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\VISOES DA HISTORIA NA LITERATURA DRAMATICA PARA CRIANCAS GLORIA BaSTOS (Wniv, Abert) 1. As relagbes entee a Literatura © a Histria, em particular no que se refere a presenca do facto histérico na obra lteriria, tém desde sempre merecido a atengio de esritores ¢ investigadores. Géneros como 0 drama histrico e romance histérico = que tiveram 0 seu apogen no século XIX = tém sido revisitados em obras recentes, Enire elas, encontramos igualmente algumas que se destinam ao leitor infantile javenil Na verdad, a tematica historia surge como elemento central ou transversal em muzos livros publicados para criangas nas décadas mais recentes, assumindo contornes dliversos, a semelhanea, ais, do que sucede noultras areas da Iteratura E exactamente’no universo da literatura para os mais novos que se situa a presente intervencio. Uma literatura com um peso considerivel na sociedade actual se tivermos em atengio dois vectores essenciais para essa consideraca, concretamente 4 sua visiilidade em termos editorials € o sew indiscutivel sucesso juno dos seus jovens leitores. Se bem que, no lado da eritiea, no possames encontrar essa mesma Visibilidade, de manetia que agradego aos organizadores deste Coléquio Internacional © terem acolhido uma intervencio ~ dentro da temtica do encontro ~ que tem como objecto de estudo esse campo da nossa literatura. Este aspecto poderia levai-nos a dliscuir a problematica das instancias de validagdo iterdria, mas no & esse o camino ‘que aqui iremos percorser. 2, Nesta comunicacao propomo-nos, assim, abordar 0s textos dramsticos escrtos para criancas e jovens, publicados apés 0 25 de Abril de 1974. Esta data consttul um marco 6bvio ne dominio da lteratura para criangas, como, alli, noutras reas culturs ‘Assim, num universo de 108 pecas que pudemos contabilizar ~ publicadas, portanto, entre 1974 ¢ 2003 - apenas encontrimos oito textos que fazem referencia explicia a figuras e/ou factos da Histéria de Portugal, embora de formas diferenciads, como se {rd tentar descrever. Sublinhe-se ainda que a maiosia desses textos foi publicada jf nos anos 90. [Esta ocorréncia exige que se abra aqui um breve paréntesis explicative. Na verdade, pensamos que esse facto Seri porventura representative de uma cera relutncia dos nossos escrtores em tatar uma matéria polémica, eventualmente de abordagem dificil e, sobretudo, com uma carga ideologica extremamente controversa ¢ estigma- lizada pelas ulizagdes que 0 Estado Novo lez da Historia Patria e pelos sentidos que cx nao pretendeu atribuirthe, Possufmos dados para afirmar que uma orientagdo de eseita remetendo para a glonifcagio da Patria © pan ama dterminada visto da Historia, ‘com ma valoragao acentuada de certs figuns historicas ~ sobretudo aquelas que ‘onduziram Portugal pelos “mundos" fora = constitu um dos elementos mas cara tersticos da literatura dramatica no perfodo do Estado Novo (ct. Bastos: 2002). Eta 6 uma faceta que se desvanece, quase por compleo, da esc teatal posterior a Abril de 74, em paralelo com o que ocorret também, por exemplo, nos textos dos manais escolares (com as sefertncias & Histxia a restingrem-se aos ives abordando mais directamente essa temitica) ‘Vejamos entdo quais S20 0$ livros em causa € 0 aspecto da Histria que cada tum nos revela ~ Um texto com referéncias 20s lustanos ¢ a Vriato ~ Ant6nio Torro, O Adordvel Home das Neves C984) ~ Um texto com referéncias aos lustanos & a Ulises ~ Carlos d'Olivei, Abid, a anda de Santarém 0991), = Um texto sobre D. Afonso Henriques ~Infco Pignatel, a Verdadera Historia da Batalha de S. Mamede 2000) = Um texto sobre D. Dini Jia Nery, O Plamtador de Naus a Haver 1994) ~ Dois textos sobre 6 infante D. Henrique (um deles una redid) ~ José Jorge Leta, -© principe € o mar (do volume O Peguero Teno, 1993) © Sophia de Mello Breynet ‘Andresen, © Bojador (2000); = Um texto sobre o Magrico ~ Annio Torrado, Doze de Inglaterra (1999); = Um texto sobre os "her6is” anGnimos das descobertas ~ Manvel Ant6nio Pina “Aquilo que os Olbos Veem ou O Adamastor 1358) ‘Como podemos faclimente conclu, a maior paste dos textos remete-nos para 6 mito dos hers fandadores, inscrevendo-se, de cera forma, a linha temtica tals onvencional. Uma possivel novidade reside na fato de haver textos que revocedent sé épocas bastante Femotas, anteriores & propria cracio da nacionalidade, Duas esas aluder, assim, 20 tempo dos Lusitanos, uma dels com referencias 3 figura de Viriato ~ © Adordvel Homem das Neves, de Anbnio Torrado ~ e outa dramalizando ‘uma lenda em que, além dos Lusitanas, surge sindaaintevenglo de Ulises ~ Abid, a Lenda de Santarém, de Carlos WOlivera Ete aspecto pode leva-a0s 2 colocit lgumas quesiGesinteresantes, como sejam ade uma procura quer de novos hers due possam despertro interesse das criancas, face as anteriores figuras algo “gasas {quer ainda de wena “identiade nacional” com sizes mais profndss, anterior a genes do Estado de Portugal, & época de seis e outros senbores, guras pevlegiadas pela iveratrajuvenil do Estado Novo, ‘Apenas 0 Glimo texto se inscreve nour eixo de orienta, mum expécte de antihistoria que denuncia certas falicias do narrativa euforica dos vencedores, mostrando aqueles a quem a Histésa normalmente negou vor. No caso do texto de Manuel AntSnio Pina, Slo representantes da mulidio andnima que paricipow na empresa dos Descobrimentos que assumem 0 lugar do protagonist. Nao temos fa figura do "Grande Homem’ no centro do pale, sto aqui pequenos-grandes homens no centto da fle, una fego capa de seelaborarerticamente a nossa relacio com ‘erios marcos histércos,sobretude se ivermosem atencao o destinatério privilegiado deses textos. Embora a aecio remeta para o periodo das descobertase das viagens rmartimas ~ uma das épocas miticas a Hist de Portugal nomeadamente a realizada por Pedro Alvares Cabral, a atencio desloco.se dessas figuras cena © dos seus Fetos heréicos, para inci agora nas cificuldadss, medos e vitérias do homem com, simbolizado pelas personagens de Manuel e 0 Pal, que representardo todos 0s soe 4 syns Xa urea WAC maka CANS :marinheiros que enfrentaram os perigos do mar e os seus medos mais fntimos, umas vezes vencendo, outras sendo vencidos. Esta & uma atitide nova, que reequaciona conhecimento que se tem da Hist6ria, dimensao neste caso facltada pela propria natureza enunciativa do texto drametico, que coloca em presenga, em simultineo, vvozes « interpretacdes diversas sobre factos até hi pouco inguestionaveis E que, como sublinha Eduardo Lourenco, em recente ensaio, ao fim de oit0 séculos estamos od dentro. (p. 72), situagao que coloca desafios novos e uma con- frontagao com uma realidade que nos confina ao -modesto canto de onde saimos para ver e saber que hi um sé mundo, Portugal esté agora em situagto de se acei tal como foie apenas um povo entre os povos:(p. 83). A.questio de uma identidade, fe coneretamente da identidade nacional, seré agora colocada em novos termos, 0 problema da meméria soferd, eventualmente, novas formulagbes, nos textos dramticos eseritos para criangas apés a revolucdo dos cravos, Mas é realmente dificil ultrapassar toda uma carga mica que envolve a Historia e algumas das suas figuras, por isso Jose Jonge Letra, poeta inovador, na pega -O principe e 0 mar (do volume O Pegieno ‘Teatro, 1993), volta dar-nos a imagem tpificada do Infante D. Henrique ~ perscritando ‘9 mar~,¢ eetoma a ideia da vocacto maritima dos portugueses, embora coloque igual- mente em cena algumas vozes discordantes da empresa dos descobrimentos. Todavia, & a “voz" do Infante aquela que, mais uma vez, se sobrepde a todas as outras, sublinhando a forca de uma "visio" que se impde para lé do tempo. (© mesmo se passa na peca de Sophia de Mello Breyner Andresen, escrita em 1960 mas reeditada em 2000, ¢ por isso aqui a referimos. Também esse texto se iniia com a apresentagio da imagem cristalzada do infante, olhando © mar sobre 0 promontorio de Sagres. A sua condigao de figura extraordinsia e de visiondrio aparece fem seguida explictada em duas afirmagdes de uma Mulher le v8 melhor que n6s- Ble vé bem 0 que ests longe- 3. Siluaglo singular é a de Anténio Torrado, em cups pegas nos vamos deter mais demoradamente, por proporem uma abordagem da temalica histérica subs- tancialmente diferente. Na verdade, os seus textos nao procuram uma forma de veicalar tum determinado conhecimento historico, antes questionam esse conhecimento, a0 ‘mesmo tempo que desconsttoem a pr6pra linearidade das narrativas sobre 0 passado, 1a linha do que Elisabeth Wesseling (1991) afirma em relagio a0 romance histérico pés-moderno ou Geoff Moss (1992) face as mais recentes produgdes para crangas. Esta desconstrugio traduz-se, em Ant6nio Torrado, na presenga de dois cruzamentos peculiares: 0 cruzamento do discurso da Histéia com o discurso da fantasia € 0 do humor, FaciImente se deduz que esta constitu pois, uma abordagem fem que o intertexto historico-cultural vai ganhar contornos renovados, possiblitando tum posicionamento de letura igualmente distinto do tradicionalmente apresentado aos jovens letores. © olhar aqul proposto percorre caminhos diversos, pontuados sobretudo pelo papel relevante que o humor vai assumie na desmiificacio de ceras versbes sedimentadas do facto histérico, que a ficcio literiria procura perspectivar de ‘uma forma renovada, ‘O exemplo mais evidente seri 0 da pega Doze de Inglaterra, que cruza essa «dimensdo com elementos de cara mais efabulatrio, a partir exactamente do episédio de cavalariaincluido por Camdes ~ através da voz do marinkeiro Fernao Veloso ~ no poema Os Lusiadas. Estabelecem-se aqui varias relagdes intertextuais: com 0 poema pico, por um lado ~ empunhado pela figura do pregoeiro, no final da pega -, mas também com as novelas de cavalalae o conto da tradiglo oral ocidentale oriental ~ na recuperacio de motives, como a fonte da Sabedorta, ou de cenas figuras, como o a and a8 ninfas/parcas, os animaisfalantes... Cuioso ainda &0 Facto de o her6i, Alvaro Gongalves Coutinho, mais conhecida como Magrigo, ser transformed, na histéria eserita por Anténio Torrado na forma dramatica, num jovem fraco e franzino no corpa, mas forte no espirito, capaz de enfrentar sozinko os perigos de um trajecto que repre senta metaforicamente, segundo as palavras do autor, as alegorias do erescimento & dda maturacios(p. 15) Em relacio a0 protagonista de Doze de Inglaterra, nlo s6 0 seu “petit-nom” & significativo quanto a fraca compleigao da pessonagem, como ainda por cima, num jogo rimatico a partir do mote “Magrico", se vio primeiro construindo outros esignativos/atibutos, com 0 sufixo diminutivo go, que pretendem acentuar 0 carieter potencialmente pouco herbico do nosso herbi: novico/ chamico/ aranhicay caniga/ palligo. Mas 2 personagem revela-se bem mais “nteitica do que se supée—a0 escolher fazer 0 percurso até Inglaterra, por terra e sozinho ~, pelo que, no final da cena, 0 sufixo jd mo remete para a fraqueza mas para um estado de rebeldia © aventura desrgo/ ourigo/ esquentadico. (© essencial da pega situa-se naquele dominio da escrita em que 0 autor vai -substinir o-que Foi pelo que podia ter sidos, nas palavras de José Saramago (1990), [Neste caso, a auséncia de dados sobre a viagem por terra realizada pelo Magrigo desxa fem aberto - vantagem ou desvantagem da HisiGria? ~ que as "verdades Ficcionais” se instalem num texto que nos eevela, nas palavras de Ant6nio Tortado, n20 uma Viagem real por terit6rio europeu, mas uma viagem inicitica As intersecedes com um tempo actual sio nitidas em diferentes momentos. AS anactonias de tipo referencial estio presentes, 2 exemplo, através de paralelos com ‘uma dimensto cOmica, e por vezes eritica, como acontece na indicagao cénica que relaciona 0 comportamento dos cavaleitos ingleses com os modernos “hooligans: -0 ddlogo ininteligivel entre eles, em que se pereebe que cada um se gaba do respectivo trofeu roubado as damas, comeca a ganhar contornos de canclo guerreira (como os ritmos de incitamento dos hooligans, nas baneadas dos estdios) (p. 22). Esta atinude revela um oral “desconcerto”relativamente a sia condigao de cavaleiros, de tal modo ue s6 ouvem 0 Duque de Lencastre quando est, finalmente, os tata com 0 designativo colectivo “labregos" (p. 23), depois de ter tenrado cham-los a razao fazendo apelo 208 seus nobres pergaminhos. Anacronias de linguagem e de Upo referencial acontecem ainda na fala do pregoeiro (figura concomitante a0 tempo da acco) que, com Os lusiadasa mao ~ livzo que esti venda/ em qualquer lvrarias— efectua uma sintese da viagem do Magrico, recorrendo a referentes ictuais, como a expressio acima citada ainda, -atravessar © canal da mancha de prarcha-, sno hd oreamento/ pra lancha a motor (p. 86) 4. Fin © Adondvel Homem das Neves, as alusOes i Historia de Portugal sio mais diversificadas e requerem um leitor modelo com alguma capacidade de desco- dificagio dos elementos que pontuam a acclo. Uma acco em que o imagindsto ‘ocupa uma posicio central, ¢ em que o entrecruzar de virios niveis ~ em termos de tempo e de espago ~ exige uma ateneao paricular, sobretudo a0 colocar em cena

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