 – Anual
ISSN 1519-9096

2005
Vol. 5 – Nº 5 – 2005 – Anual
ISSN 1519-9096
APOIO: UNESCO
CONSELHO CIENTÍFICO
Conselheiro Universidade
Eliane de Moura Silva UEPB
Ivanilde Moreira de Souza Fac. da Fund. Educ. de Mococa
Luiza Helena Marangoni Fac. Presidente Antonio Carlos
Maria Conceição Christófoli PUC/RS
Maria de Fátima Chassot Universidade Mackenzie
Maria Valdelis Nunes Pereira UNIVAP
Vilvia Bentes Guimarães Universidade da Amazônia
PARECERISTAS
Celso de Rui Beisiegel – Professor Titular do Departamento de Filosofia da Educação
e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Cláudia Lemos Vóvio – Coordenadora do programa de EJA da Ação Educativa
COMISSÃO EDITORIAL
Regina Célia Esteves de Siqueira
Ofelia Lopes Ferreira
Edneia Gonçalves
Maria Stella Nogueira
Renata de Menezes Nogueira
Margarete Rose Rodrigues
REALIZAÇÃO:
Alfabetização Solidária
São Paulo (SP)
Rua Pamplona, 1005 – Jardim Paulista – CEP 01405-001
Brasília
SAS – Lote 4 – Quadra 5 – Bloco K – 3º andar – Edifício OK Office Tower – CEP 70070-000
Home page: www.alfabetizacao.org.br – e-mail: alfabetizacao@alfabetizacao.org.br
Unimarco Editora
Presidente: Luciane Miranda de Paula
Editor: Reynaldo Damazio
Diagramação: Regina Kashihara
Revisão: Reynaldo Damazio

Revista da Alfabetização Solidária /Alfabetização Solidária.


v. 5, n. 5, 2005. São Paulo: Unimarco, 2005.

Revista da Alfabetização Solidária.

Anual
ISSN 1519-9096

1. Alfabetização Solidária 2. Educação – Brasil 3. Educação


de Jovens e Adultos I. Título.
Sumário

Apresentação 5
Artigos
O aluno de EJA: jovem ou adolescente? 7
Shirley Costa Ferrari, Suely Amaral
Necessidades básicas de aprendizagem na alfabetização de adultos:
estudo de dois casos no distrito de Marracuene 15
Rosalina Rungo
Alfabetização é importante para se ser alguém: percepções de
programas de alfabetização de adultos em Moçambique 25
Johanna van der Linden
Novas práticas de trabalho, novas práticas de leitura e escrita
e novas identidades: mudanças para uma “nova cultura de trabalho”
numa fábrica de refrigerantes em Maputo 41
Domingos Buque
A perspectiva sócio-histórica na alfabetização de jovens e adultos 59
Silviane Barbato
Alfabetização de jovens e adultos: experiências vivenciadas 73
Ocsana Sonia Danyluk, Carmen H. Peixoto Gomes, Magda Inês Luz Moreira
Educação de jovens e adultos: novas paisagens em um curso de
formação de professores estaduais 87
Carmem Rodrigues, Cláudia P. Aristimunha, Christiane Martinatti Maia,
Maria Fani Scheibel, Silvana Lehenbauer
Cooperação Sul-Sul em alfabetização: rumo ao
desenvolvimento humano 103
Michelle Morais
Dez elementos para quem quer ter êxito como professora
ou professor 115
Paulo Ghiraldelli Jr., Francielle Maria Chies
Normas para publicação 125
Apresentação

com grande satisfação que apresentamos a quinta edição da Revista da


É Alfabetização Solidária, publicação que ao longo dos anos desenvolveu
significativo percurso no âmbito do debate e reflexão acerca da educação de
jovens e adultos.
Esta quinta publicação reúne novamente artigos de pesquisadores e
docentes identificados com a ampliação da interlocução do segmento de EJA
no espaço acadêmico.
Nesta publicação, nove trabalhos discutem diferentes dimensões do tema
“Alfabetização e desenvolvimento humano”.
O primeiro artigo, “O aluno de EJA: jovem ou adolescente”, de autoria
de Shirley Costa Ferrari e Suely Amaral, aprofunda a discussão acerca da
diversidade etária nas salas de EJA focando a identidade e as decorrentes
necessidades cognitivas, afetivas e sociais do jovem aluno.
O segundo, terceiro e quarto artigos, são importantes e diferenciadas con-
tribuições de pesquisadores moçambicanos: no artigo “Necessidades básicas
de aprendizagem na alfabetização de adultos: estudo de dois casos no distrito
de Marracuene”, a pesquisadora Rosalina Rungo do Centro de Formação de
Quadros de Alfabetização e Educação de Adultos de Matola, apresenta o desa-
fio da identificação das motivações e necessidades básicas de aprendizagem
dos jovens e adultos em processo de alfabetização; já a pesquisadora Johanna
van der Linden da Universidade Eduardo Mondlane, apresenta investigação
acerca das percepções de participantes e não participantes de cursos de alfabe-
tização de adultos em Moçambique no artigo “Alfabetização é importante para
ser alguém: percepções de programas de alfabetização de adultos em Moçam-
bique”. Da mesma universidade, o professor Domingos Buque apresenta o
artigo “Novas práticas de trabalho, novas práticas de leitura e escrita e novas
Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5
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Apresentação – p. 5-6
identidades: mudanças para uma nova cultura de trabalho numa fábrica de
refrigerantes em Maputo”; cuidadosa investigação de práticas de leitura e
escrita associadas ao universo do trabalho e das relações de poder associadas
ao domínio do código lingüístico.
No quinto artigo intitulado “A perspectiva sócio-histórica na alfabetiza-
ção de jovens e adultos”, Silviane Barbato da Universidade de Brasília,
apresenta os conceitos estruturantes da obra de Lev Vygotsky e suas implica-
ções na abordagem do processo de ensino e aprendizagem em salas de
alfabetização de jovens e adultos.
No sexto artigo “Alfabetização de jovens e adultos: experiências vivencia-
das”, as docentes da Universidade de Passo Fundo Ocsana Danyluk, Carmen
Gomes e Magda Inês Moreira, apresentam estudo referente ao uso social
da linguagem matemática por pessoas adultas pouco ou não escolarizadas.
No sétimo artigo, as docentes da Universidade Luterana do Brasil,
Carmen Rodrigues, Cláudia Aristimunha, Christiane Martinatti, Maria
Scheibel e Silvana Lehenbauer; reúnem-se para apresentar experiências de
formação continuada de professores de educação de jovens e adultos no
âmbito do Projeto Alfabetiza Rio Grande.
A pesquisadora Michelle Morais em seu artigo “Cooperação Sul-Sul em
alfabetização: rumo ao desenvolvimento humano”, apresenta os vínculos
identificados teórica e empiricamente entre desenvolvimento humano e
alfabetização de jovens e adultos, assim como suas conexões com os acordos
de cooperação entre paises.
Finalmente, Paulo Ghiraldelli e Francielle Maria Chies, refletem acerca
da construção da identidade docente no artigo “Dez elementos para quem
quer ter êxito como professora ou professor”.
Agradecemos a todos os docentes que com seu trabalho contribuíram na
construção deste painel tão rico da produção acadêmica atual direcionada ao
segmento de educação de jovens e adultos.
Boa leitura.

Regina Célia Esteves de Siqueira


Superintendente Executiva da AAPAS
Coordenadora Nacional da Alfabetização Solidária

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Apresentação – p. 5-6
ARTIGOS

O aluno de EJA: jovem ou adolescente?

Shirley Costa Ferrari1


Suely Amaral2

m nossa prática de formação continuada com educadores de adultos, em


E cursos de formação de professores, em diferentes secretarias muni-
cipais de educação, a dificuldade de lidar com a diversidade de faixa etária
em uma mesma sala tem-se destacado como tema recorrente nas falas dos
professores. A maior demanda de jovens pelos cursos de EJA traz, como
conseqüência, a dificuldade do professor atender num mesmo espaço e tempo
diferentes níveis de conhecimento e ritmos de aprendizagens.
Em geral, as falas dos professores apontam para aceitação do aluno adulto,
reconhecendo e valorizando o esforço diário para permanecer no curso, o
esforço para aprender, para responder às tarefas e a manutenção da relação
hierárquica professor-aluno, no respeito com que o adulto trata o mestre.
Quanto se trata de adolescentes, entretanto, as inquietações são muitas: eviden-
cia-se a dificuldade de lidar com a disciplina, com a falta de motivação e de
envolvimento do aluno nas tarefas escolares – conversam demais, movimen-
tam-se demais, não prestam atenção às aulas, não fazem tarefas: são as
queixas mais freqüentes.
A Educação de Jovens e Adultos apresenta hoje uma identidade que a
diferencia da escolarização regular e essa diferenciação não nos remete apenas
a uma questão de especificidade etária, mas, primordialmente, a uma questão
de especificidade sócio-histórico-cultural. Os novos rumos da Educação Brasi-
leira enfatizam a difusão dos valores de justiça social e dos pressupostos da
democracia, do respeito à pluralidade, fundados na crença e na capacidade

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O aluno de EJA: jovem ou adolescente? – p. 7-14
de cada cidadão ler e interpretar a realidade, conforme sua própria experiên-
cia, o que exige reorientar o olhar para propostas educativas que incluam o
desenvolvimento da pessoa de forma integrada e completa, no atendimento
de suas necessidades cognitivas, afetivas, motoras e sociais.
O censo de 2000 já indicava, na Educação de Jovens e Adultos, uma
parcela de aproximadamente três milhões de estudantes, sendo que, desse
total, cerca de 79% são jovens, o que caracteriza um novo perfil de alu-
nado. A principal preocupação relacionada aos dados é que a presença
deste contingente de jovens se apresenta como novidade nesta modali-
dade de ensino e exige que se pense sobre formas de lidar, para além
dos conceitos da facilidade e redução de tempo na conclusão do curso e
obtenção do certificado.
Uma primeira consideração deve ser a de reconhecer este jovem como
um sujeito, cuja história não é a mesma de outros jovens da mesma idade,
que estão ingressando num nível superior de escolaridade ou buscando cursos
de especialização profissional para acessar ou se aprimorar para o mercado
de trabalho. O jovem de EJA deve ser visto como uma pessoa, cujas condi-
ções de existência remetem à dupla exclusão, de seu grupo de pares da
mesma idade e do sistema regular de ensino, por evasão ou retenção.
Este jovem, pertencente ao mundo do trabalho, ou do desemprego,
como é mais comum, incorpora-se ao curso da EJA, objetivando, na maio-
ria das vezes, concluir etapas de sua escolaridade para buscar melhores
ofertas do mercado de trabalho por sua inserção no mundo letrado. Desta
forma, assemelha-se ao adulto que sempre buscou este tipo de curso
para sua formação, mas diferencia-se dele em suas condições biológi-
cas e psicológicas, apontando para uma demanda diferente da do adulto
no atendimento escolar.
Situar este jovem num mundo cultural concreto, de uma determinada
época da história, faz contraponto à visão de existência do adolescente uni-
versal, com características emocionais típicas de desenvolvimento (como
as de naturalmente fazer oposição ao adulto, criar situações constrangedo-
ras, ser rebelde etc.), como se a idade biológica pudesse ser, por si só, o
único determinante de um conjunto de comportamentos comuns e de uma
visão de mundo característica.

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O aluno de EJA: jovem ou adolescente? – p. 7-14
Nesta fase de desenvolvimento, o jovem que se encontra no mercado de
trabalho e lutando para garantir sua sobrevivência apresenta características
diferenciadas pelo contato imediato com a realidade social, daquele jovem
universal, abstrato, que só responde às etapas biológicas de seu crescimento,
representadas por um conjunto de transformações corporais e psicológicas
entre a infância e a idade adulta, tipificadas como adolescência.
As teorias de desenvolvimento humano, que se sustentam numa visão de
homem constituída em dupla determinação, biológica e social, enfatizam a
formação humana num movimento constante de vir a ser, em que cada fase da
vida se define por um conjunto de características e necessidades biológicas,
psicológicas e sociais, imbricadas, de forma que se realiza, simultaneamente, a
formação da personalidade e o conhecimento do mundo objetivo. O conjunto
de características e necessidades bio-psíquico-social recria-se nas etapas do
desenvolvimento, tendo como base o que foi gerado na fase anterior e o que se
oferece no presente, num processo constante de atualização.
O processo de desenvolvimento é dinâmico e decorre da inserção do
sujeito em um determinado meio, das atividades em que se envolve, do sen-
tido que atribui a essas atividades, das escolhas que faz ou deixa de fazer.
Estes sentidos são incorporados do conjunto mais amplo das relações sociais,
mediante a interpretação de cada um da perspectiva do lugar social que
ocupa, pela bagagem cultural de sua trajetória e pelas características regio-
nais de seu grupo. Entender o desenvolvimento humano dessa forma significa
compreender que as mudanças pessoais não são resultados exclusivamente de
processos individuais e biológicos, mas têm como parâmetros as condições
objetivas que o meio social impõe a cada fase da vida.
Nessa perspectiva, a experiência na instituição escolar assume um papel
mais abrangente do que o de emissora de certificados. Enquanto trabalho e
enquanto escola, o jovem que freqüenta a EJA está mergulhado num meio que
pertence ao adulto, que ele desconhece na qualidade de agente da sua história,
cuja prioridade está em se manter no mercado de trabalho para garantir a
sobrevivência. Esta condição de existência o configura como sujeito, cujas
necessidades pessoais são perpassadas de maneira imediata não apenas
pelas necessidades sociais, dadas pelo que a sociedade impõe aos de sua
idade em condição social privilegiada (o preparo para uma profissão, em

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caráter de aprendiz), mas às necessidades que a sociedade impõe ao perfil do
adulto: sobrevivência, luta pela vida, enfrentamento do mundo do trabalho.
O conflito, as contradições e ambivalências próprias da fase do cresci-
mento biológico estão presentes, mas subordinadas e direcionadas pelas
necessidades que a realidade impõe, pelas condições que oferece e pela
expectativa que decorre de como superar esses enfrentamentos. A tão propa-
lada “revolta” do adolescente e seus atritos com os adultos apresentam-se,
ao jovem que freqüenta a EJA, como crítica à ação educativa que pretende
mantê-lo na condição de criança, ou mesmo de jovem, com a qual ele não se
identifica; e como questionamento sobre o processo que o mantém distante
dos temas de sua época e que lhe dizem respeito diretamente, em favor de um
rol de conteúdos tradicionalmente estabelecidos e sem significado para ele,
que não o levam à compreensão de sua integridade como pessoa, à sua
interação com os grupos dos quais se sente excluído e tampouco alimentam
suas expectativas de mudança de vida a longo prazo.
Via de regra, a visão de adolescente universal, que justifica a exclusão do
jovem também na sala de aula, pode desencadear novos bloqueios e interrom-
per o fluxo de estímulos que o levaram a dar continuidade ao seu processo de
formação. Um meio escolar que visa (e que deve visar) ao desenvolvimento
integral da pessoa em seu contexto ambiental e social, apresenta condições
de propiciar transformações nos comportamentos, sentimentos e pensamentos
dos jovens, em decorrência da diversidade de relações estabelecidas com o
conhecimento, com colegas de idades diferentes e com professores. Esta
diversidade de relações também implica um processo construído pela conjun-
ção de diferentes experiências que devem pertencer ao rol de atenção dos
educadores, como afirma Debesse (1943):
esquecer ou renegar a adolescência seria uma derrota. Lastimá-la seria uma
fraqueza. Adorá-la seria um erro. O que é preciso é que tudo o que ela tem
de melhor se conserve em nós como uma força atuante, um exemplo vivo,
um programa de ação a realizar. (p. 102)

Numa sociedade como a nossa, cujo valor social dado à escola é muito
grande, o fato de uma pessoa não ter estado na escola, numa fase em que
deveria estar, é uma marca distintiva como a da pobreza, é característica da
condição de subalternidade, da exclusão oriunda de suas raízes culturais,

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imposta pelo grupo dos letrados. A possibilidade de superação deste estigma
destaca a EJA como um dos meios privilegiados de mudança, se considerada
a afirmação de Rubinstein (1969):
através de sua atividade socialmente organizada, o homem se converte
em membro e representante de um todo social: os motivos sociais se
convertem em seus motivos pessoais (...) desta forma, se eleva por cima
do plano da mera existência orgânica e se incorpora ao plano da existên-
cia social. (p. 204)

A escola pública como locus de formação do jovem e do adulto


Considerar o meio humano como condição de humanização remete à
uma visão de escola como um espaço social privilegiado de formação. A
educação escolar, sistemática, intencional, deve dirigir-se primeiramente à
personalidade inteira da pessoa e, ainda que priorize o trabalho com o
conhecimento, a ação pedagógica influi de forma abrangente em todas as
suas dimensões. Nesse sentido, a escola deve levar em conta que as necessi-
dades do aluno são de ordem diferenciada: motora, cognitiva, afetiva e
social; e minimizar qualquer uma delas significa comprometer o processo
como um todo. O aluno leva para a escola características de seu ser biopsí-
quico indissociado de suas condições materiais e sociais de existência, e a
escola, como um fator que introduz no cotidiano um tempo de dedicação e
exige inúmeras adaptações, não pode se furtar ao trabalho de ensino/apren-
dizagem descomprometido com o processo de desenvolvimento intelectual,
social e moral, que ocorre simultaneamente à aquisição de conteúdos e dis-
posição para avaliações.
Ferrari (2001), ao investigar se a inserção em um curso supletivo no-
turno, de uma escola da periferia da cidade de São Paulo, teria provocado ou
não mudanças substanciais nos alunos, constatou que, na visão dos jovens,
as mudanças principais diziam respeito à diversidade de interações propi-
ciada pelo convívio escolar, já que, diferentemente do universo em que
tinham vivido até então, o espaço escolar lhes dera a chance de, segundo eles,
conhecer mais o mundo e as pessoas. A freqüência à escola aparece citada
também como a possibilidade de superação do medo e da vergonha, antes
impeditivos de participação em atividades que demandavam escolarização, e

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em superação do estigma – de fracasso escolar – que nutriam a seu próprio
respeito. Principalmente para os mais jovens, a freqüência ao curso oportuni-
zava a elaboração de projetos de vida e diferentes perspectivas de futuro,
com a esperança de possível melhora de oferta de trabalho e continuidade
dos estudos.
Embora considerando que o ensino ofertado não atende às necessidades
de aluno-trabalhador, constata-se que aqueles que o freqüentam apresentam
mudanças, relacionadas principalmente à adesão, até então, ao forte precon-
ceito que pesa socialmente sobre o analfabeto ou sobre “quem não estudou”.
Ao indicar seus planos para o futuro, os jovens, sujeitos da pesquisa, acreditam
estar em pé de igualdade com outros alunos egressos de outras escolas
num mesmo nível.
A pesquisa de Ferrari aponta que os alunos não percebem que o curso
supletivo, da forma como se apresenta, considerado um curso de segunda
linha frente às exigências do ensino regular, não dá sustentação a tal crença.
Possivelmente, irão se sentir novamente excluídos, quando tentarem buscar
um emprego que exige melhor qualificação ou mesmo procurarem dar con-
tinuidade aos estudos num patamar superior. Evidenciando o distanciamento
da necessidade dos jovens, essa escola não tem como prioridade alargar a
compreensão que o indivíduo tem de suas condições sociais concretas e
continua deixando em segundo plano uma formação mais abrangente que
incluiria, inclusive, a possibilidade de crítica a este modelo educativo que,
num espectro mais amplo, acaba reconduzindo o sujeito a um mesmo patamar
de subordinação.
O curso supletivo hoje é a única possibilidade de reinserção escolar para
aqueles alunos com defasagem série/idade, quer seja pelo afastamento dos
estudos pelas exigências de trabalho precoce, quer seja pela exclusão do
sistema regular de ensino por reprovações sistemáticas. Essa constatação
nos aponta, enquanto educadores, a necessidade de assumir o curso como
oportunidade concreta para os jovens e a importância de avançar no signifi-
cado do que seja instrução, contemplando em seus currículos a formação
do homem-cidadão-profissional, na perspectiva de uma educação como apro-
priação da cultura, enquanto integração de todas as atividades humanas e
determinante da humanização.

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O convívio entre diferentes faixas etárias, do jovem com o aluno adulto
pode ser enriquecedor, se estiverem incluídas as necessidades do aluno
jovem: tanto no que diz respeito à maior necessidade de movimentação
na sala, quanto a seu ritmo de aprendizagem, priorizando atividades que
estimulem parcerias, em lugar da competição com os mais velhos, organi-
zando atividades que promovam a reflexão sobre os valores e as condutas e
que propiciem a formação de vínculos positivos e respeito à forma de pensar,
agir e sentir do outro.
A escola precisa ser um ambiente onde o sujeito aprenda a vida social
e democrática não só pela transmissão ordenada das lições dos livros, mas
também pelas experiências da vida cotidiana, por meio de pesquisas, aná-
lise, reflexão de sua condição e troca de idéias em que possa refletir sobre
a condição do outro, perceber em que aproximam ou se distanciam, quais
são os conflitos e quais os consensos possíveis. Deve propiciar aos jovens
uma análise crítica da estrutura social, administrativa e política, para acom-
panhar as mudanças sociais de seu tempo, a fim de que não fique alijado
da vida real, e deve ainda se responsabilizar pela sua formação integral,
desenvolvendo uma postura ética, fundada em valores dignos de um cida-
dão comprometido com os problemas sociais vigentes em sua realidade.
Enquanto organizadora de novas perspectivas para os alunos, tanto no sen-
tido de satisfação da necessidade pessoal mais imediata, como aprender a
ler e escrever para atender à demanda de uma sociedade letrada e garantir a
própria sobrevivência, quanto para alargar gradativamente a perspectiva de
cidadão, num sentido mais social, mais amplo, ao transformar sua necessi-
dade pessoal de saber ler e escrever numa atividade de participação crítica
da vida em sociedade.
Cabe à escola conjugar, ao mesmo tempo, os conteúdos do ensino e
as disciplinas escolares com o gosto pela verdade, o espírito crítico, a
consciência de suas responsabilidades sociais, objetivando a conquista da
autonomia da pessoa do jovem. O grupo de professores – e o professor de
cada sala em particular – precisa ter em conta que sua prática pedagógica
não pode se esgotar na relação conteúdo-rendimento-indivíduo, que essa
prática pode alcançar o desenvolvimento da pessoa integrada e completa,
fortalecendo a postura de cada um e a consciência do grupo, enquanto
cidadãos, e priorizando o respeito por si mesmo e pelos outros.

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Notas
1 Coord. Curso de Pedagogia das Faculdades Oswaldo Cruz e Profa da Faculdade
Diadema. E-mail: shifer@ig.com.br
2 Coord. Curso de Letras da Faculdade Diadema. E-mail: suely.a@uol.com.br

Referências bibliográficas
DEBESSE, M. A. A adolescência. Lisboa: Publicação Europa-América, 1993.
FERRARI, S. C. Dar voz ao aluno do supletivo – mudanças pessoais e suas
razões. 2001. Tese (Doutorado), PUC, São Paulo.
RUBINSTEIN, L. S. El desarrollo de la psicologia: principios y metodos.
Habana: Editorial Pueblo y educación, 1979.

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Necessidades básicas de aprendizagem
na alfabetização de adultos: estudo de dois casos
no distrito de Marracuene

Rosalina Rungo1

Introdução
oçambique é signatário da “Declaração Mundial de Educação Para
M Todos”, que define que a educação básica, incluindo a alfabetização
deve ser dirigida à satisfação das necessidades básicas de aprendizagem de
todos os beneficiários, designadamente crianças, jovens e adultos. Estas
necessidades básicas de aprendizagem compreendem, por um lado, os ins-
trumentos essenciais para a aprendizagem, por exemplo, a leitura, a escrita, a
expressão oral, o cálculo, a solução de problemas etc. e, por outro lado, o
conteúdo básico de aprendizagem, por exemplo, conhecimentos, habilidades,
valores e atitudes necessários para que os homens possam sobreviver, desen-
volver plenamente as suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade,
participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida,
tomar decisões informadas e continuar aprendendo.
Este artigo é apenas um resumo de uma tese realizada com a finalidade
de obter o grau de mestre em ciências de educação, com especialidade em
educação de adultos, assim, a maior parte das referências bibliográficas está
na tese completa (Rungo, 2004).

Problema e objectivos
Embora signatário da “Declaração Mundial de Educação Para Todos”,
nas aulas de alfabetização de adultos constata-se que as necessidades básicas

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de aprendizagem ficam além da visão do alfabetizador. Com efeito, INDE
(199-?)2 demonstra que, na prática pedagógica, ao adulto não lhe é atri-
buído o espaço na qualidade aluno-cidadão, facto que é reforçado pela
utilização de procedimentos didácticos como repetição em coro e cópia
mecânica. Neste sentido, o alfabetizador não aproveita as experiências e
os conhecimentos que os adultos possuem para dinamizar o processo de
ensino e aprendizagem.
Assim, constituem objectivos desta pesquisa:
• Identificar as necessidades básicas de aprendizagem percebidas pelos
alfabetizandos e as motivações dos alfabetizandos adultos que parti-
cipam nas aulas de alfabetização dos programas do Governo e dum
organismo não-governamental, o caso da Action Aid, usando como
fonte desta identificação as aulas e os depoimentos dos próprios alfa-
betizandos (Action Aid, s/d, Archer, Cottingham, 1997).

• Sugerir condições de aperfeiçoamento das aulas de alfabetização para


ligá-las à satisfação das necessidades básicas de aprendizagem percebidas
e as motivações da população visada.

Contexto
Com uma herança de cerca de 93% de analfabetismo após a independên-
cia em 1975, o governo moçambicano comprometeu-se em tornar a educação
acessível para todos os cidadãos nacionais e como forma de operacionalizar
esse objectivo nacionalizou a educação, e em 1978 promoveu a campanha
nacional de alfabetização como forma de prover a educação àquelas popula-
ções que outrora não tiveram acesso (Lind, 1988).
A campanha de alfabetização de adultos, juntamente com o alargamento
do ensino primário, reduziu drasticamente, cinco anos depois, a taxa de
analfabetismo para 72% (MINED, 1993).
Não obstante, a guerra civil que fustigava o país anulou os esforços do
governo de prover a educação a todas a camadas sociais, com a destruição
indiscriminada de infra-estruturas escolares, que teve como consequência a
diminuição do nível de participação nas actividades de alfabetização e noutros
subsistemas de educação de uma forma geral.

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Necessidades básicas de aprendizagem na alfabetização de adultos – p. 15-24
Com a guerra civil instalou-se a crise económica no país e, nos mea-
dos da década 80, o governo adoptou o programa de reajustamento estrutu-
ral protagonizado pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco
Mundial como medida para reactivar a economia. Com esta política ma-
croeconómica, a educação de adultos, incluindo a alfabetização, não me-
receu prioridade.
A conjugação dos vários factores, designadamente a guerra civil, as
políticas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, associa-
dos aos problemas de natureza pedagógica, como por exemplo, fraca formação
dos alfabetizadores, a utilização exclusiva da língua portuguesa na alfabeti-
zação num contexto em que esta é estranha para a maioria, os conteúdos
distantes das vivências dos adultos participantes da alfabetização e os horários
inflexíveis condicionaram a fraca participação dos adultos das actividades de
alfabetização (PNUD, 2000).
Com a paz alcançada em 1992, o governo reorganizou a sua política
de intervenção e consequentemente desenvolveu um plano estratégico do
sector da educação que prioriza a educação básica, incluindo a alfabetiza-
ção de adultos.
Esta pesquisa enquadra-se no âmbito do relançamento da actividade de
alfabetização e tem em vista contribuir para tornar a alfabetização uma
actividade estimuladora para todos os participantes.

Enquadramento teórico
A evolução histórica no contexto mundial da alfabetização foi marcada,
entre 1945 e 1964, pela definição de alfabetização, que fazia referência à
capacidade de leitura e escrita de um enunciado curto e simples, relacionada
com a vida quotidiana.
A necessidade de transformar a alfabetização num instrumento efec-
tivo de desenvolvimento social, económico e cultural, determinou uma
nova abordagem de alfabetização: a abordagem de alfabetização funcio-
nal. Nesta abordagem destacaram-se programas de alfabetização de índo-
le económica. Nesta base, em 1965 a Conferência Mundial dos ministros
de educação em Teheran estabeleceu que a alfabetização funcional deve-
ria: “não ser limitada ao ensino da leitura e da escrita, mas também incluir

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conhecimentos profissionais e técnicos que promovem a participação
integral dos adultos na vida económica e cívica” (UNESCO, 1968 citado
por Lind e Johnston, 1990, p. 34).
Com a influência do brasileiro Paulo Freire, em setembro de 1975, o
Simpósio Internacional de Persepolis apresentou uma nova abordagem dentro
da abordagem funcional da alfabetização (Freire, 2000). Consequentemente,
o conceito de funcionalidade foi extensivo à dimensão política, económica,
social e cultural e deste modo a alfabetização passou a ter como objectivo a
consciencialização crítica do indivíduo, da sua realidade social, da sua capa-
cidade de entender, dominar e transformar o seu destino.
Em 1990 a Conferência Mundial de Educação para Todos teve influência
marcante na definição de educação básica, incluindo a alfabetização de
adultos, alargando o seu âmbito para a discussão do que são as necessidades
básicas de aprendizagem. Esta pesquisa assenta a sua discussão no conceito
amplo de alfabetização, isto é, a alfabetização é compreendida como o de-
senvolvimento da expressão e da comunicação, tanto oral como escrita,
com uma visão de linguagem como totalidade (falar, escutar, ler, escrever
etc.). O conceito de alfabetização que se adoptou nesta pesquisa, resulta de
uma visão de alfabetização renovada, aprovada em dezembro de 2001, no
lançamento da Década da Alfabetização pelas Nações Unidas (2003-2013),
extraído de Torres (2002).
De acordo com Torres, as necessidades básicas de aprendizagem de-
rivam e se relacionam com as necessidades básicas humanas. A alfabeti-
zação é uma necessidade básica de aprendizagem que tem relação com a
satisfação humana.
Huitt (2003) referiu-se às necessidades básicas humanas, segundo
Maslow, que de acordo com este, dispõem-se numa ordem hierárquica,
isto é, as necessidades de ordem superior não se tornam activas senão
quando as de ordem inferior puderem ser satisfeitas. Embora haja pouco
acordo sobre a identificação das necessidades básicas humanas e como são
reconhecidas, a teoria de Maslow permite a compreensão do ser humano e
das suas necessidades, o que constitui um ponto de partida para a com-
preensão dos factores que motivam o indivíduo para a aprendizagem, que
é o propósito básico desta pesquisa.

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


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Necessidades básicas de aprendizagem na alfabetização de adultos – p. 15-24
Design da pesquisa
O local da pesquisa situa-se no Distrito de Marracuene, na Província de
Maputo, muito precisamente nos Centros de Alfabetização. Neste estudo
de caso priorizamos a pesquisa qualitativa, através de dois instrumentos de
pesquisa, nomeadamente a observação directa, a entrevista e a reunião de
validação dos resultados, mas também foi feito o estudo de documentos. Tais
documentos são os manuais de alfabetização e livros do alfabetizador de
Português e de Matemática, programas e políticas de alfabetização em
Moçambique, assim como estudos anteriores.
Os instrumentos (grelha de observação e entrevistas semi-estrutura-
das) foram testados no Centro de Alfabetização de Faftine, em Marracuene,
na província de Maputo (não incluído depois no estudo de caso). Com este
exercício pretendia-se verificar a aplicabilidade dos instrumentos e inteirar-se
melhor dos factos que ocorrem na realidade.
A Direcção Distrital de Educação de Marracuene (DDEM) contava à
data da pesquisa com 26 Centros de Alfabetização, utilizando dois tipos
diferentes de programas, nomeadamente:
– Alfabetização “Governo-MINED”
– Alfabetização “REFLECT” (esta abordagem de alfabetização assenta-se
no princípio democrático, onde cada membro da comunidade toma de-
cisões em relação às questões que dizem respeito a sua comunidade.
O método REFLECT foi concebido pela organização não-governamental
internacional Action Aid).

Assim sendo, escolhemos um caso para cada programa na mesma loca-


lidade, segundo os seguintes critérios:
• Acessibilidade, no concernente às vias de acesso;
• Que leccione o 1º ano de alfabetização;
• Que frequentem na sua maioria adultos acima de 30 anos de idade.

Deste modo foram escolhidos os seguintes centros:


• Centro da Associação dos Camponeses (programa REFLECT);
• Centro da Escola Primária do Primeiro Grau (EP1) de Marracuene
(programa do governo).

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


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Necessidades básicas de aprendizagem na alfabetização de adultos – p. 15-24
No Centro de Alfabetização da Escola Primária do Primeiro Grau de Marra-
cuene foram seleccionados de um universo de 49 alfabetizandos, que formavam
uma turma do primeiro ano, 10 alfabetizandos, correspondente a 20% e no
Centro da Associação das camponesas “Sete de Abril” foram seleccionadas de
um universo de 17 alfabetizandos, que formavam uma turma do primeiro ano,
10 alfabetizandos, correspondente a 59%. Estes casos foram tomados obser-
vando os seguintes critérios de idade correspondente a 30 anos ou mais e
assiduidade (frequência às aulas) e foram observadas quatro aulas de alfa-
betização em cada programa nos centros escolhidos.
A sessão de validação dos resultados consistiu de uma reunião com os
protagonistas de alfabetização da Direcção Nacional de Alfabetização e Edu-
cação de Adultos do MINED, das direcções distritais de educação da província
de Maputo, com os alfabetizadores da província de Maputo e docentes e
estudantes da Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane.

Resultados
As entrevistas realizadas permitiram agrupar as representações dos alfabe-
tizandos do 1º ano acerca das suas necessidades básicas de aprendizagem e
suas motivações, a partir de categorias desenvolvidas na Conferência Mundial
sobre Educação para Todos (1990), nomeadamente:
• Sobreviver, ao considerar a necessidade de alfabetizar-se para ter emprego,
melhorar a produção e melhorar a renda;
• Desenvolver plenamente suas potencialidades, por considerarem a
necessidade de saber falar português, saber ler e escrever, aprender a
fazer contas no papel, aprender coisas da vida, não depender dos outros,
“abrir a cabeça” e “abrir a visão”;
• Viver e trabalhar com dignidade, ao considerarem a necessidade de ter
emprego melhor, ser respeitado e não ser enganado. Participar plenamente
do desenvolvimento, na medida que consideram a necessidade de alfabe-
tizar-se para participarem das reuniões dos filhos nas escolas e participar
das reuniões da comunidade;
• Melhorar a qualidade de vida, porque para os entrevistados alfabetizar-se é
condição para educar os filhos, para resolver os problemas, escrever
documentos e conhecer as épocas do ano que ocorrem doenças;

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


20
Necessidades básicas de aprendizagem na alfabetização de adultos – p. 15-24
• Tomar decisões fundamentadas e continuar aprendendo, porque a língua
portuguesa constitui a maior necessidade de aprendizagem, pois o conhe-
cimento desta língua é a condição para a tomada de decisões e da apren-
dizagem ao longo da vida.

Para completar a informação foi feita a observação de aulas e também


conversas com os alfabetizadores. Relativamente ao Centro de Alfabetização
da Associação dos Camponeses constatou-se que:
• A oralidade é o ponto de partida para a aprendizagem da escrita. A apren-
dizagem da escrita é precedida de um debate de cáracter social, sobre um
problema que afecta a associação e a comunidade onde os seus elementos
estão inseridos. No debate identificam-se as palavras-chaves. Essas pala-
vras são escritas e estudadas na sua dimensão silábica e a partir dessas
sílabas formam-se outras palavras que depois são lidas em grupo;
• Utilização de elementos gráficos de um assunto apresentado pelo alfabe-
tizador (mapas, matrizes, calendários, categorização de preferências e
outras representações) é o ponto de partida na alfabetização;
• A geração de problemas tem como aspectos dominantes o que acontece
na associação em que estão vinculados os participantes e na comunidade;
• A aprendizagem da aritmética focaliza as acções no cálculo mental;
• A interpretação dos procedimentos é feita com recurso aos materiais
concretizadores (paus, pedrinhas, sementes etc.);
• Os alfabetizandos sentam-se em círculo;
• A aprendizagem é feita na língua local.

Enquanto que no Centro de Alfabetização da Escola Primária do primeiro


grau de Marracuene constatou que:
• A escrita é o ponto central e dominante da aprendizagem da língua. A
aprendizagem da língua parte da escrita de letras, depois sílabas, for-
mação de palavras e só depois a leitura. Por exemplo: aprende-se a
escrever as letras, a formação de sílabas e depois a palavra. As letras,
as sílabas e as palavras constam do livro do alfabetizando e do manual
do alfabetizador;
• Os conteúdos são abordados na sua dimensão factual, por exemplo as
letras, a soletração;

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


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Necessidades básicas de aprendizagem na alfabetização de adultos – p. 15-24
• A abordagem dos conteúdos assenta-se num corpo fixo de conhecimen-
to, habilidades e atitudes que constam no manual e no livro do alfabeti-
zando e são transferidas para os alfabetizandos, a título de exemplo, o
tópico e os procedimentos mentais subjacentes ao seu processo de
aprendizagem são fixados pelo professor, sem recurso às vivências e
às diversas formas de lidar com a situação pelos alvos da aprendiza-
gem. Por exemplo, na aula 28 do livro dos alfabetizando, ao se resolver o
problema3 não se explica o procedimento do equacionamento do proble-
ma, apenas disse e escreveu a operação que se tratava (adição) e os seus
termos “7 + 6 = 13”;
• A exercitação da aritmética é feita na base de estruturas padronizadas
que se apresentam no livro, sem admitir outras estruturas para a resolução
dos mesmos exercícios, por exemplo, na aula 28 apresenta a seguinte
operação 6 + 6 =. Aqui não se explora a base 5 na sua resolução, exemplo
6 + 6 = 5 + 1;
• Os livros do alfabetizando são prescritivos e o alfabetizador estimula os
alfabetizandos a copiarem os exemplos e exercícios para o caderno,
assim, as sílabas, palavras, frases e operações (contas) que o livro
contêm são repetidas, tanto pelo alfabetizador como pelos alfabetizandos;
os conteúdos são de carácter social, por exemplo: a família, as profissões,
a saúde etc., representados em forma de gravuras.
• A aprendizagem é feita na língua portuguesa.

Conclusão
Os resultados da pesquisa chamam atenção para a necessidade dos refor-
ços sociais, económicos e pessoais que motivam os adultos a ter necessidade de
alfabetização, que se traduzem em: falar, ler, escrever; compreender a língua
portuguesa e fazer contas, porque a alfabetização constitui uma necessidade
percebida como instrumento que facilita o seu ingresso numa “sociedade letra-
da”, que lhes permitirá resolver de modo autónomo os problemas do dia a dia,
com vista a sobrevivência e participação na vida da sociedade, deste modo,
fortalecendo-os e permitindo viver e trabalhar com dignidade e melhorar a
qualidade da vida.
Os resultados também sugerem que a aprendizagem na alfabetização de
adultos poderia partir de situações reais em que estes percebem que lhes faltam

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


22
Necessidades básicas de aprendizagem na alfabetização de adultos – p. 15-24
conhecimentos, habilidade e/ou competências. A interpretação de frases,
textos e de procedimentos aritméticos deveriam ser considerada, para que o
conteúdo aprendido tenha significado entre os aprendentes, ligados as neces-
sidades de sobrevivência, desenvolvimento pleno do potencial individual,
participação no desenvolvimento da sociedade, viver e trabalhar com dig-
nidade e melhorar a qualidade de vida.
A necessidade da aprendizagem da língua portuguesa está ligada à idéia
de que o Português é língua “franca”, pelos benefícios socio-económicos que
oferece aos seus falantes e por permitir aprendizagem contínua. Com isto com-
preende-se que as línguas nacionais não são estimulantes porque as publica-
ções (meios de comunicação social, obras literárias, científicas etc.) são
dominantemente em português. Mas na alfabetização de adultos, a aprendiza-
gem na língua que os alfabetizandos dominam tem largas vantagens didácticas.
O programa do governo valoriza a aprendizagem da língua portuguesa,
enquanto que o programa REFLECT valoriza os aspectos ligados à discussão
sobre temas da comunidade.

Notas
1 Centro de Formação de Quadros de Alfabetização e Educação de Adultos
Matola, Moçambique.
2 A data da pesquisa e da sua publicação não está especificada, mas supõe-se que
seja na década 90.
3 Um mecânico reparou sete motas numa semana. Depois reparou seis motas.
Quantas motas reparou ao todo?

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Moçambique: juntos combatemos a pobreza. Maputo: CSPII – Docfinal –V5, s/d.
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valdosta.edu/whuitt/col/regsys/maslow.html>. Acesso em: 04 dez. 2003.

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


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Necessidades básicas de aprendizagem na alfabetização de adultos – p. 15-24
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(Associación Sueca para el Desarrollo Internacional). Buenos Aires: ASDI, 2002.

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


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Necessidades básicas de aprendizagem na alfabetização de adultos – p. 15-24
Alfabetização é importante para se ser alguém:
percepções de programas de alfabetização
de adultos em Moçambique

Johanna van der Linden1

os últimos anos os programas de alfabetização em Moçambique en-


N contram-se numa fase de revitalização (DNAEA, 2001 e Mário,
2002). Lê-se no jornal (Notícias, 23 de Fevereiro, 2 e 9 de Setembro,
2004) que o número de participantes em aulas de alfabetização cresceu e
a taxa de analfabetismo baixou em função disso. Ao final do ano de 2003,
a taxa de analfabetismo situava-se em 53,6% contra 60,5% em 1997 (Ins-
tituto Nacional de Estatística, 2004). Para tornar as aulas mais relevantes
para os adultos, o Ministério de Educação iniciou um processo de refor-
ma curricular. Neste âmbito, o Director Nacional de Alfabetização e Edu-
cação de Adultos falou da:
“transformação gradual dos conteúdos curriculares (...) tornando-os cada
vez mais ajustados à necessidade de criar nos alfabetizandos habilidades
de saber como e o que fazer para elevar as suas rendas domésticas, contri-
buindo dessa forma para a erradicação da pobreza absoluta” (Muianga em
Notícias, 23 de Fevereiro de 2004: p. 1).

Neste contexto o Departamento de Educação de Adultos da Universidade


Eduardo Mondlane decidiu executar um projecto de investigação sobre as
percepções dos programas de alfabetização. Os objectivos específicos deste
projecto foram os seguintes:
• Identificar as percepções dos participantes nos programas de alfabetização;

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


25
Alfabetização é importante para se ser alguém – p. 25-40
• Identificar as percepções dos participantes potenciais nos programas
de alfabetização;
• Analisar as diferenças entre participantes e não-participantes e o aspecto
de género;
• Formular recomendações para facilitar o acesso aos programas de
alfabetização.

Pessoas adultas que não sabem ler e escrever, mas, apesar disso, não
assistem às aulas de alfabetização são consideradas como participantes
“potenciais” destas aulas. Espera-se que a análise das suas percepções possa
inspirar uma abordagem para tornar participantes potenciais em participantes
verdadeiros. Em geral, os resultados do projecto contribuirão para o desen-
volvimento de programas de alfabetização e educação de adultos pertinentes
e acessíveis, que não apenas ensinam os participantes como ler e escrever,
mas também os ajudam a sair da pobreza, consoante as palavras do Director
Nacional, e a usufruir duma vida condigna como membros da sociedade.
Assim, o projecto enquadra-se no tema desta revista: alfabetização e educa-
ção de adultos só pode ter um papel relevante no desenvolvimento humano se
os programas servirem para responder às necessidades básicas (de aprendi-
zagem) dos seus participantes, como ser humano e membro da comunidade.
Este artigo discute os conceitos, a metodologia e os resultados na perspectiva
de desenvolvimento humano, do ponto de vista dos participantes e partici-
pantes potenciais de aulas de alfabetização.

Os conceitos de alfabetização, percepções e barreiras


de aprendizagem
O novo plano curricular para alfabetização e educação de adultos,
apresentado em 2003, propõe temas, conteúdos e objectivos para literacia
(aprender ler e escrever), numeracia (aprender matemática) e habilidades
de vida com vista à redução da pobreza absoluta e empowerment às pessoas
mais vulneráveis. A alfabetização é considerada, por um lado, a aquisição de
noções básicas de leitura, escrita e cálculo e, por outro, um processo que
estimula a participação nas actividades sociais, políticas e económicas e
permite uma educação contínua e permanente (DNAEA, 2003). Paralela-
mente à alfabetização e educação de adultos o currículo abrange a educação

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


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Alfabetização é importante para se ser alguém – p. 25-40
não-formal em habilidades de vida. No que diz respeito à organização, a
flexibilidade é o princípio básico para a selecção dos modelos de ensino,
respondendo à diversidade dos beneficiários. O plano elabora diferentes
modelos de ensino-aprendizagem, entre os quais dois modelos bilíngües,
assim valorizando a língua materna dos participantes. Desta forma, o plano
incorpora as recomendações que já foram desenvolvidas nos anos 80 do
século passado para desenvolver cursos flexíveis em línguas locais, clara-
mente relacionados com as condições socioecónomicas dos participantes
(INDE, 199-?).
O conceito de alfabetização consiste numa visão alargada, segundo
as obras de Torres (2001, 2003), que define alfabetização como “a aquisição,
desenvolvimento e uso significativo da língua escrita” (Torres, 2003: p. 27,
trad. autor). De acordo com Torres, cada pessoa – criança, jovem, adulto –
deve estar em condições de aproveitar oportunidades educacionais para
cumprir as suas necessidades básicas de aprendizagem. Estas necessida-
des abrangem: sobreviver, desenvolver as suas potencialidades, viver e
trabalhar com dignidade, participar no desenvolvimento da sociedade, aper-
feiçoar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas, e continuar a
aprender (WCEFA, 1990). Necessidades básicas e necessidades de apren-
dizagem mudam consoante o tempo e as condições dos aprendentes (sobre
o assunto, ver também Rungo, 2004). Por consequência, a alfabetização
não é simplesmente aprender as habilidades técnicas de ler, escrever e
calcular, normalmente adquiridas na educação formal. É mais uma práti-
ca social, que faz parte de um contexto específico. Em relação a isso,
Street (1984) defende o modelo “ideológico” como alternativo ao modelo
“autónomo”. O modelo “autónomo” vê a alfabetização como uma variá-
vel independente, que pode ser separada do contexto. Ao contrário, o
modelo “ideológico” posiciona a alfabetização em práticas sociais con-
cretas e liga-a às ideologias do contexto linguístico (sobre o assunto, ver
também Buque, 2003).
Assim, percepções de alfabetização são percepções de uma prática
social, da importância desta prática para a vida das pessoas, tanto a vida
actual como o futuro desejado. Não podem ser implementados novos pro-
gramas de alfabetização apenas com base nas ideias e desejos dos educa-
dores e técnicos de educação. É necessária uma reflexão do ponto de vista

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


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Alfabetização é importante para se ser alguém – p. 25-40
do participante no contexto da sua vida (Brookfield, 1986; Merriam e
Caffarella, 1999; Longworth, 2003). Qual é a visão do participante sobre
a importância da alfabetização? Por que é que decide participar ou não
participar? O que é que espera das aulas de alfabetização? A opção pelo
conceito de “percepções” revelou-se de melhor alcance analítico na me-
dida em que, mais do que ideias e opiniões, o termo exprime uma relação
com conhecimento e compreensão de práticas existentes. O verbo “perce-
ber” une a “observação” de uma realidade existente com a interpretação
desta realidade. A psicologia social ensina que as pessoas podem ter dife-
rentes percepções da mesma realidade e que percepções dirigem o com-
portamento (Rodriquez, 1988). Neste sentido “percepções” estão forte-
mente relacionadas com os motivos e a motivação, que estão por trás de
qualquer acção intencionada.
Motivação é a chave do êxito de alfabetização de adultos. Lind (1988)
distingue motivos individuais e motivos sociais ou colectivos. Segundo o seu
estudo sobre as campanhas de alfabetização em Moçambique, primeiro exis-
tia um entusiasmo colectivo para participar nas aulas de alfabetização, mas
depois de algum tempo muitas pessoas desistiram. As que continuaram
tiveram motivos individuais além dos motivos colectivos. Sobre o assunto
em discussão, Borges Månsson (1995) apresenta três tipos de motivos:
instrumentais, integrativos e expressivos. Motivos instrumentais são os
relacionados com ler e escrever cartas e ler o destino do autocarro. Motivos
integrativos têm a ver com a integração com outras pessoas e motivos
expressivos, com a aquisição de conhecimento em geral. Seja qual for a
classificação, adultos aprendentes precisam de uma motivação muito forte
para ultrapassar as dificuldades, que encontram quando assistem às aulas
(Lind, 1988, Lind e Johnston, 1990). Na teoria de educação de adultos,
estas dificuldades são chamadas barreiras de aprendizagem. Existem barrei-
ras “externas” ou “situacionais”, que se referem a factores exteriores à
pessoa, e barreiras “internas” ou “disposicionais”, que se referem a facto-
res intrínsecos à pessoa (Merriam e Caffarella, 1999). Neste projecto de
investigação, o conceito de barreiras serviu para entender as razões para a
não participação nas aulas. Assim, o par dos conceitos “percepções” e
“barreiras” contribuiu para o entendimento do comportamento das pessoas
perante as aulas de alfabetização.

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


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Alfabetização é importante para se ser alguém – p. 25-40
Metodologia
O tema do projecto e o desejo dos investigadores para contribuir para a
prática actual dos programas de alfabetização precisaram de uma concepção
participativa da investigação. Os métodos principais foram entrevistas semi-
estruturadas e sessões de retorno em colaboração com os técnicos de alfa-
betização, os alfabetizadores e os líderes comunitários. Foram conduzidas
112 entrevistas com participantes e participantes potenciais nas províncias de
Maputo (incluindo a cidade de Maputo) e Nampula. Em cada província
foram seleccionadas três áreas: uma zona urbana, uma zona semi-rural e
uma zona rural. Em cada área foram feitas cerca de 10 entrevistas com
participantes e 10 com participantes potenciais, como mostra a tabela no 1.
Os participantes em aulas de alfabetização foram encontrados nos Centros
de Alfabetização e Educação de Adultos e os participantes potenciais foram
encontrados através dos participantes, dos líderes comunitários e nos merca-
dos das cidades de Maputo e Nampula.
Tabela no 1
Resumo das entrevistas semi-estruturadas sobre percepções de alfabetização
Participantes Participantes potenciais Total
Local (zona) Mulheres Homens Subtotal Mulheres Homens Subtotal
Magude (rural) 9 1 10 8 2 10 20
Manhiça (semi-rural) 6 4 10 7 1 8 18
Maputo Cidade 10 - 10 9 1 10 20
Subtot. Maputo 25 5 30 24 4 28 58
Muatala (rural) 10 - 10 1 - 1 11
Meconta (semi-rural) 5 5 10 - 9 9 19
Muaivire (urbano) 11 1 12 5 7 12 24
Subtot. Nampula 26 6 32 6 16 22 54
Total 51 11 62 30 20 50 112

É de notar na tabela no 1 que houve mais entrevistas com mulheres do


que homens, não só em relação aos participantes, mas também em rela-
ção aos participantes potenciais. Isso reflecte a realidade do país, em que
o índice de analfabetismo é mais alto entre mulheres do que entre homens
(segundo o censo de 1997, a taxa de analfabetismo entre os homens é de
44,6 % e entre as mulheres 74,1 %, Instituto Nacional de Estatística, 2004),
e nas aulas de alfabetização há mais mulheres do que homens. No entanto,

Revista da Alfabetização Solidária – vol. 5 – nº 5


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Alfabetização é importante para se ser alguém – p. 25-40
fez-se um esforço para falar com mulheres e com homens para se ter o
ponto de vista de ambos.
Para as entrevistas foi desenvolvido um guião, que deixou espaço para
os entrevistados elaborarem os assuntos como quisessem. Depois da testa-
gem, a estratégia da entrevista foi articulada e refinada; não foi necessário
adaptar o instrumento. Os entrevistados mostraram-se à vontade para parti-
lhar as suas opiniões com os investigadores, os quais, por seu lado, criaram
confiança entre os entrevistados falando com eles num ambiente por eles
conhecido e na sua língua preferida, que foi na maioria dos casos a língua
local. Às vezes parecia ser mais fácil para o entrevistado falar de barreiras de
aprendizagem na terceira pessoa, por exemplo, falando sobre pessoas amigas
ou vizinhas em vez de falar de si mesmo. A análise preliminar do conteúdo
das entrevistas foi apresentada e discutida em duas sessões de retorno assisti-
das por educadores, técnicos e líderes comunitários, uma em Nampula e a
outra em Marracuene (Província de Maputo). Estas sessões permitiram o
controle da validade da categorização das respostas e a exploração das
recomendações para a melhoria do programa de alfabetização.

Percepções de programas de alfabetização


Analisando as respostas nas entrevistas, a equipa de investigação distin-
guiu quatro categorias em relação à importância da alfabetização na visão
dos entrevistados. As respostas na primeira categoria têm a ver com a vida
actual da família: ler o destino do autocarro, falar com o médico, escrever o
seu próprio nome, ler e escrever cartas, compreender o TPC dos filhos, falar
com o professor dos filhos e controlar o troco no mercado. Um aspecto im-
portante é que as pessoas querem ultrapassar a vergonha de não poderem
assinar documentos e o sentimento de não poderem exercer nenhum tipo de
controle sobre alguns aspectos da vida: “no passado ficava envergonhada
quando fosse necessário assinar, hoje já sei escrever o meu nome” (mulher,
43), “quero ler para saber os segredos do meu marido” (mulher, 30), quero
saber “para não ser enganada pelos filhos, conhecer o desempenho escolar
dos filhos” (mulher, 48) e quero “entender a aplicação da matemática na época
da comercialização para não ser enganada” (homem, 31).
Próximo das respostas relacionadas com a vida actual situam-se as
respostas relacionadas com a melhoria da vida actual em termos de aumento

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Alfabetização é importante para se ser alguém – p. 25-40
dos rendimentos da família. Em geral fala-se de “ter uma vida melhor”,
“sair da pobreza” e “sair do sofrimento”. A alfabetização dá perspectivas
para “obter emprego”, por exemplo, “saber trabalhar num escritório” (mu-
lher, 35, mercado de Maputo), para melhorar os negócios porque “conse-
gue-se controlar o peso dos produtos durante a comercialização” (homem,
43) e para aumentar a quantidade e qualidade de produtos para vender por
“saber novas técnicas de produção e cultivo usando bem o que a comunidade
tem” (homem, 28). É uma questão de melhorar habilidades existentes: “faço
trocos, mas tenho algumas dificuldades” (mulher, 58, mercado de Maputo) e
“fazer as contas é fácil, mas no caderno fica difícil” (mulher, 27). Os que
estão a vender no mercado comparam-se com os seus vizinhos ou ex-colegas
de escola e sonham com um emprego melhor: “quero ter emprego como os
meus vizinhos, os que estudaram têm uma vida melhor” (mulher, 29) e
“colegas de infância que estudaram estão bem na vida” (mulher, 48). Para
eles é claro: “quem estudou tem profissão boa, sem saber ler e escrever não
se consegue ter um bom emprego” (mulher, 32). E os filhos aproveitar-se-ão
disso: “ter um emprego para desenvolver a vida dos filhos” (mulher, 19).
A terceira categoria é a participação na sociedade. Falou-se de “com-
preender o que os outros dizem”. “Os outros”, nos termos dos alfabetizandos,
são os que não falam a mesma língua local. Os participantes nas aulas de
alfabetização têm ambição: gostariam também de “ensinar os outros”, “ex-
plicar aos outros”, “ajudar os outros” e “resolver problemas sociais”. Um
participante (mulher, 45) disse que a alfabetização ajuda a “compreender e
interagir com uma diversidade de pessoas”. Um participante potencial
(mulher, idade desconhecida) quer “ter boa vida e relacionar-se bem com as
autoridades do bairro”. Outro quer “ajudar a combater a criminalidade”
(homem, 57, mercado de Maputo). Em Nampula utilizou-se a expressão “ser
alguém”. A alfabetização “é importante para se ser alguém” (mulher, 38).
“Alfabetização é estudar, sem estudos você não é nada” (mulher, 30). É como
se as pessoas que não sabem ler, escrever e nem sabem falar português não
existissem; pelo menos elas sentem-se assim desvalorizadas. Os alfabetiza-
dores, na sessão de retorno, explicaram que a hierarquia é muito restrita: o
direito a falar em reuniões, onde se resolvem os problemas da comunidade, é
limitado. A expressão “Ninguém fala sem ser alguém” é valida e a realidade
é a exclusão de pessoas que são consideradas ninguém. “Ser alguém” quer
dizer ser respeitado, ser valorizado, ser ouvido.

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A quarta categoria de respostas tem a ver com o desenvolvimento pessoal
num sentido mais alargado. Os respondentes referiram-se a “conhecer novas
coisas”, “ter conhecimento das coisas que estamos a fazer”, “aumentar o meu
nível de conhecimentos, mesmo que não consiga ter emprego” e “saber o que
é água, o que é fogo” (homem, 42). Outra expressão interessante usada por
diferentes pessoas é “abrir a cabeça”. Um dos participantes em Nampula disse:
“Alfabetização é abrir a cabeça das pessoas que há muito tempo viviam isola-
das” (mulher, 45). Aqui se mostra uma relação com a categoria anterior: os
alfabetizandos querem fazer parte da actual sociedade de conhecimento. Uma
vendedora no mercado de Maputo (58 anos), falante de três línguas (Portu-
guês, Changana e Bitonga) e que não participava nas aulas, expressou-se
assim: “Alfabetização deve continuar não para mim, mas para os meus netos.
Tenho muitos netos que não estudam. Estudar é importante, porque permite ter
uma vida melhor. O nosso tempo é de muitas incertezas e sem estudar a pessoa
morre de pobreza.” Esta vendedora revela compreensão da sociedade de
conhecimento, da qual faz parte, e da necessidade de manter-se actualizada
para não perder oportunidades, mas dá prioridade aos netos para serem alfabe-
tizados. Observou-se durante a recolha de dados que a maioria dos participan-
tes do Centro de Educação de Adultos no mercado eram crianças. A alfabetiza-
ção torna as pessoas independentes, autónomas: “quando estiver alfabetizada,
não vai ser necessário pedir ajuda a outras pessoas na leitura e escrita”
(homem, 20); “poderei preencher formulários e fazer contas pessoalmente”
(homem, idade desconhecida), e “dá segurança em tudo; permite fazer as
coisas com conhecimento” (mulher, idade desconhecida). O desenvolvimento
pessoal está em relação à independência pessoal, à capacidade para tratar das
suas coisas sem ter que pedir ajuda aos outros. Esta categoria de respostas
encontra-se tanto nas respostas das mulheres como nas dos homens.
No tocante ao aspecto de género, considerando o número de mulheres e
homens entre os entrevistados, nota-se uma leve tendência de as mulheres
falarem da vida actual e os homens do aumento dos rendimentos. As outras
categorias, referentes respectivamente à participação na sociedade e ao de-
senvolvimento pessoal, receberam igual atenção. Comparando as categorias
de percepções com as necessidades básicas de aprendizagem (Rungo, 2004)
investigou, vê-se que as necessidades (sobreviver, desenvolver as suas poten-
cialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar no desenvolvimento

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da sociedade, aperfeiçoar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e
continuar a aprender) integram-se facilmente nas quatro categorias. Nas
sessões de retorno discutiram-se as categorias e o facto marcante de não
haver muita diferença entre as respostas dos participantes e as dos participan-
tes potenciais. Tanto estes como os outros são conscientes do isolamento e da
exclusão em que vivem e donde pretendem sair. Outro assunto de discussão
foram as mudanças nas condições de vida que exijam o uso da língua por
escrito e o português. As pessoas que realmente sentem esta exigência têm um
desejo forte de aprender. Os resultados mostram a relevância de ligar as
percepções ao contexto real dos alfabetizandos. A vida, mesmo a das pessoas
chamadas analfabetas nas zonas rurais, está em mudança e eles estão a par disso.

Barreiras de aprendizagem
Apesar de os entrevistados concordarem com a importância da alfabeti-
zação, nem todos participam em programas de alfabetização. Em ambas as
províncias de Maputo e Nampula a maioria dos participantes são mulheres,
embora certamente existam homens que precisam aprender a ler e escrever.
Os respondentes mencionaram diferentes barreiras, tanto externas (exterio-
res à pessoa) como internas (interiores à pessoa), para participar nas aulas.
Primeiro, referiram-se a barreiras externas relacionadas com as condições
socioecónomicas em que cresceram: “os meus pais não tinham condições
para custear os meus estudos” (homem, 31). Em muitas famílias não havia
dinheiro para matricular os filhos ou outros membros da família na escola ou
a escola, simplesmente, não tinha prioridade: “os meus pais eram analfabetos
e eu tinha que fazer trabalhos domésticos” (mulher, 34). A guerra e os conflitos
armados também impediram os estudos: “só agora tenho tempo. No período
da guerra era militar do destacamento feminino” (mulher, 45), “a guerra
afectou muito, os bandidos raptavam alunos e assim os meus familiares pedi-
ram para eu deixar de estudar” (homem, 31) e “parei por causa da guerra:
a guerra fez-nos abandonar Macia e procurar condições de paz em Maputo”
(mulher, 30, mercado de Maputo). Para os participantes potenciais, que são
os que ainda não frequentam as aulas, a falta de tempo e de condições é até
agora o factor mais importante. Falta de tempo significa que a pessoa “ocupa
todo o tempo na procura de renda para alimentar os filhos” (mulher, 30,
mercado de Maputo), ou em actividades sociais que os deixam sem tempo para

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as aulas “por ser pastor”, ou “por causa do negócio”. Um dos participantes
potenciais diz sobre os seus colegas que não assistem às aulas porque “as
pessoas andam à procura de algo para sobreviver, não estudam por causa da
pobreza” (mulher, 40). Ela mesma não estuda por falta de um centro na sua
zona de residência.
Segundo, existem barreiras que têm a ver com experiências anteriores
na escola, ou com a organização existente. Uma participante potencial
(mulher, idade desconhecida) disse: “Nasci no tempo colonial, aprender
era proibido, era espancada na escola, gostava, mas apenas aprendi o alfabe-
to, tinha medo da violência protagonizada pelos professores, não chegava à
escola e comia massala”. “A escola era distante da minha casa”, “entrei com
idade avançada” e “houve falta de vagas na escola” são experiências comuns
entre os informantes. Uma mulher (58 anos) no mercado de Maputo disse:
“Nós éramos obrigados a cultivar a machamba do professor e víamos que
isso era perda de tempo, então preferíamos investir esse tempo e esforço na
nossa machamba”. Outras respostas, que têm a ver com as experiências ante-
riores na escola são: “fui rotulada como criança indisciplinada” e “aprendi
muito pouco”. Em relação à situação actual, fala-se de falta de informação,
da ausência de um centro ou do encerramento do centro, do horário das aulas,
que não é prático, e das condições pobres do centro. Aulas debaixo de uma
árvore ou noutro local com fraca protecção contra a chuva e o sol ainda são
comuns. Os homens, em particular, queixaram-se muito das condições dos
centros: “Não temos livros, não temos casa onde podemos estudar no tem-
po chuvoso, não temos carteiras, nem cadernos, gostaria que a Direcção
Nacional ou Provincial ajudasse com livros e materiais e na construção de
um centro” (homem, 31). Um participante (homem, 20) propõe soluções:
“gostaria que a escola promovesse a agricultura para com os rendimentos
melhorar as condições do centro”.
O terceiro tipo de barreiras provém do ambiente social dos participantes.
As suas condições de vida são vulneráveis, podendo mudar drasticamente com a
doença ou falecimento de um familiar: “após o falecimento do meu pai a minha
mãe ficou sem condições” (mulher, 16) e “eu cuidava da minha mãe, que era
cega” (mulher, 44 anos). Há casos em que familiares do sexo masculino proíbem
a esposa, a filha ou a sobrinha de assistir às aulas. Foi possível entender a existên-
cia de barreiras deste tipo em respostas como: “o meu ex-marido não queria”

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(mulher, 39), “a minha cunhada desistiu sob pressão do meu irmão, ele trabalha
na África do Sul e a casa não pode ficar sem ninguém” (homem, 20), “a
minha tia não estuda por causa do marido” (mulher, 19). Um participante do
sexo masculino, sobre os seus amigos que não participavam nas aulas, disse
“talvez tenham vergonha” (homem, 19). Numa das sessões de retorno acres-
centou-se um fenómeno em relação a esta barreira: a desmoralização dos
participantes pelos não-participantes. Colegas que continuam a trabalhar na
machamba, ou que vão consumir bebidas alcoólicas, têm pronunciamentos
desencorajadores e provocadores contra os seus amigos que frequentam as
aulas de alfabetização: “E o que é que vai ganhar com as aulas?” e “Por que
é que não fica a tomar um copo connosco?”.
Em quarto lugar existem os factores internos, relacionados com a pró-
pria pessoa: “Não quero participar porque já sou velha. O que é que vou
fazer com esse conhecimento?” (mulher, idade desconhecida). Esta mulher
mostrou-se feliz por ter filhos que estudavam e que trabalhavam. Uma outra
mulher, provavelmente muito mais jovem, conseguiu superar as suas dificul-
dades: “Eu não tinha segurança, não sabia o que podia fazer na escola com a
minha idade, mas agora já sei: posso ler e escrever” (mulher, 29). Muitos dos
informantes falaram de problemas de vista, em particular pessoas de mais de
35 anos. Também se mencionou a gravidez, doenças e até preguiça como
factores impeditivos. Há pessoas que acham que estudar é só para crianças e
que as pessoas mais velhas já têm “cabeça dura” em que já não entra mais
nada: “não quero participar, já não sou capaz de aprender mais” (mulher, 48).
Em relação às barreiras, os homens falaram mais das barreiras externas,
sobretudo barreiras socioecónomicas e do sistema escolar, incluindo o centro;
e as mulheres falaram das barreiras externas provenientes do ambiente social
e das barreiras internas. Parece que as mulheres sofrem mais no isolamento,
chegando a culpar-se a elas mesmas de não saber ler e escrever, enquanto que
os homens imputam responsabilidades às condições externas. Assim, torna-se
importante, na formulação de estratégias e programas, ter em consideração as
diferenças entre as mulheres e os homens, mas também as semelhanças,
porque ambos têm vontade de desenvolver e sair do isolamento. A diferen-
ça óbvia entre os participantes e os participantes potenciais encontra-se no
peso das barreiras. Constatou-se que no caso dos participantes alguns dos
factores externos tinham uma influência positiva. Por exemplo, o próprio

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centro pode facilitar a participação, quando os alfabetizadores mostram
uma atitude positiva perante os aprendentes, quando o horário e o local
das aulas estão de acordo com as actividades dos participantes e quando
os materiais de ensino e aprendizagem estão disponíveis em número sufi-
ciente. O ambiente social também tem um papel muito importante: os
participantes, principalmente as mulheres, falaram com orgulho sobre os
seus filhos, maridos e outros familiares, os quais as ajudam com o TPC e
as avisam da hora das aulas.

Contextualizando as percepções de alfabetização


Reconsiderando os objectivos do projecto, pode-se constatar que o pro-
jecto ajudou a identificar as percepções tanto dos participantes dos programas
de alfabetização como dos participantes potenciais. Os entrevistados claramente
exprimiram que se sentem desprezados, que querem ser valorizados, participar
na sociedade e ter a sua parte no desenvolvimento humano. As percepções dos
alfabetizandos mostram que eles sentem a falta de uma ferramenta essencial
para controlar e melhorar a sua vida. Não há diferença entre pessoas que já
participam nas aulas e pessoas que ainda não deram este passo. O sentimento
básico de todos é um sentimento de exclusão. Isso está de acordo com um
estudo interessante sobre percepções de alfabetização, que já foi feito nos
anos setenta do século passado na Tanzânia (Kassam, 1979). Conforme este
estudo, pessoas recentemente alfabetizadas indicam um crescimento em
termos de: erradicação de ignorância, libertação, autoconfiança, dignidade
humana, consciência política, desmistificação da realidade, objectivo da
educação, condições económicas e continuação dos estudos.
Resultados anteriores da investigação, que foram mencionados neste artigo,
apuraram os diferentes motivos para as pessoas se inscreverem nas aulas de
alfabetização: motivos individuais e sociais (Lind & Johnson, 1990) e motivos
instrumentais, integrativos e expressivos (Borges Månsson, 1995). Esta
investigação não discorda destes resultados, mas salienta mais a relação entre
as percepções e os diferentes aspectos da vida de cada pessoa. Refere-se aqui
ao triplo papel da mulher, consoante Moser (1993), designadamente repro-
dutivo, produtivo e de gestão da comunidade. O papel reprodutivo tem a ver
com a vida da família, o papel produtivo com os rendimentos da família e a
gestão de comunidade com a participação na sociedade. Apesar de em muitos

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casos existirem diferenças de enfoque entre mulheres e homens, a visão de
Moser pode ser alargada e abranger homens: a vida dos homens também
contém aspectos relacionados com cuidados para com a família, geração de
rendimentos e participação na comunidade. Além disso, na área de educação
surge mais um aspecto da vida: o desenvolvimento pessoal para se manter
actualizado no mundo em mudança. As quatro categorias reflectem o contexto
em que a pessoa vive (veja figura no 1).

Condições Mercado formal e


socioecónomicas informal de trabalho
Saúde pública Vida actual Rendimentos
da família da família
Participação Desenvolvimento
na sociedade pessoal
Condições políticas Sistema escolar

Figura no 1 As quatro componentes das percepções de alfabetização no


seu contexto

As respostas dos participantes (potenciais) mostram o seu relacionamento


com o seu contexto, as limitações que enfrentam devido à falta de habili-
dades linguísticas e as expectativas que têm da alfabetização. A figura no 1
exprime como as percepções estão ligadas ao contexto em que a pessoa
vive. A categoria da vida actual da família está relacionada com condi-
ções socioecónomicas como saúde, saneamento, nutrição, educação dos
filhos etc. O aumento dos rendimentos da família depende das possibilida-
des do mercado de trabalho: ir a África do Sul, trabalhar na machamba,
vender no mercado, ter emprego numa família ou numa fábrica. As condi-
ções políticas num sentido amplo definem o espaço para participar na socie-
dade: votar, participar em reuniões, ser membro de uma associação etc. E
finalmente o desenvolvimento pessoal tem a ver com a participação na
sociedade de conhecimento e o desenvolvimento de capacidades para manter
essa participação. Agora o desafio é de analisar pormenorizadamente as
práticas linguísticas num certo contexto, incluindo as diferentes línguas
utilizadas para desenvolver programas pertinentes, tendo em conta tanto as
necessidades dos aprendentes quanto as exigências do contexto. Desta ma-
neira os programas apoiarão o desenvolvimento humano respondendo às
necessidades básicas dos alfabetizandos.

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Alfabetização é importante para se ser alguém – p. 25-40
Alfabetização e desenvolvimento humano: uma abordagem
orientada por necessidades
Assiste-se a um novo ímpeto no sector de alfabetização, como consequên-
cia tanto do empenho dos alfabetizandos e alfabetizadores, como das políticas
nacionais e provinciais, e do apoio dos Parceiros de Cooperação. O sector de
alfabetização está realmente numa fase de revitalização em Moçambique. Não
é pertinente ter grandes expectativas sobre os resultados desta fase em relação
à redução da pobreza, à participação de todos no desenvolvimento do país e ao
empowerment das camadas vulneráveis, tanto homens como mulheres; neste
sentido é preciso um esforço integrado dos diferentes sectores. Contudo, os
resultados da investigação podem contribuir para o refinamento das estratégias
da implementação do novo currículo tanto em relação aos objectivos, como aos
conteúdos, aos métodos, à língua e à organização. Na perspectiva de desenvol-
vimento humano, propõe-se uma abordagem orientada por necessidades: os
programas não deveriam apenas seguir o currículo da escola formal, mas ofe-
recer oportunidades de aprendizagem cuidadosamente moderadas consoante
as necessidades dos aprendentes e as possibilidades locais (Kamp, van der M.
e Toren, K., 2003). As quatro categorias de percepções podem servir como
ferramentas para a negociação de programas pertinentes, incluindo os diferen-
tes actores envolvidos. Para facilitar o acesso aos programas propõe-se uma
abordagem integrativa, criando um ambiente encorajador de aprendizagem,
em que diferentes instituições, organizações e grupos informais cooperam.
A investigação, por parte das universidades e outras instituições, podia desem-
penhar um papel preponderante no desenvolvimento de novas estratégias.
O projecto mostra a importância de se ouvir as pessoas envolvidas e apre-
ciar as suas opiniões como ponto de partida para a inovação de programas de
alfabetização e de educação de adultos em geral. No cômputo geral, a equipa
da investigação ficou impressionada com a sabedoria e conhecimento das
pessoas que, apesar de (ainda) não estarem alfabetizadas, sabiam colocar-se no
mundo e sabiam formular até que ponto queriam aumentar a sua participação
nesse mundo. Isso é válido tanto para os participantes como para os participan-
tes potenciais. As suas opiniões são indispensáveis para desenvolver não só
novos métodos para atrair os que ainda não participam, mas também progra-
mas pertinentes quando participam. Parafraseando a expressão “Ninguém fala
algo sem ser alguém” podia-se dizer: “Escutando bem, nota-se que alguém está

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a falar sobre o seu desejo de se ser alguém”. Pessoas analfabetas exprimem a
vontade de estarem incluídas no mundo de hoje e de participarem no desenvol-
vimento humano, numa palavra, de “ser alguém”.

Notas
1 Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique.

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Alfabetização é importante para se ser alguém – p. 25-40
Novas práticas de trabalho, novas práticas de leitura
e escrita e novas identidades: mudanças para
uma “nova cultura de trabalho” numa fábrica
de refrigerantes em Maputo

Domingos Buque1

Introdução
oçambique é considerado um dos países mais pobres do mundo. O
M analfabetismo e o desemprego são dois dos vários factores que flage-
lam a sociedade moçambicana. As mudanças vividas no mercado laboral,
como resultado da privatização e restruturação de várias companhias nacio-
nais, têm conduzido milhares de trabalhadores para o desemprego, deixando
muitos deles sem oportunidades de se empregarem de novo devido, em
parte, às suas baixas qualificações académicas. Alguns dos que continuam
nos seus postos de trabalho experimentam mudanças na forma do trabalho
que exercem. Tais mudanças são no âmbito do local de trabalho pós-fordis-
ta, em que os trabalhadores já aparecem como “associados”, “parceiros”
ou “trabalhadores dotados de conhecimento”; agora, os seus chefes são
líderes e os gestores intermédios (middle managers) são “chefes de equi-
pa” (Gee et al, 1996: 26); “liberalização”, “empoderamento” (empower-
ment), “confiança”, “visão”, “colaboração”, “equipas”, “aprendizagem
auto-direccionada”, “qualidade”, entre outros, são os termos que incorpo-
ram a linguagem do novo local de trabalho no discurso dos gestores (ainda
Gee et el, 1996: 29).
Este artigo é o resumo da tese submetida ao Departamento de Educação
na Faculdade de Humanidades na Universidade de Cape Town, para a obtenção
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Novas práticas de trabalho, novas práticas de leitura e escrita e novas identidades – p. 41-58
do grau de Mestre em Educação, depois de dois meses de estudo ao local de
trabalho seleccionado como foco da investigação.
O estudo foi levado a cabo numa fábrica de refrigerantes, a qual é desig-
nada Moz Soft Drinks2. Na fábrica, localizada na província de Maputo, no
Sul de Moçambique, existem duas linhas de produção de refrigerantes. Numa
das linhas, o trabalho é quase totalmente automatizado, enquanto que, na outra,
parte considerável do trabalho é feita manualmente. Castells (1993) observa
que a produtividade e competitividade no sistema global capitalista contempo-
râneo cada vez mais dependem da aplicação da ciência e da tecnologia no
processo de produção. Isto sugere que o local de trabalho estudado está em
mudança, já que o processo de produção quase totalmente automatizado está a
substituir aquele em que parte considerável do trabalho é manualmente, com o
fim de aumentar a produtividade e a qualidade.
Era intenção da pesquisa verificar, através de um estudo de caso, se os
ventos da globalização, no que diz respeito à adopção de uma nova cultura de
trabalho, pós-fordista, já se fazem sentir em Moçambique.

Quadro teórico
Nas últimas duas décadas testemunha-se a uma vaga de investigação
oposta a convicções popularizadas de que a alfabetização3 é algo autónomo
que conduz simples e rotineiramente a resultados sociais positivos. Vários
estudos têm mostrado que a alfabetização não pode ser dissociada do contexto
social em que tem lugar.
Street (1984), um antropólogo, desenvolveu uma abordagem para o
estudo da alfabetização como uma prática social situada, à qual designou de
“modelo ideológico de alfabetização”. Esta abordagem desafia as concepções
populares e prevalecentes, segundo as quais a aquisição da alfabetização
pelos indivíduos e sociedades sempre conduz a resultados sociais positivos.
Na mesma obra, Street (p. 1-2) caracteriza essas concepções como corpori-
zando uma visão autónoma, isto é, a alfabetização é tratada em termos técnicos
como uma variável independente que pode ser separada do contexto em que
tem lugar, e também no sentido de que traz resultados sociais e consequências
cognitivas que podem ser derivadas do seu carácter distintivo e intrínseco.
O modelo ideológico de Street, por outro lado, vê a alfabetização como

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Novas práticas de trabalho, novas práticas de leitura e escrita e novas identidades – p. 41-58
ideológica e culturalmente implantada em práticas sociais. Como uma
prática social, a alfabetização varia de acordo com o contexto social e não é
a mesma coisa uniforme em cada caso. As práticas de alfabetização só têm
sentido quando vistas no contexto social em que ocorrem. O conceito de
“práticas de alfabetização” (literacy practices), de acordo com Street (1984,
1995), focaliza a particularidade das práticas culturais a que o uso da leitura
e/ou escrita estão associadas em contextos reais.
A influência de Street (1984) é visível em estudos que foram sendo
levados a cabo desde princípios da década de 90, em que a alfabetização é
tratada não como uma série de habilidades técnicas aprendidas no ensino
formal, mas, principalmente, como uma série de práticas sociais firmadas
em contextos específicos.
Assim, o trabalho de Street (1984), em antropologia, Gee (1990), em
sociolingüística, Hull et al (1996); Farrell (1999); Prinsloo & Breier (1996) e
Prinsloo & Scholtz (2000), na área educacional, influenciaram positivamente
este estudo no desenvolvimento de um quadro conceptual e de uma linguagem
teórica apropriada à interpretação dos dados.

Questão de pesquisa
O propósito da investigação era (1) identificar as práticas de leitura e
escrita associadas ao trabalho dos operários4 da fábrica de refrigerantes nas
duas linhas de produção, e (2) examinar tais práticas por forma a determinar
como é que os operários respondem às exigências do trabalho no que diz res-
peito às práticas textuais5 assim como às práticas sociais e identidades laborais.
Assim, a questão de pesquisa deste estudo é: Como é que as práticas de
leitura e escrita, as práticas sociais e identidades dos operários respondem às
exigências do “novo local de trabalho”, neste caso particular?

Metodologia
Este é um estudo qualitativo e é predominantemente levado a cabo numa
abordagem etnográfica, cujo objectivo é construir uma etnografia, que pode
ser descrita como dados da antropologia cultural derivados da observação
directa do comportamento numa sociedade específica. A realização, relato
e avaliação dessas observações são tarefas do investigador (Babbie & Mouton,

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43
Novas práticas de trabalho, novas práticas de leitura e escrita e novas identidades – p. 41-58
2001), o qual, mais do que estudar pessoas, aprende delas, uma vez que o
trabalho de campo de uma pesquisa etnográfica implica um estudo discipli-
nado do que o mundo parece/é para as pessoas envolvidas nessa pesquisa, as
quais aprenderam a ver, ouvir, falar, pensar e agir de forma diferente da do
pesquisador (Spradley, citado por Babbie & Mounton, Ibid.).

Recolha de dados
Esta etnografia recorre a uma abordagem triangular, isto é, a múltiplos
processos de recolha de dados, visando revelar diferentes aspectos de uma
realidade empírica (Denzin, 1978: 28). Os dados provêm de uma combinação
de abordagens metodológicas – observação directa, entrevistas não estruturadas
assim como estruturadas (gravadas em áudio e posteriormente transcritas) e
análise de documentos disponíveis no Departamento de Recursos Humanos
da companhia estudada. As observações e as entrevistas foram registadas,
respectivamente, em notas de campo e transcrições.
As entrevistas não estruturadas foram usadas numa primeira fase do
projecto e providenciaram uma visão geral do local de trabalho estudado.
Aplicou-se depois o outro tipo de entrevista por forma a construir uma visão
mais detalhada do fenómeno trabalho, práticas textuais e identidades na Moz
Soft Drinks.
As entrevistas gravadas em áudio, depois da sua transcrição, foram
mostradas aos entrevistados para aferição da sua fidelidade.

População e amostra
Era intenção observar e envolver na pesquisa todos os operários quando
engajados no processo de produção. Contudo, devido a constrangimentos de
tempo só foi possível entrevistar 1/3 dos cerca de oitenta operários (aproxi-
madamente sessenta inspectores de garrafas; os restantes são operadores de
máquinas e condutores de empilhadeiras) do sector de produção. Pensa-se que
este número é representativo para os propósitos deste estudo: foram entre-
vistados quatro operadores de máquinas das linhas A e B, dois condutores de
empilhadeiras, um de cada linha, e dezoito inspectores de garrafas, seis da
linha A e doze da B. A selecção dos entrevistados baseou-se em dois critérios.
Primeiro, o entrevistado tinha que ser um trabalhador interessado em partilhar,

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com o pesquisador, o seu conhecimento e vivência relativamente ao trabalho
na fábrica. Segundo, era preciso colher informação dos operários de todos os
sectores de cada linha, para se poder fazer a cobertura integral das linhas.
Todos os trabalhadores foram informados do propósito da investigação
pelos chefes de equipa. Nenhum foi forçado a participar na investigação como
entrevistado e nenhum é identificado pelo seu verdadeiro nome.

Análise de dados
A análise de dados consistiu de interpretações de notas recolhidas
durante as observações, transcrições de entrevistas e documentos da compa-
nhia por forma a identificar e determinar convergências e divergências, o que
poderá enriquecer a validade e fiabilidade do estudo (Babbie & Mounton,
2001). A informação colhida através de diferentes métodos foi manuseada
‘triangularmente’: foi recorrentemente confrontada e interpretada. A análise
de dados foi contínua durante o período de recolha dos mesmos. Neste perío-
do, desenvolveu-se, discutiu-se e testou-se hipóteses sobre o que ia sendo
encontrado no terreno. Esta opção permitiu não só a construção de uma melhor
compreensão dos fenómenos à volta das práticas textuais e trabalho na
fábrica seleccionada para a investigação, como também maior confiança na
análise formal dos dados depois do processo da sua recolha.

Apresentação de resultados
De acordo com a natureza do estudo, que se centra em seres humanos
protagonistas de práticas de trabalho e práticas textuais, e com conhecimentos,
crenças e desejos específicos, os resultados são predominantemente apre-
sentados em formas de narrativas. Efectivamente os trabalhadores contam
histórias sobre eles mesmos como actores sociais que interagem numa comu-
nidade de prática – o local de trabalho. Apenas se enriquece tais narrativas
com comentários, de acordo com a literatura revista e perspectivas teóricas
desenvolvidas no estudo.

Organização do trabalho na fábrica


Comparando-se as observações feitas durante o processo de produção
com a informação obtida através de entrevistas aos trabalhadores, não há

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sombra de dúvidas que a companhia implementa o trabalho em equipa. Todos
os entrevistados afirmam trabalharem em equipa. Alguns não só reconhecem o
trabalho em equipa como também o descrevem. Pedro é um desses.
Tem cerca de trinta anos, é casado e pai de cinco filhos. Ingressou na
fábrica como trabalhador contratado há cerca de nove anos. Dois anos
depois, já operava a empacotadora na linha B. Completou o primeiro ano dos
três do nível básico de contabilidade, nível correspondente ao oitavo ano de
escolaridade. É sua ânsia terminar o curso de contabilidade, já que acredita
que isso lhe permitiria um melhor emprego. Quando questionado sobre a
organização do trabalho, disse:
O trabalho aqui é por equipas... todos nós constituímos uma grande equipa
mas há pequenas equipas de dois, três ou cinco, depende dos casos... só para
lhe dar uma ideia do que estou a dizer... os trabalhadores que estão nas
caixas vazias se vêem uma garrafa caída na transportadora não vão ficar à
espera que os trabalhadores que estão a vigiar as garrafas venham pôr as
garrafas em pé... mesmo o director industrial quando vem aqui e encontra
uma garrafa caída na transportadora ele põe a garrafa em pé... o espírito de
equipa é importante não só para termos o trabalho feito mas também para
conseguirmos o incentivo6.

Outra característica importante do local de trabalho investigado é o facto


de os trabalhadores não se encontrarem afectos a uma única actividade
durante o período de trabalho. Os operadores permanentes de máquinas, os
quais se mantêm na mesma máquina durante todo o turno, são uma excepção,
embora tenham ajuda de seus colegas, por exemplo, quando têm que ir ao
refeitório ou aos lavabos. Os outros membros de equipa movem-se de uma
actividade para a outra, o que está em harmonia com o que a nova ordem de
trabalho ou novo capitalismo exige: trabalhadores flexíveis e com várias
habilidades (O’Connor, 1993).
A flexibilidade ou mobilidade dos trabalhadores está relacionada com a
sua disposição para aprender, muitas das vezes durante o trabalho, cumprindo
as suas tarefas. Salvador é um caso elucidativo disso: na altura em que foi
entrevistado substituía o operador permanente da paletizadora e despaletizado-
ra. Apresentou-se como “aprendiz” e um “faz-tudo, mas no bom sentido”.
Ele tem vinte e poucos anos e entrou na companhia em 2002 como inspector

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de garrafas. Tem a 11a classe e está preocupado em terminar a 12a como
aluno externo, para concorrer à universidade e seguir Economia. Pensa que
pessoas instruídas, como o seu primo com diploma em Economia, têm sucesso
na vida. Salvador trabalha para poder custear os seus estudos.
Durante o tempo de permanência na fábrica não se testemunhou nenhum
curso de formação profissional7. Contudo ficou-se a saber que semestralmente
os inspectores de garrafas têm programas de formação, o que confirma um
dos valores da companhia: Desenvolvimento dos Recursos Humanos –
Maximizar o potencial dos Recursos Humanos através de formação e desen-
volvimento profissional. Isto foi igualmente confirmado pelos trabalhadores
entrevistados, os quais afirmaram terem participado em programas de for-
mação profissional. Assim sendo, o interesse do investigador incidiu sobre a
aprendizagem informal durante o trabalho, processo em que os novatos de
um dado sector de produção aprendem trabalhando, ajudados pelos colegas
mais antigos. É o caso de Salvador, que é do sector de Inspecção de Garrafas,
mas se encontrava engajado na aprendizagem do manuseamento da paletiza-
dora e despaletizadora8, quando foi entrevistado. Salvador surge como um
membro de uma “comunidade de prática” envolvido em aprendizagem (Lave
& Wenger, 1991) por “imersão” (Gee et al., 1996); luta por se tornar um
membro eficiente da comunidade. Quando manuseava aquelas máquinas, como
substituto do operador permanente, enfrentou algumas dificuldades, já que não
se tinha ainda amestrado na solução de problemas neste novo trabalho, e con-
tou com a ajuda de colegas mais experientes para garantir o fluxo da produção.
Por isso disse:
...quando tenho uma oportunidade, venho aqui [estação de paletas] por 10
ou 15 minutos e aprendo a lidar com estas máquinas... mesmo que isso
implique perder o matabicho9...

Abordagem vertical de problemas


Os textos sobre produção pós-fordista descrevem os novos locais de traba-
lho como “encantadores”, onde a hierarquia desapareceu e os trabalhadores,
agora, “associados”, embora quase sempre sob pressão, se envolvem em
trabalho rápido a que dão sentido. Os associados interagem num ambiente
colaborativo, de compromisso e confiança mútua (Gee et al., 1996: 25).

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Contudo, a realidade no terreno é bem diferente. Abaixo, apresenta-se um caso
que contrasta com o “encanto” referido nos textos acima referidos.
Em termos de hierarquia, o Director Industrial está no topo do organigra-
ma da fábrica, acima do Director de Produção, do Director de Controle e
Qualidade, do Director do Armazém e do Director de Manutenção. Relativa-
mente ao Director de Produção, é ele que transmite orientações aos chefes de
equipa, os quais em seu turno as transmitem aos membros de equipa.
O Director de Produção é, na literatura de circulação interna, o “trei-
nador” das três grandes equipas existentes no sector de produção. E o
Director Industrial, o “treinador-chefe”. Estrategicamente, como treinador,
o Director de Produção detém mais poder sobre os chefes de equipa e
seus membros. Ele passa a maior parte do tempo no gabinete a fazer trabalho
burocrático, enquanto que os chefes de equipa mantêm um contacto constante
com os seus membros, tendo por isso a real percepção do que acontece
durante o processo de produção.
Testemunhou-se, num dia em que se decidira acompanhar os passos
do chefe de equipa da linha B durante todo o turno, o exercício de poder
pelo Director de Produção. O investigador e o chefe de equipa encon-
travam-se junto à transportadora de garrafas vazias para a máquina de
lavagem quando apareceu o Director de Produção a reclamar que não
havia garrafas em número suficiente na transportadora, e disse:
Diz aos homens que hoje independentemente de tudo têm que produzir 24000
caixas... diz-lhes só isso... estão preguiçosos... se não conseguirem hão-de
vir trabalhar no Domingo... diz-lhes que há gente que quer trabalhar lá fora...
vamos substituí-los um por um... diz-lhes só isso...

O chefe de equipa ainda tentou explicar que havia problemas com a


despaletizadora, mas o director não quis aceitar a justificação e replicou:
Diz-lhes que há pessoas interessadas em trabalhar lá fora da fábrica...
vamos substituí-los um por um... diz-lhe só isso...

Surpreendentemente a companhia usa impressos para documentar


qualquer tipo de problema mecânico. Se o Director de Produção quisesse
confirmar a informação fornecida pelo chefe de equipa, podia ter recorri-
do a tais impressos e podia ter encontrado o registo da avaria da máquina

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despaletizadora. Em vez disso, desdobrou-se em discursos ameaçadores,
o qual, felizmente, não se deixou intimidar.

Muda-se a forma de trabalhar, mudam as práticas textuais – o caso


das estações de paletas
Catells, citado por Gee et al. (1996: 36), argumenta que a produtividade
no novo capitalismo depende cada vez mais da aplicação da ciência e tecno-
logia no processo de produção, distribuição e transformação. O local de
trabalho que constitui o foco deste estudo está a introduzir nova tecnologia
no processo de produção: a estação de paletas da linha B está equipada de
robots (despaletizadora e paletizadora) e um contador electrónico. Os robots
levantam caixas, quer com garrafas vazias quer com garrafas já com refrige-
rante. O contador electrónico exibe a produção em curso. Já a linha A não
tem este equipamento: os operários desfazem a paleta de caixas com garrafas
vazias, levadas até eles pela empilhadeira; levantam-nas e colocam-nas
sobre a transportadora, assim como retiram, da transportadora, garrafas já
com refrigerante, sobrepõem-nas umas às outras até completar uma paleta.
Todo este trabalho é feito manualmente.
A forma como o trabalho é realizado nas estações de paletas molda e
determina as práticas textuais protagonizadas pelos operários. Os operários
da estação de paletas da linha A, em número de seis, fazendo o trabalho
manualmente, não têm acesso a textos escritos. Alguém – o condutor da
empilhadeira, que faz o registo em papel do progresso da produção cada
vez que vai baldear uma paleta no armazém – funciona como intermediário,
entre eles e os textos. Só depois é que os operários dão significado a tais
textos, conjuntamente e socialmente, isto é, trocando impressões sobre as
quantidades em falta ou a mais em relação àquilo que é a meta de uma hora
de trabalho, e tomando decisões sobre o ritmo a imprimir no trabalho.
Por outro lado, a tecnologia usada na estação de paletas da linha B
permite que o operador dos robots tenha acesso a textos escritos, os quais lhe
dão indicações para a realização efectiva do trabalho. O operário usa tais
indicações para, juntamente com o conhecimento que já tem reunido sobre o
trabalho que exerce, fazer frente a problemas relacionados com o próprio
processo de produção, como por exemplo, quando o ecrã da máquina despa-
letizadora exibe Falha – embalagens – saída (mesa), ou mesmo evitá-los,

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como, quando o ecrã da máquina paletizadora exibe tempo de espera –
conversor de frequência. A primeira mensagem exige que o operador se
desloque até à porta de saída das embalagens da despaletizadora para de-
sobstrução da saída e tornar fluída a chegada de embalagens à desempa-
cotadora10. Em relação à segunda mensagem, o operador já sabe que deve
esperar o tempo suficiente para que a máquina volte a funcionar e se reto-
me o fluxo da produção. Frequentemente, o operador engaja em activida-
des de leitura situadas ao nível de Solução de Problemas, ao passo que os
trabalhadores da outra linha frequentemente protagonizam actividades de
leitura que envolvem a sua participação no discurso sobre o texto, aconte-
cendo o mesmo com os operários da linha B, uma vez que os que lêem o
contador electrónico – quase sempre a mesma minoria – se referem a
números mostrados por aquele dispositivo quando têm que informar os
seus colegas sobre a produção em curso. As práticas de leitura que ocor-
rem junto ao contador electrónico de certa forma conferem poder ou eman-
cipação aos operários, pois ninguém os impede de consultar o contador;
adicionalmente, tais práticas fomentam autodisciplina, auto-regulação e
monitoria do desempenho entre os operários em toda a extensão da li-
nha, trabalhando com entusiasmo e tenacidade, por exemplo, quando
pelas suas contas têm percepção que falta pouca quantidade de paletas
ou garrafas para alcançarem a meta de uma hora de trabalho e poderem
ganhar o bónus em caso de ultrapassarem tal meta.
Nhantumbo é operador da despaletizadora e paletizadora a quem se per-
guntou se precisava ler durante a execução do seu trabalho. A sua resposta foi:
Eu leio muito... disse-lhe que as máquinas me deixam saber sobre o que
se passa através destes ecrãs... posso informar-me sobre a produção de
ontem... sobre a actual produção... quantas caixas produzimos... qual é
o correspondente em garrafas etc... desde que eu comande a máquina
correctamente... como pode ver... há uma série de botões nos painéis...
estas máquinas são autênticos computadores... tenho que dialogar com
elas muitas vezes...

Observando as práticas textuais que têm lugar nas duas estações de


paletas, pode-se afirmar categoricamente que a introdução de tecnologia exige
dos operários novas práticas de leitura.

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Práticas textuais e identidades
As equipas de trabalho das linhas A e B, antes do início da produção,
têm reuniões diárias, em pé, junto aos respectivos quadros de parede, no
respectivo sector de produção. Em nenhuma ocasião se assistiu ao uso de tais
quadros pelas equipas durante os encontros. Contrariamente a algumas
reuniões descritas por Hull et al. (1996), em que as posições de chefe de
equipa e de secretário da reunião são rotativas (p. 164), na Moz Soft drinks,
há um acordo tácito no sentido em que os chefes de equipa são não só os que
lideram os encontros como também os que actuam como secretários, tomando
notas de tudo quanto se diz.
Pode-se inferir, a partir das observações feitas na fábrica, que as reu-
niões têm uma fórmula, embora a sequência não seja rigorosamente seguida.
Algumas vezes aconteceu, por exemplo, que os operários não fossem infor-
mados sobre a produção do dia anterior. Mas, na maioria das vezes, os chefes
de equipa (i) saudaram os membros da equipa e controlaram as presenças;
(ii) informaram a equipa sobre a produção do dia anterior; (iii) apresentaram
problemas surgidos no dia anterior; (iv) perguntaram por sugestões; (v)
informaram a equipa sobre as decisões dos gestores em relação ao sabor do
refrigerante a produzir, entre outras.
As reuniões são conduzidas para manter os operários informados não
só sobre o desempenho dos turnos como também sobre dificuldades que
possam ter surgido no processo de produção do dia anterior. As reuniões
deviam também constituir um espaço para discussão e identificação de
problemas pelas equipas. Contudo, raramente os membros das equipas se
envolveram na procura de soluções para os seus problemas. Para uma
melhor elucidação, duas reuniões tiveram lugar numa altura em as máquinas
tinham problemas mecânicos sérios, mas quando os operários eram instigados
a apresentar sugestões, apresentavam problemas do foro administrativo, o que
sugere a falta de um fórum próprio para o atendimento de problemas dos
trabalhadores. Alguém poderá erradamente catalogar estes operários de indife-
rentes ou alheios aos problemas do seu local de trabalho, como nunca apresen-
taram sugestões ou soluções para os problemas da maquinaria. Na verdade,
eles simplesmente se confinam à organização laboral existente na fábrica:
por exemplo, nenhum operador de máquinas, mesmo que seja mecânico ou
electricista, pode tentar resolver problemas técnicos. Em caso de avarias,

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solicita-se a intervenção de engenheiros do sector de manutenção. Por outras
palavras, os operários do sector de produção têm apenas que lidar com as
máquinas no respeitante ao seu manuseamento, mas nunca lhes é permitido
resolver ou envolver-se em problemas técnicos, ou fazer sugestões para a
reorganização das rotinas de trabalho.
Relativamente às práticas textuais nas reuniões das equipas, o chefe de
equipa é quem se espera que leia e escreva textos: lê, para os seus colegas,
notas sobre a produção e problemas do dia anterior, e notas por ele tomadas na
reunião com os seus chefes superiores – Director de Produção e Director
Industrial. Escreve quando faz o controle de presenças dos membros da sua
equipa, e quando regista as contribuições ou reclamações durante a reunião.
Claramente, engaja numa gama de actividades de leitura e escrita situadas a
vários níveis, umas mais complexas que outras.
Os restantes membros da equipa nunca escrevem nem lêem nas reuni-
ões, simplesmente se limitam a ouvir e/ou falar. Durante o trabalho, para a
maioria dos operários, constituída por inspectores de garrafas, a prática
textual resume-se na assinatura do nome e registo da hora em que tomam o
seu lugar para inspecção de garrafas. O operador da despaletizadora e
paletizadora é uma excepção: frequentemente, lê os textos exibidos pelos
ecrãs destas máquinas, e escreve somente quando tem que reportar qualquer
avaria da(s) máquina(s).
Augusto, o chefe de equipa da linha B, deixou claro que funciona
como um veículo de transmissão entre a direcção e os membros da equipa.
Estrategicamente, não subscreve as decisões da direcção, mas ao mesmo tempo
não assume que simpatiza com a postura dos membros da sua equipa. Surge
com uma dupla personalidade, ecos daquilo a que Scholtz (2002) se refere
quando observa que as pessoas envolvidas nos novos processos de trabalho
experimentam também um processo de mudanças pessoais, chegando algumas
a manifestar “problemas de identidade” (p. 44). Isso é consequência da coexis-
tência da hierarquia taylorista e equipas de trabalho, as quais não têm ainda
espaço nos fóruns de tomada de decisões.
Todos os dias em que o seu turno tem de trabalhar, Augusto dirige a
reunião e lida com textos: transfere os nomes dos operários ausentes, do seu
bloco de notas para o impresso formal da fábrica, para manter informado o

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Director de produção sobre a assiduidade da equipa; quando há necessidade
de contratar trabalhadores eventuais, depois de pedir de pedir autorização ao
Director de Produção por telefone, preenche uma série de documentos – um
memorando em duplicado para o chefe de segurança à entrada da fábrica, o
qual confirma a entrada autorizada de trabalhadores eventuais; outro memo-
rando para o refeitório, a informar da necessidade de mais pratos; e outro
ainda para os recursos humanos, para fins de pagamento. Durante o processo
de produção, Augusto acompanha o desempenho da sua equipa em toda a
extensão da linha e documenta qualquer anomalia.
Aconteceu um dia que um trabalhador que tinha por missão retirar
cápsulas das garrafas vazias e garrafas quebradas das caixas largadas
pela despaletizadora tivesse que ir aos lavabos sem que fosse substituído.
Augusto ficou no lugar desse trabalhador e a propósito disso disse:
Este trabalhador não sabe o quanto está a prejudicar o sector de produção...
saiu sem que fosse substituído... passam garrafas partidas... essas garrafas vão
ser contabilizadas como se fizessem parte das quebradas no nosso sector
quando já vêm quebradas do armazém... assim vamos usar o dinheiro do
sector da produção para repor as garrafas em vez de comprarmos luvas,
máscaras, auriculares... uma caixa completa é um pouco mais de 2 dólares...
se ao fim do dia passarem só dez caixas é muito o dinheiro que vai ser reti-
rado do nosso orçamento... acima de 250 dólares...

Quando o trabalhador voltou ao seu posto, Augusto repetiu o mesmo dis-


curso, visivelmente agastado.
Pode-se depreender do discurso de Augusto que, provavelmente influen-
ciado pela sua posição na empresa, está preocupado com possíveis prejuízos
no seu sector. Não quer sofrer consequências da ineficácia de outros sectores,
neste caso particular do armazém. Os seus cálculos e o seu estado de espírito
revelam uma forte identidade laboral. Ele imaginou-se homem de negócios e
agiu como se fosse o proprietário da fábrica. Contudo, simplesmente, deu
sentido a uma das declarações visionárias da companhia que diz “nós seremos
o melhor engarrafador no mundo – o melhor em crescimento de volume; e no
retorno do capital aplicado”.
Augusto confessou, alguns dias depois de se ter instalado uma crise sem
precedentes entre as equipas de trabalho e os gestores da empresa, que os

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operários do sector de produção estavam certos nas suas reivindicações, mas
que infelizmente não podia juntar-se a eles para evitar que fosse considerado
agitador. A crise foi na sequência de mais uma decisão dos gestores que ele
tinha que transmitir aos membros da sua equipa: as máquinas já não seriam
mais desligadas à hora do pequeno-almoço; uma parte dos trabalhadores iria,
no espaço de meia hora, tomar o pequeno-almoço, enquanto outra garantiria
a continuidade do processo de produção e vice-versa. Segundo os gestores,
esta medida permitiria o alcance das metas estabelecidas.
Os trabalhadores do sector de produção responderam a esta nova medida
com uma greve de fome durante alguns dias; contudo, não deixaram de
trabalhar à hora do pequeno-almoço, provavelmente para mostrar aos seus
chefes que o problema não eram eles, mas as máquinas que precisavam de
substituição. Embora não tenham logrado impedir a aplicação da nova medida,
manifestaram o seu desejo de se verem incluídos no processo de tomada de
decisões, como o disse um operário:
As coisas mudam de dia para a noite... nos últimos dias as decisões da
direcção até parecem cogumelos... e nós não somos consultados... mas nós
é que fazemos o trabalho...

Conclusões
A pesquisa visava determinar até que ponto as práticas de trabalho, as
respectivas práticas de leitura e escrita, e as identidades, no seio dos operários
do sector de produção da fábrica estudada, correspondiam às exigências do
novo local de trabalho.
Foi documentado que o trabalho é levado a cabo em equipas. Colabo-
ração, flexibilidade, auto-fiscalização, auto-regulação são características
da nova cultura de trabalho já visíveis no seio dos operários da Moz Soft
Drinks. Embora a companhia denote mudanças, no geral mantém aspec-
tos tradicionais no que se refere a funções e relações entre a direcção e os
operários. Tais aspectos moldam e impõem as práticas de trabalho e, con-
sequentemente, as práticas de leitura e escrita: a direcção decide e quer
que os trabalhadores obedeçam.
Neste contexto, o trabalho está organizado de tal forma que a maioria dos
operários do sector de produção – inspectores de garrafas, operadores de

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máquinas e condutores de empilhadeiras – não têm oportunidades para
exercerem actividades de leitura e escrita relacionadas com o exercício de
poder e autoridade, o que estaria em harmonia com o trabalho baseado em
equipas, em vigor na fábrica. O uso da leitura e escrita para exercer, reconhecer
ou resistir à autoridade, ou para exprimir opiniões críticas, ou ainda para resol-
ver problemas é uma actividade frequentemente praticada pelos membros da
direcção. Isso se se considerar a quantidade de textos sobre procedimentos
durante o trabalho e decisões impostas aos operários. Parece, pois, que a
companhia subscreve a ideia que os trabalhadores têm que ler para poderem
executar as suas tarefas. Os chefes de equipa tomam parte em actividades de
leitura e escrita relacionadas com poder e autoridade em menor escala.
Os operadores da despaletizadora e paletizadora constituem excepção, já que
frequentemente participam na solução de problemas, enquanto realizam o
seu trabalho, interagindo com textos que lhes são postos à disposição pela
tecnologia. Já os seus colegas na outra estação de paletas dependem dos
textos do condutor da empilhadeira para participarem em práticas textuais,
situadas ao nível de tomar parte no discurso sobre o texto.
Ficou também documentado que a introdução da tecnologia exige novas
práticas textuais que, em certa medida, emancipam os operários, pois praticam
auto-fiscalização e monitoria do seu desempenho junto ao contador electrónico.
Todos estes aspectos consubstanciam as conclusões de Hull et al.
(1996). Segundo estes autores, participar em actividades de leitura e es-
crita não é mais uma questão de habilidade; é sim uma questão de direitos
e oportunidades, visto que os padrões de uso da leitura e escrita estão
geralmente conectados às estruturas de poder: as habilidades mudam quando
a autoridade muda.
Muitos dos operários entrevistados desejam ardentemente aceder a um
grau académico superior por forma a conseguirem melhor emprego. Rela-
cionam a educação ao bem-estar, já que acreditam que pessoas instruídas
estão em condições de ter uma vida melhor, algo similar às convicções
segundo as quais a alfabetização é algo autónomo que conduz rotineira-
mente a resultados sociais positivos.
Providenciou-se evidências que os operários estão em processo de for-
mação de identidades laborais. Tais identidades estão em constante mudança.

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Por exemplo, o chefe de equipa nas reuniões revela uma identidade “neutra”;
de acordo com ele, é apenas um veículo transmissor entre a direcção e os
operários. Contudo, durante o processo de produção, mostra uma identi-
dade diferente, mais associada aos valores e objectivos da companhia.
Também, o facto de os membros da sua equipa terem protestado contra as
decisões da direcção é um forte sinal de mudança para as novas formas de
ser no trabalho, em que os trabalhadores, como “associados”, são chamados
a pensar e a agir criticamente (Gee et al., 1996).
Finalmente, o estudo demonstra que até certo ponto os ventos da globa-
lização, no que se refere ao novo local de trabalho, já se fazem sentir também
em Moçambique. No caso particular deste estudo, o local de trabalho é
híbrido, ambivalente em termos de organização do trabalho, e encontra-se
em transição do modelo de trabalho do velho capitalismo para a nova cultura
de trabalho. Por exemplo, os operários do sector de produção protagonizam
novas práticas de trabalho, novas práticas textuais e assumem novas identida-
des, mas as práticas hierárquicas da direcção limitam a extensão em que as
práticas do “novo local de trabalho” e as novas práticas de leitura e escrita
são permitidas desenvolver.

Notas
1 Departamento de Educação de Adultos – Universidade Eduardo Mondlane.
E-mail: domingos.buque@uem.mz
2 “Moz Soft Drinks” é um pseudónimo usado para fazer referência à fábrica ao
longo deste documento.
3 Este termo é aqui usado como correspondente a “literacy”, cujo sentido, no âmbito
dos novos estudos de alfabetização (New Literacy Studies), é mais vasto,
significando aquisição, prática e desenvolvimento significativos da linguagem
escrita, como factor chave para a satisfação das necessidades de aprendizagem
em circunstâncias específicas (ver, por exemplo, Torres, 2003).
4 A investigação incidiu particularmente sobre os operários do sector de
produção (inspectores de garrafas vazias e cheias, operadores de máquinas
– paletizadora e despaletizadora, empacotadora e desempacotadora,
enchedora, capsuladora).
5 “práticas textuais” no sentido de uso e produção de textos escritos associados ao
trabalho na fábrica.

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6 Referência ao bónus em dinheiro que recebem cada vez que ultrapassam a
meta estabelecida para uma hora de trabalho.
7 Foi oferecido um curso de Inglês, mas a maioria dos operários não participou
devido a constrangimentos de tempo, uma vez que o trabalho era em turnos,
trabalhando de dia em alguns dias e à noite noutros.
8 Na linguagem da fábrica, paletizadora é a máquina que organiza caixas ou
embalagens em paletas e despaletizadora a que desfaz as paletas.
9 Pequeno almoço.
10 Designação para a máquina que retira as garrafas das respectivas embalagens.

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Novas práticas de trabalho, novas práticas de leitura e escrita e novas identidades – p. 41-58
A perspectiva sócio-histórica na
alfabetização de jovens e adultos

Silviane Barbato1

Introdução
ste texto tem por objetivo discutir os conceitos e as possíveis aplicações do
E enfoque sócio-histórico, fundado por na primeira metade do século XX,
como princípios sobre os quais podemos basear a organização do processo de
ensino-aprendizado nas salas de alfabetização de jovens e adultos. Apesar de
Vygotsky não ter tratado do desenvolvimento adulto nem dos problemas relacio-
nados à educação de jovens e adultos, pensamos que muitas das construções
teóricas que elaborou podem nos ajudar a discutir as práticas de ensinar-aprender
em salas de alfabetização e as práticas de formação de alfabetizadores que
associamos hoje em dia a concepções de letramento e ao ensino a partir de textos.
Vygotsky e seus colegas queriam construir uma psicologia do desenvol-
vimento diferente, uma psicologia em que fossem reconhecidas as relações
entre a história da nossa espécie, a história da cultura na humanidade e a
história de cada um de nós ao longo de nossas vidas, relacionando desenvol-
vimento com cultura e, portanto, com processos sociais, interacionais, e com
o ensinar-aprender. Assim, foi fundado um paradigma da psicologia do
desenvolvimento que se interessa pela formação de significados e por pro-
cessos de mudança. Nos desenvolvemos transformando nossos significados
nas culturas em que nascemos e das quais participaremos.
Seguindo nosso objetivo inicial, se pensarmos a educação e as possibilida-
des de aprendizado em sala de aula, podemos perguntar: Como se constrói um
ensino-aprendizado significativo? Como provocamos mudanças?

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A perspectiva sócio-histórica na alfabetização de jovens e adultos – p. 59-72
Para responder a essas questões vamos tratar das várias formas em que o
significado é construído, das atividades e dos instrumentos mediacionais que
possibilitam essa construção, da dinâmica de avaliação e construção do conhe-
cimento conjunto da zona de desenvolvimento proximal.

2. Como se constrói o ensino-aprendizado significativo?


O conhecimento é construído nas interações, com os outros. Como sabe-
mos que as trocas entre as pessoas que participam de certa interação são
desiguais porque, dependendo do assunto, uns sabem mais do que os outros,
buscamos escutar nossos alunos e utilizar seus conhecimentos para a cons-
trução da oralidade, leitura e escrita. Assim, ao reconhecermos seus saberes
quando utilizamos o conhecimento que trazem de seu cotidiano e os raciocí-
nios que desenvolvem ao resolverem uma atividade, estamos contribuindo para
a formação de significados, avaliando o que sabem e como se pode progredir.
A significação é construída por meio da história dos significados exis-
tentes (conhecimentos prévios) que dá origem e permeia as trocas comuni-
cativas e a construção de novos significados. Produzimos um ensino-apren-
dizado significativo ao considerarmos o conhecimento prévio e as práticas
de cultura das comunidades, onde estamos interagindo, juntamente com o
novo conhecimento que desenvolvemos com os alunos por meio de textos e
outros materiais.
As formas de significar das comunidades onde ensinamos são considera-
das a partir dos conteúdos do que é conversado e escrito no cotidiano, como as
situações-problema: a história do local, os direitos à educação, à saúde etc, mas
também às formas diferentes de interação no cotidiano: na escola, nas festas,
na religião, nas famílias, no trabalho. Metodologicamente, quando trazemos
para a sala de aula a conversa sobre as situações-problema locais, as festas, as
práticas de cultura, assim como quando prestamos atenção nas formas em que
a escrita é utilizada na comunidade e as utilizamos em sala de aula, estamos
colaborando para a construção saudável da situação de ensino-aprendizado.
Mas as práticas de leitura e escrita de uma comunidade, não estão
somente nas ruas ou nas livrarias e bancas de jornal. Muitas comunidades
não têm bancas de jornal, ou muros pichados ou com propagandas, mas têm
as listas de telefone, os cadernos de endereços, as carteiras de motoristas, as

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A perspectiva sócio-histórica na alfabetização de jovens e adultos – p. 59-72
listas de compras na venda, as anotações, os recados, mesmo que escritos nas
portas dos barracos, a leitura de textos religiosos, os diários. Nesses casos,
quais são as formas em que a escrita é utilizada? Quais são os textos interes-
santes a serem aprendidos por essas pessoas? Quais as palavras que utilizam no
seu cotidiano e que, sendo escritas, poderão ajudá-las a se divertir como, por
exemplo, em atividades de leitura para a fruição de textos poéticos, letras de
músicas, contos populares, cordel, reportagens e outras breves narrativas? Quais
os textos que as ajudariam a organizarem seu cotidiano, como manter as atas
da reunião da associação, documentos, formulários, registros de compras e
vendas de materiais, bilhetes para os amigos, cartas para os parentes?
A significação também é construída pela qualidade da relação professor-
aluno. Se considerarmos o contexto escolar do adulto, muitas vezes vemos
professores que acham que suas formas de pensar e agir são as mais interes-
santes e corretas e se esquecem que o ensino-aprendizado ocorre como uma
negociação de significados com os alunos. A interação em que o professor
sempre e somente parte de seu próprio conhecimento constrói significações
que podem levar à desistência do aluno, pois introduzem aspectos que deses-
timulam o aprendizado. As pessoas aprendem aquilo que acreditam poder
tornar seu (Bruner, 1998), se notam que há um conhecimento seu que está
sendo desvalorizado, muitas vezes, se sentem desmotivadas e acabam desis-
tindo de continuar estudando. Isto diz respeito não somente às formas de agir
e ver o mundo, mas também às próprias formas de falar. É, por exemplo, o
que ocorre hoje em dia com a luta contra o preconceito lingüístico na escola:
evita-se o preconceito e aceita-se o desafio de trabalhar os dialetos que são
utilizados em diferentes contextos sociais, por diferentes grupos e, ao reco-
nhecê-los, a escola constrói a norma padrão, acolhendo os falares locais.
Assim, considerando esses fatores já enunciados, notamos que há mo-
dificações nos processos de significação ao longo da vida e nos diversos
contextos situacionais específicos quanto às possibilidades de comunica-
ção e de construção de conceitos e da lógica de pensar. Ao nos tornarmos
jovens e adultos, os motivos relacionados ao aprender se transformam,
diferenciando-se dos motivos das crianças, de acordo com nossa história
pessoal e as situações que enfrentamos, por exemplo no trabalho, nossas
necessidades e as daqueles que nos cercam, as prioridades e a relevância
do que está sendo ensinado.

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A perspectiva sócio-histórica na alfabetização de jovens e adultos – p. 59-72
Se considerarmos a perspectiva sócio-histórica, o processo de ensino-
aprendizado sempre se dá na alternância do poder enquanto saber que ocorre
num espaço de negociação. O alfabetizador estuda para conhecer os conteú-
dos e procedimentos para ensinar a ler e escrever e torna-se sensível a
como os alunos podem contribuir para esse aprendizado. A negociação
ocorre neste jogo entre o alfabetizador, o alfabetizando e o objeto do co-
nhecimento (o que será aprendido e como) e permeia toda a atividade de
alfabetização desde a discussão da situação-problema até o desdobramento
de português e matemática. Isto ocorre, por exemplo, quando discutimos
os temas, considerando a urgência que as pessoas têm em aprender a ler e
a escrever e os motivos que os alunos jovens e adultos apresentam ao se
inscreverem nos cursos de alfabetização. Toda essa informação pode ser
levada para sala para que seja aproveitada: todas as relações significati-
vas e os instrumentos e materiais que utilizamos para construí-las, são
denominadas de mediacionais.

3. O que é medicação?
Vygotsky trata o conceito de mediação como instrumental e semiótica.
Além disso, trata como mediadora a atuação do educador que planeja e
executa com seu aluno atividades que o ajudam a se desenvolver e a aprender.
A mediação é um conceito central na perspectiva sócio-histórica, pois é
definida pelo contexto situacional da cultura. Assim, podemos afirmar que
somos, também, o produto dos processos mediacionais de nossa cultura.
No desenvolvimento de sua teoria, Vygotsky procurou estabelecer um
elemento que possibilitasse a relação entre o que está nos ambientes de nossas
interações e nossos processos psicológicos, que fosse equivalente à unidade
de trabalho no fazer humano.
A partir da leitura das obras de Marx e Engels, estabelecera que o traba-
lho era um tipo de atividade que transformava a natureza a partir da utiliza-
ção de instrumentos: o machado era utilizado para cortar a madeira que era
usada para construir, sempre com a utilização de instrumentos apropriados, a
casa, os móveis etc. O homem então se relaciona com a natureza indireta-
mente por meio de instrumentos. A este tipo de relação Vygotsky denominou
mediação instrumental.

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O autor também procurou definir uma unidade de transformação do pensar,
na atividade psicológica, que equivalesse ao instrumento na atividade prática.
Foi então que definiu que a palavra seria essa unidade. A palavra, como
signo, que ao ser enunciada é constituída por significados do contexto histó-
rico de seu uso na comunidade e no contexto da interação em que é utilizada
para comunicar e construir significações. Vygotsky denominou de mediação
simbólica (ou semiótica) aquela que tem a palavra como elemento mediador
da transformação da consciência, enquanto reflexão e controle de si e das
atividades desenvolvidas. Ao nos comunicarmos, estamos contribuindo para
as mudanças das outras pessoas e para a nossa própria mudança.
Ao percebermos que as atividades são desenvolvidas num dado contexto
situacional, podemos notar que o conceito de mediação está relacionado ao
contexto interacional. Na situação pedagógica, por exemplo, a construção de
significados é deslocada do eu, como educador, e do tu, como aluno, alfabe-
tizando, educador em formação, passando a abarcar também os instrumentos
utilizados no processo de ensino-aprendizado e os procedimentos, inclusive
discursivos da interação.
Neste sentido, o educador passa a ouvir e observar mais a fim de trans-
formar o que está sendo produzido por todos na sala (e por cada um) na
aprendizagem da oralidade, leitura e escrita. Nesta perspectiva, o aluno é
ativo, não somente quando faz o que o educador pede, mas também quando
produz um comportamento inesperado, oposto ao que é esperado ou mesmo
quando parece não estar se importando com o que está acontecendo em sala.
Cabe ao educador, como mediador, interpretar o que está acontecendo e, ao
tentar alternativas visando a participação e o aprendizado de todos, motiva o
aluno a construir seu conhecimento. Como afirmou Vygotsky (2001: 423):
O problema não é o mestre estar inspirado, porque a sua inspiração nem
sempre atinge o aluno. O problema é antes fazer os alunos ficarem inspira-
dos pelo mesmo motivo.

Pode-se notar a importância que Vygotsky dá, também, para a relação


entre ambiente e transformação do conhecimento. Transformam-se não
somente o conhecimento dos conceitos e a utilização de instrumentos ade-
quados de mediação, mas aprende-se a reconhecer os contextos e a utilizar
os significados de acordo com o que é colocado, a partir de experiências

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anteriores de conhecimentos construídos e transformados. Assim, percebe-
mos que, nesta perspectiva, há a valorização da construção do conhecimen-
to e da comunicação de cada interlocutor participante, mas enfatiza-se a
negociação dos significados na inter-ação. Um dos princípios da perspectiva
sócio-histórica inclui, então, a construção de uma ambiente alfabetizador em
sala de aula que contenha as letras, palavras trabalhadas e textos coletivos
produzidos pelos alunos e vários materiais de leitura, para que os alunos
possam ler e reler. Além do ambiente alfabetizador, pode-se constituir,
também, um ambiente de letramento fora da sala de aula, incluindo contextos
fora da escola, como nas igrejas e murais da associação, freqüentados pelos
alunos e por outros membros da comunidade dos quais todos participam
lendo e escrevendo.
A participação na comunidade não se dá apenas pela construção da
crítica sobre o cotidiano, mas pelo domínio dos instrumentos que possibili-
tem a transformação pessoal relacionada ao objetivo da alfabetização que é
aprender a ler e a escrever, o desenvolvimento da leitura e da escrita, de
seus usos e suas funções.
Às vezes temos que tomar decisões para facilitar o acompanhamento
e a definição de parâmetros gerais para a avaliação. O processo de forma-
ção aliado à definição de objetivos nos direcionam. Mas como formar o
alfabetizador para que se torne autônomo em sua tomada de decisão em
sala? Para que possa perceber as nuances de sua turma e das pessoas que
estão ali para aprender a ler e escrever? Essas são questões que só podem
ser respondidas no contexto concreto da sala de aula de cada um, quando
nos deparamos com os problemas mais sutis e que nos escaparam à obser-
vação avaliativa. A ação diferenciada do alfabetizador está, no entanto,
na sensibilidade à necessidade de mudanças no fazer e na rapidez com
que procura desencadear respostas eficientes ou criar novos instrumentos
e procedimentos que resolvam as questões colocadas pelos alunos. Então,
pensamos que o bom mediador é aquele que é sensível aos seus alunos e
que aprende a julgar e avaliar a necessidade de resposta, e se há, qual
resposta dar e na direção de qual objetivo. Acredita-se na formação em
processo e que a autonomia do alfabetizador é adquirida com o tempo, na
sua prática como educador. Afinal, alfabetizadores e formadores também
estão em desenvolvimento.

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Um dos processos mais importantes para o desenvolvimento humano e
para o aprendizado é a imaginação que, para Vygotsky, possibilita a flexibi-
lização dos processos de constituição de significados. Com seu surgimento nosso
pensar e fazer que eram regidos pelos significantes passam a ser regidos pelos
significados. Isto é muito importante para a construção do sistema de pen-
samento teórico. Na medida em que nos desenvolvemos, a construção de
significados pode se desprender do concreto, formando os sistemas de
significação que constituem os conceitos científicos e imaginários, as lógicas
que formam os campos de conhecimento.
No trecho abaixo, Vygotsky (1998) discute o papel do brinquedo a partir
da análise do desenvolvimento das crianças. Neste contexto, a palavra brin-
quedo pode ser substituída por lúdico.
Sob o ponto de vista do desenvolvimento, a criação de uma situação imagi-
nária pode ser considerada como um meio para desenvolver o pensamento
abstrato. O desenvolvimento correspondente de regras conduz a ações, com
base nas quais torna-se possível a divisão entre trabalho e brinquedo (…).

A essência do brinquedo é a criação de uma nova relação entre o campo do


significado e o campo da percepção visual – ou seja, entre situações no pensa-
mento e situações reais. (p. 136-137).

Nas situações imaginárias, as pessoas entram em um contexto de faz de


conta, numa articulação entre narrativa e regras. Nas salas de alfabetização,
também utilizamos situações imaginárias e lúdicas. Podemos interpretar que
as situações imaginárias podem gerar aprendizado, na medida que o profes-
sor planeja utilizar um jogo para trabalhar um conhecimento ou uma série de
procedimentos ou mesmo reforçar um assunto e desenvolver o prazer de ler e
escrever. Ao brincar a pessoa ou grupo de pessoas passa a se comportar de
acordo com as regras do jogo e aprende de uma forma diferente, estabelece-se
um tipo diferente de zona de desenvolvimento proximal.

4. Como se desencadeia a zona de desenvolvimento proximal?


No plano do fazer pedagógico, é importante destacar o conceito de zona
de desenvolvimento proximal. Vygotsky chama a atenção dos educadores
para a avaliação do aprendizado. Para ele, o professor é um mediador do

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aprendizado que ao atuar com o aluno ou grupo de alunos na zona de desen-
volvimento proximal, produz algo fundamentalmente novo com ele (1998).
Ao explicar o conceito de zona desenvolvimento proximal, Vygotsky
define dois níveis de desenvolvimento. O primeiro, denominado de nível
de desenvolvimento real, determina o resultado de um ciclo de desen-
volvimento já completado, num processo de avaliação: o que o aluno sabe
fazer sozinho, o que já aprendeu. Se considerarmos a relação entre desenvol-
vimento e aprendizado na escola, o nível de desenvolvimento real determina
o que já foi internalizado. Ao analisarmos o que o aluno consegue fazer
sozinho em termos de resolução de problemas, estamos apenas verificando
um processo que já está terminado.
Porém, se avaliamos o que o aluno consegue fazer com ajuda, estamos
determinando o processo que está em andamento, a zona de desenvolvimento
proximal que é a “distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de
desenvolvimento potencial”, determinado pelo desenvolvimento de resolução
de problemas com o educador ou com um colega que conhece mais um deter-
minado assunto, um determinado procedimento ou uma seqüência de ações
estrategicamente organizadas. Assim, Vygotsky chama a atenção dos edu-
cadores para que se sensibilizem não somente para os processos já terminados,
mas também para os processos que estão em desenvolvimento. Nesta pers-
pectiva, o educador pode intervir no processo de aprendizado do seu aluno,
aprendendo a julgar onde o seu aluno se encontra no aprendizado de uma
certa atividade fazendo com ajuda.
O professor como mediador planeja suas aulas, tendo em vista os processos
já adquiridos e aqueles em desenvolvimento, provoca situações que promovam o
aprendizado por meio de atividades diferenciadas, discussões e reflexões que
conduzam o aluno na transformação de seu conhecimento.
Estar para o outro é abrir com ele novas zonas de desenvolvimento
proximal, é dialogar com ele, num movimento de escuta-e-ação em que se
tem por princípios básicos: o trabalho conjunto e a crença em sua potenciali-
dade de resposta e de transformar o conhecimento.
Na metodologia dialética, o ponto de partida não é o saber do educador,
mas sim prática social dos educandos. É essa prática que constitui o
eixo em torno do qual gira o processo educativo. Antes de se elaborarem

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conceitos, é preciso extrair dos educandos os elementos de sua prática
social: quem são, o que fazem, o que sabem, o que vivem, o que querem,
que desafios enfrentam. Aqui, o conceito aparece como ferramenta que
ajuda a aprofundar o conhecimento real, e não a fazer dele uma mera
abstração. Ter em conta o princípio da epistemologia medieval de que
“o conhecimento sempre toma a forma do conhecente”, ou seja, toda a
leitura é sempre a partir de minha realidade, do contexto em que me encontro,
e não do discurso abstrato do emissor. O aprendizado comum, que liga
teoria e práxis, só se dá a partir da realidade coletivamente refletida.
(Kotscho, 1991, p. 77).

É interessante que ao focar a ação do mediador como aquele que do-


mina mais os instrumentos culturais e as formas de resolução de proble-
mas, Vygotsky chama a nossa atenção para vários elementos que compõem
a intervenção: a qualidade da mediação que é obtida pela aproximação do
mediador com o aprendiz; o domínio dos instrumentos culturais e o co-
nhecimento dos conceitos e lógicas de organização dos significados; a
qualidade dos procedimentos que conduzem ao aprendizado mediado. Mas
talvez o mais importante é que a dinâmica de ensino pode variar entre
repetição do que já se sabe, repetição do aprendido e ampliação do co-
nhecimento. O ensino não se dá apenas pela repetição do que se sabe
oralmente em práticas diferentes de leitura e escrita, mas que além da
repetição, deve-se ampliar o aprendizado, é a idéia da espiral, parece que
estamos tratando do mesmo elemento de aprendizado, mas estamos sem-
pre adicionando novidades: ampliar o vocabulário, escrever e ler sobre
um mesmo tema em diferentes gêneros textuais como: numa carta, num
bilhete, numa reportagem, por exemplo.
A zona de desenvolvimento proximal provê psicólogos e educadores de
um instrumento através do qual se pode entender o curso interno do de-
senvolvimento. Usando esse método podemos dar conta não somente dos
ciclos e processos de maturação que já foram completados, como também
daqueles processos que estão em estado de formação, ou seja, que estão
apenas começando a amadurecer e a se desenvolver. (1998, p. 113).

Algumas das formas de intervenção na zona de desenvolvimento proximal


são comparadas, por Bruner, à construção de andaimes pelo professor para auxi-
liar a transformação do conhecimento por parte dos alunos.

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O trabalho nesta perspectiva faz mudar os princípios pedagógicos que
regem o fazer nas salas de alfabetização: a busca pela negociação e construção de
significados para a transformação do conhecimento em todas as etapas de orga-
nização, planejamento, desenvolvimento e avaliação do ensino-aprendizado.
Exemplos de dinâmicas de trabalho que podem desencadear a zona de
desenvolvimento proximal incluem a manipulação de textos e materiais
escritos com o planejamento alternado de dinâmicas de sala de aula, incluindo
atividades lúdicas: quando depois de trabalhamos um texto, discutimos a
situação-problema, escrevemos e lemos o texto coletivo, organizamos um
jogral ou o trabalho com a palavra, por meio de bingos de letras e sons, jogos
da memória com as palavras escritas e as figuras que representam etc.
Há uma ênfase na prática de leitura e da escrita, pois aprende-se a ler
e escrever, lendo e escrevendo. A prática pode se dar, por exemplo, quando se
organiza e planeja uma atividade a partir de um modelo inicial que é executa-
do com o aluno ou grupo de alunos. O educador dá o exemplo, conduz a
ação, passo-a-passo por meio de perguntas como: o que fazemos agora? e
outras similares que sempre dependem do objetivo a ser alcançado. Em
seguida, pode provocar um movimento de generalização, ou seja, a am-
pliação o conhecimento. Nas salas de alfabetização, o educador apresenta
os modelos e pratica repetidamente a generalização para procedimentos
similares quando trabalha os prováveis assuntos que serão lidos num texto
a partir de perguntas sobre a imagem que o acompanha ou, ainda, quando
já desenvolvendo atividades com as palavras retiradas do texto: trabalha a
palavra inteira, as famílias e os jogos com o conhecimento fonológico,
relacionando a prática de leitura e escrita a atividades que requeiram que
o leitor complete uma operação sobre a construção fonológica da palavra
(Orsolini, 1999):
— pela análise: “Vou escrever e te dizer os sons de uma palavra devagarzinho
e você tem que me dizer que palavra é essa.
Eu vou te escrever duas palavras que começam com /m/, se eu tirar esse /m/
que palavra/ que pedaço sobra?”
— pelo confronto: “Qual das duas palavras começa com /b/?”
— pelo julgamento de semelhança: “Eu vou te dizer algumas palavras, e você
vai me dizer quais as que iniciam com /b/.

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Eu vou te escrever algumas palavras e você vai me dizer quais se parecem.
Eu vou ler duas palavras e você vai me dizer quais palavras terminam com o
mesmo som.”
Quando trabalha na zona de desenvolvimento proximal, o professor planeja
uma série de atividades similares e vai retirando aos poucos a ajuda que oferece
aos alunos, ora instruindo o aluno ora o deixando tomar as decisões. Por exem-
plo, quando quer enfatizar a relação entre os sons e a escrita de letras e pala-
vras, procurando antecipar, inclusive as respostas dos alunos às suas propostas de
trabalho, como na seguinte seqüência de atividades já bem conhecidas:
A partir dos textos verbais e não-verbais (imagens) que utilizamos,
construímos geralmente uma discussão, para os alunos desenvolverem tam-
bém a argumentação, a narrativa, a descrição oral e dessa atividade cons-
truímos um breve texto coletivo. Do texto utilizamos as palavras mais
interessantes para os alunos.
Ao trabalharmos a palavra inteira, no próprio texto, por exemplo, pode-se
escolher uma palavra do título.
“Vou ler o título para vocês:
‘A saúde em nossa cidade.’ Vamos ler juntos?
Gente, agora vamos descobrir qual dessas palavras é a palavra saúde?
Quem já sabe?”

a) Se alguém souber, o educador faz um elogio e pede para que o aluno


circule a palavra no quadro. Depois pede para outro voluntário vir ao quadro
copiar a palavra num outro espaço para que se possa continuar trabalhando
com ela.
b) Se ninguém souber qual é a palavra saúde, o educador constrói esse
conhecimento com os alunos:
“Para descobrirmos qual é a palavra saúde no título do texto temos que
lembrar com qual som começa a palavra saúde: /s/. Qual será a letra que
representa esse som /s/? Vamos olhar palavra por palavra no título. Vamos
ler as primeiras letras de cada palavra?”

Assim, o professor apresenta o conhecimento, utilizando materiais di-


versificados, como textos de revistas, VTS, reflexão sobre fatos do cotidiano,

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materiais concretos, analogias bem elaboradas, uma narrativa etc, dando
seqüência ao trabalho com a organização de momentos de trocas de conheci-
mento em grupos menores e entre esses grupos, por exemplo, quando depois
do trabalho com o texto e a palavra, os alunos tentam construir novas palavras
utilizando revistas e jornais.
Há também atividades que suscitam a curiosidade dos alunos e a neces-
sidade de elaboração de perguntas para a construção do conhecimento. Esta
é uma atividade deliberada, mais difícil, quando, por exemplo, preparamos
os alunos para receber uma visita que falará sobre um certo assunto: vaci-
nação das crianças, cuidados com higiene, organização de hortas comuni-
tárias na escola etc. Nos dias em que antecedem a visita, o tema é trabalhado
e a turma organiza com o professor uma série de perguntas relevantes a
serem feitas para o convidado no dia de sua apresentação ou para serem
repassadas para que ele possa organizar sua oficina a partir do que interessa
também para os alunos.
Com esses exemplos, queremos enfatizar que a mediação provoca mudan-
ças na estrutura interna das operações intelectuais e, portanto, influencia no
uso de signos por parte dos alunos. A qualidade da mediação depende também
da metodologia que o professor utiliza. Para Vygotsky (2001) há uma relação
entre as concepções do professor sobre o aluno e sua forma de aprender que
influenciam as formas de mediação.
Vygotsky (1997) também escreveu sobre a escrita e enfatizava, já nos
anos 30, que o que deve ser favorecido é o processo de ressignificação de
acordo com a realidade total do sujeito, ou seja, ele torna seu aquele conheci-
mento que for internalizado de acordo com sua realidade em dado momento
sócio-histórico.
Hoje em dia, analisamos a questão do acesso à escrita do ponto de vista
social e histórico como uma alternativa para a autonomia do indivíduo e no
que se refere à sua participação como cidadão. O domínio da leitura e da
escrita amplia as possibilidades de comunicação do sujeito, de sua inserção
na cultura. Ele pode não somente se comunicar de formas diferentes, como
também pode procurar o conhecimento em livros, jornais e outros portadores
de textos, sem depender necessariamente de alguém que o auxilie e o acom-
panhe e leia e escreva para ele.

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Para Vygotsky, a linguagem é o instrumento simbólico mais importante
para a transformação de cada um de nós. Ora, se a linguagem escrita é uma
potencialidade de ampliação do uso dos instrumentos de mediação simbólica,
pode-se notar conseqüências imediatas quando um grupo a domina. Luria
(1992) nos chama a atenção para a prática mediacional mais importante da
escrita: aprendemos a escrever e ler na medida em que compreendemos que
leitura e escrita têm funções comunicativas.

5. Conclusão
Neste texto, procuramos apresentar a perspectiva sócio-histórica da
psicologia do desenvolvimento, a partir, sobretudo, do trabalho de seu
fundador Vygotsky, tentando relacionar alguns conceitos discutidos por
ele com as possíveis aplicações para o planejamento, desenvolvimento e
avaliação de atividades para o processo de ensino-aprendizado de alfabeti-
zandos jovens e adultos. Esta aplicação é estabelecida a partir do reco-
nhecimento desses conceitos como princípios orientadores para o fazer
em sala de aula, procurando-se entender e criar oportunidades para a cons-
trução de significados pelos participantes das aulas de alfabetização, edu-
cadores e alfabetizandos, que possibilitem mudanças no conhecimento.
O desenvolvimento-aprendizado da leitura e da escrita para os teóricos
dessa perspectiva está relacionado às funções e aos usos da escrita nas
comunidades a que pertencemos.
Quando contemplamos nosso trabalho pedagógico a partir dessa pers-
pectiva nos apropriamos do conceito de letramento e percebemos que con-
tinuamos a ter a necessidade de sermos criativos, mas podemos utilizar
materiais mais diversificados para o ensino da leitura e da escrita:
• O texto passa a ser o eixo para o desenvolvimento da leitura e da
escrita. O trabalho estará centrado em textos diversos e na produção
de significados nas práticas de leitura e escrita em situações sócio-
comunicativas diferentes.

• As unidades maiores e menores da língua escrita são aprendidas conjun-


tamente, num processo de construção do conhecimento, utilizando-se
vários procedimentos, mas sempre partindo das unidades de sentido
mais extensas que são os textos verbais e não-verbais (imagens).

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Notas
1 Silviane Barbato é formada em Letras, mestre em Lingüística Aplicada e doutora
em Psicologia. É professora do Dept. de Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Foi
coordenadora do Alfabetização Solidária na UnB de 1998 a 2001 e do
Pronera DF e Entorno de 1999 a 2003. Atualmente, coordena o programa
de inclusão de crianças de seis anos no ensino fundamental no Cform/
UnB, Projeto de Redes para a Formação Continuada de Professores, área de
Alfabetização e Linguagem, do Convênio da SEB/MEC/UnB.

Referências bibliográficas
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KOTSCHO, R. Paulo Freire e Frei Betto – Essa escola chamada vida.
São Paulo: Ática, 1991.
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J.; MENNA-BARRETO, L. S.; ROCCO, M. T. F.; OLIVEIRA, M. K. (org).
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______. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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A perspectiva sócio-histórica na alfabetização de jovens e adultos – p. 59-72
Alfabetização de jovens e adultos:
experiências vivenciadas

Ocsana Sonia Danyluk1


Carmen H. Peixoto Gomes2
Magda Inês Luz Moreira3

Resumo
este artigo, apresentamos parte de nossa vivência em pesquisas reali-
N zadas, o que possibilitou acompanhar pessoas adultas pouco ou não
escolarizadas. Nos estudos indagamos sobre o modo como elas conseguem
se expressar em termos de leitura e de escrita da linguagem matemática e
como resolvem situações-problema que exigem conhecimentos matemáti-
cos. Os sujeitos da pesquisa foram operários da construção civil que traba-
lhavam como azulejistas, serventes de pedreiro, preparadores de argamassa
e, em outras atividades dentro do campo da construção civil; homens e mu-
lheres, de várias profissões, que freqüentavam uma classe do Movimento de
Alfabetização (Mova) em 2002 e uma classe de Educação de Jovens e de
Adultos em 2003. Ancoramos nossa pesquisa na modalidade qualitativa, e a
opção metodológica foi a da abordagem fenomenológico-hermenêutica.
A seguir mostramos, de modo sucinto, nossas compreensões sobre a leitura e
a escrita da linguagem matemática e evidenciamos, também, a utilização de
recursos tecnológicos na educação de jovens e de adultos.

Texto
Retomando as informações coletadas e as interpretações realizadas, na
impossibilidade de trazermos, aqui, toda a experiência, escolhemos neste texto

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Alfabetização de jovens e adultos: experiências vivenciadas – p. 73-86
mostrar algumas unidades vivenciadas. São as unidades de sentido experi-
mentadas por nós, pesquisadoras, ao atribuirmos significado àquilo que emergiu
no contexto vivido. Preocupadas com a questão social em que muitos brasi-
leiros não tiveram e não têm oportunidade de participar da educação escolar,
buscamos pesquisar os processos de ensino e aprendizagem de jovens e
adultos. Ao assumirmos tal atitude, tivemos o cuidado de descrever rigoro-
samente tudo aquilo que vivenciamos e percebemos do fenômeno. Conside-
ramos que todas essas pessoas têm algum conhecimento que lhes serve para
enfrentar situações apresentadas no dia-a-dia.
A abordagem fenomenológica-hermenêutica exigiu das pesquisadoras
uma atitude de abertura diante do fenômeno pesquisado, que, segundo Bello
(2000), é obtida após a suspensão de hipóteses de quaisquer conhecimentos
prévios ou de crenças consolidadas a fim de aderir às coisas mesmas, isto é, às
questões e aos fatos tais como se apresentam na sua constituição essencial,
deixando que eles falem a sua linguagem mais verdadeira, sem incrustações
das nossas projeções e os mal-entendidos das suas aparências.
O conceito de alfabetização vem se modificando ao longo das últimas duas
décadas. A idéia de assinar o nome em um papel já não faz parte da conside-
ração que devemos ter de pessoa alfabetizada. Alfabetizar é tarefa desafiadora
e complexa, especialmente quando se trata de pessoas adultas e, mais especi-
ficamente, quando se trata da alfabetização matemática dessas pessoas. Mani-
festando-se a respeito da alfabetização matemática, Danyluk afirma que:
Alfabetização Matemática refere-se aos atos de aprender a ler e a escrever
a linguagem matemática usada nas primeiras séries da escolarização. [...]
compreendo como se referindo à compreensão e à interpretação dos con-
teúdos matemáticos ensinados na escola, tidos como iniciais para o domí-
nio da Matemática e estabelecidos por essa instituição como importante.
Ser alfabetizado em matemática, então, é entender o que se lê e escrever o
que se entende a respeito das primeiras noções de aritmética, geometria e
lógica (1991,p.45).

Temos percebido que, tratando-se de educação de adultos, os trabalhos e


preocupações prendem-se a abordagens que envolvem a língua materna, fican-
do, muitas vezes, relegadas a um segundo plano a leitura e a escrita da lin-
guagem matemática. Em se tratando do ensino de matemática na alfabetização

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de adultos, o que se observa são práticas pedagógicas que se reduzem à utiliza-
ção de metodologias, muitas vezes inadequadas, como é o caso das utilizadas
na educação infantil.
Percebemos no desenvolvimento das pesquisas que ainda é restrita a litera-
tura que trata do processo de aquisição dos atos da leitura e da escrita da lingua-
gem matemática, pois poucos são os trabalhos que tratam sobre os atos de ler e
escrever essa linguagem. Dessa forma, tornam-se necessários estudos referen-
tes à educação de jovens e adultos no que tange à matemática e, em especial, a
cuidados com a questão de como o adulto não alfabetizado utiliza em seu
cotidiano conceitos matemáticos não sistematizados em situações-problema.
Na oportunidade em que trabalhamos com adultos não escolarizados,
percebemos como conseguem resolver cálculos mentais e realizar leituras, tais
como aquelas que identificam as linhas de ônibus que devem tomar e pequenos
anúncios mostrados em seus locais de trabalho ou nas ruas nas quais transitam
diariamente. No entanto, essas mesmas pessoas não têm segurança de realizar
a escrita de textos na forma convencional. Para eles, em um primeiro momento,
compreender e utilizar a terminologia e a gramática, que fixam os modos de
falar e escrever, tidos como corretos, é extremamente difícil.
No início das atividades, sentíamos as pessoas mostrando dificuldades, de
certa forma inibidas e inseguras quanto às suas capacidades de aprender a
escrever. À medida que os incentivávamos a falarem sobre suas experiências
no trabalho e sobre suas famílias percebíamos que se sentiam orgulhosos em
poder trazer suas situações vivenciadas. Ao escutá-los sempre procurávamos
encorajá-los a registrar, de alguma forma, aquilo que pensavam; a primeira
atitude desses adultos que não tiveram acesso à escola, era a de negar qualquer
modo de registro; diziam não saber escrever.
As tentativas de escrita dos adultos acompanhadas por nós não deixam
dúvidas de que a origem da escrita é anterior à aquisição de conhecimento
formal na escola. Pedro, um de nossos sujeitos da pesquisa, em um de seus
registros mostrou-nos isso. Ao ser solicitado que efetuasse o registro de “cinco
metros de arame”, assim procedeu:

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O uso do número cinco para identificar a quantidade e um risco para
representar o objeto pedido indica que Pedro consegue identificar em seu
cotidiano a pequena quantidade e a forma de registro convencionada para
ela. Não sabendo escrever com letras a palavra “arame”, buscou a forma
pré-predicativa que lhe é possível comunicar, para isso usou um risco. Essa
situação nos lembra de Luria (1998) que refere sobre a escrita, mais precisa-
mente a escrita infantil. Para o autor, o desenvolvimento da escrita sofre
transformações que se iniciam com linhas e rabiscos, os quais são substituídos
por figuras e imagens, que, por sua vez, dão lugar a signos. De acordo com
esse estudioso, “nesta seqüência de acontecimentos está todo o caminho do
desenvolvimento da escrita” (1988, p.161).
Em uma outra situação, os operários estavam desenvolvendo uma ativi-
dade com jornais e lhes propusemos uma situação-problema para que resol-
vessem. Havia sete pessoas na sala e todas elas possuíam um exemplar; como o
jornal possuía dezesseis folhas, solicitamos que encontrassem o número total
de folhas. Márcio relatou o processo feito: agrupara as páginas totais de cada
dois jornais, obtendo trinta e duas folhas; adicionara três vezes o trinta e dois e,
em seguida, adicionara mais uma vez o total de folhas de um jornal. Ao ser
solicitado a representar em uma folha o que havia realizado, assim o fez:

A mesma situação foi resolvida por Sílvio de modo semelhante, porém


a forma de expressão escrita usada foi outra. Ele adicionou três vezes, dois
a dois, o número total de páginas e, ao lado dessa representação, juntou
dezesseis riscos verticais representando as outras folhas de um jornal.

O outro participante de nosso trabalho, também de nome Márcio, rea-


lizou mentalmente a operação, posteriormente revelando como procedera:
adicionara sete vezes a quantidade dezesseis usando o seguinte raciocínio:
“Somei todos os seis e deu quarenta e dois, mais setenta dá cento e doze”.
Contudo, ao ser solicitado a realizar esse registro, recusou-se dizendo não
saber escrever.

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Em linguagem matemática, o pensar desse operário pode ser indicado pelo
seguinte algoritmo:
6 + 6 + 6 + 6 + 6 + 6 + 6 + 6 = 42

10 + 10 + 10 + 10 + 10 + 10 + 10 = 70

42 + 70 = 112

Para essa mesma situação, Ivo usou outro algoritmo: multiplicou dezes-
seis por três, do que resultou quarenta e oito; a seguir, adicionou quarenta e
oito com quarenta e oito, encontrando noventa e seis; em seqüência, adicionou
dezesseis a essa quantidade, tendo obtido as cento e doze páginas. Ivo repre-
sentou seu cálculo da seguinte maneira:

Com a exposição dessas situações, podemos constatar que as pessoas


utilizaram-se de diferentes algoritmos para resolver a situação proposta. Cada
um, a sua maneira, conseguiu mostrar o modo como raciocina e consegue
expressar seu pensamento. A operação multiplicação como forma de resolver o
problema foi mostrada apenas por uma pessoa, ainda que não na totalidade
da situação. Ivo multiplicou por três a quantidade dezesseis, mas, seguindo seu
cálculo, considerou que mais quarenta e oito podiam ser adicionados,
encontrando noventa e seis; juntou a quantidade de folhas de um jornal e
indicou a totalidade, ou seja, as cento e doze folhas.
Sílvio, em sua representação escrita, fez a justaposição do número
trinta e dois três vezes e, após, como que voltando a um momento anterior
de escrita, esqueceu a notação de números e utilizou-se de riscos verticais
para representar dezesseis folhas de um jornal, dispondo-os ao lado dos
números registrados.

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Ribeiro observa que:
Os jovens e adultos já tem algum domínio sobre vários aspectos de sentido
operacional, em função da ampla experiência informal com operações mate-
máticas. Para aprofundar e sistematizar esse conhecimento, o trabalho
escolar deve propiciar atividades que os ajudem a estabelecer as relações
entre as suas idéias e estratégias pessoais e o conhecimento geral, complexo
e formal. Esse trabalho passa pela exploração da linguagem oral, concomi-
tante à apresentação dos símbolos associados a cada operação (1997,p.118).

Nesse modo de expressão podemos constatar semelhança ao registro


infantil, pois muitas crianças usam representar por sinais cada elemento de
uma coleção. Para isso, igualmente registram traços verticais, pequenos
círculos ou desenhos dos próprios objetos.
Considerando os registros efetuados, podemos afirmar que cada pessoa
tem seu modo de pensar e de resolver situações que se lhe apresentam no
cotidiano, com caminhos alternativos para atingir o mesmo fim. Com isso
pensamos na possibilidade de que seja permitido o uso de vários algoritmos
para que se veja a história da descoberta e sugerimos que, especialmente, seja
ressaltado o modo como as pessoas conseguem resolver situações matemáticas.
Assim, pensamos que, sentindo-se sujeitos de suas aprendizagens, as pessoas
terão a possibilidade de verificar que sabem e que podem conhecer mais.
Olhar para o modo como resolveram a situação evidenciada é acompanhar a
aventura de uma descoberta; é, também, desocultar como a pessoa pensou e
construiu sua idéia; é, enfim, mostrar o que se passa no momento de criação e
verificar que nesse processo não existe uma forma única de ação.
Em se tratando da leitura e da escrita da linguagem matemática, pensamos
ser importante mencionar o que entendemos por leitura dessa linguagem.
Assim, ao nos referirmos à leitura de um texto, estamos considerando neces-
sariamente atos de pensamento, tais como o de compreender, de interpretar,
de comunicar e de transformar. Uma leitura significativa, portanto, se realiza
quando o indivíduo compreende o que lê, ou seja, atribui significado para o
lido. É necessário, também, que o ato de interpretar esteja presente para que
o desenrolar da compreensão se efetive. Compreendendo e interpretando a
linguagem matemática, a pessoa passa a comunicar a inteligibilidade daquilo
que leu e, nesse sentido, tem a possibilidade de transformação. Assim, a leitura

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é um ato de conhecimento que está fundamentado nos atos humanos de com-
preender e interpretar o mundo. A leitura sempre revela o próprio modo do
homem existir mundanamente. Entendemos que o ato de ler não significa
apenas ler a linguagem mostrada pelo discurso escrito com palavras ou
números, não se reduzi à leitura de palavras escritas e, sim, considerando
diferentes tipos de linguagens expostas no mundo. Pensamos em leitura como
a compreensão da expressão de uma linguagem e não apenas como a decifra-
ção de traços codificados e impressos em um papel.
Em nossos sujeitos da pesquisa percebemos que eles mostraram familiari-
dade com as letras. Perguntavam-nos como se escrevia o nome de seus filhos
e, em alguns casos, seus próprios nomes. Foi possível constatar que, mesmo
não conseguindo ler fluentemente um texto escrito, muitos adultos, sujeitos
de nossa pesquisa, tinham preferência por realizar leitura cujo texto lhes era
mostrado escrito com letra de forma.
Dentre as atividades desenvolvidas no projeto, diversas vezes visitamos
a biblioteca, onde cada um dos operários escolhia um texto de jornal ou de
revista. Observamos que as pessoas demoravam-se manuseando o material
disponível na biblioteca. Muitos textos, em jornais, escolhidos para a leitura
eram artigos que tratavam de notícias sobre esportes. Em uma dessas visitas
à biblioteca, os operários da construção civil realizaram a leitura de um globo
terrestre. Foi um verdadeiro ato de reflexão. Em princípio apenas observa-
ram o globo, após isso solicitavam por lugares e suas localizações, assim,
lançaram-se a novas compreensões. Nessa atividade confirmamos a idéia de
Freire quando afirma “que a leitura do mundo precede sempre a leitura da
palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquela” (1984,p.28).
Com isso vimos que a unidade do texto que compõe um discurso escrito
encontra sentido no mundo real, ou seja, no mundo vivido do leitor, pois é ele
quem encontra o significado e o sentido para aquilo que está registrado.
Voltamos nosso olhar, também, para a questão da leitura realizada pelos ope-
rários da construção civil, os quais não tiveram a oportunidade de se apropriar
da leitura do código matemático oficial utilizado nos mais variados textos,
sejam esses problemas envolvendo quantidades de material ou medidas.
De início, os adultos comunicavam-se, timidamente, uns com os outros,
de forma oral. Contudo, no decorrer dos encontros semanais, com as orienta-
ções e desafios das pesquisadoras eles foram se libertando de suas “amarras”,

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de seus preconceitos, dando voz e vez à sua criatividade ao responderem aos
desafios propostos, que se constituíam, em sua maioria, da leitura e de tenta-
tivas de solução de problemas de seu dia-a-dia como operários da construção
civil. Aos poucos foram deixando de lado o sentimento de incapacidade de
realizar leitura, como Pedro manifestou ao referir-se: “professora, eu não sei
ler, contar até faço, mas juntar as letras não”.
Tivemos, também, entre os sujeitos da pesquisa pessoas que mostravam
dificuldades na leitura de textos. Carlos afirmou: “leio, mas não consigo
escreve, troco tudo as palavra”; enquanto Joaquim se expressava dizendo:
“leio pouco e tenho dificuldade sim, em banco e loja”. Alguns desses trabalha-
dores usavam estratégias em suas leituras. Para identificar diferentes palavras
reconheciam às vezes a letra inicial de uma palavra, outras vezes, ainda, a letra
final. Dessa forma, liam, por exemplo, o nome do bairro onde moravam, indi-
cado no ônibus urbano que precisavam tomar. Aqueles que não liam o texto
formado por letras diziam prestar atenção no cobrador ou motorista do ônibus
urbano que deveriam tomar. Mário nos afirmou: “o ônibus é pelo começo da
letra, que nem as crianças me ensinaram, a gente pega o começo e o fim, daí a
letra que a gente conhece a gente cuida que é aquela letra”.
Em relação à linguagem matemática, em determinada atividade escreve-
mos no quadro de giz o número cento e vinte e seis e solicitamos que fosse
lido o que ali estava escrito. A leitura realizada foi “o um, o dois, o seis”;
podemos dizer, nesse caso, que a leitura da linguagem matemática não se
efetivou de modo significativo, pois a quantidade representada por mais de
uma ordem não foi reconhecida. Nessa situação há uma leitura, no entanto sem
a compreensão da organização dos princípios com os símbolos e a maneira de
dinamizá-los como um todo.
Assim, nesse processo todos eles tinham objetivos em comum, ou seja:
aprender a ler o código oficial expresso pela linguagem matemática. Tivemos
o cuidado, nesse trabalho investigativo, de não apenas colocar o adulto na
situação de ler a linguagem matemática descontextualizada de seu mundo
vida. Preocupamo-nos, com a organização e sistematização dos conhecimentos
empíricos trazidos por eles de suas experiências vividas.
Nossa intenção foi de possibilitar ao adulto não escolarizado as condições
para que se convencesse de que estava apto a utilizar-se da linguagem

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matemática, assumindo com autonomia os êxitos ou fracassos desse uso, pois
de acordo com Freire (1981), ao tratar da alfabetização de adultos, “(...)
sempre vi a alfabetização de adultos como um ato político e um ato de conhe-
cimento, por isso mesmo como um ato criador”. Assim, gradativamente, os
adultos foram se apropriando dessa nova forma de trabalho, que lhes permitiu
ser protagonistas do “feito educativo”, passando a discutir suas idéias e a
defender seus pontos de vista. Isso lhes possibilitou questionar e criticar,
fazer e refazer aquilo que tinham necessidade e desejo de aprender.
Nos atos de ler e de escrever a linguagem matemática, voltamos, também,
nosso olhar para a perspectiva de utilizar os recursos da informática, espe-
cialmente o computador, nos ambientes de aprendizagem. Temos conheci-
mento de que, no contexto educacional, muitas pesquisas e experiências
vêm sendo desenvolvidas sobre a utilização de recursos tecnológicos no
processo pedagógico em muitos graus de ensino. No entanto, na educação
de adultos há um campo aberto de estudos a serem desenvolvidos.
Os recursos tecnológicos disponíveis, principalmente os da informática,
vêm interferindo significativamente nos processos de trabalho e exigindo
um nível elevado de qualificação dos profissionais em quase todas as áreas.
Isso requer profissionais dispostos a reestruturar a sua formação profissio-
nal, buscando, por exemplo, formação continuada, acesso às informações e
às tecnologias, alternativas para a solução de problemas, habilidade para o
trabalho em grupo, habilidade de aprender a aprender, substituir às atividades
repetitivas pela aplicação eficaz da tecnologia.
A sala de aula, lugar privilegiado pela interlocução dos múltiplos saberes,
pela articulação das diferentes linguagens, pelas relações interpessoais, per-
mite a inserção de novos recursos, estratégias metodológicas e ambientes que
possam tornar o processo pedagógico para aquisição do código escrito pelo
adulto motivador e as informações mais abrangentes. Marques afirma que “na
experiência real pode ocorrer o inesperado que leve a repensar os caminhos
andados e os enforques adotados, onde se fundamentem a sabedoria dos limites
e a riqueza dos imprevistos” (1999, p.182). Também na educação de adultos
consideramos significativo oferecer oportunidades diferentes que os estimu-
lem para a aprendizagem e que possam contribuir com o desenvolvimento
intelectual dos sujeitos.

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Dessa forma, oportunizar aos cidadãos acesso às tecnologias e suas lin-
guagens, poderá favorecer as suas interações diárias no trabalho e no meio
social onde vivem. Rodrigues manifesta-se sobre alfabetização destacando que
com o processo da alfabetização altera-se o perfil social do homem, pois ele
se vê transformado em homem político e participativo. É por isso que a
alfabetização não se restringe apenas a dotar os indivíduos de certas habi-
lidades para ler e decodificar símbolos e letras. Ao se alfabetizarem, os
indivíduos também se instrumentalizam para compreender e reconstruir
sua realidade (1985, p.93).

Pensamos ainda que o computador é um dos instrumentos que pode


interferir na falta de motivação dos adultos para aprendizagem e compreensão
dos processos de leitura e de escrita.
Possibilitamos atividades didáticas mediadas pelo computador com o
intuito de investigar os efeitos causados pela introdução e procedimentos
novos e de meios alternativos diferentes daqueles tradicionalmente usados
no meio educacional. É fundamental organizarmos estratégias que propiciem
o redimensionamento dos valores humanos e o aprofundamento das habilida-
des de pensamento, produzindo, assim, a elaboração de esquemas mentais e
desenvolvimento cognitivo. Desse modo as pessoas terão condições de me-
lhorar sua autoformação e seu desenvolvimento sócio-afetivo, podendo com-
partilhar experiências, adquirir pré-requisitos para outras aprendizagens e
preparar-se para os novos desafios.
No laboratório de informática, um ambiente antes desconhecido dos adultos
e partindo de estratégias didáticas diferentes das usadas em sala de aula,
iniciamos com as atividades didáticas pela familiarização e exploração
dos equipamentos postos à disposição dos trabalhadores. A maioria deles,
muito ansiosos, experimentou, pela primeira vez, um contato com o computa-
dor, realizando uma atividade de digitação. Certamente, por esses instrumentos
estarem muito distantes de suas realidades, sua utilização transformou-se em
um grande desafio, trazendo-lhes, ao mesmo tempo, satisfação e insegurança,
principalmente nos primeiros momentos de contato com o computador. No
entanto, superado o primeiro impacto, o que surpreendentemente ocorreu
sem muitas dificuldades, vieram o encantamento e o estímulo quando sentiram
que poderiam desenvolver, com tranqüilidade as atividades propostas.

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Ao observarmos as atividades desenvolvidas no laboratório de informática,
percebemos que, estando o alfabeto disponível no teclado, o processo de
escrita se tornou mais fácil, pois permitiu a visualização das letras, mesmo que
não estivessem nos formatos cursivo e minúsculo. Ressaltamos ,ainda, que nos
encontros que tivemos com os adultos em sala de aula verificamos que alguns
deles apresentavam dificuldade motora para realizarem registros da linguagem
matemática; dessa forma, ao permitir a vivência com outros objetos culturais
disponíveis para a escrita, eliminam-se barreiras que interferem na iniciativa e
coragem das pessoas pouco escolarizadas para a escrita.
Sentimos as pessoas a quem acompanhamos motivadas a conhecer cada
vez mais, pois, como manifestaram, não esperavam que esse conhecimento
pudesse ser adquirido ao longo de suas vidas. Demonstrando muita satisfação
e surpreso pela oportunidade de trabalhar no computador, um dos adultos fez
a seguinte observação: “Quando começo a aula foi uma coisa linda pois nunca
imaginei tá na frente de um computador, e ali távam nóis podendo trabalha
nele, ver o que ele pode faze tudo corretamente, foi tudo muito bom foi diver-
tido. Temos que repetir mais vezes”. Esse operário estava muito impressionado
pela facilidade com que as letras iam aparecendo na tela e pelo fato de “o
computador avisar” onde estava o erro. Destacamos que o computador, por
estar presente em todos os segmentos da sociedade e sendo um instrumento de
interação em um contexto social modificado pelas mudanças trazidas pela
própria tecnologia, tem significativa a sua presença também na educação de
adultos. De acordo com Mortari, “as interferências da cotidianidade dos indiví-
duos desafiam a educação escolar a estudar formas de renovar e transformar a
dinâmica da sala de aula, de introduzir mecanismos que se aproximem mais
das vivências dos educandos e possam interferir na prática educativa para
conduzir o aluno ao processo de construção do conhecimento” (2001, p. 105).
Assim, considerando que essas pessoas são trabalhadores que atuam no merca-
do de trabalho, além da possibilidade de realizarem atividades pedagógicas
dinâmicas e que motivam à aprendizagem, passam, a partir dessa experiência,
a conhecer um instrumento que está presente em diversos contextos sociais.
Os resultados de nossa investigação mostraram que a utilização do com-
putador como recurso pedagógico certamente contribui para a aprendizagem
em classes de adultos não alfabetizados, pois possibilita articular e integrar
diferentes linguagens, fazendo com que as pessoas se sintam sujeitos de sua

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aprendizagem e comprometidas com o processo. Percebemos que a atividade
didática realizada no computador permite que o ritmo de cada pessoa seja
respeitado; a aprendizagem torna-se mais flexível, aberta e personalizada.
É importante salientar que esse instrumento pode modificar o comporta-
mento passivo dos estudantes, fortemente centrado na ação do professor,
levando-os à busca do conhecimento e ao prazer da aprendizagem. Foi
importante percebermos que a motivação encoraja e desperta o desejo de
explorar e de conhecer algo novo, mesmo que não seja fácil enfrentar os
desafios e superar as dificuldades.
Percebemos que essa experiência constituiu-se em uma oportunidade para
investigar diferentes aspectos relativos à utilização de recursos tecnológicos e
de meios alternativos para uma aprendizagem mais significativa na educação
de adultos. Constatamos, ainda que os recursos da informática e as lingua-
gens da tecnologia poderão ser aproveitadas para incentivar os adultos no
processo de leitura e de escrita. Pensamos que o cidadão, hoje, só o é se tiver
condição de lidar com os universos semióticos em constante mutação, e que o
ser humano só se humaniza se souber lidar criticamente com o mundo do
consumo, da mídia, da informação e da imagem. Há que se ressaltar, contudo,
que muito ainda há para ser investigado sobre a educação de adultos não
escolarizados bem como sobre as contribuições que os recursos tecnológicos
podem oferecer aos diferentes sistemas de ensino.

Considerações finais
Podemos afirmar que conseguimos estabelecer momentos ricos de
intersubjetividade em nossos atos intencionais, nas atividades de pesquisa
que desenvolvemos junto com adultos não escolarizados. Ao trabalharmos com
essas pessoas, enriquecemo-nos por conhecermos múltiplos saberes de que elas
são detentoras. Ao mesmo tempo, conseguimos possibilitar-lhes, em muitos
momentos, o resgate de sua auto-estima e, especialmente, o fortalecimento de
sua cidadania, ao darmos liberdade para que esses sujeitos resolvessem
situações matemáticas, procurando a resposta certa, utilizando-se de vários
processos ou caminhos, diferentemente do que ocorre, em geral, no ensino
formal da matemática, em que o aluno tem de apresentar, seja oralmente ou
por escrito, a resposta de uma situação desafiada pelo professor, utilizando o
mesmo processo usado por esse.

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Consideramos ser interessante destacar que os sujeitos de nossa pes-
quisa sempre mostraram ter preferência por trabalhar com atividades que
desenvolvessem a área da matemática. Aos se sentirem solicitados por um
raciocínio matemático, por alguns instantes colocavam-se, em silêncio, logo
em seguida seus olhos brilhavam e suas bocas pronunciavam timidamente
resultados que haviam pensado. Sendo assim, pensamos que por meio do
processo de alfabetização matemática poderemos possibilitar às pessoas o
acesso à cidadania para que elas possam usufruir seus direitos e se considera-
rem capazes de conhecer mais e de poder, com isso, participar efetivamente na
sociedade em que vivem .
Por fim, pensamos que processos de construção de conhecimento sobre a
forma de aprendizagem de adultos são fenômenos que necessitam ser mais
estudados por educadores matemáticos. Percebemos a ausência de literatura
que trata do ensino e da aprendizagem matemática na educação de adultos.
A educação matemática é uma das áreas que pode contribuir com a dimensão
política desse segmento da educação. “O compromisso governamental, empre-
sarial e social para com a educação de adultos deve ser permeado de um pro-
fundo sentido humano que respeite e valoriza as diferenças, mas que, ao mesmo
tempo, garanta o pleno desenvolvimento de aprendizagens” (2001, p.185).

Notas
1 Professora e pesquisadora da Universidade de Passo Fundo.
2 Professora e pesquisadora da Universidade de Passo Fundo.
3 Professora e pesquisadora da Universidade de Passo Fundo.

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aprendizagem. Tradução de Maria da Penha Villa Lobos. São Paulo:
Ícone, 1988.
MARQUES, O. M. A escola no computador: linguagens rearticuladas, educação
outra. Ijuí: Unijuí, 1999.
MORTARI, M. Educação de adultos e tecnologia. In: DANYLUK, O. S. (org).
Educação de adultos: ampliando horizontes de conhecimento.
Porto Alegre: Sulina, 2001.
PINTO, A. V. Sete lições sobre educação de adultos. 10. ed. São Paulo:
Cortez, 1997.
RODRIGUES, N. Por uma nova escola: o transitório e o permanente na
educação. São Paulo: Cortez, 1985.

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Alfabetização de jovens e adultos: experiências vivenciadas – p. 73-86
Educação de jovens e adultos: novas paisagens em
um curso de formação de professores estaduais

Carmem Rodrigues1
Cláudia P. Aristimunha2
Christiane Martinatti Maia3
Maria Fani Scheibel4
Silvana Lehenbauer5

presente artigo visa apresentar e discutir o trabalho de capacitação


O docente promovido pela Universidade Luterana do Brasil/Canoas
(ULBRA) em parceria com a Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande
do Sul e Unesco frente a um acordo referente ao Projeto: Alfabetiza Rio
Grande. Para isso, após um semestre de contato com saberes científicos sobre
questões referentes às propostas de Alfabetização e Letramento para a Educa-
ção de Jovens e Adultos (EJA), desenvolvidas em campi da referida instituição
universitária, os docentes estaduais que participaram do projeto, reuniram-se
em um Fórum de Discussões realizado na instituição em Canoas. Da realiza-
ção deste evento, o qual visava a relação teórico-prática oportunizada pela for-
mação docente, os profissionais da educação de jovens e adultos, escreveram e
apresentaram suas próprias trajetórias profissionais. Neste sentido, pretende-
mos, através deste artigo, tornar visíveis as práticas pedagógicas desenvolvidas
pelos docentes que participaram do projeto, relacionadas às mudanças para-
digmáticas e epistemológicas propiciadas no decorrer do projeto de formação.

A formação inicial e a formação continuada


Depois da práxis e dos ensinamentos de Paulo Freire no Brasil, o último
século viu a alfabetização/educação de adultos tornar-se tema de debate e de
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interesse para educadores, pedagogos e por toda a sociedade. A “educação
popular” como ficou conhecida a alfabetização/educação de jovens e adultos,
teve seu status elevado sendo debatida, divulgada e praticada através de agentes
intelectuais, do meio estudantil, militantes da igreja e militantes políticos,
enfim, de setores da população que se sentiam comprometidos politicamente
com as classes populares e buscavam uma real transformação social.
A Constituição brasileira de 1988 (que garante o ensino fundamental
também àqueles que não tiveram acesso em “idade própria”) e a tendência legal
à municipalização do mesmo abriram espaço para que alguns municípios
realizassem experiências significativas na Educação de Jovens e Adultos. Daí
para frente, já na década de 90 surgiram muitos outros grupos e institui-
ções que implementaram novos cursos de alfabetização e de escolarização de
Jovens e Adultos.
Embora a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) – lei
9.394/96 – tenha deixado ainda muito a desejar em relação às discussões
expressas na versão proposta pelo CONED (Congresso Nacional de Edu-
cação), a Educação de Jovens e Adultos, no entanto, ao ser tratada como
parte do Ensino Fundamental, possibilita pelo menos uma nova leitura: a
de que a educação de adultos traz uma especificidade própria, considerando
tratar-se de educandos que são portadores de múltiplos conhecimentos.
Atualmente, pode-se considerar alfabetização como o ensino correspon-
dente às quatro primeiras séries do ensino fundamental visando garantir o
domínio mínimo dos códigos que vão para além do alfabético6 e que envolve
todas as áreas de conhecimento. Do contrário, o domínio da alfabetização no
sentido restrito, da aprendizagem das letras e seu funcionamento enquanto
código, não permitirá mais que uma leitura fragmentada dos diferentes textos,
não garantindo de forma alguma o engajamento desses sujeitos alfabetizados
ao mundo da prática social da leitura e da escrita.
Esta concepção de alfabetização amplia a suplência. Mas, apesar do
Ensino Supletivo ter sido extinto na Legislação Brasileira, como afirma o
Parecer 11/2000 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de
Educação – CEB/CNE, que fundamenta as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação de Jovens e Adultos7, percebe-se ainda uma forte tendên-
cia para a permanência desta concepção, compensatória e notoriamente

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reduzida em quantidade e, não raro, em qualidade, tanto nos modelos peda-
gógicos quanto no imaginário de muitos alunos, alunas e docentes.
Por outro lado, na esteira do referido Parecer do CNE, bem como do
Parecer 774 e da Resolução nº 250 de 10/ 11/ 1999 do Conselho Estadual
de Educação do Rio Grande do Sul, vimos ocorrer, também, uma tripla
redução da Educação de Jovens e Adultos enquanto campo de estudo e
ação político-pedagógica: como campanhas, projetos ou programas de al-
fabetização que, às vezes “ensinam” apenas a justaposição de letras para
formarem palavras que culminarão em frases demonstrando ainda uma con-
cepção de Educação desenvolvida a partir de práticas docentes voltadas
para crianças e adolescentes.
Diante deste quadro fica claro que é necessário reformularmos as po-
líticas públicas para a educação de adultos, mas principalmente a forma-
ção inicial de docentes além é claro de ampliar a formação continuada
daqueles que estarão iniciando sua carreira, ou que já estão há muito no
exercício do magistério.
Neste sentido, o curso de Pedagogia da Universidade Luterana do Brasil/
Canoas, preocupado com a questão da modalidade Educação de Jovens e
Adultos e com toda a sua complexidade e principalmente com o papel que
a Universidade tem a cumprir tanto no caráter científico e acadêmico quanto
no social, assinaram com a Secretaria de Educação do Estado e Unesco um
acordo referente ao Projeto “Alfabetiza Rio Grande” – a ser explicitado no
segundo sub-título.
Atendendo a proposta do projeto, as ações realizadas nos campi da ULBRA
tiveram como objetivo geral historicizar e contextualizar a EJA no Brasil,
possibilitando a construção de referencial teórico sobre a problemática
que norteia a atuação profissional do educador desta especificidade. Teve
ainda como objetivos específicos:
– Identificar e analisar criticamente os conceitos que norteiam a educação
de jovens e adultos;

– Identificar as responsabilidades do educador de EJA e seu compromisso


político- social-cultural;
– Conhecer o desenvolvimento psicossocial do jovem e adulto;

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– Possibilitar a construção de conceitos referentes às distintas corren-
tes paradigmáticas e epistemológicas que envolvem o ato de ensinar
e aprender;
– Conhecer e analisar as distintas metodologias de ensino voltadas para
a EJA.

Estas questões vieram ao encontro das necessidades atuais da Educação


de Jovens e Adultos: a discussão teórica, metodológica referente às práticas
dos educadores – que instrumentos pedagógicos utilizar? Podemos tratar o
educando jovem e/ou adulto como criança, ou seja, infantilizar os sujeitos
através de nossas propostas educativas?
Apesar da Educação de Adultos ser uma modalidade antiga, ou melhor,
uma das primeiras formas de ensino, comumente associa-se “educação” à
infância. Frases como: “não estudou na idade certa” ainda nos remetem ao
modelo de escola para a infância. Este pensamento continua arraigado na
formação profissional dos educadores, entendendo a educação como um
direito da criança, estanque, com data marcada para acabar e não como um
direito também do adulto, já que permanente e dinâmica.
Sendo assim, o primeiro desafio da nossa proposta de capacitação foi o
de derrubar (pré)conceitos e promover reconstruções conceituais, no enten-
dimento de que é necessário reorganizar os espaços e tempos educativos para
que a organização estrutural da escola não exclua, mas permita o acesso, a
permanência e a aprendizagem de todos os alunos, crianças, jovens e adultos.
Acima de tudo, busque a superação da opressão e desigualdades sociais
também como uma forma de educação. Superando este obstáculo, passamos
a conhecer quem é este(a) aluno(a) da EJA.
Como seres não-crianças, adultos e jovens, possuem uma forma de
aprender diferenciada da criança. Carecemos, ainda, de maiores estudos
nesta área. Entretanto, como lembra Oliveira (1999), além dos poucos estu-
dos desenvolvidos nesta área, estes abordam o adulto de uma forma abstrata,
universal que mais se aproxima do homem ocidental, branco, pertencente à
classe média e com níveis de instrução mais elevada. E este perfil, não é o
do aluno da EJA de nossa realidade brasileira.
Cabe ressaltar ainda que em termos da EJA, possuímos dois grupos:
jovens e adultos, que possuem características comuns e diferentes. Por um

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lado, se aproximam por terem sido excluídos da escola e incorporados ao
mundo do trabalho, mas por outro, se distanciam pela idade. Ser jovem é
diferente de ser adulto. Pertencem a grupos culturais distintos e, portanto,
com formas diferentes de aprender e interagir. Isto implica que a metodolo-
gia utilizada deveria buscar a diversidade cultural (que também é etária).
No entanto, encontramos freqüentemente, alunos não localizados histórica
e socialmente e professores utilizando concepções de aprendizagem do senso
comum ou, o que nos parece pior, igualando formas de aprendizagem infantil
e adulta – explicitado anteriormente.
Percebendo que o processo educativo da criança é diferente do que ocorre
para o jovem e para o adulto, podemos buscar na Andragogia, referências
para a proposição de metodologias mais adequadas a este contexto. Porém
devemos ter claro que:
O educador libertador tem que estar atento para o fato de que a transformação
não é uma questão de métodos e técnicas. Se a Educação Libertadora fosse
somente uma questão de métodos e técnicas, então o problema seria mudar
algumas metodologias tradicionais por outras mais modernas. Mas não é
esse o problema. A questão é o estabelecimento de uma relação diferente com
o conhecimento e com a sociedade. (Freire & Shor, 1987, p.87)

A transmissão de conteúdos estruturados fora do contexto social do edu-


cando é considerada “invasão cultural’ ou “depósito de informações” porque
não emerge do saber popular. Portanto, antes de qualquer coisa, é preciso
conhecer o(a) aluno(a). Conhecê-lo(a) enquanto indivíduo inserido num con-
texto social de onde deverá sair o “conteúdo” a ser trabalhado. Os currículos
devem buscar contemplar a complexidade da realidade dos educandos jovens
e adultos, no diálogo entre as experiências do mundo da vida, do trabalho e
da cultura e o conhecimento historicamente acumulado, ou seja, adentrar em
suas histórias de vida – educador e educandos. .
Se acreditarmos na formação continuada e permanente, sabemos que a
discussão vai mais longe: tomarmos consciência de que temos muito ainda a
aprender, pesquisar e elaborar, em Educação de Jovens e Adultos, visto que a
grande maioria dos(as) professores(as) que atuam na EJA atualmente, não
têm formação específica para tal. Nesta perspectiva é que pensamos a estru-
turação de nossa proposta de formação continuada. A importância desta

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formação está não só no que representa para a qualificação do docente em
EJA, como no revigorar do conhecimento produzido na academia.
Por meio dos encontros programados pelo Núcleo responsável pela EJA
da Pedagogia da ULBRA/Canoas com as Secretarias de Educação e com
as Coordenadorias Regionais de Educação foram aprofundados estudos
de cunho teórico e metodológico com os professores da Rede de Ensino Es-
tadual e Municipal - educadores envolvidos com programas de alfabetização
e outras modalidades de ensino vinculadas ao EJA. Estes momentos acaba-
ram, por se transformar em espaços interdisciplinares, onde cada área do
conhecimento em contato com as demais, construíram e reconstruíram no-
vos e antigos saberes, mas principalmente: o desejo de buscar mais – teori-
camente, metodologicamente.
Talvez possamos pensar na Educação de Jovens e Adultos como um mote
para o desenvolvimento de novos caminhos de uma educação permanente e
continuada. Como um motivo para o desenvolvimento humano não só
daqueles que estão se alfabetizando e “escolarizando” mas dos já “esco-
larizados” que encontram agora uma ocasião de aprimorar e humanizar seu
aprendizado transitando por diversas áreas e potencializando sua capacidade
de compreender o mundo, ou seja, o educador se visualizando e tornando-se
um eterno aprendente.
Para explicitar as questões acima referidas, no próximo sub-título,
apresentamos alguns trabalhos desenvolvidos por Escolas Estaduais – seus
educadores e educandos – que buscaram relacionar os novos conheci-
mentos adquiridos as suas práticas pedagógicas.

Relatando algumas experiências ...


Em 2004, as Instituições de Ensino Superior do Rio Grande do Sul (IES),
assinaram com a Secretaria de Educação do Estado e Unesco um acordo
referente ao Projeto “Alfabetiza Rio Grande”, cuja finalidade da contratação
consistia na elaboração e execução de uma proposta de formação continuada
para os membros do Grupo de Trabalho de Educação de Jovens e Adultos –
GETEJA, organizado na Coordenadoria Regional de Educação – CRE, para
os coordenadores pedagógicos e professores dos estabelecimentos de ensino
estaduais e municipais que atuam em EJA, e para alfabetizadores das turmas

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conveniadas no âmbito do Projeto, prevendo atividades mensais, planejadas
em conjunto com GETEJA/CRE.
Coube, então, às IES contratadas executar a programação prevista no
plano de formação continuada de EJA, em 32 horas mensais de atividades
organizadas da seguinte maneira: 08 horas de planejamento e avaliação; 16
horas de formação; 08 horas de formação para os alfabetizadores das turmas
do Projeto “Alfabetiza Rio Grande”, bem como a elaboração de material
didático para apoiar as atividades desenvolvidas e apresentação do relatório
mensal sobre o trabalho realizado.
Com a preocupação de dar unidade paradigmática e epistemológica8 e
assegurar grau de qualidade às ações desenvolvidas nos Campi, os coorde-
nadores do programa reuniam-se mensalmente em Canoas, sede da Univer-
sidade, com o objetivo de traçar linhas comuns, sem descuidar das diversidades
das regiões envolvidas nesse processo de formação continuada. Nesses
encontros eram abordadas questões teóricas, técnicas e operacionais, numa
dinâmica de troca de experiências entre os pares. E foi numa dessas reuniões
que surgiu a idéia de realizarmos o “1º Encontro dos Professores da EJA dos
Campi da ULBRA”, que contou com o apoio da Secretaria de Educação e da
Unesco, reunindo 250 professores das diferentes Coordenadorias de Educa-
ção/RS: 27ª CRE, com sede em Canoas, abrangendo 5 municípios; 11ª CRE,
com sede em Torres ,abrangendo 24 municípios; 12ª CRE com sede em Guaíba,
abrangendo 20 municípios; 24ª CRE com sede em Cachoeira do Sul, abrangen-
do 28 municípios; 28ª CRE com sede em Gravataí, abrangendo 5 municípios e
da 39ª CRE com sede em Carazinho, abrangendo 21 municípios, locais onde a
Universidade Luterana do Brasil possui Campus Universitários.
A seguir, procuraremos detalhar alguns dos trabalhos que foram apre-
sentados nas Salas Temáticas9, cujo objetivo era o de proporcionar a troca de
experiências entre os professores dos municípios localizados em diferentes
regiões geográficas do Estado, bem como o de intercambiar as distintas práti-
cas pedagógicas dos professores que atuam nas totalidades de alfabetização,
pós-alfabetização e ensino médio, após seis meses de acompanhamento
sistemático em reuniões de estudo, debates e formação.
As apresentações foram mediadas pelos coordenadores dos Campi e
professores convidados. Estes realizaram os registros e coordenavam o

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debate das atividades, nas quais os professores manifestaram e compro-
varam o compromisso frente à Educação de Jovens e Adultos. Eis, alguns
dos trabalhos desenvolvidos:

Sala Temática A: Totalidade Alfabetização


1. Relato de Experiências – 27ª CRE
2. Ética e Cidadania – 27ª CRE
3. Alfabetiza RG/ Barra do Ribeiro: Alfabetização de Jovens e Adultos por
Projetos Pedagógicos – 12ª CRE
4. Projeto: Receitas Caseiras – 12ª CRE
5. EJA na Educação Especial – Instituto de Educação Moura e Cunha –
12ª CRE
6. EJA – Município de Capivari do Sul – 11ª CRE

Síntese dos Projetos:


1. E.E.E. Fundamental Canoas – Projeto Independência: Que País é
esse? Totalidades I, II, III
Com base nos princípios de participação, diálogo, problematização,
socialização, interdisciplinaridade, integração, relação teórico-prática foram
desenvolvidas as atividades referentes ao tema proposto, envolvendo dife-
rentes saberes e gerando novos conhecimentos. Foram abordadas situações
do cotidiano, a fim de serem refletidas, gerando um posicionamento crítico
frente à condição atual do país, traçando um paralelo entre um Brasil que se
desenvolve e outro que continua vivendo com a miséria, fome, analfabetismo,
desemprego... O projeto teve como objetivo geral, promover uma reflexão
crítica sobre o país em que vivemos, buscando assim, relacionar as diver-
sidades sócio-econômicas-culturais do país.
2. E.E.E. Fundamental Planalto Canoense: Ética e Cidadania
O projeto foi desenvolvido durante o 3º trimestre do ano de 2004, justi-
ficando-se a partir da necessidade do resgate de valores morais, para que
cada sujeito pudesse assim, desenvolver a construção moral e afetiva, vi-
sando os laços de solidariedade para a vida em comunidade, promovendo
assim, o desenvolvimento desses em seu meio frente seus deveres e direitos.

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Para a realização da proposta, foram reunidas as totalidades I, II e III e desen-
volvidas atividades relacionadas ao tema como: Semana da Pátria, do trânsito,
da criança, Farroupilha, Estatuto da criança e do idoso, reciclagem do lixo,
violência escolar, consciência negra, eleições, convivência fraterna, quali-
dade de vida, Proclamação da República, entre outros, fazendo com que os
educandos lembrassem o seu viver quando crianças, ressignificando-os através
de atividades de textos, vídeos informativos, músicas, eventos, produção
textual, gincana, cartazes, painéis, etc. A intenção, era a de propiciar uma
aprendizagem significativa na qual os alunos se tornassem ativos, participantes,
críticos e atuantes na construção de seu conhecimento.
3. 11ª CRE – Projeto: Receitas Caseiras
Sendo os educandos provenientes de uma realidade rural, em sua maioria
agricultores, o projeto desenvolvido baseou-se em suas vivências cotidianas,
principalmente vinculadas a culinária, visto que o maior número de edu-
candos era do gênero feminino. No desenvolvimento do projeto, os alunos
levaram as receitas, que se tornaram textos para a confecção de um livro de
receitas e as mesmas foram trabalhadas em sala de aula. Verificou-se a eleva-
ção da auto-estima dos alunos, a solidariedade e a participação dos mesmos.
Inclusive ocorreu a venda dos produtos alimentícios que se apresentavam
descritos no livro, tais como: doce de frutas, compotas, pães etc.
4. 12ª CRE – EJA na Educação Especial- Instituto de Educação Moura
e Cunha – Guaíba – Projeto: Abrindo as portas para vencer barreiras
A partir da leitura de sinais, os professores trabalharam com adultos
surdos desenvolvendo atividades de auto-estima, visitas a lugares públicos,
como museus, biblioteca-pública, passeio à Santa Catarina-Florianópolis
para participar do Congresso de LIBRAS, confecção de objetos e materiais
diversos de utilidade. O projeto visava a inclusão do surdo em todos os
espaços sociais.

Sala Temática B: Totalidade: Ensino Fundamental


1. EJA: Construindo Caminhos – 24ª CRE
2. Ética e cidadania – 27ª CRE
3. “Aproveitando os espaços Educativos na Comunidade” – 27ª CRE

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4. F. Adones dos Santos: “Relato Experiência – 24ª CRE”
5. “Olimpíadas, Eleições” – 24ª CRE
7. Francisco José Rodrigues: “Interdisciplinaridade e Desemprego” –
11ª CRE

1. Interdisciplinaridade e Desemprego
O tema, desemprego, foi resultado de entrevistas na comunidade sobre o
que mais preocupava a mesma. Construíram a partir de discussões, análises da
situação sócio-econômica em que eles se inserem, trabalhando-se: fatos
históricos; produção textual; acrósticos; doenças; saneamento básico; gráficos.
A culminância do projeto ocorreu através de uma exposição na escola com
a visitação de alunos de todas as turmas.

Sala Temática C: Totalidade: Ensino Fundamental


1. E.E.E.F. Adones dos Santos: “Oficina de Reciclagem de Papel” (Viamão)
– 28ª CRE
2. E.E.E.F. Ezequiel Nunes Filho: “Áreas Úmidas” – 27ª CRE
3. E.E. David Fontoura Barcellos: “Eja: Educação para a Vida” – 39ª CRE
4. E.E.Vital Brasil: “Projeto Brasilidade: Semana de 22” – 11ª CRE
5. E.E. Ciro Carvalho de Abreu: Relatando Experiências” – 24ª CRE
6. E.E.E.F. Cônego José Leão Hartmann: “Planejamento: Complexo Pe-
dagógico” – 27ª CRE

1. Oficina de Reciclagem de Papel


A escola tem uma clientela de alunos e alunas fora do mercado de trabalho,
portanto, a partir do levantamento desses problemas, começou-se a trazer a
problemática da poluição ambiental. A escola em parceria com a Prefeitura
Municipal de Viamão, onde há um galpão de reciclagem de lixo, utilizou-se
desta problemática através da geração de renda oriunda da coleta seletiva.
As oficinas começaram com o papel jornal, onde foram confeccionados vários
utensílios (cestos, modelagem, copos, folhas de papel reciclável...) e a partir
daí na confecção de cadeiras de praia com garrafas Pet. O projeto contou
com a participação da comunidade através da Feira de Ciências e Feira
Cultural da escola, aos sábados.

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2. Áreas Úmidas: Uma questão sócio-ambiental da Bacia do Rio
dos Sinos
O projeto teve como objetivo geral avaliar o conhecimento e a percepção
ambiental das populações ribeirinhas em relação à limpeza, conservação e re-
posição da mata ciliar do Arroio Esteio e demais áreas úmidas do município e
da região, sensibilizando-as para que ações, mesmo quando pequenas, contri-
buam para minimizar a poluição dos recursos hídricos na Bacia do Rio dos
Sinos, justificando-se a partir do adensamento nas áreas marginais do Arroio
Esteio e seu entorno, onde se destacam áreas invadidas e áreas de conflito que
ocasionam diferentes formas de impacto ambiental, refletindo-se em questões
sociais, econômicas e ambientais.

Síntese – O que temos?


O que temos? O que queremos?
1. Escola Ezequiel Nunes (Canoas)

Recursos hídricos do Rio dos Sinos, Preservação das áreas úmidas do


onde há muitos valões onde foram fei- Rio Grande do Sul, indispensáveis
tos depósitos de lixo, acarretando a à conservação da biodiversidade.
poluição hídrica. Minimizar a poluição dos recursos
hídricos. Organizar mutirões de
limpeza com as comunidades ribei-
rinhas valorização da área hídrica
para o futuro.
2. Escola Davi Barcelos
– A partir de questionamentos com os – Participação na Feira do Livro em
alunos (temas como A Campanha da Cachoeira do Sul, coletânea de tra-
Fraternidade) conta de água, como balhos dos alunos.
preservar a água potável, valorização – Participação em atividades culturais.
do ser humano (Olimpíadas).
– Exposição dos trabalhos na 24ª
– Diferentes formas de sermos cidadãos. CRE.
– Motivação para a leitura.
– Direitos e deveres dos cidadãos.
– Meio ambiente, sua preservação.

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O que temos? O que queremos?
3. Escola Vital Brasil (Cachoeira do Sul)
– A partir da semana da arte moderna – Valorizar a arte.
(o que é correr riscos, a visão de arte, – Visualizar a arte.
o que é arte?) com o trabalho de histó-
– Análise crítica das obras, teatro,
rias em quadrinhos.
minissérie de TV.
– Formas geométricas, perspectiva.
– Visão do mundo a partir da arte e a
poesia.
– Releitura do mundo, sabendo os
limites e suas potencialidades.

5. Escola Ciro Carvalho de Abreu (Cachoeira do Sul)


– Várias oficinas desenvolvidas durante – Despertar o gosto pela literatura
o ano (páscoa, reciclagem de materiais). gaúcha (Érico Veríssimo), nossa his-
– Desenvolvimento das oficinas com tória, nossas raízes, despertando o
tarefas relacionadas com o assunto. interesse pela nossa literatura.
– Trabalhar a árvore genealógica dos
alunos.
– A indumentária gaúcha da época.
– Álbuns representativos com o re-
sumo das obras.
6. Escola Cônego José (Canoas)
– Áreas ocupadas com grande pobreza – Esperança de melhorar as áreas
com pesquisa sócio-antropológica, ex- ocupadas.
pectativas perante esta problemática a – Valorização da comunidade.
escola fica no entorno destas comuni-
– Planejamento coletivo (interdisci-
dades ocupadas.
plinaridade).
– Discriminação (comunidade) e discri-
minar (escola).

Metodologia usada pelas escolas:


– Pesquisa sócio-antropológica nas comunidades.
– Tabulação de dados.

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Projetos Ensino Médio
1. E.E.E.M. Caetano G. da Silva: Construindo a Cidadania
O objetivo geral do projeto foi o de oportunizar o estudo de questões de
inclusão social na sociedade, possibilitando a crítica construtiva. Foram
apresentados distintos textos, a fim de despertar uma reflexão sobre a Inde-
pendência do Brasil, dando abertura a debates de assuntos envolventes da
realidade, relacionando-os com os conteúdos desenvolvidos nas aulas
anteriores e exercícios para reforçar a aprendizagem.
2. E.E.E.M. Augusto Meyer: “Trânsito”– Esteio, 27ª CRE
O trabalho consistiu no desenvolvimento de assuntos referentes ao tema
de forma interdisciplinar, sendo o material utilizado na apresentação à co-
munidade escolar, preparado pelos alunos com a orientação do professor
em sala de aula. Foram envolvidas seis turmas da escola, trabalhando os
seguintes assuntos: Violência no trânsito (trabalhado durante a disciplina
de matemática), Questões sociais que envolvem o trânsito (trabalhado nas
disciplinas de Português, Inglês e História, Poluição causada pelo trânsito,
trabalhado nas disciplinas de química e biologia), Bibliografia do trânsito
(na disciplina de Literatura), Legislação, Primeiros socorros e Reabilitação
física (trabalhados nas disciplinas de Geografia e Educação Física), Inércia e
Sinalização (trabalhado sem Física e Educação Artística).

Últimas palavras ...


Após a socialização dos trabalhos em grande grupo, percebeu-se a
tendência dos educadores em trabalhar com a Pedagogia de Projetos. Em
muitos trabalhos realizados, a interdisciplinaridade já se fez perceptível,
o que demonstra a busca e a integração entre áreas do conhecimento, num
movimento de aperfeiçoamento e de comprometimento dos professores
em seu fazer pedagógico.
Por outro lado, percebeu-se também, em algumas propostas pedagógicas e
trabalhos apresentados, a relação metodológica voltada a um processo de in-
fantilização do jovem e do adulto: utilização de livros infantis, cartilhas, folhas
mimeografadas para pintura e materiais xerografados de livros de atividades
matemáticas e lingüísticas relacionados às séries iniciais. Assim, verifica-se a

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necessidade de uma formação continuada para os educadores que atuam em
EJA, para que estes possam reconstruir seu saber e fazer pedagógico.
A experiência foi válida no sentido de ter proporcionado aos Coorde-
nadores dos Programas, à Universidade, a Secretaria de Educação do Estado
e a Unesco a visibilidade do trabalho realizado no estado, bem como os
aspectos teóricos e metodológicos que deverão ser retomados e aperfeiçoados
em sua continuidade.

Verdade
A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade
E sua segunda metade
Voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
Seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade.

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Notas
1 Pedagoga. Mestre em Educação. Professora da ULBRA, Universidade Luterana
do Brasil/Canoas – RS, campus Guaíba.
2 Historiadora. Mestre em História. Professora da ULBRA, campus Guaíba.
3 Pedagoga. Psicopedagoga. Mestre em Educação. Doutoranda em Educação
pelo PPGEDU/UFRGS. Professora da ULBRA, campi: Canoas e São Jerônimo.
4 Pedagoga. Doutora em Educação. Professora da ULBRA, campus Canoas.
5 Pedagoga. Psicopedagoga. Mestre em Educação. Diretora do Curso de Pedagogia
e professora da ULBRA, campus Canoas.
6 Códigos utilizados de forma corrente em nossa sociedade, em diversos materiais
de leitura em circulação entendidos como os diversos meios de comunicação/
linguagens.
7 Instituídas na respectiva Resolução nº 1 de 05/ 07/ 2000.
8 Os campi participantes do projeto utilizaram-se dos paradigmas Interacionista
e Sociointeracionista. As distintas correntes epistemológicas centraram-se em
teóricos e pesquisadores como: Piaget; Vygotsky; Bakhtin; Paulo Freire; Emília
Ferreiro; Magda Soares; Ângela Kleimann, entre outros, buscando respeitar
assim as necessidades de cada região.
9 Frente à necessidade de coesão textual, alguns trabalhos apresentados pelos
docentes nas Salas Temáticas sofreram modificações em sua estrutura de
apresentação, linguagem, entre outras questões.

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102
Educação de jovens e adultos – p. 87-102
Cooperação Sul-Sul em alfabetização:
rumo ao desenvolvimento humano

Michelle Morais1

1. Introdução
ste artigo se propõe a apresentar, qualitativamente, os vínculos identifica-
E dos teórica e empiricamente entre Desenvolvimento Humano, Alfabetiza-
ção de Jovens e Adultos e Cooperação Sul-Sul. Ele é ao mesmo tempo resultado
e desdobramento de pesquisa realizada entre abril e novembro de 2004 para o
programa de mestrado em Estudos de Desenvolvimento do Intitute of Social
Studies – ISS (Haia, Países Baixos). Tal pesquisa adotou como estudo de caso a
cooperação entre o Programa Alfabetização Solidária e o Ministério da Educa-
ção de Moçambique, país em que foi feita a pesquisa de campo nos meses de
julho e agosto de 2004. Utilizando-se do conhecimento empírico obtido naquela
ocasião, este artigo não apenas evidencia os vínculos acima mencionados, como
também, em virtude da importância dos mesmos, aponta orientações para a prá-
tica. São princípios gerais propostos para guiar a experiência da Cooperação Sul-
Sul em Alfabetização de Jovens e Adultos. Por fim, mas não menos importante, o
presente artigo chama a atenção para os desafios e as oportunidades que se colo-
cam para a continuidade e aprimoramento da Cooperação Sul-Sul no futuro.
Vale ressaltar que, devido a limitações de espaço, inúmeras questões
expostas no presente texto não virão acompanhadas de sua fundamentação
empírica. Conseqüentemente, é bem possível que em alguns momentos o leitor
se depare com argumentos de aparência normativa. Assegura-se, no entanto,
que tais argumentos foram derivados dos dados primários e secundários
obtidos (e analisados, obviamente, pelas lentes próprias à autora).

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Cooperação Sul-Sul em alfabetização: rumo ao desenvolvimento humano – p. 103-114
2. Alfabetização: liberdade essencial para
o desenvolvimento humano
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até os anos 80 prevaleceu
uma visão do desenvolvimento que o concebia e o media por meio de
elementos fundamentalmente econômicos. Nesse sentido, o Produto In-
terno Bruto (PIB) de um país e sua renda per capita eram tomados como
parâmetros para a avaliação do nível de desenvolvimento alcançado. Ao
fim da década de 80 e início dos anos 90, o que se pode chamar de “Regi-
me Internacional de Desenvolvimento” (Morais: 2001) se desprendeu desta
visão puramente economicista e econométrica, abrindo-se para novas abor-
dagens que qualificavam o desenvolvimento como humano e preferivel-
mente sustentável.
A Teoria do Desenvolvimento Humano, erigida por acadêmicos como
Amartya Sen e Martha Nussbaum, ganhou reconhecimento internacional ao se
tornar o pilar sustentador do Relatório de Desenvolvimento Humano anual-
mente publicado pelas Nações Unidas desde 1990. Segundo essa teoria e nas
palavras de Sen, o desenvolvimento deve ser entendido como “processo de
expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam” (Sen: 2000, p. 17).
Também a pobreza é abordada por ele como privação de liberdades e não ape-
nas como insuficiência de renda. Para que se expanda essa “liberdade para
levar o tipo de vida que as pessoas têm razão para valorizar”, há algumas
liberdades instrumentais a serem garantidas. Sen introduz cinco categorias
de liberdades instrumentais: “(1) liberdades políticas, (2) facilidades econômi-
cas, (3) oportunidades sociais, (4) garantias de transparência, e (5) segurança
protetora” (Sen: 2000, p. 55).
Nesse âmbito, ele apresenta a alfabetização como uma oportunidade
social, e, conseqüentemente, como uma importante liberdade. Em suas pa-
lavras, “o analfabetismo pode ser uma barreira formidável à participação em
atividades econômicas que requeiram produção segundo especificações ou que
exijam rigoroso controle de qualidade (uma exigência sempre crescente no
comércio globalizado). De modo semelhante, a participação política pode ser
tolhida pela incapacidade de ler jornais ou de comunicar-se por escrito com
outros indivíduos envolvidos em atividades políticas” (Sen: 2000, p. 56). Em
consonância com essa idéia, a Organização das Nações Unidas para a Educa-
ção, a Ciência e a Cultura (UNESCO) tem adotado o lema Alfabetização como
Liberdade como o marco de suas ações em alfabetização.

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Cooperação Sul-Sul em alfabetização: rumo ao desenvolvimento humano – p. 103-114
A importância da alfabetização para o desenvolvimento humano pode
ser também vislumbrada na composição e no cálculo do chamado IDH –
Índice de Desenvolvimento Humano. Introduzido em 1990, pelo primeiro
Relatório de Desenvolvimento Humano, o IDH se coloca como importante
alternativa ao PIB na medição do nível de desenvolvimento de um país.
Ademais, o cálculo do IDH também para estados e municípios passou a ser
utilizado como importante instrumento para o desenho e focalização de
políticas públicas.
Sendo um índice composto, o IDH se sustenta em um tripé de índices: um
para renda, um para longevidade e outro para conhecimento (Desai: 1991).
O primeiro deriva da renda per capita, o segundo da expectativa de vida, e o
terceiro – educação – é também um índice composto. O índice de educação
tem dois componentes: taxa de alfabetização da população com 15 anos ou
mais e taxa líquida de matrículas em todos os níveis de ensino. Note-se que
no cálculo do índice de educação, a taxa de alfabetização recebe peso 2,
enquanto a taxa de matrículas tem peso 1. Embora pareça mero detalhe
metodológico, essa é uma evidência do destacado valor que a teoria do
desenvolvimento humano e sua operacionalização conceitual conferem à
alfabetização da população jovem e adulta.

3. Cooperação Sul-Sul: uma aliada


O analfabetismo persiste em grande parte do mundo em desenvolvimento
apesar da marcante modernidade científica e tecnológica deste século XXI.
Convencidos de que a educação é um direito fundamental e inalienável,
governos, sociedade civil, iniciativa privada e organismos internacionais têm
dedicado esforços para levar a alfabetização àqueles que não a obtiveram
durante sua infância ou não tiveram a oportunidade para praticá-la, assim
retornando à condição de analfabetismo.
As experiências são diversas, como diversos são os contextos locais em
que vivem os mais de 860 milhões de adultos analfabetos. E essa diversida-
de traz um sem-número de metodologias, de abordagens, de materiais (publi-
cados ou simplesmente de uso corrente da comunidade) como também de
resultados. A riqueza de experiências espalhadas em todo o mundo em
desenvolvimento corresponde a um recurso de que se poder lançar mão para

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Cooperação Sul-Sul em alfabetização: rumo ao desenvolvimento humano – p. 103-114
fortalecer as demais ações voltadas à alfabetização de jovens e adultos. Um
número significativo de iniciativas tem alcançado positivos e destacados
resultados em seus esforços. Exemplos importantes são o projeto de alfa-
betização bilíngüe na Bolívia; os programas de alfabetização conduzidos
pela ActionAid em diversos países do Sul com a metodologia REFLECT;
a política de alfabetização intensiva da cidade de Tianshui, na China; o
Conselho Bunyad de Alfabetização Comunitária no Paquistão (UNESCO:
2004), e os programas brasileiros Alfabetização Solidária (AlfaSol) e Brasil
Alfabetizado, entre outros.
Nesse sentido, o compartilhamento de experiências como as acima
mencionadas (e diversas outras) e o aprendizado conjunto oferecem a possi-
bilidade de que cada país do Sul não tenha que “reinventar a roda” em suas
ações de combate ao analfabetismo. Em particular, a Cooperação Sul-Sul tem
potencial utilidade, estando em consonância com o oitavo e último Objetivo
de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que chama para o estabelecimento
de uma parceria mundial para o desenvolvimento. Do mesmo modo, as
Nações Unidas defendem que “para que a Década das Nações Unidas para a
Alfabetização tenha êxito, parcerias precisam ser estendidas e fortalecidas
para compartilhar informações sobre as práticas correntes, para coordenar
atividades e para alavancar recursos”2 (UNESCO: 2003, p. 55).
Contudo, a Cooperação Sul-Sul em alfabetização não é nenhuma novida-
de que este artigo venha a introduzir. Embora não sejam numerosos os casos,
pode-se mencionar, por exemplo, as presentes iniciativas de cooperação entre
Cuba e Haiti (UNESCO: 2004) e entre Cuba e Moçambique para comparti-
lhar a experiência cubana no estabelecimento de programas de alfabetiza-
ção via rádio. Ademais, desde 2000 o Programa Alfabetização Solidária
tem também cooperado com países como Timor Leste, Cabo Verde, São
Tomé e Príncipe, Moçambique e Guatemala para a “transferência”3 de suas
práticas em alfabetização.
A Cooperação Sul-Sul para a Alfabetização figura como exemplo da evo-
lução por que tem passado a cooperação entre países em desenvolvimento.
Essa modalidade de cooperação surgiu fundamentalmente nas esferas políti-
ca e econômica durante os anos de Guerra Fria. No campo político, os países
do então chamado “Terceiro Mundo” se uniam para fazer frente à bipolaridade,
constituindo o Movimento Não-Alinhado e negociando o estabelecimento de

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Cooperação Sul-Sul em alfabetização: rumo ao desenvolvimento humano – p. 103-114
uma Nova Ordem Econômica. Em assuntos econômicos propriamente ditos,
a Cooperação Sul-Sul voltava-se ao estímulo aos intercâmbios comerciais
inter-hemisféricos, assim como ao compartilhamento de tecnologias de
produção. Com o fim da bipolaridade e as mudanças ocorridas no Regime
Internacional de Desenvolvimento, o foco colocado sobre o desenvolvimento
humano e sobre a erradicação da pobreza permitiu o fortalecimento da Coope-
ração Sul-Sul no âmbito social. Paralelamente a essa evolução da agenda da
cooperação, sucedeu também uma maior ênfase no compartilhamento não
apenas de técnicas mas principalmente de conhecimentos “do Sul, para o
Sul”. Reconheceu-se pois, a capacidade do mundo em desenvolvimento de
produzir soluções autênticas para seus próprios problemas.

4. Alguns princípios a orientar a Cooperação Sul-Sul para


a Alfabetização
Ao defender e promover o exercício da Cooperação Sul-Sul corre-se,
todavia, o risco de romantizá-la. A cooperação entre países em desenvolvi-
mento de fato lhes oferece maiores oportunidades de aprendizado e apro-
veitamento das lições aprendidas, uma vez que as condições de vida de
suas populações tendem a se aproximar quando comparadas àquelas dos
países do Norte. No entanto, essa maior proximidade não chega a equiparar
completamente os países em desenvolvimento. Embora referidos sob essa
única denominação desde o célebre discurso do presidente norte-america-
no Harry Truman (Truman: 1949), esses países diferem amplamente no
que se refere ao seu contexto social - que é heterogêneo não apenas entre
países como também dentro deles – e à parcela de poder de que desfrutam
dentro do que Hans Morgenthau chamou de “balança internacional de poder”
(Morgenthau: 1978). Comparem-se, por exemplo, África do Sul e Nepal,
México e Serra Leoa, Belize e Índia.
Conseqüentemente, observa-se não ser apropriado supor que: (1) a
Cooperação Sul-Sul nunca seja vertical; (2) as soluções encontradas em
um país sejam inerentemente implementáveis e adequadas nos demais;
(3) questões de apropriação (ownership) e sustentabilidade não precisem
ser preocupações constantes como se tem defendido para a Cooperação
Norte-Sul. Nesse sentido, a partir da coleta de dados em campo e análise
do estudo de caso, o presente artigo apresenta a seguir alguns princípios

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Cooperação Sul-Sul em alfabetização: rumo ao desenvolvimento humano – p. 103-114
que resultam importantes no desenho e implementação da Cooperação
Sul-Sul para a Alfabetização de Jovens e Adultos.

Horizontalidade e aprendizado mútuo


Em geral, iniciativas de cooperação entre dois países em desenvolvimento
se estabelecem quando um deles apresenta êxito na consecução de progra-
mas, neste caso de alfabetização de jovens e adultos. Nesse contexto, tendem
a emergir relações tradicionais de poder, como por exemplo “professor-
aluno”, em que se espera que uma parte ensine, enquanto a outra aprenda
em conformidade. Contudo, essa cooperação será mais proveitosa e eficaz
para ambas as partes se forem estabelecidas, na prática, relações de horizonta-
lidade e aprendizado mútuo.
Isso significa incluir entre os objetivos da cooperação ganhos de apren-
dizado tanto para o país destinatário quanto para o país remetente das lições
resultantes da experiência de sucesso em questão4. O país destinatário,
embora principal aprendiz nesta cooperação, certamente possui também
experiências passadas em alfabetização as quais lhe deixaram lições. Estas,
positivas ou não, podem ser também compartilhadas e aproveitadas para as
novas ações em desenvolvimento.

Apropriação e observância das especificidades locais


A conseqüência imediata do que foi anteriormente dito é que um projeto
de Cooperação Sul-Sul demanda elaboração conjunta. O país destinatário
deve se sentir também dono da ação/estratégia a ser desenvolvida e, funda-
mentalmente, direcionar esta cooperação ao saneamento de suas principais
deficiências e à solução de possíveis gargalos.
Deste modo, o ponto de partida para o desenho de tal projeto se en-
contra em uma análise situacional do país destinatário no que se refere ao
seu perfil do analfabetismo (literacy profile)5 e às suas deficiências insti-
tucionais. Adicione-se a isso um levantamento e uma análise de suas passa-
das políticas e iniciativas da sociedade civil em alfabetização de jovens e
adultos. Há países em que, por exemplo, campanhas de alfabetização mar-
caram a história nacional, deixando indicações quanto a estratégias que
funcionam bem e outras que não devem ser repetidas.

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Cooperação Sul-Sul em alfabetização: rumo ao desenvolvimento humano – p. 103-114
Essas análises se fazem importantes para que a experiência de sucesso
“transferida” por meio da cooperação seja adequadamente adaptada às especi-
ficidades locais do país destinatário. Comparações entre os dois países coope-
rantes são úteis para a identificação dos principais aspectos a serem adaptados.
Em se tratando de programas de alfabetização de jovens e adultos, dentre os
principais aspectos a serem identificados e comparados se encontram: (i) loca-
lização da população não-alfabetizada – se majoritariamente em áreas urbanas
ou rurais; (ii) composição etária e por sexo desta mesma população; (iii) sua(s)
língua(s) materna(s) – se a mesma língua proposta pelo programa de alfabeti-
zação ou não; (iv) a base gramatical e vocabular do idioma dos dois países, no
caso de o idioma ser o mesmo. Obviamente outras questões mais complexas,
mas não menos importantes, devem ser também observadas, tais como a
motivação da população não-alfabetizada para freqüentar programas de
alfabetização e as relações de gênero prevalecentes na sociedade.

Sustentabilidade e fortalecimento institucional


Quando se tratam de cooperação multilateral e bilateral Norte-Sul, costuma-
se dizer que a meta última da cooperação é se retirar o quanto antes do país (neste
caso) beneficiário. Pode se dizer que também a Cooperação Sul-Sul sirva a um
propósito temporário de aprendizado mútuo e fortalecimento do país destinatá-
rio. Por isso, é importante que o processo cooperativo não se assemelhe a uma
mera “entrega de encomendas”, em que o país remetente entrega um produto
ou presta um serviço ao país destinatário. Ao contrário, este processo deve
estar voltado a garantir que as instituições daquele país possam, uma vez finda
a cooperação, gerar por si mesmas aquele produto ou serviço. Nas palavras
metafóricas do Sr. Ernesto Muianga, responsável pela Direção Nacional de
Alfabetização e Educação de Adultos (DNAEA) do Ministério da Educação de
Moçambique: “Ao pobre não se deve dar o peixe. Deve-se ensiná-lo a pescar”6.
No seio das Nações Unidas e suas agências especializadas, a preocupação
central com a sustentabilidade das ações resultantes da cooperação internacio-
nal levaram ao surgimento do conceito de capacity building ou fortalecimento
institucional. O conceito se define como:
Uma intervenção ou atividade realizada por uma organização ou grupo em
um país para auxiliar aqueles em outro país a melhorar sua habilidade de

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desempenhar certas funções ou alcançar certos objetivos. (...) Crescente-
mente, o fortalecimento institucional se tornou uma parte central da lógica
de toda a idéia de cooperação internacional para o desenvolvimento. Se os
países não puderem ser auxiliados a alcançar algum nível de sustentabilida-
de e desempenho institucional, qual seria então o valor de longo prazo da
cooperação internacional?7 (United Nations: 1999, p. 14)

Deste modo, em se compartilhando experiências de sucesso, buscar o


fortalecimento institucional significa colocar o foco sobre a habilitação do
país destinatário para que o mesmo obtenha bons resultados por meio de
estratégias similares que se adeqüem a sua realidade nacional. No caso especí-
fico de Moçambique, os técnicos da Direção Nacional de Alfabetização e Edu-
cação de Adultos indicaram, quando entrevistados, que o país necessita ser
institucionalmente fortalecido nos seguintes aspectos:
a) Fortalecimento dos centros de formação de alfabetizadores, a fim
de que o país tenha capacidade própria para treinar professores em
novas metodologias.
b) Desenvolvimento de novos materiais didáticos de alfabetização de jo-
vens e adultos (tanto em português quanto nas línguas moçambicanas),
uma vez que os materiais oficiais foram elaborados em 1983.
c) Estabelecimento de parâmetros para avaliação de materiais didáticos, já que
o país conta com a presença de inúmeras organizações multilaterais,
bilaterais e da sociedade civil que provêm programas de alfabetização
fazendo uso de uma diversidade de materiais. Aliás, esta é uma área em
que também o Brasil necessita se aprimorar.

É importante mencionar que alguns desses aspectos já estão sendo aborda-


dos na segunda fase da cooperação Brasil-Moçambique para Alfabetização,
agora envolvendo o Programa Alfabetização Solidária e os Ministérios da
Educação do Brasil e de Moçambique.

5. Oportunidades e desafios ao futuro da Cooperação Sul-Sul


Por um lado, a cooperação entre países em desenvolvimento demanda
elevados recursos de países que em geral se encontram em situação de
permanente contenção de gastos. Por exemplo, a inexistência de rotas aéreas
freqüentes e diretas entre os mesmos faz com que os custos da cooperação

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Cooperação Sul-Sul em alfabetização: rumo ao desenvolvimento humano – p. 103-114
“presencial” sejam naturalmente elevados. E isso não se aplica apenas à
cooperação do Brasil com os demais países de língua portuguesa. O custo
de um bilhete aéreo de Brasília a Santiago do Chile (portanto, dentro do
mesmo continente) se equipara, por exemplo, ao valor de um bilhete para
capitais européias como Madri e Londres.
É certo que as tecnologias de comunicação e informação podem de-
sempenhar papel fundamental neste processo. Contudo, são inúmeros os
países em desenvolvimento cujos governos ainda contam com acesso limi-
tado a ferramentas informáticas e à Internet. Ademais, considerando-se que esta
cooperação deva estar voltada para o fortalecimento institucional nos países
destinatários, até que se desenvolvam mecanismos eficientes de educação a
distância continuará sendo necessário lançar mão de processos presenciais
de treinamento e troca de experiências.
Adicionalmente, seria ilusório imaginar que a Cooperação Sul-Sul seja
custosa apenas para o país remetente. De forma alguma, o país destinatário
incorre também em diversas e fragmentadas despesas para acolher a coope-
ração recebida, o que, no final do dia, soma um montante considerável de
recursos financeiros.
Vis-à-vis essa barreira financeira (para países que afinal de contas
enfrentam os permanentes compromissos com sua dívida externa), é possível
vislumbrarmos algumas oportunidades para o financiamento da Coopera-
ção Sul-Sul em Alfabetização. Primeiramente, o momento político criado
pela Década das Nações Unidas para a Alfabetização (2003-2012) pode
contribuir para que parte da Assistência Oficial para o Desenvolvimento
(ODA) seja redirecionada para a alfabetização de jovens e adultos. Isso
ocorreria em contraposição à tendência da última década e meia, em que
esses recursos, quando destinados à educação, foram concentrados no ensino
fundamental para crianças.
Uma vez que a atenção dos doadores bilaterais e multilaterais esteja voltada
para a alfabetização, abre-se a possibilidade de que a Cooperação Sul-Sul seja
fomentada. Ademais, é possível que se multipliquem as ainda incipientes
experiências de “triangulação” - a cooperação entre dois países em desenvolvi-
mento que é financiada, acompanhada e facilitada por um país desenvolvido.
A triangulação parte dos pressupostos de que: (i) os países em desenvolvimento

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Cooperação Sul-Sul em alfabetização: rumo ao desenvolvimento humano – p. 103-114
teriam mais a se beneficiar com a troca de experiências entre si do que com
os países do Norte; (ii) consequentemente, a ajuda externa seria mais eficiente-
mente aplicada se usada para financiar a Cooperação Sul-Sul. Adicionalmen-
te, a prática da triangulação reflete o estabelecimento de um verdadeiro
pacto pela Alfabetização, congregando diferentes parceiros em torno de
um único objetivo: levar o direito à educação e o desenvolvimento huma-
no àqueles que se encontram privados da capacidade de ler, escrever, cal-
cular e interpretar.
Nas palavras da Sra. Rosa-María Torres, “as relações Norte-Sul con-
tinuarão sendo importantes. No entanto, provavelmente a melhor contri-
buição que o Norte poderá aportar no âmbito desta Década para a Alfabe-
tização em termos de compartilhamento de informações e construção de
redes (networking) será em auxiliar os países em desenvolvimento a for-
talecer seus vínculos, seu intercâmbio e a cooperação Sul-Sul”8 (Torres:
2000, p. 20).

6. Conclusão
Destarte, o artigo que se encerra procurou indicar os vínculos teóricos
entre o desenvolvimento humano e a alfabetização, assim como as conexões
entre esta última e a prática da Cooperação Sul-Sul. Apresentaram-se também
princípios ou orientações que se observam importantes para o melhor apro-
veitamento e desempenho desta cooperação. São evidentes os desafios que se
colocam aos países em desenvolvimento para que possam compartilhar suas
experiências em alfabetização de jovens e adultos e para que possam apren-
der uns com os outros. Todavia, nesta Década das Nações Unidas para a
Alfabetização emergem também oportunidades que podem alavancar esta até
então tímida modalidade de cooperação.
Por fim, é imprescindível destacar que será exatamente a comple-
mentaridade entre as iniciativas conduzidas no Sul e as análises políticas
e sociais realizadas pela academia e por organismos internacionais que
nos permitirão progredir na busca incessante da Alfabetização para Todos
e do Desenvolvimento Humano. Nesse processo de retro-alimentação, o
posicionamento crítico se faz fundamental, como bem expresso pelo cien-
tista social Paschal Mihyo:

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Não será útil que o Sul adote uma abordagem muda e camuflada para
questões de política e estratégia. Relutância em ser autocrítico na crença
confusa de que o auto-exame conota falta de militância é um problema
real para o progresso no Sul9 (Mihyo: 1992, p. 235).

Notas
1 Embora a autora esteja atualmente à serviço da Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), as idéias apresentadas
neste artigo não necessariamente correspondem às daquela organização.
2 Tradução do inglês para o português feita livremente pela autora deste artigo.
3 O termo “transferência” está sendo aqui utilizado em conformidade com a
literatura que aborda a chamada “transferência de políticas” (policy transfer).
Para conhecer a base conceitual desse corpo de literatura, ver Dolowitz e Marsh
(1996), Stone (2000), Dolowitz e Marsh (2000), e Newmark (2002).
4 Em geral a literatura em cooperação internacional utiliza as expressões “país
beneficiário” e “país doador”. Contudo, em conformidade com o princípio de
horizontalidade na relação entre as partes cooperantes, opta-se neste artigo
pelos termos “país destinatário” e “pais remetente”, respectivamente.
5 O perfil do analfabetismo (literacy profile) de um país pode ser elaborado com
o uso da mesma metodologia utilizada para o levantamento do perfil de pobreza
(poverty profile). Utilizam-se dados de pesquisas por amostra de domicílio ou
dados censitários para levantar as principais características sócio-econômicas
da população não-alfabetizada. No campo das políticas para a redução da
pobreza esse tipo de perfil tem sido bastante útil para o desenho de estratégias
que mais se aproximem das necessidades da população pobre.
6 Entrevista realizada em 10 de agosto de 2004 nas dependências do Ministério
da Educação de Moçambique.
7 Tradução do inglês para o português feita livremente pela autora deste artigo.
8 Tradução do inglês para o português feita livremente pela autora deste artigo.
9 Tradução do inglês para o português feita livremente pela autora deste artigo.

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UNITED NATIONS (1999). Capacity building supported by the United Nations:
some evaluations and some lessons. New York: United Nations Publication.

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Cooperação Sul-Sul em alfabetização: rumo ao desenvolvimento humano – p. 103-114
Dez elementos para quem quer ter êxito
como professora ou professor

Paulo Ghiraldelli Jr.1


Francielle Maria Chies

literatura sobre “formação de professores” no Brasil, na última década


A do século XX, insistiu na idéia de “professor reflexivo”. Generica-
mente falando, segundo tal acepção o professor deveria, antes de tudo, ser
um agente que concomitantemente exerceria a atividade do magistério e
refletiria sobre sua prática, alterando-a segundo rumos apontados por tal
prática. Pensando no esquema de reflexão de tal professor, podemos dizer
que é possível uma organização mínima de elementos que são comuns a todo
trabalho docente e que, então, poderiam ser colocados em um quadro a
respeito do que o professor deve refletir em seu cotidiano.
Fornecemos aqui dez elementos para a reflexão de quem está se pre-
parando para ser professor ou professora, ou que já está na carreira do
magistério. Os elementos estão abaixo e, após eles, há um comentário
normativo para cada um deles.

Os elementos
1) o aluno, 2) a matéria a ser ensinada, 3) as técnicas didáticas que en-
volvem a relação ensino-aprendizagem, 4) a legislação do ensino que
rege sua vida profissional na escola, 5) a arquitetura escolar, 6) a relação
da escola com a comunidade que a circunda e/ou que envia estudantes
para a escola, 7) a sua própria identidade como professor, 8) a sua filo-
sofia da educação e, portanto, a literatura que o instrui na sua postura de

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professor, 9) a avaliação escolar e 10) os objetivos educacionais, os seus
e os da escola.

Os comentários
1) O aluno
Se você é ou vai ser professora ou professor do ensino fundamental ou
médio, antes de escutar qualquer professor seu falar sobre o que é um aluno
ou o que é “a criança”, antes mesmo de ler qualquer livro sobre infância e
juventude, procure lembrar do aluno que você foi. O que lhe agradava? O que
não lhe agradava na escola e em relação aos seus mestres? Se você não
sabe responder a tais questões, tudo que você aprendeu para trabalhar no
magistério, pouco lhe servirá.
Se você não tem memória do tempo em que foi aluno, de duas uma:
ou você apagou tudo da mente porque foi tudo muito ruim, e então você
precisa se esforçar para lembrar, ou você é preguiçoso mentalmente, quanto
à memória, e então é bom que pare de ser assim urgentemente. Faça um
inventário daquilo que você não gostava e do que gostava enquanto você
era aluno do ensino fundamental e médio. Procure lembrar, especialmente,
do seguinte: o que, em específico, seus pais ou responsáveis cobravam de
você como aluno, e o que a professora cobrava. Com esse inventário na
mão, você já tem condições de começar a procurar as razões dos ódios e
amores do seu futuro aluno ou do seu aluno atual. Faça isso agora. Faça
isso sempre. Este é sempre seu primeiro passo.
Como professora, você vai avaliar se o que gostava vale a pena repetir e
se o que não gostava, de fato, vale a pena, agora, descartar. Você precisa
menos de sociologia da educação para saber sobre origem dos alunos e para
saber dos gostos dos alunos. Você tem, antes de tudo, a sua memória – use-a,
pois ela é quem vai lhe garantir dados para uma melhor avaliação de como
lidar com seus alunos atuais.
Não descuide deste detalhe: entre todas as profissões, a sua é, talvez, a
que menos necessite de “estágio”, pois você já “estagiou” – ninguém ficou
tanto tempo no local de trabalho quanto você. Nenhum médico ficou no
hospital desde criança. Nenhum engenheiro ficou em uma obra desde criança.
Mas você ficou na escola durante muito tempo, e ainda está nela, portanto,

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um bom material de reflexão que viria de um estágio, já está em suas mãos.
Não jogue fora tal experiência. Não a avalie de modo cego.
2) A matéria
A matéria a ser ensinada no ensino fundamental e médio não é só a que
está nos livros didáticos – que você precisa conhecer e saber avaliar – ou a
que está na programação da escola ou a que é determinada (ou sugerida) pela
política educacional do governo. A matéria é algo que tem a ver com você,
pessoalmente; é, principalmente, o que você gosta e o que é necessário para o
aluno se sair bem socialmente sem prejudicar o conjunto social.
Livro didático, lembre-se, faz parte mais de uma indústria que, não raro,
não prima por um projeto pedagógico razoável e cuidadoso. Lucro rápido e
fácil, como certas editoras querem, nem sempre é compatível com a produção
de bons livros, pois bons livros precisam ser escritos por bons autores, que
são caros. Então, não deixe somente o livro didático determinar o conteúdo
de suas aulas.
A matéria a ser ensinada é, antes, algo que permite aos seus alunos ganhar
liberdade de ação, pensamento e linguagem. Liberdade é poder optar. “Posso
escolher?” – esta é a pergunta que colocamos para saber algo a respeito de
liberdade. Se alguém pode escolher entre várias coisas, quando vai agir, pensar
ou falar e escrever, então, é mais livre. Quem sabe inglês é mais livre do
quem não sabe, pois pode escolher entre conversar com mais pessoas e
conversar com menos pessoas. É difícil dizer que a liberdade não está
associada à felicidade. Mas se você, enquanto professora ou professor,
não sabe a matéria que vai ensinar, e então possui menos liberdade do que
poderia ter, esqueça da profissão de professor, pois um escravo dificil-
mente cria pessoas livres. Você é um escravo de sua falta de uma erudição
mínima. Se você não domina as ciências, a matemática, as humanidades e
a língua pátria, você não vai ser professor ou professora. Lembre-se: sabe-se
pouco, este pouco é o que você precisa realmente saber e é isto que pode
dar aos seus alunos – dê o melhor.
O professor é, antes de tudo, alguém que sabe a respeito da matéria; é esta
que lhe dá o poder de ser “alguém que ensina”. Só ensina quem sabe. Esta é a
mais pura e simples verdade. O verdadeiro professor consegue escrever, de
modo correto, um bom manual da matéria que ele ensina. Se não consegue

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fazer isso, não é professor. Não esqueça: você é o principal autor do livro
didático que vai usar.
3) A técnicas
Jamais acredite que há técnicas universais capazes de servirem para todo
e qualquer conteúdo a ser ensinado. Mas jamais acredite que não há um pon-
to comum entre os vários conteúdos, capaz de fazer todas as matérias virem
a ser ensinadas de modo semelhante. Um deles é o livro – o livro que você
deve escrever! O livro que você vai fazer, registrando as técnicas que você
acredita que podem funcionar e melhorar o aprendizado da matéria em questão,
é a chave de seu ensino na parte didática.
Testar técnicas é uma obrigação, mas nunca parar de testar é transformar
seus alunos em cobaias. Você não pode ser professor se deseja ter cobaias e
não alunos.
Além disso, lembre-se que cada técnica não tem razão de ser em si mesma.
Cada técnica é uma forma de articular algum meio para atingir determinados
fins. Fora disso, você estaria cultuando sua profissão não como professora ou
professor, mas como um reduzido criador de “didatiquices”.
4) A legislação
Se você vai trabalhar em uma escola, deve saber, no mínimo, as regras de
convívio na escola e as LDBNs. Elas regram suas atitudes. Se não concorda
com elas, lute politicamente para mudá-las. Mas não as desconheça.
Ler a lei significa, antes de tudo, interpretar a lei. Há juristas e advogados
exatamente porque todas as leis permitem interpretação. Portanto, faz parte do
seu trabalho levar a sério a legislação do ensino. Mas, de modo algum, não
venha a acreditar que tal legislação não “muda nada”. Ela muda tudo, e isso
vai da sua interpretação, e da luta da sua interpretação com a de outros.
As leis estão na Internet, você deve começar a se mobilizar – deve navegar
nos “sites” governamentais que vão regrar sua vida.
5) Arquitetura escolar
Aprenda a visualizar o prédio escolar segundo sua funcionalidade e
seus defeitos, seus espaços de convívio. Veja as origens do prédio, qual polí-
tica educacional que regrou aquela construção e optou por aquele formato

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de prédio e não outro. Aliado a este saber, verifique se os alunos são “empur-
rados” para fora do prédio ou se ele é suficientemente aconchegante para
atrair o aluno.
Quem trabalha no magistério tem o prédio escolar como “o seu lugar”.
Encontrar “o lugar de cada aluno” (sendo que a palavra “lugar”, aqui, não é
só metafórica) é uma das chaves do sucesso da profissão de professor ou
professora. O prédio escolar deve permitir – e você pode ajudar isso acontecer
– que tudo aquilo que as crianças precisam e gostam (lembre-se dos itens ante-
riores) possa se desenvolver. Se o seu prédio é limitado, aprenda a ampliá-lo ou
decida-se por aprender a lutar, pelos meios políticos, para ampliá-lo funcional-
mente. Não favoreça ambientes que possam criar separações entre sexos ou
que isolem a quadra ou que permitam uma relação de angústia para a
criança. Da árvore plantada no pátio, ou na frente da escola, ao laborató-
rio, aos banheiros, tudo é motivo de preocupação para o professor e a
professora. Pois você vai gastar uma parte de sua vida ali. Não permita
que sua vida passe em lugar ruim.
6) Escola e comunidade
Lembre-se que seus alunos estão na escola a partir de uma casa, de uma
cidade, de um bairro, de uma sociedade. Tudo isso mantém a escola. A comu-
nidade, antes de tudo, não se restringe a “associações de amigos da escola”
ou a grupos que promovem festas juninas etc. Isso tudo é necessário, sem
dúvida, mas a comunidade é, antes de tudo, um som que deve ser audível por
você agora e no futuro. Porque sem a comunidade a seu favor, você não terá
necessariamente sua ação de professor ou professora legitimada. Sua legiti-
midade não vem só de seu diploma, de seu conhecimento, de sua autorida-
de intelectual. Vem cotidianamente da comunidade.
Sua tensão em relação a alguns membros da comunidade não pode ultra-
passar seu bom senso de perceber que a comunidade tem objetivos que,
talvez, sejam diferentes para cada aluno. Há pais que se preocupam com os
filhos em um sentido: querem que eles adquiram conhecimento, mesmo que
ainda sejam muito jovens e que, segundo alguns pedagogos que você leu,
ainda não pareçam adaptados para a idéia de deixar de brincar para “aprender
coisa séria” – não ouvir isso e aceitar tal fato é teimosia e falta de sensibilidade
social. Por outro lado, há pais que acreditam que seus filhos precisam menos

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de conhecimento e mais de convívio social na escola, uma vez que fora
dela as chances disso ocorrer poderiam ser poucas – não ouvir isso e aceitar
é, também, teimosia. Saber conciliar essas tendências nas quais repousam os
objetivos dos pais é uma arte do professor ou professora.
A escola brasileira é de tradição estatal e não comunitária, diferente
da escola norte-americana. Todavia, toda a literatura pedagógica sempre
incentivou a escola comunitária. Essa diferença precisa ser ponderada por
você. Se você despreza essa contradição criada entre o que a literatura
que vem formando as professoras e professores e o que a população pede
e com a qual ela se acostumou, suas energias poderão ser gastas à toa.
7) A identidade do professor
Você é professor? É professora? Então, desde já, comece a agir como
tal. Escolha os que foram seus melhores professores e professoras, e imite-os.
Comportamento geral, diante de crianças, é o ponto básico do ensino.
Lembre-se: seus alunos vão aprender mais de suas atitudes, gestos, opiniões,
sorrisos do que, no fundo, sua matéria. Em parte, você será o herói e o
bandido, a vítima e o algoz. Você não vai poder evitar: será um pouco de
cada coisa, mas só terá êxito na tarefa de modificar mentes e corações – que
é a tarefa do mestre – na medida em que tiver carisma, na medida em que se
fizer pouco super-herói e muito mais observador e atencioso. Todavia, não
queira transformar mentes e corações se você é, antes de tudo, um conser-
vador cruel. Se você é um conservador cruel, saiba disso e deixe o magistério.
As crianças não precisam de você.
As crianças e os jovens também não precisam de você se você se espanta
com coisas simples como, por exemplo, palavrões, expressões grosseiras,
imagens pornográficas, imagens ofensivas à religião etc. Tudo isso faz parte
da vida. Há momentos que você deve conversar com seus alunos sobre o uso
disso, mas em nenhum momento você deve agir como uma vovozinha carola.
Seja alguém do seu próprio tempo.
Se você não é um conservador cruel, então veja qual sua idade e avalie
suas atitudes pessoais. Veja que uma boa parte dos professores e professoras
se forma no final de sua própria adolescência, e que muito de seus senti-
mentos em relação às crianças ainda não será um sentimento de alguém tão
experiente quanto se acha ser. Dúvidas de ordem profissional, sexual, amorosa,

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familiar estarão rondando a cabeça do professor ou professora jovem. Se assim
é, saiba descobrir isso em você antes de fazer seus alunos sofrerem com os
problemas que não são deles, mas seus. Faça um diário pessoal agora, não
deixe de anotar se sabe ou não a razão pela qual você gosta de seus colegas e
alunos. Tenha a coragem de se expor a quatro paredes, para seu espelho. Este
autoconhecimento é fundamental. Amplie tal conhecimento anotando os
traços de personalidade que ficaram visíveis quando você conseguiu ter êxito
em uma aula – cultive esses traços. Mas não se culpe se ver que foi imaturo e
que sua imaturidade foi percebida pelos alunos. Eles estão ali, e você saberá
disso, para educar você também, pois esta é uma das formas deles se educarem.
8) Filosofia da Educação
Se você é professora ou professor, você não escapará de ter a sua filosofia
da educação. Você lida com a cultura: ciências, artes, literatura etc. A filosofia
da educação faz o papel de um discurso que está no interior da cultura; ela é um
discurso que você deve conhecer para legitimar sua atitude pedagógica em sala
de aula. Ela lhe dá poder de argumentar a respeito de sua didática e dos conteú-
dos de ensino que você ministra. O papel da filosofia da educação é duplo: ou
ela legitima sua aula porque ela dá fundamentos para sua pedagogia, ou ela
legitima sua aula porque ela dá justificativas para sua pedagogia.
A pedagogia é o corpo teórico que dá as normas que você coloca na
relação ensino-aprendizagem, a filosofia da educação é o conjunto dos
argumentos pelos quais você busca ou fundamentar, ou justificar, o que você
faz para seus pares, para a comunidade e, de certo modo, para os alunos.
Você vai melhorar sua fundamentação ou justificação a partir da literatura
pedagógica que você lê. Se sua literatura pedagógica é fraca, você será um
professor fraco do ponto de vista filosófico. Talvez confiem pouco em você. Se
confiarem pouco em você, pelo fato de você não conseguir argumentar bem a
respeito do que faz, seu trabalho não se desenvolverá de maneira segura. [Aqui,
você pode aprofundar o assunto vendo: Ghiraldelli Jr., P. Filosofia e história da
educação brasileira. São Paulo: Manole, 2003 (em especial: p. 233).]
9) Avaliação escolar
Esqueça de uma vez por todas o medo que você teve ou têm de provas,
exames, testes e correções. Não há avaliação verdadeira sem isso. Não veja
todos os tipos de avaliação baseadas em testes que proporcionam “ranking”

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algo “massacrante”, que não consegue mensurar o conhecimento do aluno.
Calma! Tente ver que cada tipo de avaliação serve para verificar se alcançou
ou não determinados objetivos.
A chamada “avaliação processual” serve para você manter o aluno enga-
jado nos estudos de modo a não desanimar, e serve para o professor avaliar o
aluno ainda no decorrer da relação ensino-aprendizagem, e não exclusiva-
mente no fim de uma etapa. Todavia, a “avaliação processual” deve servir para
avaliar o próprio mestre. Cada nota atribuída a um aluno deve ter, em contra-
partida, também exposta num quadro, uma nota atribuída ao professor. Há um
mecanismo de proporcionalidade, que precisa se desenvolvido, para que o
professor venha a receber uma nota em relação ao seu sucesso ou fracasso
durante a relação ensino-aprendizagem.
A “avaliação em fim de período”, que é diferente da “avaliação proces-
sual”, a partir de provas dissertativas e testes, é onde há a verificação das habili-
dades no manejo da matéria aprendida na relação ensino-aprendizagem, e
serve para que a escola toda possa ver qual o rumo que ela está tomando
enquanto instituição. Sem essa avaliação, não há política educacional e, por-
tanto, sua própria profissão passa a não existir mais no panorama governa-
mental. Sem estatística a partir dessas avaliações finais, que em geral todos
acham “massacrante”, todo seu trabalho pode estar sendo uma farsa para
você mesmo, uma vida jogada fora.
Sem as avaliações, seus alunos também não poderão saber como melhorar
e não saberão como passar por outras avaliações que são feitas fora da escola.
A avaliação, ao contrário do que dizem muitos pedagogos e pedagogas,
não causa trauma em aluno do ensino fundamental. Ela só causa tristeza
quando ela é exclusivamente punitiva. Ela é, sempre, em parte, punitiva ou
é um feedback positivo, mas ela não pode se resumir a isso. Não deve se
resumir a isto. Se você não consegue imaginar uma avaliação que avalie
também o professor, e que em relação aos alunos não seja punitiva, então
desista, você não vai saber avaliar seus alunos, sua escola, sua vida.
O que avaliar? Habilidades. Você não pode se dizer professor ou pro-
fessora se você apenas sabe “falar sobre educação”. Muitos que fazem
pós-graduação em educação apenas sabem “falar sobre educação”. Não
sabem fazer educação.

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Falar sobre educação é uma parte do seu trabalho, na qual a filosofia da
educação colabora, mas sua atividade como professora ou professor é a de
fazer os alunos obterem boas performances em habilidades novas adquiridas.
Por exemplo, você vai saber se você mesmo foi eficiente em proporcionar
um melhor conhecimento da língua se, em algum tipo de mensuração, seu
aluno puder ler e escrever e interpretar textos. Em parte, você mesmo,
enquanto professor ou professora, deveria aperfeiçoar suas próprias habili-
dades básicas, para depois desenvolver habilidade no seu aluno futuro. Resu-
mindo ao máximo: cobre em forma de apresentação prática de habilidades o
que você desenvolveu na relação ensino-aprendizagem, e somente aquelas
que você desenvolveu.
A avaliação se faz na correlação com os objetivos escolares. Ela tem de
ser capaz de mensurar, de alguma forma, se os objetivos da escola, e os de
cada professor, e os da comunidade, estão sendo alcançados. Lutar contra
processos avaliativos amplos, gerais, pode ser uma luta para a desvalorização
do magistério. Pois são os números maiores, as grandes estatísticas que, mal
ou bem, o governo possui para preparar políticas educacionais.
10) Os objetivos
Há objetivos que são os colocados em seus planos de aula. Muitos escre-
vem, em tais planos, que querem criar o “aluno crítico, consciente, reflexivo,
feliz, participativo socialmente”, um “futuro cidadão” único (uma mistura de
revolucionário com santo, um filho de Che Guevara com Madre Teresa de
Calcutá). Se você é professor e pensa assim, você deve deixar de lado a profis-
são. Ou mudar de idéia. Não seja um professor que faz os planos de aula
“apenas por fazer”. Entenda que os objetivos educacionais que você, sua
escola e seu plano de aula podem fixar devem ser, antes de tudo, objetivos
mesmo, isto é, devem ser metas que se mostram com objetividade, e, de
algum modo, mensuráveis no curto prazo, e mensuráveis realmente.
Um aluno deve saber poder entender um filme do tipo “Rei Leão” ao
final de quanto tempo? Como você mensura isso? Um aluno vai poder supor-
tar a tensão nervosa de um filme como “Inteligência artificial”? Como você
vai prepará-lo para tal, e como você vai saber sua reação e saber do seu sucesso?
Ou seu aluno, ao ser avaliado, demonstra uma insensibilidade para a cultura
porque você mesmo não se preparou culturalmente?

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Como vê, no limite, sua profissão não é complexa, é simples. Você pode
complicá-la à toa. Muitos são os pedagogos e pedagogas que as complicam à toa.
Nada é mais simples do que uma profissão de professor ou professora se você
a toma da seguinte maneira: fixa os objetivos e, então, trabalha para que eles
possam ser alcançados. Se os objetivos são modestos, você pode saber se
atinge alguns deles e, assim, pode ter feedback imediato a respeito da sua
profissão. Agora, se você parte para refletir sobre o que teses e mais teses de
pós-graduação em educação, vindas da “cultura da pedagogia”, vão lhe dizer
para fazer, cuidado, você pode estar desviando sua atenção. Pois cada vez
mais as teses servem apenas para alimentar a carreira do ensino superior, e não
para resolver os problemas reais que você, professor ou professora, enfrenta
nos momentos centrais da relação ensino-aprendizagem.

Notas
1 Centro de Estudos de Filosofia Americana.

Referências bibliográficas
GHIRALDELLI Jr., P. Caminhos da filosofia. Rio de Janeiro: DPA, 2005.
______. Filosofia e história da educação brasileira.
São Paulo: Manole, 2003.
______. O que você precisa saber em didática e teorias pedagógicas. Rio de
Janeiro: DPA, 2001.
______. O que você precisa saber em filosofia da educação. Rio de Janeiro:
DPA, 2001.

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que pertence;
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de publicação e página entre parênteses. Ex.: (Boff, 1998, p. 5);
• a bibliografia completa deve constar do final. Sobrenome, nome, título em
negrito, nome do(a) tradutor(a), quando for o caso, cidade, editora e ano
de publicação. Ex.: BOFF, Leonardo. O despertar da águia. Petrópolis:
Vozes, 1998;
• as notas de rodapé devem ser utilizadas apenas para acrescentar informações,
não para citações.

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Normas para publicação – p. 125
Esta revista foi composta nas fontes Times e
Franklin Gothic Medium, e impressa em
papel Offset 75g e Cartão Supremo 250g, em
julho de 2005.

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