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_-~_ HERNANI DONATO ee do Instituto Histérico-Geografico de $40 Paulo. gk Q&- Separata da Revista _ Comentario Reyista trimestral que comenta o munde e os seus problemas _ Rio de Janeiro, outubro-dezembro 1971 anoXin? 48 ~ \ ~ Revista trimestral que comenta © mundo ramagho «srosueso: Piarrenimaden de Lae HERNANI DONATO. o Instituto Histérico-Geogsfico de Sto Paulo. Um friso de praia debruado pelo Em Sao Vicente, 1501, a excecio. muro das montanhas. Nealtuma brecha Vestida de mistério, galgando a serra do fou porta que introduzisse na Iargueza mar, oferecia-se ao etwropeu estrada defi- além-serrana 0 curopeu confinado a nida, antiga, visivelmente transitada. Oi- beira-mar. to palmos de largura, mergulhando nas ‘O nativo vinha ¢ ia, despreocupado distancias interiores. Os que naqueles de roteiros. Seguia a direcao apenas geral _primeiros dias de Brasil viram o trecho e remota, dos rios e dos montes, de serra acima, reconhecendo que pouco minhos quase sem caminhos” — no perdia para as vias de Portugal, quise- escrever pitoresco do padre Manoel da _ ram saber: . (©) Manuel da Fonseca, pa (2 Manuel da Fonseea.r2 Fonseca (*); “incertos e témues caminhos, — Que é isto? Quem realizou este Go cde Mvil, € fealente: - empartemareados no solo... em parte nos trabalho? mente confundido com sez _galhos das drvores", como resume Ernani — Peabirul, respondeu o fndio. SYitiigutinene pause © da Silva Bruno; “carreiros de anta”. na Peabiru, em seu falar, queria dizer: Tistoriader. comparacio de Sérgio Buarque de Ho- caminho, Para éle, que nao costumava Janda’, Isto, em téda a costa dos desco- abrir estradas, um caminho era obra da » brimentos portugueéses. natureza, ou era nada. otas biioardtcas pagina 1e O portugués observou o filho da terrae a auséncia do que seriam obras de engenharia. Aceitou 0 que Ihe facilitava a conquista como regalo dos céus. E por que nao do sobrenatural, se éle vinha de Portugal em nome de Cristo? Atufando-se pelo sertio, rumo oes- te, pode seguir o Peabiru por mais de duzentas léguas. Rota longa quanto as mais compridas da Tbéria, O homem que encontrou na praia e no sertio, nu, ingénuo, inabil nas artes vidrias, exibia incapacidade para tamanha realizagao. — E quem abriu éste caminho tao longo, e tio habilmente? — Pay Sumé! Foi tudo 0 que © natural soube dizer. Nésse instante o caminho enovelou- -se em uma das mais belas e intrincadas complicagdes dos capitulos iniciais da Historia brasileira. A necessidade do mi- lagre para explicar o que era realmente uma técnica vidria desenvolvida, atribuiu por mais de duzentos anos ao apéstolo So Tomé a abertura da estrada pré- ‘Taunay teve em maos mapas que teriam pertencido a Dom Luis Antonio de Sousa, gracas a0s quais pdde esmiucar 0 caminho: “Saindo de Sao Paulo, passan- do por Sorocaba, pela fazenda de Botu- catu que foi dos’ Padres da Companhia, dirigindo-se a Sa0 Miguel, junto ao Para- napanema, ¢ costeando ésse rio pela esquerda, tocando em Encarnacién, San- to Xavier e Santo Inécio, onde em canoa descia o Paranapanema e subia o Ivinhei- ma até quase &s suas nascencas, af seguia, por terra, pela Vacaria, até as cabeceiras do Aguarai ou Correntes on- de, tomando-se de névo fluvial, seguia por ésse afluente até 0 Paraguai, pelo qual subia...” Alfredo Romério Martins#*esmiuga: “Bra Sio Vicente, Piratininga, Sio Paulo, Sorocaba, Botucatu, —Tibagi, Ivai, Piqueri, bifurcava-se | caminho, indo um ramal para o sul, até o Tguacu, no ponto em que éste rio, na sua mar- ‘gem esquerda, recebe 0 Santo Anténio”. Nao € muito diverso o roteiro referido por Batista Pereira: “uma picada de 200 Iéguas que, com duas varas de largura, ia do litoral (S40 Vicente) até 10 Assungio do Paraguai, pasando por So Paulo, Passava na varzea da cidade, bifurcando-se no rumo das futuras Itu € Sorocaba”. Para Aloisio de Almeida’, o Peabi- ru era mais do que um caminho. Fala de um “sistema vidrio”,“feixe de comuni- cages: Sio Vicente-Piratininga, Cana- néia-Itapetininga, Paranagué-Curitiba, Santa Catarina-Tibagi eram as descidas do planalto para 0 mar. Tronco: So Paulo-Tibagi. Ligando-se a éste, dois no- Vos ramais, um comegando nos Campos Gerais (Parand), outro em Itapetininga, para alcangarem 0 Guafra e 0 Para- suai...” ‘A mesma visio de um Peabira inserido em vasto sistema vidriocontinen- tal orientou Adolfo Augusto Pinto. As- sinalando a surprésa dos colonizadores ‘ao encontrarem prontos os grandes cami- hos de penetragao, adiantou: “Figurava ‘como tronco désse primitivo sistema de viacdo geral uma grande estrada; pondo em ligagao as tribos da nagao guarani da bacia do Paraguai com a tribo dos Patos do litoral de Santa Catarina, com os carijés de Iguape e Cananéia e com as tribos de Piratininga e do litoral proxi- mo”, Figurando-se a marcha dos guaranis para o litoral, partindo de Guaira, enten- dem-se melhor os ramais ¢ todo o sistema vidrio esbocado por Aloisio de Almeida € referendado por Jaime Cortesiom, quando na sua “Introducio & Histéria das Bandeiras Paulistas” escreveu, que “duas grandes familias culturais corres- ponderam predominantemente a ésses dois sistemas de caminhos: no sul, os tupi- -guaranis, 20 “peabiru”; no norte, os aruaques, & réde quase exclusivamente fluvial do Amazonas”. Mas é 0 padre Leonardo Nunes (*), citado por Serafim Leite, quem ‘nos aponta © marco final do Peabiru. Vem escrito no volume I, capitulo VIII da “Historia da Companhia de Jesus no Brasil”: “Ao poente do Parana, 0 ca- minho prosseguia, atingindo o Peru ea costa do Pacifico”. O caminho pode ser perigoso Essa dimensio continental e as pos- sibilidades de penetracao, ecumenismo, talvez, e certemente conquista, jé haviam sido claras, apesar de ingénuamente ex- postas pelo curioso e piedoso aventureiro irmao Ant6nio Rodrigues (°*). Ao cabo (9 Jesuita que, vindo com 0, Pe. Nobrega para 0 Bra Si, ‘wouxeAbehieta de Bahia para Sio Paulo, Foi ‘charmado polos indios "Aba- rebebe ala rapier com ue se ldcomovia, (2) Aventureira que, de- ois, de viver 18 anos ‘na ‘América “espanhols, pas- ‘Sourse para o Bras, pedi jdmissio a. Companhia de Jesus, prestandovthe, bem come 2 corea portuguisa, Yaliosos informes sobre po” ¥os, riquezas e estradas do Pere do Paragual. es (©) Historiador _parana- fense, autor da “Histrs do Parand” ¢ “Caninnos bis. {rioos do Paran (2) Diplomata, foi acuss- do pelo governs de Lisboa de fer desenvolvido ia cOr- { shoeta atividsdes de Dinan’ et Tabor OS Mi and, (2) 0 fortim inicisl do ‘qual surgi Assuneio foi Consraido por Tuan de ‘Agolas em 1336, de dezoito anos entre castelhanos, em carta datada em 31 de maio de 1553, de- pos: “assim vim aqui, que so perto de 300 Iéguas, por uns gentios chamados Topinaquins. (..) J4 0 caminho esté fei- to daqui ao Peru, ¢ hé gente muito apa- relhada para receber a nossa santa fé...” A valia estratégica do’ Peabiru no referente a0 dominio politico, econdmico e militar da América do Sul pode ser medida no texto de Alfredo Romério Martins (*) : “Este caminho tornow-se 0 onto de jungao de portuguéses e espa- nhéis, refiuindo do interior para a costa. ‘A sua posse chegou a ser a chave da conquista, num sentido ou no outro, © estas lutas tiveram repercussio na ida dos jesuftas a0 Paraguai...”. “Unia povos da mediterranea guarani com o Iitoral paulista e catarinense”, ajuntou Augusto Pinto. E Serafim Leite dilata horizontes: “caminho por onde os povos indfgenas se comunicavam com 0 mar e com as regides mais distantes do Ocidente”. Discutia-se ainda a definigao torde- sithana, Nobrega supunha Assungo em territério portugués. Queria ir Ié e pelo caminho. Os espanhéis iam e vinham, trangilila e assiduamente. Tomé de Sou- sa alarma-se com 0 elevado rendimento da alfandega vicentina, Fruto da presen- ga e do comércio espanhol na praia, junto a0 porto, O espenhol é 0 rival na Europa como na América, O Peabiru é a tinica artéria vidvel do mar &cordilheira. Deixd- -la aberta a0 transito castelhano é por em risco a estabilidade portugesa. Foi o que disse, mais ou menos, 0 Vigjante_e entradista Diogo Nunes ao rei D. Joa0 TIT na carta que Ihe enderegou em 1539, E, com ela, alarmou Lisboa. Jaime Cortesio oferece um _¢- xemplo da rapidez das comunicagdes via Peabiru. O galo, que informa ter descido em 1502 em Cananéia, jé em 1513 cocoricava na cérte Inca, assom- brando de tal modo 0 reinante ¢ o povo, que © futuro e tiltimo soberano féz-se chamar Ataualfa, palavra que significa © galo. “Esta rapidez na disseminagio dum elemento cultural — assinala Cor- tesio — prova quanto eram rdpidas ativas as comunicaedes através do conti- nente...” Mas tera sido um episédio de espio- nagem econdmica 0 fato que especial- mente indispés Lisboa contra o Peabiru. Martin de Arue (**), que observava a cérte portuguésa por conta da Espanha, informou a seus superiores que, em se~ tembro de 1553, um homem de Sao Vicente, Adio Goncalves, exibira amos- tras colhidas nas vizinhas de Assunco € que os exames revelaram tratar-se de prata de boa qualidade. Madri tomou providéneias para defender Assuncio. ‘Com isto, Lisboa alarmou-se ¢ irritou-se. De seu lado, os vicentinos, acostu- mados a verem espanhéis ¢ indios, carijés guaranis, em seu pérto, quiseram ga- rantir para si as minas de prata. E Felipe Adorno e Joao Van Hielst requereram ao governador € ao rei que 0 caminho fosse fechado. Havia precedentes proibitivos. Mar- tin Afonso mandara fundar 0 povoado de Piratininga e, nfo o querendo tio peque- no que se tornasse frdgil demais, nem tao grande que se fizesse polo de atragio, implesmente proibia 0 trinsito entre Sao Vicente ¢ a aldeia, Tomé de Sousa estaria propenso a atender a0 propésito dos vicentinos. In- comodava-o 0 transito espanhol, a ten- déncia crescente entre os portuguéses para mergulharem no sertio, as noticias das minas ¢ de regides mirabolantes. Mas, sobretudo, perturbou-se com noticia trazida por Joao de Salazar: a apenas trezentas léguas acima da barra do Rio a Prata, 05 espanhéis (°**) haviam eri- gido a cidade de Assungio. Célculos foram feitos. Assungaoassentava-se sobre © rio mas também junto a risca do Peabiru. “Cem léguas de Sao Vicente!” — bradou. Atraia tanto, que o padre ‘Nébrega nfo se cansava de pedir licenca para ir 14 a fim de evangelizar. Se os padres queriam angariar catectimenos, bem poderiam os espanhsis vir, arma- dos, contestar a presenca portuguésa, ‘ocupar 0 porto © as vilas. Pois, em térmos militares e de preocupacdes poli- tico-estratégicas da época, Assungio ‘So Vicente eram vizinhas. ‘A éste ponto, Tomé de Sousa nao hesitou, Nada de arriscar-se. Preferiu in- dispor-se com os jesuitas a deixar vulnerd- vel os dominios do seu rei. Ao qual escreveu a I de junho de 1553: “.. achey que os de Sam’ Vicente se comunicavao muyto com os castellanos e tanto que na Alfandega rendeu este ano passado cem cruzados de direitos de cousas que os castellanos trazem a vender. E por set com esta gente que parece que por cas- tellanos nao se pode V.A. desapeguar delles em nenhia parte, hordeney com grandes penas que este caminho se evi- tasse, ate ho fazer saber a V.A. e por nis- to grandes guardas e foy a causa por hon- de folguey de fazer as povoagdes que tanto dito no campo de Sam Vicente de maneira que me parece que o caminho estar vedado...” Proibiu 0 caminho e para t@-lo cer- ado mandou fixar, serra acima, postos que impedissem os movimentos e de tudo Ihe dessem noticias. Nos fins de 1553, 0 mesmo Nobrega que tanto insistia em jornadear 0 caminho e tanto lamentaria seu fechamento, enviou padres ¢ irmaos que se juntassem aos indios e erguessem colégio que logo seria povoagao. Em janeiro 0 aglomerado recebeu 0 batis- ‘mo — Sio Paulo — e, de fato, clau- surou o Peabiru, reservando-se para utili- Zéclo quando os tempos estivessem pron- tos para a festa das bandeiras. ‘A proibigdo foi travo amargo para Noébrega. O Paraguai era seu objetivo. Acreditava-o em terras portuguésas. E li ‘estava 0 mticleo maior de indios, a juncéo de grandes rios, a abertura para 0 cora- ¢a0 do continente. E seu amigo Tomé de Sousa que o impede de partir. A 15 de junhode 1553, relata ao Pe. Luis Gongal- ves da Ciimara porque nao seguira aint “.. la principal causa de todas para lo estorvar fué cerrar el camino por razn de los castellanos, que estn poco mas de cien legoas de esta Capitania. Y tiénese por cierto haver mucha plata en la tierra, y tanta que dicen haver siertas de ellas, y mucha noticia de oro por lo qual cerré y atapé el camino...” ‘Um jovem irmo, José de Anchie- ta, que calejara as mos ajudando a 12 erguer a capela de So Paulo, olhando sertio e a ponta do Peabiru, meditou: “E aqui porta de imimeras geracdes do gentio”. Anos mais tarde, as bandeiras partiram, do patio do colégio, rumo do poente. Ellis Junior” queria referir-se 20 Peabiru a0 escrever: “... grande érro, do qual nfo tém escapado nem mesmo mui tos historiadores de certo renome, consis- te na suposicio de que 0 movimento expansionista das bandeiras se deu pelas as fluviais. O Tieté, o velho Anhembi, primeira vista parece ter sido o grande caudal que determinou o bandeirismo, mas foi desconhecido de grande parte do movimento”. Batista Pereira diria bem do pro- videncial que foi a juncao de Sao Paulo e do Peabiru. “Si Paulo foi localizada onde devia ser. Passava-Ihe pela varzea 0 Peabiru, o caminho de Sumé. (..) Gover- nando do alto da sua acrépole a estrada nacional dos indios, So Paulo tinha nas mos a chave dos sertdes e uma barreira intransponivel contra 0 avango atlantico de Castela”. ‘A proibicio foi cumprida, Para indios, plebeus © nobres, portuguéses © castelhanos. Mesmo gente como Joao de Salazar, Melgarejo ¢ filhos de Luts Géis, querendo ir a0 Paraguai e nao vendo outro roteiro seniio aquéles vedado, nao obtiveram a necessiria licenca. E uma ver conhecida a sua intencao, passaram a ser vigiados. Os tupis eram étimos para 0 servigo de observacao. Tio ciosos, que da vigilancia passaram 2 perseguica0. La se foram os fidalgos espanhdis, 2s escon- didas, até encontrar o rio, onde Ihes foi possivel embarcar. Anos mais tarde, um grupo de gente paraguaia aproximou-se de Sio Paulo. A indiada tupi, afeita ao contréle do caminho, caiu-Ihe em cima e todos te- riam morrido, nfo fosse a decidida inter- vengio dos jesuitas. Mesmo para os soldados lusos esta- va vetado © Peabiru. Em 1584, para a guerra contra os carijés, as forcas veleja- ram pelo litoral, alongando caminho, a fim de nao romper a proibicao. Teria sido também para manté-la — além da ameaca do tupiniquim que de amigo se tornara inimigo — que, em 1560, abriu-se 0 aspero caminho do Cubatio, ligando Sao Paulo ao lagamar vicentino. E bem pode ter ocorrido que, para seguir & risca a ordenanca, deixou- se perecer a fundacio de Manicoba (pro- ximidade da atual cidade de Ttu), 0 pri- ‘meiro aldeamento no sul do Brasil. Houve longo siléncio sdbre o Peabi- ru, “Perdeu-se de tal modo a tradigao déssecaminho — lamenta-seBatistaPe- reira® em sua carta a Paulo Duarte — que, apesar de saber que Santo André Ihe estava & orla, a localizacao da vila 2 borda do campo era até hé pouco um problema”. De poucas violagGes se tem noticias. Assis Moura™ revela algumas. De Sio Paulo tocou-se para 0 sertdo gente como “Diogo Nunes, na sua viagem ao Para- guai © ao Peru; o indio Miguel, cristio convertido de Sao Vicente, que regres- sava do Paraguai A sua reducdo; Braz Cubas ¢ Lufs Martins que, em 1562, se internaram pelo pais em distancia de 300 Iéguas”. Estes ja ndo seguiam cami- nho chamado Peabiru mas, dizia-se, de ‘Sao Tomé. Do outro lado, do rio Parand nao houve proibigao e sim desejo de retomar contato, chegar por terra ao Atlintico sem as dificuldades ¢ as latitudes do Prata. Em novembro de 1603, quatro soldados de Vila Rica do Espirito Santo romperam em Sao Paulo. Viagem tran- iiila, calcada nos antigos roteiros de um século atrés, Causaram assombro. Tal como vieram 0s quatro, poderiam vir quatrocentos, caravanas de mercado- res Ou magotes de assaltantes. Mas tam- bém os de Si Paulo poderiam surpre- ender os de 1d. Havia lembrangas e crénicas do caminho das selvas — da “estrada nacional dos indios”. ‘So Paulo festejou os quatro explo- radores. Promessas foram feitas. Pensar- -se-ia no reatamento de relagbes, iriam os daqui ¢ receberiam bem os que apare- cessem. No fim da visita, a pretexto de cordialidade © despedidas, doze (outros documentos dizem quinze) paulistanos acompanharam os visitantes. Teriam le- vado a misao secreta de “conhecer © levantar novamente roteiro do Pea- iru”. A partir dai, 0 caminho retomou por algum tempo a sua importéncia, Em muitos pontos, 0 longo tragado ja nfo seria mais que referéncias, sinais, memé- rias, Tinham-se acabado a imponéncia e 08 cuidados vidrios que Ihe haviam impri mido seus construtores. Foi roteiro indigena, caminho de religiosos ¢ de catectimenos. Cumpritia o destino de conduzir conquistadores. Des- ta ver, 0 bandeirante. A éste propésito, lembra Sérgio Buarque de Holanda, 0 Peabiru “marcou a vocagao_sertanista dos moradores da capitania de Sio Vicen- te”. Em 1628, quando Raposo Tavares levou ao Guairé uma das maiores e principais bandeiras saidas de Piratinin- ga, seguiu roteiro que Alfredo Ellis Ji- nior® retragou assim: “Saindo de Sé0 Paulo, foi ela pela crista planaltina bor- dejante da Serra do Mar. Pinheiros, Apotribu, Quitatina, Maru, etc., foram deixados para trés, como marcos de uma caminhada em ditecio de Guaird. Por fim, eis Aragoiaba..”.Com um més © pouco, a bandeira atingiu seu alvo. Um prodigio de rapidez explicdvel apenas Porque “essa bandeira percorreu uma regidio j4 atravessada por um caminho desbravado, o do Peabiru. Outras bandei- ras tiveram de abrir seus caminhos em serto bravo...” © bandeirante era afeito a lidar com 0 indio. Teria noticias precisas do desenrolar-se do velho roteiro. Tal como © padre © 0 aventureiro no pasado, podia ir com rapidez © trangiiilidade, da praia vicentina s margens do Rio Parana. As biografias de Raposo Tavares, ‘mostram-no nas cumeadas andinas, Algu- mas ousam dizer que viu 0 Pacifico. Certo € que teve caminhos a seguir, de Sao Paulo até onde os guardas espanhois do pais da prata o permitiram. E mais além, para o sul, 0 oeste, 0 norte, seguindo 0 Peabira ou Sao Tomé. Até onde? Todos os caminhos Jevam a Cuzco ".. j4 0 caminho esté feito daqui até o Peru...”, escrevera 0 irmao Antonio Rodrigues em 1553. © Padre Lozano tatifica 0 ponto de partida de nosso ca- minho. Serafim Leite vé realizado antes. de Cabral © plano que hoje busca-se efetivar: a ligagao estradal entre os dois ‘oceanos. Na “Histéria da Companhia de Jesus no Brasil”, ensina: “Ao poente do Parand, o caminho prosseguia, atingindo © Peru e a costa do Pacifico”. £ que no Peru — a Roma do continente —entroncavam-se muito tem- poantes davindados europeus, os grandes tracados da nossa América. O Peabiru era uma ponta secundaria désse grande novélo. O bario de Capanema*, embora pensando nos jesuitas, atribufa o Peabira & técnica e aos objetivos de grandes construtores: “estradas assim planejad: sio obra de profissionais ¢ revelam ten- déncia de estabelecer comunicagées com O litoral para transporte de produtos; pe- los paulistas, que 6 corriam & caga de escravos, nao podiam ter sido feitas; de- nunciam, pelo contrario, a existéncia de um plano geral bem combinado, com fins econdmicos e politicos 0 que s6 pode ter emanado da sagacidade e espfrito meté- dico dos jesuitas.” Acontece porém que os jesuitas ram construtores de estradas, ¢ os incas De fato, eram magnificos os cami- nnhos ineas. ‘As estradas principais da réde in- caica foram pavimentadas, em geral, com lajes de pedra. Nas serras, como as estradas eram cravadas nas montanhas rochosas, 0 pavimento era constituido de lajes assentadas sobre a base e caleadas também com pedra. As lajes de pedra eram arrumadas em forma de mosaico, supondo-se que algumas tinham as jun tas coladas com betume ou breu. Nas rampas mais fortes, os enge- mheiros incaicos costumavam construir, de distancia em distancia, degraus que constitufam a escalera Na regio costeira, em geral, as es- tradas eram construfdas entre dois mu- ros de alvenaria ¢ paralelos. O vazio en- tre ales era cheio de material pedregoso € estvel Segundo alguns historiadores, fo- ram, também, implantadas a0 longo de algumas estradas incaicas marcos de dis- tancia. E, & margem, foi feita a arbori- zagao com Arvores frutiferas Havia nas estradas pontes, ponti- Ihdes c funiculares, s6 diferentes dos modernos pelo uso de cordas trangadas eda forca muscular. Para cruzar lagos ou grandes rios havia os flutuantes. ‘Além do Inca, de seus enviados, de seus soldados, 0s correios eram os gran- des freqiientadores dessas estradas. a rte imperil ine ue liga “Quito. a Cuzco flake ‘$00 tGguss casiehae Nascia-se/para ser correid. O esta- feta inca —o chasqui, formava uma cas- ta, Selecionado em tenra infancia, acos- tumava-se a comer apenas um punhado de milho e tomar um pticaro de agua, uma tinica vez ao dia. Pois nao deveria parar para alimentar-se, Tinha que ser forte ¢ magro. Habitavam as pousadas com acomodagées para as Ihamas, ‘am- pus, sempre aos pares, aos dois, aos quatro, a0s seis, conforme a importin- cia da encruzithada e da estrada. Ali fa- ziam a triagem das mensagens usavam sistema de revesamento. 800 léguas eram vencidas em mais ou menos 15 a 17 dias. As 500 Iéguas entre Cusco e Quito, o eram em 10 a 12 dias. 4 dias, de Cusco a atual Lima. Se o tempo, guerra ou um acidente impossibilitasse 4 continuagio da corrida, 0 chasqui acendia fogueira e a linguagem de fogo alertava os postos adiante. Marchando para destruir 0 império, Pizarro nao pode deixar de louvar @ vitima que Ihe facilitava 0 avango cons- truindo estradas ante as quais o espanhol clamou: “en la cristianidad no se han visto tan hermosos caminos...” Seu secretério, Francisco de Xerez, deu largas ao entusiasmo descritivo diante do que via: “camino ancho (...) va llano, y por sierra bien labrado; es tan ancho que seis de a caballo pueden ir por él ala par sin legar uno a otro; van por el camino cafios de agua traidos de otra parte, de donde los caminantes beben. A cada jornada hay una casa a manera de venta, donde se aposentan los que van y vienen...”.E Cieza de Léon proclamou com arrebatamento espanhol: “so as ais majestosas e as mais longas vias de ‘comunicagao do mundo”. Gutierrez de Santa Clara, em “Histé- ria das Guerras Civis do Peru”, citada por Luis do Amaral, assegura que “o sistema vidrio dos incas foi o maior que o mundo jamaisviu, pois sem diivida algu- ma excedeu todos os dos romanos”. ‘Tanto no referente & extensao do sistema, quanto em relagdo is obras civis, de protecdo, de conférto e de embeleza- ‘mento. Do coraco do império, as estradas incas apontavam para os quadrantes da América sulina. As mais importantes, pavimentadas, protegidas, arborizadas, regadas, Outras, sccundérias, meramente de exploracio — como o Peabiru — menos cuidadas, preparando 0 futuro avanco para 0 Atlantico sul dos mesmos incas que séculos antes haviam recalcado para estas praias o tupi vagueante pelo altiplano. De Cuzco, essas estradas demanda- vam praias ¢ pontos muito distantes, atravessando milhares de quilémetros. Uma, apontava para o litoral norte, jun- to de Quito (*); outra, seguia para o sul, na diregdo de Arequipa fixando no qua- dro doimpério 0 Chile recém conquista- do. Escrevendo seu livro mais notorio, 0 argentino Ameghino entusiasmou-se com essa estrada e viu a Incahuasi — casa do Inca — & margem do Incamayo: “por donde pas6 el inca Yupangui al trente de su ejército a la conquista de Chile” Havia-as, ainda, cortando 0 golfo de Guaiaquil, passando por Papayan, Cah Antioquia, até o Atlantico norte. Outra, pela atual Bogoté, chegava a Angostura © 20 mar, Também a que descia rumo do Prata © tem seu tragado ainda utilizado pelos indios das monta- has de Catamarca e Rigja. Na meta final de cada rota inca, um oceano. A 12 de outubro de 1952, a American Geographical Society despa- chou uma expedigao ao Peru com 0 fito de reconstituir 0 tragado da rota Capac Nan —a Estrada Imperial, ou a Estrada do Sol. E justificou a empreitada: “.. as rujnas se éstendem ao longo de dezesseis mil quilometros, acompanhando a costa da América do Sul O Peabiru, pelos meandros da bacia do Parand e pelos trithos ¢ referéncias claras, era uma ante-estrada, um sinal de presenga uin preparative para a con- quista inea, interrompida pela dissengiio na familia imperial, a decadéncia ¢ a chegada do europeu. Muitas provincias imperiais sequer conheciam chefes incas. Eram geridas pela gente local, de quem Cuzco esperava tio sdmente a submissio. O barao de Capanema, Romirio Martins © Augusto Pinto vislumbraram, embora sem aprofundarem-se na anélise, que 0 Peabiru fra feito para ligar 0 coracto do continente ao mar e nao para levar da praia & montanha, como foi depois usa- do. Era certo, A expansio imperial olhava para 0 sudeste, depois dos triun- fos de Yupanqui Pachacutec. Garantida a supremacia no altiplano e na cordilhei- ra, as ambigdes peruvianas voltaram-se para 0 Chile, o Prata, o atual centro-sul brasileiro. Nao chegaram a possear tais regides, coincidindo seu limite extremo nesta direcdo com as margens ocidentais, do Rio Parand, Mas jé em 1566, Juan de Matienzo, magistrado de Charcas, 15 Mors aS yrugado sobre mapas vetustos ¢ exal- tado por preocupagées patridticas, escre- veu ao rei enaltecendo as vantagens da construgao de um porto no Rio da Prata. Serviria & imensa regido ¢ domaria o peito dos Andes, 0 Alto Peru. A carta, Juan anexou um esbdgo do itinerério, _ do Peru ao Prata. Mais tarde, Francisco de Aparicio, um estudioso déstes temas (Vestigios dos Caminhos Incaicos na Provincia de La Rioja”) superpés 0 tragado de uma estrada inca ao projeto de Matienzo. Coincidiam. Perguntas hipsteses Para que tanta estrada se nao havia carros, € 08 provaveis indios viajantes por aqui e comboios de lhamas 14 pelos ‘Andes, ndo exigiam tanto trabalho dos construtores impcriais? E que 0 objetivo final e maior era 0 de ampliar o territ6- rio e de manter a unidade nacional — papel estratégico de um império que exigia imobilidade dos conquistados © mobilidade do. conquistadores. LE ésse Pay Sumé, nome que nao é portugues nem espanhol, pode muito hem ser inca. Os rios que dificultaram avanco peruviano para 0 sul ¢ 0 oriente, teria sido a Agua que trouxe e que retirou das nossas tribos 0 branco misterioso que tudo ensinou e tudo abandonou. E aquelas pegadas na rocha, das quais Nobrega disse: “fui ver por mais certeza... ¢ vi” — pegadas e declaragio alvo de diividas e de sarcasmos, realmen- te estiveram ali, marcadas em pedra, a0 longo do caminho. Foram mesmo vistas por Nébrega, por Montoya e por muitos outros. Nao seriam, como o desejara a crenga daqueles religiosos, testemunho da passagem e dos trabalhos estradais do apostolo So Tomé, mas sim eram sinal e€ sélo da engenharia inca. Pois era désse ‘modo, com a implantagio de um pé hhumano, que se indicava nas estradas peruanas, a direcio © as distincias, conforme ensina Adler, citado por Corte- sio na sua “Introducao Hist6ria das Bandeiras Paulistas” Idas as bandeiras, feito 0 vazio humano no pafs dos indios, esgotadas as minas, chegou o tempo do posseador sedentério, Os acampamentos vestiram roupas de cidade ¢ chamaram 0 conforto ao seu encontro. As tropas de burros, as boiadas, os primeiros Fords de bigode, depois o trem de ferro, o asfalto afinal, domaram a distancia e amaciaram as asperezas, Mas no avangar para 0 oeste € ‘0 sudoeste néo procuraram outra direcao que a dos velhos ponteiros do Peabiru. Os recursos da técnica sentiram-se bem acompanhando as riscas da Histéria. Ea cidade de Sao Paulo continuow a ser — no dizer de Anchieta — “porta das geragdes dos gentios”. BIBLIOGRAFIA 1, mani da Silva Bruno: Tribes de Bugro; em: Diario de § Palo, 201.1960. 2 Serpo Braue de Holanda: A preaistria das Bandara. Ti Visio do Paraso. 2, Moneo do Tay Histra gral das Bandas Paulista Ti." Jouo Ramalho ¢ Santo André és Borda do Sampo! "Antonio Ruiz de Montoya, Pez. A conguista espiitual feta pelos religious da Gonmponhie de ‘eens. 3 Sino de Vasconecllos, Pe. Cricu da Compa thin de eats no Estado 40 Bra a Moet da Nobrega, Pe: Cartas do Bras 5, Clntido Coste as duns Americas 4, Peg Prangos Xavier de Charlevois, Pe: Histo sc cuForagin obs Southey: Mistry of Bra vl I fave wg Passalacqua, Mors 0. apdatold § Tome na Amésca; em Revuta do 1HOSP, vo vm U1 Alofsio de Almeida: O lendério Pesbirv; em O kitada de § Paulo; VI, 1988, 12. Joan do ery: Histéria de uma viagom feita & (erva do Bras tame dita América, 1 Aleuandre von Hamboldts Vista das corditheras WoL Ta. 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