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© OcIDENTE MUNDIALIZADO ca, 0 céleulo econémico, 0s direitos individuais ~ cuja significagao e valor universal impuseram-se em todo 0 planeta, depois da sua aparigao nesta regido particular do globo. A ocidentalizagio que ganha, nao é nem 0 ocidentalismo, nem a supremacia do homem branco, nem 0 anierican way of life erigid como modelo por todas as civilizagdes: € 0 processo de modernizagio- -racionalizacao de todas as nagdes e das suas maneiras de pensar, de produzir e de agir seja qual for a inten- sidade das reactivagdes culturais, é a cosmopolitizagio da realidade planetéria, a difusio mundial dos vectores tuniversalistas constitutivos da idade moderna tal como a desenvolveu 0 Ocidente. 112 Texto me 2 wah Lipeve sky, 6 B doin, Y.(gote). 0 cet mumlial eae: combmufesio solu a cull plancla’acn. dis bea: Ehieezs Fe. Cultura e Mundializacgao Hervé Juvin «E mais dificil ser de qualquer lugar do que ser do seu tempo.» Pierre Jakez Hélias Cultura. O meio de relagio consigo, com os outros ¢ com o mundo. Meio de se dizer ou de fugir. Meio de ser aqui e agora, ao mesmo tempo origeme projecto, paldcio de vidro e estaleiro sem fim. O que faz a verdade, a que se diz € a que nao se diz, o que faz com que os mesmos se reconhegam. Entre o que um faz € 0 que faz 0 outro, Fonte das sociedades humanas, na sua singularidade, no seu didlogo € na separacao que permite a paz. Cultura, O que a mundializagio quer ser, como 0 seu meio mais essencial. Porque é a partir dai que tudo se apreende e que tudo existe. Porque 0 verdadeiro, 0 tinico territ6rio de conquista se situa no que preenche a noite dos sonhos de sonhos e de formas que nao dizem 0 seu nome. Cultura. Cuja crise poderia ser o nome. O que trans- parece, sombra ¢ corrosio sob o culto solar da frater- us 0 OCIDENTe MUNDIALIZADO nidade, da solidariedade, da humanidade reconciliada, finalmente reconciliada, pela cultura-mundo ena cultura- -mundo. O que joga, range e geme nas engrenagens minuciosas da fabrica do contentamento, da produgio de opiniao, do consentimento ¢ da rentincia. © assunto é actual. A crise na qual o sistema de mercado nos faz entrar é uma crise da cultura, uma vez que ela é uma crise da relagio com o real, do jul- gamento e da inteligibilidade do mundo. uma crise de culturas particulares, daquelas que fazem a vida, que dizem como comer, deitar, amar, transmitir, do plural apreendido pelo singular e pela sua preten- sto de ser a cultura de todos. Face a esta crise moral € social, uma s6 atitude € impossivel: negar a impor- tancia das transformagées que esvaziam de sentido a palavea cultura tal como foi pronunciada e debatida desde ha cerca de dois séculos e que fazem da cultura outra coisa, uma outra realidade e uma outra palavra, Sonhamos em apenas conhecer do universal os precos, (8 contratos e os direitos, 0 que nos dispensa de todo © respeito pelas instituigdes milenares, porque elas so milenares, 0 que evita aprender histéria para melhor desprezar 0 que os homens brancos, racistas e violentos produziram, é evidente, os homens sio todos os mes- mos. Neste sonho prometeico, nada de surpreendente que cada multimilionério de sala de mercado se dé o direito de mudar o mundo, nada de surpreendente que as estrelas se déem o direito de comprar criangas que gragas a clas terdo um futuro brilhante, mas nao os seus pais nem a sua terra, jf ndo é nada surpreendente que © primeiro humanitério que apareceu assuma a postura Ela é também 116 CULTURA & MUNDIALIZAGAO que condene as castas, as hierarquias de nascimento € as crengas que ditam os modos de vida; uma vez que ele é depositario da cultura que acabe com a historia e que suprime a geografia, a nossa insuperdvel democracia dos direitos individuais(®). Acrescentarei: é impossivel nao ver também a relagio entre 0 desaparecimento do individuo € a asfixia da democracia € naquilo que a cultura se tornou ~ é impossivel nao introduzir uma dimensao trgica do que esta em debate e do que deve tornar-se projecto para a cultura. Admitamos que as nossas sociedades europeias te- nham saido da religido, mais ainda, como escreve Elie Barnavi em Les religions meurtribres(), que elas se tenham tornado cegas ao facto religioso, mesmo insen- siveis ao sagrado. O que significa a cultura que sai da religido? O que é uma cultura que ignora o sagrado? O que € 0 belo que ja nao fala do céu? Observemos 0 desenvolvimento invisivel mas omni- presente do politico e do Estado como infra-estrutura dos direitos, das liberdades, dos proprios desejos, ¢ a conformidade crescente de vidas que se vestem de gadgets, de marcas ¢ de diferengas aprovadas para (9) Ver a este respeito a introdusio de Louis Dumont na sua ‘obra sobre as castas na india, Homo biérarchicus (Gallimard, Tel», 1966) na qual ele sublinha que nenhum indiano, n30 mais que nenhum europeu que tena vivide na India, preconizou 1 supresso de um sistema milenar que assegura a cada um 0 seu lugar na ordem social-cdsmica ~ em 1960; que caminho desde entiot (*) Seuil, 2007, 117 0 OCIDEN... MUNDIALIZADO melhor se dispensar de se reconhecer € de escolher ~ para melhor usar 0 luto de toda a autonomia real ¢ do que faz os homens inteiros. © que é uma cultura que se tornou argumento de uma moral, que apela & censura de tudo 0 que nao segue os caminhos balizados da beleza iitil? O que é, finalmente, uma cultura que no sabe patear o bem e o mal, em nome do génio, em nome da loucura, em nome do riso? A subordinagao da cultura ao direito, a regra e & conformidade ao bem itil € a manifestago mais visivel da situago em que a -se o meio de outra coisa, acima dela ou mesmo sem ela. cultura é chamada a torna Vejamos, finalmente, a que ponto 0 nosso universo estd inchado de positivo, quase a rebentar pela sua pre- tensio ao bem, ao ponto de acreditar que 0 Ocidente mundializado pés fim a hist6ria e tocou no horizonte inultrapassavel da organizagao politica do planeta. Ao ponto que a velha maxima do clientelismo politico, «pao € circo», parece tornar-se 0 novo eixo moderno da cultura — facilitar as digestoes dificeis e confortar © sentimento do bem daquilo que os Restaurantes do Coragao oferecem. O que € uma cultura que fabrica a boa consciéncia, apelando & censura e se dedica a reprodugio universal do sistema dominante? O-gue € uma cultura que no apela a consciéncia de si, para além € contra as facilidades ¢ os conformismos ¢ que nao fala, a0 mesmo tempo, do trégico da vida e da magia sempre recomecada dos projectos humanos? 18 1- A CULTURA-MUNDO E 0 NOME DE QUE A cultura-mundo € 0 outro nome desta economiza- gio do mundo que convoca cada planta, cada animal, cada parcela e até os homens ¢ as mulheres que vivem nesta terra a sua utilidade. Ela € 0 efeito da nossa sai da da terra, da origem e da duragao. Rodeio, artificio, subterfiigio € 0 gosto sempre inconfessado de que necessério forcar a dizer o seu nome, Dizer a sua cul- tura sem afixar o seu preco. O elogio da mobilidade, 0 cosmopolitismo erigido em principio moral, o interesse individual sacralizado pelos direitos do individuo, ¢ 0 jogo estd langado, O s6rdido pequeno segredo escondido atras da cultura de massas, o acesso de todos & cultura ¢ todas as outras vitrinas que nos deslumbram, € que a cultura figura, agora, num bom lugar das coisas que se produzem ¢ das coisas que se vendem porque ela esta entre as coisas que se contam. 1 — Singular plural Havia culturas. Ao longe, a curiosidade, a irredu- tivel distancia. A terra, ou seja, a geografia, a origem, © clima, isto 6a historia dos homens determinava-lhes tanto como a fantasia, o trabalho ou o génio. Tinham a face de Janus, por um lado, 0 que separa 0s outros dos mesmos, assegura a unidade interna de sociedades dotadas da sua cultura e imuniza-as contra as agressbes exteriores, por outro, 0 que une 0 que tudo o resto se- para, o que designa entre eles a relagao mais profunda, a das fundagoes, dos simbolos ¢ das representacdes. ng 0 OCIDENTE MUNDIALIZADO ‘Ao mesmo tempo distincia e trago de unio, ao mesmo tempo particular e comum. Haveria cultura. Ponto de chegada, termo, fim re- alizado de um mundo saido da natureza e da histéria, que se tornou finito, pequeno, humano, solidério, fra- ternal ou, entéo, fuga numa incompletude fatal, o de uum mundo sempre a construir, a refazer, a recomegar, Saida da terra, recusando a origem, recusa da histéria ¢ da geografia, meio do homem sem determinagio, do homem plenamente homem porque liberto de todas as contingéncias ¢ capaz de tudo 0 que o controlo permite e que o Bem apela. Joahnn Sebastian Bach e 0 rap, 08 tags e Chanel, 0 confessional ¢ 0 ashram. Nao separados, no desvio € na tensao, lado a lado, juntos, iguais, misturados nos novos estados de consciéncia que a pratica de solicitagdes simulténeas forja. De novo, Janus, por um lado, libertagao das antigas dependén- cias, liquidando os limites, as amarras, que dificultam a livre busca da felicidade por cada um, por outro, novo enraizamento no possivel sem limites, dando a cada um © gosto extenuante de perseguir todas as oportunidades, convencendo-o de que uma vida de homem é 0 que nao tem limites ¢ intimando mesmo, a cada um, que seja assim — prometendy mobilizar-se sem tréguas. Seja cultura, isto é, a maneira de ver o mundo, de sentir 0 mundo, de se sentir no mundo e, portanto, de agir no mundo. Seja, assim, uma cultura mundializada, isto é, uma relagao com o real que dé 0 mundo como unidade, como comum, como uniformidade ~ 0 mundo plano perante 0 olhar, o passo do caminhante, o apetite 120 CULTURA E MUNDIALIZAGAO do tutista. O que se passa? Um desvio multiplicado com © real, que faz com que cada um viva, aqui e agora, em condigdes climéticas, geogréficas, hist6ricas, sociais, politicas, etc., determinadas ¢ particulares. Nao so to numerosos os que tém a sua residéncia secundaria em todos os Hilton da terra e podem, com efeito, crer que a terra € plana ~ com a condigao de nao ouvir 0 canto do almuadem, de ignorar a favela no morro, 0 ‘muro em volta dos colonatos e de nao abrir o jornal local! Qual é a relagdo com o real em que a cultura do Ocidente mundializado é a chave; e podera ela ser outra coisa do que uma cultura da ruptura com o real, da abstracgao crescente da vida, da conjuragao da his- toria e da geografia, uma expresso, enfim, do estado de apercepgao social no qual o fascinio pelo virtual provoca uma juventude embriagada pelo advento indi- vidual, indiferente com as condigdes que o permitem? A interrogagao esta presente, ela é mesmo estridente Porque cada um a sente efectivamente, qualquer coisa se passa, que nao se resume & transgressao de uma cultura existente, nem 4 mestigagem da cultura existente com uma ou outras, importadas do exterior. Qualquer coi- sa, que vem radicalmente de fora, que coloca em jogo outra coisa, talvez para restituir A palavra «comércio», tal como era entendida no século xvi, a sua amplitude original e que se impde progressivamente como uma maneira de ser, de agir, de estar em relacao para uma parte, pelo menos, da populaco mundial. © facto € essencial: nao ha culturas, miltiplas, di- versas, confrontadas com um fenémeno exterior, que seria a mundializagao. Ha um facto social global, cuja at © OCIDENs£ MUNDIALIZADO. iniciativa é ocidental, que se chama mundializacao, que constitui ela prépria uma cultura, ou que o pretende, € que tende a impor a todas as outras, em nome do bem ~ se no sabe onde esta o seu interesse, nds sabemo- -lo, tenha confianga em nés. Elas eram dominadas pela estabilidade social e pela repetigao do passado, mostravam o limite de toda a vida do homem ¢ a pru- déncia perante as forgas que a ultrapassavam, serviam a via do sagrado e dispunham a cada um a obediéncia a0 destino, ao real, ao poder e ainda a muitas outras coisas. Todas as outras, todas as diferencas e, por vezes, contraditérias tragavam todas as vias diferentes de ser homem, desde os Chukchi que ensinavam aos velhos, que se tornavam iniiteis, a matar-se, até aos Torajas de Sulawesi que ficam com os seus mortos em casa, no seu quarto, meses apés a sua morte fisica, antes da reunio familiar que os leva ao eterno repouso. A mediatizacao diz que a cada um tudo é possivel, que agir permit. tudo e que 0 mundo esta a disposigao. E diz que, apés despir-se de todas as determinagées, as origens ¢ as singularidades, uma vez queimadas todas as aparéncias ilusérias do particular no fogo universal, o Graal das oportunidades esta ao alcance da mao do individuo absoluto que cada uma, cada um, pode deve tornar-se, sem 0 cavalo branco e sem Parsi ela é uma, Obtinham a pacificag’o dos mesmos pelo mito das fundacdes e da excep¢o comuns, procura-ana identidade de interesses individuais e na universalidade do néimero. Nao é um indicative, uma observagao de facto; ndo eram culturas se ndo fossem culturas, eram apenas divergéncias, punham-se tao sé em movimento pela dinamica da diferenciacao das sociedades humanas, |. Elas cram diversas; 122 CULTURA £ MUNDIALIZAGAO condigao simultanea do seu didlogo ¢ da sua dinamica, ‘Acabando por ficar orgulhosa da sua cultura. A sua cultura é a de todo o mundo, o tinico orgulho é estar no fluxo, de se fundir no comum, de se submeter & norma da indiferenciagdo cultural — nao ser4 o ensino ministrado aos futuros gestores de multinacionais, que fabricam clones indeterminados a quem nada do que € humano seria sensivel? Celebrar a sua cultura como cultura francesa, como cultura alema, como cultura chinesa, no sera j4 descriminar? E distinguir-se no serd ja renunciar? © ponto assinala a novidade radical do que se passa € que ultrapassa tudo 0 que foi observado da cultura de massas; jd nao se trata da cultura de massas, trata-se da cultura de todos. Dissob que a compdem, interdito 0 povo na consciéncia de si prOprio que o faria sonhar em autonomia e que 0 tornaria um actor politico! Internet ¢ Web 2.0, 0 por- tatil; temos os meios para falar com cada um no mais fundo da sua intimidade, ja nao falaremos a uma massa. A cultura-mundo € a primeira que se quer verdadeira- mente universal, porque ela € individual e acompanha 0 triunfo presumido do individuo. Tem por missio realizar la a0 asfixiar ida a massa nos animélculos a unidade da humanidade e de comple pela sua presenca e pela invasio dos seus meios todas as outras culturas e a sua pretensao para distinguir € escolher. Seré apenas uma, a sua condigao é abragé-las todas, prendé-las ¢ reduzi-las 4 unidade. No seu desenvolvimento, a cultura da mundializs 0 € a primeira que realiza neste ponto a associacao 123, 0 OCIDENTE MUNDIALIZADO do poder ¢ do dinheiro. E é a primeira que tem uma relagdo com a economia na medida em que a economia € a condigao da sua validade, na medida também que ela concorte a fazer do modelo de crescimento ilimitado uma forga suicidaria irresistivel — j4 nao se defende a cultura-mundo como nao se defende contra a promessa de bem-estar! Nenhum segredo, mas a forte conjun- sao da universalidade da técnica ~ a gravitagao nao é nem britanica, nem chinesa, ela é - ¢ do dinheiro — 0 equivalente universal de todas as coisas - a0 servigo da utopia planetéria. Bens culturais, servicos culturais, patriménio cultural... a cultura de massas desobstruiu a venda da cultura aos que tém apenas o dinheiro por mérito € por meio. A igualdade perante a cultura con- duz ao mercado da cultura. E o crescimento que faz a cultura-mundo, primeiro pela saida da pobreza que autorizou no decurso do mais forte periodo continuo de crescimento mundial da hist6ria recente—e talvez de toda a histéria. £ porque as coisas funcionam, porque ha crescimento, comércio, negécios em desenvolvimento, que constitui um regime de verdade. Verdade no interior de uma cultura, engano fora dela. E, portanto, verdade no interior da mundializagao, engano para além dela. Mas também, verdade no e pelo crescimento, engano sem tla. A condigao deste poder é 0 crescimento. Enquanto funciona, o poder sobre si, sobre os outros, é enorme; poder de veridiceao, poder de operabilidade. O que faz ‘com que uma coisa seja verdadeira; o que faz com que a acco tenha lugar. A nossa cultura é a do crescimento ilimitado e esté assente na nossa todo-poderosa técnica, autor de uma ruptura sem precedentes com a natureza, tuma vez que ela nos coloca numa situagao de produzir 124 CULTURA E MUNDIALIZAGAO a natureza. Ensina a nunca mais perguntar porqué. A cultura era o meio de voltar atrés, de julgar de saber dizer nao. A cultura-mundo dissolve as questes na acgao, interdita o recuo e o julgamento e resolve-se numa imensa aquiescéncia ao crescimento, a0 mercado es suas obras. A cultura-mundo mantém, sem diivida, relagdes permanentes, intensas, com as culturas particulares que subsistem no seio das sociedades humanas. Sio expos- tas umas as outras, so-no sem parar, sio-no cada vez mais. Nao ocasionalmente, no fim de dias extenuantes das arcias do deserto, das estradas vermelhas de Africa, do escoamento da grande floresta equatorial. Nao no temor e no tremor do desconhecido, na revelago do diferente, no indizivel que fez de todas as narra de viagens até ao século xvit, pelo menos, a narrativa do imaginario, entre o admiravel € 0 horrivel, mas no negécio, na conversio, no comércio. A relagio com 0 outro, com o estrangeiro, com o distante mudou, mas € definitivamente a relago com o real de cada um de ‘ns que se encontra mais transformada. Primeiro por- que a imagem pretendeu colar ao real, transmitir-lhe no seu movimento, a sua cor, a sua vibracio; a seguir, porque a imagem, a mesma, transfigura o real e faz a ponte com o imagindrio, com a emosao ¢ com as expectativas de emocio. De modo que tornar-se autor do real jé nao tem lugar na histéria, na politica, nas ruas das cidades ou nos tumultos das trincheiras, mas diante das consolas, atras das camaras, em frente dos ects ~ e fechem a janela, por favor, para que a luz do dia nao nos incomode! vas 125 | © recuo ou o regresso so tanto mais proibidos quanto a exposigéo a cultura-mundo € de todo o tempo € de todos os lugares. De maneira quase permanente, para todos ¢ para tudo, a favor da torrente de repre- sentagdes que nao poupa quase ninguém, desde que a Televisio por satélite est por todo o lado, desde que um em cada dois homens tem um telemével. Nao na distancia, de um lado e do outro de fronteiras definidas, mas na confusao, 0 que alimenta todas as ilusées da mestigagem, 0 que permite a bricolage das identidades culturais, como o das cozinhas étnicas ou das religides compartimentadas ~ uma gaveta para o budismo, uma gaveta para o Natal, uma gaveta para o Halloween. Nao na construgio paciente de si, mas na aventura das sedugdes do momento, mesmo na saturagio sensorial. A violéncia € considerdvel; 300 milhées de chin navegam, 25 milhdes de chineses estio viciados na Internet, atravessaram em vinte anos um século e meio de hist6ria cultural da Europa. Da taga de arroz a0 4x4 € ao telemével, seré necessario medir um dia 0 que esté em jogo € que nao é econdmico. Esta exposicao € destruidora. Naturalmente, faz ocorrer outra coisa Mas © qué? A cinica resposta honesta € que nés nao sabemos nada, Enquanto a cultura-mundo € um mo- mento técnico que apenas vai modificar nas margens as culturas ¢ as civilizagdes humanas, a maré da histéria tal como a crise vai arrasé-la, varrendo rapidamente as hanalidades gerais no planeta unificado como varre jé as idiotices sobre 0 fim das nagdes. Assim, a cultura- -mundo € aquilo que faz manter e transformar todas elas, porque ela muda a condicao humana do século xt, Porque cla é simultaneamente a expresso das técnicas 126 CULTURA E MUNDIALIZAGAO do quotidiano ¢ o seu posicionamento nas vidas, ¢ € necessario dizer que ainda é muito cedo, que a bruma pesa, que o sol ainda nao nasceu, ¢ que nés nao vemos nada, nada ainda do qual seria bom falar, nada ainda que permita dizer ao que se assemelhard verdadeiramente um mundo determinado por uma cultura unificada, ¢ 0s homens que viverdo este mundo nesta cultura - homens que terdo perdido as referéncias do colectivo singular e da sua particularidade distintiva 2-A fabrica do mesmo «Somos homens parecidos mais ou menos nus sob o sol.» Francis Cabrel Vale a pena colocar a questio; de que falamos? ‘Aqui e agora, a resposta é singular; falamos do que termina, e tiremos desta conclusio a iluminagio que nos falta para o futuro, © tempo da equidade facil da cultura-mundo e do Ocidente, na sua variante americana musculada, demonstrativa e ruidosa, como na sta versio curopeia ao pretender a fraternidude © a compreensio universais, acabou; 0 que se passa na cultura-mundo, © que passa da cultura-mundo nas nossas sociedades escapa j4, escapara cada vez mais, aos seus emissores. Apesar do Google, da Wikipédia e do YouTube ou do Facebook, apesar da iniciativa americana ainda esma- gadora na Net, nés j4 nao somos os autores do mundo. Anarrativa continua fora de nds, em Wuhan, Sio Paulo, 427 © OCIDENTE MUNDIALIZADO Teetao, Omsk, e arriscamos mesmo ser embarcados em, ios que ndo conhecemos. As ferramentas que, massi- vamente, sio nossas, irdo servir fins dos quais nds nao sabemos nada; eis onde para o Ocidente mundializado. Os Estados Unidos ¢ 0 Google fazem a experiéncia no seu didlogo com a China; apesar do smart power, a ‘mundializagao ja nao €americana eo mundo desordena a América. © Iuxo € 0 gosto j4 nao sao do Ocidente. ‘As mesmas técnicas que asseguraram a empresa do Oci: dente na mundializagao dos mercados, ratificaram a lei do niimero, a equidade de todas as formas de estética, asseguram a recompensa de iniciativa cultural ou, pelo menos, a participagio de todos os seus consumidores- -espectadores-criadores associados. A crise tornou a constatagao evidente. Saimos da mundializagao feliz, feliz para nés, que caracterizou a encenagéo de um grande espectaculo que se desenro- lou desde 0 inicio dos anos 70 até a queda do muro de Berlim, para se expandir na ingenuidade das suas Promessas nos anos 90. E a cultura-mundo esté em questo, Francois Jullien lembra-o em De l’universel, dit commun, de uniform et du dialogue entre cultures): a cultura-mundo € a da confusao, nao as culturas, mas os termos da sua troca, Falamos do universal, temos a palavra facil na boca, enquanto apenas falamos mais ou menos de uniformidade, ow seja, da reduc das culturas & economia, E nds dizemos cultura, mas apenas temos os utensilios da cultura. Da busca atenta, exigente, a (© Fayard, 2009, 128 CULTURA £ MUNDIALIZAGAO esta facilidade industrial, a inclinagao é facil, que nos provoca sem que pensemos. Porque a ilusio do dilogo, permanente de culturas, da sua mestigagem, & agradé- vel. Suporia 0 respeito, a seguranga e a estima por si, relagdes de interesse partilhado, de reciprocidade e de distancia. Estamos longe. O que nés observamos, depois, de tantos anos, é um movimento incessante de unifor- mizagio, de laminagem das culturas e das civilizagdes, pelo projecto liberal, economista ¢ individualista ~ projecto do totalitarismo suave do enriquecimento ¢ da separagao do individuo do todo colectivo, condigao do crescimento econémico que se alimenta to bem do infortiinio individual... £, sob 0 exterior brilhante do apelo universal, a laminagem sistematica de toda a re- sisténcia & desconexao dos individuos com o colectivo, que faz deles, sob a égide dos direitos do homem, clones adequados, mobilizaveis, permutaveis, convencidos que ‘© mundo Ihes pertence e que se divertem bem. E tam- bém a prega das sociedades sobre elas préprias, os seus subentendidos, 0s seus cédigos, os seus costumes, a sua singularidade. Nunca por oposigao frontal, nunca por vontade, pelo contrério, mas por dissolugao, subversio ¢, na realidade, por indiferenca radical 20 que fazia a dignidade de cada um sob a cobertura do relativismo. © tratamento por tu facil, de principio, é a marca da recusa desta distancia que se chama respeito, que proibe de se misturar com 0 que nao se olha, ¢ que se chama nao ingeréncia, abstengao e reserva. A cultura-mundo mistura-se com tudo, por principio, com todos e néo respeita nada; descultura, neste sentido, destruigao destas distancias, destes diferencas, destas descriminagdes e do seu sentido, que so a alma das culturas dos homens. 129 0 OCIDENTE MUNDIALIZADO. Para dizé-lo em algumas palavras, a hist6ria recente vé as culturas, elemento principal da constituigao das sociedades dos homens, da reproducao do seu miicleo politico-religioso e da sua pacificagao interna, no seu conjunto, conformarem-se com 0 triplo dogma do mer- cado, dos direitos do homem e do interesse individual, Nada de comum com 0 empréstimo, com a inspiracao, com a selecgao de elementos vindos de outras culturas que partilham tao bem, por exemplo, a pintura francesa do século xvi e a arte japonesa; a normalizagao ¢ a conformidade impostas do exterior. A cultura eta 0 meio de provar a distancia com as outras, ao considerar todos os recursos do seu espirito, do seu corpo ¢ dos seus utensilios, a sua alteridade; a este respeito, forma- dora da identidade colectiva, a este respeito taml eminentemente politico, negécio de poder, questio de fé, questo de escolha. Iniciagdes, tatuagens, dangas, rituais, ornamentos € modas sd, aqui, 0 mesmo que arte, ou 0 que nds chamamos arte. «Mais bonito para mim», escolheu, como frase publicitéria, uma marca de lingerie que celebrava 0 auto-erotismo como nova cultura de si, Permanecerd apés a Internet, os brinquedos sexuais € os Restaurantes do Corago, qualquer coisa que s6 a arte podera dar? A cultura tornow-se 0 que manifesta o semelhante ou, entao, 0 umtiforme, 0 que deve tornar sensivel a cada um ser apenas um entre 0 outros e como os outros; a Madame de Sévigné nao concebia, como o recorda Pierre Manent(*), perante 0 suplicio dos camponeses bretdes insurgidos, o que podia ‘m (®) Em Cours familier de philosophie, Gallimard, «Tel», 2004, 130 CULTURA & MUNDIALIZAGAO ser 0 sofrimei agora, ser, 20 longo das horas ¢ das actualidades, Al- bert, Mohamed, Ehud ou Tian-Tian, nao importa qual, nao importa qual deles, dos que softem, que morrem, que sio vitimas (serd indtil acrescentar que, em parte nenhuma, seja o que for que sugira, € possivel também compreender, partilhar, identificar-se com 0 carrasco, com 0 guarda prisional, com o inquisidor; 0 modelo esta esgotado, jé nao se reproduz, remetemo-lo defini tivamente para a classe dos acess6rios de feira). Parece que é um progresso. -0 de um camponés; a cultura obriga-nos, A histéria mudou, portanto, a cultura. Ou, entio, tem mudado de cultura, Porque a questo nao é unica~ mente de grau, ou de nuance, mas de signo. A cultura sublinhava essencialmente as coisas que se davam e transmitiam, porque sao coisas que se distinguem, e relegava para o lixo 0 que se vende, 0 que se conta € © que se comercializa, as coisas comuns que trazem em si todas as facilidades do uniforme, Ela tornou-se distria e, também, uma das indistrias nas quais as sociedades descontentes com a indistria e fatigadas de servir inventam um futuro. Johann Sebastian Bach negociava, e duramente, as condig6es da sua remu- neragao junto do principe e! seus auditores ouviam-no gratuitamente no escritério. Os fundadores das Caixas de aforro francesas, os grandes burgueses liberais do inicio do século xx, de- sejavam que os nossos artistas divulgassem junto das classes populares as representagoes da poupanga, das suas virtudes, ao ilustrar os beneficios para a vida das familias; nés esfor¢amo-nos para aplicar a sua vontade, tor de Leipzig mas os 131 © OCIDENTE MuNDIALIZADO Adam Smith ja o tinha visto A sua maneira: a economia tem fortes razdes para se interessar pela cultura e de a Fecrurar ao seu servico. Aqui estamos nos. A sociedade de mercado assumiu a cultura como fonte de fé e de sonho dos homens, tornou-a num dos factores mais eminentes , mais ainda, eficazes, da mundializagio tal como se envolveu nos escombros apds.a Segunda Guerra Mundial, tal como ganhou uma extensio imprevista apés a queda do muro de Berlim da dissoluca0 do império soviético. Chamou cultura ao que se tornou uniforme, ao que dissolveu os estilos, as formas, as cores € 08 sons pelos quais os homens ingénuos pretendiam cexprimir a sua singularidade, pelas quais afirmavam nao serem homens idénticos ~ 0 que eles chamavam a sua dignidade. Sempre os mesmos, sempre os mesmos... Meio de distancia ontem, meio de indiferenciagao hoje. Presenga cambiante, muiltipla, indefinida, do mundo como historia e como geografia, ontem, como fascinio e respeito pela distancia, pelo diferente, pela afirmagao obsessiva do seu desaparecimento agora, pela desolante unanimidade do bem, do desenvolvimento, dos direitos e da confusio generalizada dos homens, das formas € das relagdes, hoje. © luxo estava em relagdo com um territétio, com um saber, com uma heranca, com um produto; os rebugados de mentol de Cambrai, as sedas de Lyon ow os lengos de Cholet... e a corte do czar fornecia-se com luvas de Millau, até mandar vir de Aveyron um dos rapazes Canat para ajusté-las as 132 CULTURA & MUNDIALIZAGAO medidas precisas das damas da corte na prépria Sam- petersburgo, em 1909! Cada um sabia 0 que devia aos que lhe tinham precedido, cada um sabe, agora, que 0 mundo é seu € que tudo thes é permitido. O luxo tem agora numa marca mAquinas que depositam milhares de unidades de produtos sem territério ¢ sem origem = Made on Earth by humans, mas devidamente carim- bados pela LVMH, Pierre Cardin ou Gucci e para mais seguranga afixam em grandes letras a sua proveniéncia — até ao dia em que 0 luxo se exprimira mais simples- mente pelo prego do saco a mao, do relogio ou dos culos inscrito em caracteres indeléveis ¢ fluorescentes no proprio objecto ~ uma vez que 0 tinico verdadeiro luxo contemporaneo é 0 dinheiro, ou a capacidade de pagar do cliente, e que a dissolucdo de todas as formas € de todas as relagdes com 0 dinheiro € o fim légico e banal do caminho comprometido. A cultura era a cultura das origens, era heranca ¢ vinculava ao tempo os mesmos e 0s que ela definia como tais; ela é chamada a tornar-se individual, ou seja, a escolher-se, a adquirir-se e a vender-se, como qualquer outro produto. Ela era a acumulagio de experiéncias de geracdes passadas transmitida a cada individuo, que permitia reduzir a incerteza do futuro, de se compro- meter com 0 bom coragao e acreditar de boa € que © futuro seria melhor. Maquina de transmitir a unidade entre as geragoes que o tempo separa; maquina de criar unidade entre os contemporaneos, que as crencas, as origens, os interesses separam. J4 ndo é questdo de ser facto da sua cultura, de ver a sua existéncia produzida por elas a busca da indeterminagao, na qual se resume 0 133 0 OCIDENTE MUNDIALIZADO projecto liberal, deve também libertar o individuo disto, ‘Também ja no é uma questo de que a cultura domine © individuo, esmague a autoridade do pasado, dos exemplos dos mestres e do génio dos autores; a minha cultura € 0 que me agrada eo que me serve. A cultura preexistia as existéncias individuais, ela 6 chamada a torné-las confortaveis. Ea diversidade cultural é o nome que a cultura-mundo da & segmentagio dos alvos € a fragmentacao das audiéncias, para melhor assegurar © triunfo sem réplica da velha fraude da unidade do género humano que consiste em trazer 0 homem a sua natureza, negando a sua hist6ria. Nem recuo nem julgamento; vivemos a desaparigao do imaginario pela saturagio das imagens. Os que entram numa sala de cinema marcam pela sua prépria postura a violéncia do que vem; o choque da imagem, do som, toma-os como uma vaga. E impossivel recuar, impossivel guardar a sua distancia eo seu quanto-a cinema é uma técnica de possessao e nas salas que ficam escuras ¢ raiadas de luz, hé milhoes que se entregam, que se abandonam, que nao sabem nada e compreendem menos 0 que vivem ~ ou 0 que vive neles. © mundo da cultura, como o da arte, jé ndo € 0 que une pelos valores que exprime e por um irreal que faz partilhar, abisma-se na experiéncia vazia e na reprodutibilidade sem fim. £ proibido ser sobrenatural; é proibido que isto se exceda. £ aqui que tudo se passa, repete a cul- tura com determinagao. E é nesta vida que é necessario viver varias vezes, nesta vida que é necessdrio langar 05 seus avatares, nesta vida que & necessdrio tornar-se Deus para se sentir verdadeiramente um ser. 134 CULTURA & MUNDIALIZAGAO 3-O fins liberal Na origem de tudo, o projecto liberal, © projecto da liberdade do estabelecimento humano, expresso pela indeterminagao que deve fazer 0 homem sair da natureza, da origem e do acaso. Na obra sob o signo da individualizagao e do crescimento sem limites, promete entrar num mundo melhor. Mobiliza a representagao imaginéria da unidade do género humano para obter 6 consenso sobre o fim das nagdes, que deram 0 seu quadro ao exercicio da democracia, mas que se véem acusadas de todos os males. O vocabulério do pensa- mento tinico curopeu ¢ significativo; as nagdes apenas existem como inflexibilidades, como travdes a0 rumo dos negécios. © curso do projecto liberal nao esté terminado. Ele amplifica-se mesmo, com a histeria provocada pela crise e com o advento sem precedentes de bancos ¢ de mercados financeiros que ditam a sua lei aos Estados; a sua ruina seria a sua. O elemento novo é a desaparicao da autonomia das sociedades humanas provocada pelo advento do homem armado dos seus direitos, soberano e exigente. Alguns dos seus aspectos desvelam-se com estrépito: um banco de investimento nova-iorquino- dé o direito aos seus assalariados a indeterminacao sexual a0 proporcionar o reembolso das operagdes que Ihes permitam mudar de sexo; recusamos 0 handicap através do diagnéstico pré-natal que promete a termo apenas deixar nascer criangas sem riscos maiores; vemos crescer um mercado internacional de adopgio de criangas, que consagra 0 direito dos ricos a comprar criangas aos po- 135 0 OCIDENTE MUNDIALIZADO. bres. Que imagens imiiteis do Bem radioso e sem escriipulos gue foram dadas por Madonna ao adoptar uma crianga africana, apesar da existéncia dos seus pais, em nome de uma vida melhor que ele tera certamente ~ uma vez que sera americano! A cultura-mundo amplia 0 mercado dos homens, desde que Robert Badinter proclamou «o direito individual a crianga»'*®; como dizer mais claramente que ‘nao ha nada que o dinheiro nao possa comprar, em primei- ro lugar as criangas, em primeiro lugar os homens? Como confessar mais fortemente que o advento do individuo é, a0 mesmo tempo, a aniquilagao de toda a distancia, de toda a autonomia individual? E sera necessatio acrescen- tar que a cultura se tornou a encenagio do crescimento sob © nome de progresso, e da mercadoria sob o nome do luxo? O sagrado contemporneo reside nesta alianga do crescimento econémico do direito que assegura as condigées; quem ousaria colocar em causa a religido do desenvolvimento? Encenagio A cultura-mundo encena o projecto liberal, liberto do constrangimento democratico e das formas sociais herdadas das culturas anteriores; sob-trés aspectos determinantes. 1 Perante nds, a unidade. Falamos tanto mais de diferengas, de rupturas, de excluidos, quanto mais ve- () Le Débar, 1998. CULTURA & MUNDIALIZAGAO mos avancar 0 espectro da unidade. Quem é que ainda acredita que viajar 0 expde a diferenca? As viagens multiplicam-se entre lugares sempre idénticos, drama- ticamente cada vez mais idénticos. Agitamo-nos frencti- camente para ir a qualquer parte que nunca seja outro lugar; j4 nao ha outro lugar. Nés somos os primeiros a viver um universo sem exterior; os selvagens, desde Lévi- Strauss, as terras virgens, desde Google Earth, os outros, desde Fidel Castro, desapareceram — em que outro pais que nao seja Cuba é que os paingis publicitarios exibem frases do Lider Maximo, nao apelos as compras? Nos somos a primeira sociedade que se quer mundial e que ja no aceita 0 exterior; com que arrogancia, com que meios e, sobretudo, com que auséncia toral de divida, a religido do desenvolvimento se entrega a liquidar as civilizagoes, as crengas, as organizagdes politicas © sociais construidas durante milénios, arruinando a sua passagem um patriménio essencial da humanidade! A cultura jé no € 0 meio de relagao com o outro, como esta cultura astronémica de Matteo Ricci que the per- mite, a ele jesuita, de figurar como mandarim na corte do Celeste Imperador, nos anos 1500; a cultura-mundo € 0 meio de ser os mesmos e de reduzir os outros. A doutrina americana de seguranga di-lo claramente 20 jd nao aceitar a ideia de adversarios legitimos. Contra 1nés, nao saberia ter guerras justas. O mundo é organi- zado em fungao do objectivo tinico do crescimento e do desenvolvimento, que quer excluir todas as formas de afrontamento que nao seja a dos mercados através da concorréncia e dos precos. Jé nao ha guerreiros legitima- mente adversérios, no respeito e na dignidade mittuas, apenas ha forcas de paz, do contrato e do mercado as 137 0 OCIDENTE MUNDIALIZADO quais se opdem os combatentes do mal ou da fé ~ do irreal, Neste sentido, a cultura-mundo é uma poéticas ela faz existir um universo em que as relagdes com 0 mundo real so encantadas, na melhor das hipéteses, ou armadilhadas, na pior; a cultura do mundo de Walt Disney em que as relagdes nao tém sexo, em que os homens nao tém cor, em que o sonho de um mundo facticio se propaga com um despudor tranquilo, € a de tum totalitarismo do bem-estar. Passem, nao hé nada para ver, diz a cultura-mundo. 2 Excesso de estruturas colectivas em nome dos direitos do homem, que se tornaram na Europa, pelo menos, 0s direitos do individuo absoluto. Capacidade ilimitada para se descomprometer, para se desligar, para se desfazer da relagao com os outros, com a natureza, com a sua cultura e consigo mesmo. A educagao, 0 ensi- no, a formagio sio teatros deste drama; a desculturagao caminha lado a lado com a socializagio, esta aposta na conformidade das criangas e dos jovens que exclui © controlo da lingua - com que direito se pode pedir que as criangas da diversidade falem francés? — mas a sua assegura empregos aos jovens antes do RSA. pode haver educagao sem discriminagao e sem selei € 86 uma sociedade que sabe'o que se deve e couhece © seu encerramento pode legitimar as suas instdncias de educacao, sem ser perfurada pela frase «para que é que isto serve?». Porque isto serve, em primeiro lugar, para se tornar francés, europeu, civilizado, na diferenca, na exiggncia, mesmo na confrontagéo com os que serao de um outro mundo ~ de uma outra cultura, que nao tém nada a fazer deste mundo, destas instancias que 138 CULTURA E MUNDIALIZACAO nao tém, simplesmente, nada a fazer aqui. A cultura de si contém 0 individuo, j& nao se desenvolve numa comunidade, numa sociedade singular, € singular pela sua cultura - contém-se no vazio. Entre individuos soberanos, atomizados, nao h4 nada que possa ser sociedade, Nada de surpreendente em relagao a isto. A sociedade politica liberal tenta aspirar cada pessoa para a abstraceao do sujeito do direito, despe de tudo 0 que faz dela um ser de carne € 0550, com um pasado, ‘com origens, com relagdes, com uma terra ¢ uma histéria, para torné-la fluido, liquido, mével, indefinidamente. Neste sentido, a cultura-mundo bem uma negagao da condigdo humana. Neste sentido, os direitos do homem sio bem a condicao da aboligao da politica e do fim da historia - ou do seu desencadeamento futuro. 3~Duro exercicio do real. Mésica, pintura, cinema, literatura, filosofia, teologia vivem ou sobrevivem como passatempos € esto sujeitos a tornarem-se industria do divertimento se se quiserem expandir. Eles também, como qualquer animal, qualquer planta, tudo sobre a face da terra, sio mobilizados ~ reduzidos a sua utilidade. © termo «indiistria da cultura» vende © pavio: neste reino de verdade, a cultura mede-se, apropria-se, entra nesta categoria de bens que se trocam e que se vendem. A individualizagao nao esté aqui por nada; por um lado,a desligagao coloca no mercado o que dependia da relagio local, familiar ou social, e era gratuito. Deve-se ao seu poder de compra a cultura que se deve ao seu meio ou & sua origem. A cultura tende, portanto, a realizar-se nos objectos, nos momentos, nos actos identificdveis; hé objectos que so ditos culturais, actividades que 139 0 OCIDENTE MUNDIALIZADO sio nomeadas como culturais € uma indistria dita da cultura. Acessérios decorativos da vida que passa, Nao so as coisas pelas quais se luta ou se morre. Ha, de facto, marginalizacao da cultura, mais nada de essen- cial se passa aqui, nem se pode passar, o que se passa passa-se na economia. E sem diivida as condigées de nascimento de uma obra de arte desapareceram com a conformidade e com o consenso humanitario. © niimero substitui o saber, 0 niimero mata o gosto © a aristocracia do julgamento, O exemplo é dado em Google-moi de Barbara Cassin(*): a légica invocada sob 05 gloriosos auspicios de «cultura ¢ democracia» € uma l6gica puramente quantitativa em que o nimero de cliques dita a qualidade, tanto da amizade como das obras. E a lei da Internet, os motores de busca como enciclopédias; 0 niimero dita a verdade, a quantidade assegura 0 belo, 0 bom € o verdadeiro. Nao estamos longe do realismo socialista soviético: as massas nunca esto erradas, o artista s6 faz o que é belo e bom quando educa as massas, Chegaremos brevemente ao ponto em que, nos museus, se afixard o prego estimado do quadro para se situar 0 valor. De resto, nas grandes fundagées americanas, publica-se o valor de compra do quadro. Homenagem aos doadores! A arte vale o seu preco. £ um primeiro passo, que sera seguido. Nas univer- sidades americanas, os grandes e antigos exemplares sdo-no segundo a sua contribuigao financcira, Aquele que paga tem sempre raz, Chegaremos brevemente a0 ) Albin Michel, 2007. 140 CULTURA & MUNDIALIZACAO pono em que, nas universidades, se diré quanto ganha uum professor para saber se vale a pena ouvi-lo ou se se pode satisfazer ao ler a fotocépia. A forga de saber bem fazer, mas nao fazer bem, é necessario o quantitativo para apreciar o qualitativo. A organista que toca A Arte da Fuga, pergunta-se: «quantos tubos?», como Estaline perguntou ao papa: ... Queremos ignorar que 0 édio, a inveja, © ressentimento ¢ o desejo esto em marcha ¢ que tém mesmo seguidores ~ que esto na origem de algumas das realizagbes maiores da humanidade, que desafiam o tempo © © nosso julgamento, Mas a vida privada, do seu lado sombrio, de lixo e de sangue é apenas um sucedineo, tem aspectos da vida, sem o essencial, que a coloca ao servigo do que é mais do que ela e que sabe que uma vida nao vale nada, que ignora o que nela é mais do que ela. S6 aqueles tém diceito de falar de cultura, que estio prestes a morrer ou a matar para que Notre-Dame de Paris nio se torne um parque de estacionamento ou uma mesquita, 2 - Canto das liquidagoes A cultura-mundo participa profundamente deste movimento de liquidagéo do mundo, que resume 0 dominio do liberalismo econémico sobre 0 mundo, depois de cerca de dois séculos, © que explica, se udu @ préxima queda, pelos menos inextricaveis dificuldades com as quais se vé confrontada a partit de agora, € que serdo, € que sio, a crise da cultura-mundo como cultura do seu desaparecimento. A primeira liquidagao a qual se entregou o liberalis- mo econémico foi o da natureza. Somos confrontados 152

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