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As ciéncias do movimento humano Adroaldo Gaya Ninguém sabe qual é 0 poder do corpo nem o que € possivel deduzir apenas da consideracdo da sua natureza. Nem 0 corpo pode determinar o espirito a pensar, nem o espfrito pode determinar o corpo em movimento, em repouso ‘ow nalgum outro estado que seja. (Espinosa, 1973, p. 185), Um dos paradoxos do conhecimento respeita, com efeito, o conhecimento do corpo pelo corpo. Nao conhecemos as coisas seniio pelo corpo, mas nao sabemos ‘como nosso corpo conhece nem quem conhece através do nosso ¢Orpo. DA CULTURA CORPORAL _ DO MOVIMENTO HUMANO AS CIENCIAS DO MOVIMENTO HUMANO Os discursos sobre os corpos que se exercitam sfio muitos. Em nossa sociedade, as interpretagdes sobre as representacdes dos corpos constituem objeto relevante de investigagao nas diversas formas de ex- press do conhecimento. Do senso comum. & filosofia, passando pelo olhar cientifico, religioso, artistico e politico, “o corpo atravessa os discursos e metamorfoseia-se, mas nao se dissolve” (Silva, 1999, p. 22). presente capitulo é mais um dis- curso sobre os corpos que se exercitam. O objetivo € propor espagos onde se possam. reunir elementos para a configurac&o de uma cartografia sobre os corpos que jogam, dangam, praticam esportes, fazem gindsti- ca, teatro, etc. Refiro-me a espacos prdprios (Atlan, 2000, p, 93) de investigagao, de expresso, de interpre- taco e de aprendizagem sobre a corpora- lidade. Enfim, trata-se de um campo de estudo sobre as manifestagdes corporais que, inequivocamente, assume papel pre- ponderante em nossa existéncia. So sa- beres e conhecimentos diversos sobre uma variedade imensa de técnicas e tecnologia corporais com multiplas formas e signifi- cados existenciais. Este capitulo propée a demarcacéo de dois territérios passiveis de reunir os miiltiplos discursos sobre a corporalidade: (1) a cultura corporal do movimento hu- mano; e (2) as ciéncias do movimento humano: 1. A cultura corporal do movimento ‘humano como um espaco amplo de cognicao que abrange saberes com- plexos. Articulacao desaberes e co- 42 pcrcaldo Gayae Cals. nhecimentos diversos, sejam estes provenientes do senso comum, da Giéncia, da filosofia, da religiZo, das artes, etc. Saberes e conhecimen- tos plurais sobre a corporalidade. Um conhecimento lato. 2. As ciéncias do movimento huma- no como um olhar restrito, um re- corte no espaco amplo da cultura corporal do movimento humano, Um campo de investigagao limi tado as regras do conhecimento cientifico. Saberes e conhecimen- tos normatizados por uma abor- dagem hipotético-dedutiva. Um conhecimento estrito. ACULTURA CORPORAL DO MOVIMENTO HUMANO Ao longo da histéria, homens e mu- Iheres tém produzido conhecimentos e téc- nicas visando a atender seus interesses e necessidades. Como produto de sua cria- ao, na expressdo evidente de sua huma- nidade, fabricaram-se ferramentas para 0 trabalho e armas para a defesa e para a caca; cultivou-se a agricultura e desenvol- veu-se a pecudria. Homens e mulheres do- minaram 0 fogo, formaram crengas e mi- tos para explicar os fendmenos da nature- za, fundaram religides que religaram e de- ram sentido a existéncia no mundo desco- nhecido. Por meio das artes, fizeram de sentimentos expressdes visiveis nas rochas, nos utensilios, nas telas e na prépria pele tatuada e prolongada por adornos que lhe atribuem significado e identidade (Gaya; Torres, 2004). A linguagem instaurou-se como forma de expresso e comunicacéo. Dos corpos, do movimento, da expresséo, da comunicagao e da linguagem, forma- ram-se distintos dominios culturais. Como afirmam Bento, Garcia e Gra- ga (1999, p. 109): Esses dominios culturais configuram cons- trugbesde sentidos humanos da vida, com modificacées da sua forma de expresso em concordancia com a respectiva situa- ao histérico-social e na dependéncia da forca criativa de pessoas e grupos. Mais ainda, os dominios culturais distinguemn- se uns dos outros precisamente pelo tear dos sentidos constituintes da sua estru- ‘ura interna, assim como por instituicdes sociais especificas e pelo surgimento de estruturas de normas e valores. Contudo, foi por meio do movimen- to, da expresso e da consciéncia corporal, da inteligéncia cinestésica, enfim, do reco- mhecimento de uma alma reencarnada, que homens e mulheres desenvolveram um conjunto de prdticas com diversas formas e sentidos: a danca, o jogo, a luta, a ginds- tica, 0 esporte, o teatro, o circo, as terapias corporais, etc. Essas praticas corporais so polissémicas e polimorfas (Bento, 2004; Bento; Garcia; Graca, 1999). Trata-se de uma série de linguagens e expressoes cor- porais ricasde humanidade. Homens e mu- heres, para além de expresses de senti- mentos, motivacdes, desejos e crencas, de- senvolveram e desenvolvem uma imensa tecnologia gestual, uma panéplia de agées: andar, correr, saltar, nadar, lancar, aparar, rolar, girar, pedalar, deslizar, chutar, reba ter, dangar, representar. A todos e a cada um desses gestos, atribuem-se mtiltiplos sentidos e formas, o que vai muito além das exigéncias meramente funcionais. Pecuéria Artes Linguagem Dominio do fogo Agricutura — Retol#o Giéncia Figura 3.1 Elementos da cultura, Cilncies do movimento hunano 43 Ao considerar esse universo de prati- cas corporais ricas de significados e sim- Dolismos como expresso de nossa huma- nidade e ao considerar essas muiltiplas ex- pressées do movimento humano traduzi- das nessa ampla tecnologia corporal como manifestacdes da cultura, no seria perti- nente imaginar espacos para investigacao, espagos de expresso, de aprendizagem, de conhecimentos e de discursos sobre 0 mo- vimento corporal? Nao seria pertinente rei- vindicar as fronteiras a demarcar a cultura corporal do movimento humano? sim! Refiro-me a cultura corporal do movimento humano, na qual o corpo é per- cebido como local de encontro, ponto de interagdes permanentes entre o cultural, 0 social e 0 bioldgico, tanto no plano das pré- ticas como no das representacdes. Refiro- me também a cultura corporal do movi- mento humano, uma pretensao antiga que Marcel Mauss, em 1936, j4 reivindicara, mas que, todavia, como referem Florence Braunstein e Jean Frangois Pépin, ficou por ser realizada: Ninguém, na verdade, abordou ainda essa tarefa imensa em relacéo A qual Marcel ‘Mauss sublinhava a urgente necessidade, a saber, o inventdrio e a descrigéo de to- dos os usos que os homens, no decurso

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