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COMPOSICAO II Poéticas da oralitura Néo he ugar echado sem lugar perdido, Gasam-se olém os fatas de um lugar, 1n9 ancontro da meméria ‘como matriz. Ruy Duarte Poiesis do corpo-tela Nas composigdes. seguir, me propono lavrar algumas gestas, por meio das quais o tempo espiralar, como estrutura, se manifes- ta, Nelas, buseo explorar suas situagdes de ling «Ges € seus registros de imagem, a exploracio cinética do corpo, suas funcées como dispositive e condutor, portale tela de grafias ede uma sintaxe de aderecos; suas expansées espaciais, assim comoas escansdes de sua duracao; stta percepcao como deixis; svias memérias de Africa, As realizagbes do tempo espiralar aqui sublinhadas sio traduzidas por poéticas matizadas e atravessadas por uma corporeidade constitutiva, expressa pelo corpo-tela, O corpo tela ¢ um corpo-imagem. Geralmente, aderegamos as imagens na sua qualidade visual, privilegiando o olhar, a janela da alma, como evocavam os gre- gos. May as imagens podem ser também sonoras e cinéticas & sm, suas produ essas stuas qualidades sao contiguas. Fm muitas das realizagbes estéticas e criativas aqui evocadas, o convite a ver ¢ precedida. pelo convite a escutar, pois também nos revelam a formagio e 0 registro de imagens; mas imagens que se apresentam aos nossas olharese Anossa escuta, Essa interdependéncia é relevante ¢ con- vida & expansdo nao apenas de nossos olhares, mas também de nossa capacidade de ouvir e de toda nossa pervepedo sensorial, " pois a eseuta das imagens é uma das entradas para o universo fem que os movimentos, os sons, as luminosidades ¢ os aromas tem cores e desenham paisagens de saberes, ambito privilegiado das oralituzas. (O corpo: tela, como imagem material e mental, fundo, super- fice, volume, relevo, perspectiva e condensagdo, nao nos remete apenas as inscrigées peliculares e aos aderecos e adomos corpo- rais e, por consequéncia, ao privilégio das posticas da visibilida- de, pois evoea também, como sonoridade, a evidéncia auditiva, © pescrutar dos owvidos, a ativacio intensa dos registros auriex- lares. Em sua qualidade icénica, visual, provoca o olhar, pois “a experiéncia da imagem, anterior da palavra, vem enraizar-se ‘no corpo", como afirma Bosi*Mas a imagem nio se resume ou reside apenas em su qualidade icOnica e na sua atragéo pictural, naioé somente um icone do. ujeito ou do objeto “que se fixou na retina’, pois se expande como imagem mental, na qual o “ato de verapanha no séa aparéncia da coisa, masalguma relagio entre 16s e essa aparénci " como argumenta Bosi.” Conforme esse autor, os sons e as palavras, como expressio, “trazem ainda em si ‘marcas, vestigios ou ressoo de uma relagio mais profunda entre 0 corpo do homem que fala 0 mundo de que fala’ e a imagem, como signo, vem marcada, “em toda a sua laboriosa gestagio, pelo escavamento do corpo":? © corpo-tela como corpo-imagem fa2-se também como ima- gem mental, aliando a aparéncia do ser As suas vibragées, portan- doe postulando pensamentos. Como nos alerta Etienne Samain, Imagens sio formas pensantes. Como tal, veiculam pensamentos que de varias maneiras nos afetam ¢ cujas recepcao e percep- fo tém o poder de também afetar e de prolongar, no tempo, asimagens e suas aderéncias, pois “toda imagem {un desenho, 78 lima pintura, uma escultura, uma fotografia, um fotograma de cinema, uma imagem cletrOnica ow infogrifica) nos oferece algo ‘para pensar: ora um pedago de reaf para roer, ora uma faisca de imagindrio para sonhat”™ Segundo ainda o mesmo autor, “toda inagem é uma memeéria de memérias’, ouseja, “uma sobreviven- ia, uma “supervivencia” que, ao combinar em si “um eonjunto de dadios signicos (tragos, cores, movimentos, vazios, relevos ¢ ‘outras tantas pintuuagdes sensiveis ¢ sensoriais), constitui “uma forma que pensa’. Formas pensamento que, ao se associarem, as- ‘sim como as frases verbais ou musicais, sio “capazes de despertar e promover ‘ideias’ ou ‘ideagbes, isto, mavimentos de ideias™ Composto por condensagdes, volume, relevo ¢ perspectivas, superficie, fundo e pelicula, intensidades e densidades, o corpo- -tela é um corpo-imagem constituide por uma complexa tranca dearticulacdes que se enlagam ¢ entrelagam, onduladas com seus entornos, imantadas por gestos e sons, vestindo ¢ compondo e6- ddigos e sistemas. Engloba movimentos, sonoridades e vocalidades, coreografias, gestos, linguagem, figurinos, pigmentos ou pigmen- tagBes, desenhos na pele e no cabelo, adornos e aderecos, grafis- mos e grafites, lumes e cromatismos, que grafam esse corpo/corpus, estilisticamente como locus € ambiente do saber e da meméria. Como tal € kinesis,impulso cinético, uma condensagao significan- te, sintese performética por exceléncia, em todaa gama extensiva de sta natureza, como habito, conduta, Iéxico ¢ ideograina. Um ‘conpo, sintese poética do movimento, Um corpo hicréglifo. Complexo, poroso, investido de miltiplos sentidos e disposi ses, esse corpo, fisica, expressiva e perceptivamente, é lugar ¢ ambiente de inscrigdo de grafias do conhecimento, dispositive, econdutor, portal e teia de meméria e de idiomas performiticos, cemoldurados por uma engenlhosa sintaxe de composighes.. n tarpborila, canta e danga para educar suas fami- Clivado de descontinuidades, reversibilidades, giras temporax © povo do Congo tarmborila, canta a lizantes, ondas de expresses sonoras c ritmices, o aconteciimen« to corporificado inclui as experitncias individuais ¢ colctivas, a Jias com a cadéncia fornecida pelo som da misica,Tumborilam,ean- tam eangam para plantar seus mortos eles acnhorilam, canton cer suas instituigbes, Eles produzem misica ‘memoria pessoal e a meméria histérico-social, O corpo-tela é ales gb. Eles assim também tum corpus cultural que, em sua variada abran- genet fe dangata para fort; cea desfrutam pata estar em paz consiga mesos, com a natureza também com o universo, Tamborilar, cantare dangar é um pode- oso remédio espisitual "Medicin/Nkist aderéncias ¢ miiltiplos perfis, torna-se focus ¢ ambiente Drivilegiado de intimeras poéticas entrelagadas no fazer estético, Um corpo historicamente conotado por meio de uma linguagem pulsante que, em seus circnitos de ressondncias, inscreve 0 sit Numa das Iinguas Banto do Congo, o kicongo, o mesmo ver- bo, tanga, designa os atos de excrever e de dangar, de euja raiz Aeriva-se, ainda, 0 substantivo ntangu, uma das designacoes do tempo, uma correlagio plurissignificativa‘8 Aqui, numa coreo- jeito enunciador-emissério, seus arredores ¢ ambiéncias, em um determinado circuito de expressao, poténcia e poder. Em seus intimeros modos de realizagao, em sas posticas & paisagens estéticas, a corporeidade negra, como subsidio tedrico, conceitual e performatico, como episteme, fecunda os eventos, expandindo os enlaces do corpo-tela, como vitrais que irtadiam erefletem experiéncias, vivencias, desejos, nossas percepgdes e ‘operagies de meméria, Um corpo pensamento, Um corpo tam bémde afetos. reeuos, progress e retroagio, expan contracio e dilatagio temporais simultaneas que escandem as espacialidades também como giras desenhadas, coreografadas, cartografadas. Assim também apreende Grazicla Rodrigues: grafia de retornos, dangar € inserever no tempo e como tem- po as temporalidades curvilineas. A performance ritual é, pois, simultancamente, um riscado, um trago, um retrés, um tempo recorrente ¢ um ato de inscrigio, uma afrogeafia Nessa gramiética rftmiea, os movimentos sao de avangos € econdensagio, numa Dangar o tempo, inscrigdes bailarinas ‘No tempo corpo bailarina. Thompson Farris afirma que Africa imauigura uma nova hist6ria da arte, uma histéria da arte dangan- te, que encontra especifica e singularmente no corpo seu vefculo exponencial de veridicgao e de estilizacao."* Fu-Kiau também, serefere.a Africa como um continente bailarino, onde prevalece ‘um poderoso trio, “tamborilar-cantar-dangax*, por meia do qual crlam-se cantos de paz, de forca interna e de poder, eno qual a miisica “é expresso de vida, paz e harmonia’ 80 significado de abrir o Rosario, no Congado, ou de abrir um gira ‘de Umbanda tem uma relagio direta com os pontos especificos 60 cespago que guardam ¢ reeebern a meméria dagueles que realizam orito. © abris também representa a possibilidade de dinamizar os espacos, envolveido o movin.ento interior e exterior inteprados nas sminimas ages. Dessa forma, dé-se a conversio dos espagos coti- dianos em espagos sagrados, estando a sua arrumagdo relacionada ‘40 tempo necessério de ocupagiio para gue # meméria dosantepas- an ssados possa se reinstaurar no presente. No mesmo lugar em que sabre também se fecha 0 Roséio, 2 fechamento,o tempo presente 6 bem localizado eo futuro de novas tealizagies da festividade € projetado e guardado no enigmatico espago-tempo simbolizado pelo altar ou pelo conga. [u] Os espagos sestdo inseridos nos corpos das pessoas numa interligagao costurada em atosrituais.” Para o alto ¢ para baixo, para tris e para a frente, em todas as diregSes, 0 corpo esculpe no ar os anelos da ancestralidade. O corpo bailarino é tanto um corpo-chao, terra, no qual pulsa, co- sno na bats ds tambores as rates ancestras,ocorago do ancestre; como é também, alando-se para o infinito, um corpo- ‘mastro, como belamente o descreve a mesma autora: ‘A partir de uma intensa relagao com a terra © corpo se organiza para a danea. A capacidade de penetracio dos pés em relagio a0 solo, num profundo contato, permite que toda a estrutura fsica se cedifiquea partir de sua base. A imagem que temos do alinhamento € de que toda a estrutura possui rafzes. [.] través ca posigio pa: ralela dos pés, segue-se o alinhamento de toda a esteutura dssea © a musculatura ¢ trabalhada acompanhando seu préprio desenlio, em espiral, (.] A estrutura absorve o simbolismo do mastzo votiva, ‘nunclada pelo estandarte que representa os santos de devogio. A parce inferior do mastro liga-se & terrae a paste superior inteliga- ssc como eu. [.] Os beagos e as mos inceragem na consteugtio do ‘mastro eda bandeira dinamizando as energias quv estio acima. Occorpo-mastro é firme e flexivel, articuls-se em todas.asdiresties, ‘ntegra.o dentro eo fora, em cima ¢ embaixo, frente e atras 1 ‘odo o processo pendular entre a tradiedo ea sua transmis institui um movimento curvilineo, reativador e prospectivo integra sincronicamente, na atualidade do ato performado, Ip presente do pretérito e do futuro, Nas dangas dos Mogambi- ques, por exemplo, as omoplatas ritmam 0 corpo em expanse Nobre o torso que se dobra ao encontro das partes inferiores, nas _guais jf fluem os liames dos pés. No samba, esse movimento des fgmbros e do torso enovela os quadris que se transmutam agora emespirais, 0 rebolejo Nessas coreografias, do alto ao baixo, para os lados ¢ em varias diregbes, dé-se a sincope do gesto, 0 corpo jogado para baixo em movimento subito, interrompendo o fluxo linear, criando 0 que se ‘hamon de ginga. Segundo Sodré, ‘a sincopa, a batida que falta’ é aauséncia no compasso de marcacdio de um tempo {fraco) que, ‘no eatanto, reperente noutro mais forte, (.] De fato, tanto no jazz atua de modo especial a s{ncopa, ineitando 0 quanto no samba, temporal — ‘ouvinte a preencher o texupo vario com x marcagi palmas, meneios, balangos, danga. fo corpo que também falta —no pelo dasincopa. Sua forga magnética [J vem do impulso (prove- ado pelo vazio rteuic) de se completar a auséncia do tempo com adindmica do movimento no espago.” O movimento aqui traduz aassimetria, matéria-prima da ont- poreidade negra, Assim se manifesta sincopa, me da ginga ede 1 desafia.o vazio, os assimeétricos volte todas as giras, 0 corpo qui sal faritmica no corpo que parece tomar, atraido pelo chi, josdi ssmo & sobre ta no espaco e breca.a queda, em voleies sobre si me a espaciatidade escandida e expandida. No jogar da capoeira, 0 corpo desliza e balanga no ar, desenha o espago, Eseorrega, mas 83 nndo cai, como nos ensina Mestre Pavia: “Se no jogo ocorre algum desequilibrio de um dos capoeiristas, o cantador, por exemplo, pode cantar relembrando que 0 capoeira niio cai, escorrega, en- fatizando o aspecto da técnica, da habilidade, da destreza neces- sfria para o bom desempenho no jogo.” Na capoeira, segundo ele, “tudo é complementagio”, Nos seus elementos, sobressai “o plano da transitoriedade, da autopoieses, da corporeidade, [.J em que a oda é hita, ao mesmo tempo em que nao deixa de ser dang” Assincope do gesto exige a disponibilidade corpérea, efeito de iécnicas e procedimentos apreendidos por uma metodolo- gia também diversa, recriacla no fazer, refazer que Zeca Ligiéro, ecoando Fu-Kiau, define como “cantar, dangar, batucar", no- meando-as como “forcas motrizes”. Sobre os mavimentos e ges- tos da capoeira Angola, Ligidro assim os descreve: No casa da capocira angola, o elemento do jogo est diretamente imbricado na mevimentasio corporal, que envolve a simulagao de ‘uma luta enguanto exereicio de atague e defesa dentro de uma tée- nica em que o corpo transfere o seu peso constantemente entre os Dragos e pernas,criando uma ponte entre o vertical ¢ horizontal ‘ora imitando animais, ora criando um novo repertorio de antigas Frases aprendidas com os mestres e anuncizdas pelos toques da or- questea de herimbau, atahaque, pandeiro e agogé."”” A sincope desenha as balizas do corpo em movimento, 0s sol- fejos da voz ea potica dos gestos, Gestos bailarinos. Assim se graf o tempo, compésito dos voleios do corpo e das posticas de seus gestos. O gesto, a expresso do movimento, é um eédigo cultural e significa socialmente, Como todo signo, em seu esta- tuto simbdlico, o gesto, independentemente de sua natureza, & 2a ‘uma convengdo, wm signo interpretante em qualquer produgio semiética de uma cultura e, por extensio, de todos os provessos de construgao cognitiva que essa mesma cultura opera, nos do~ ininios social, estético, filoséfico etc. No Ambito das performances rituais negras, o gesto, além de ,ilustrativas ¢; mesmo, suas fungées ditas exteriotes, descritivas expressivas, pode e deve ser pensado como um “em si mesmo" interior ¢ anterior, uma condensaeio sign ificante, sintese perfor- mitica porexceléncia, em todaa gama exvensiva de sua natureza, como habito, conduta, léxico, ideogtama e hierdglifo. Para Paul Zumthor, assim como em Artaud e Meyethold, gestos de rosto (olhar e mimica), gestos de membros superiores, da cabega, do busto e gestos de corpo inteiro quand juntos “carregam sentido a maneira de uma escrita hieroglifica’* © gesto, segundo Galard, “6a poesia do ato’."! Na poesia ver- bal, “vogais e consoantes reencontram seu sabor, seu perfume, sua qualidade tail, enquanto os caracteres alfabéricos libertam toda a simbélica de seu grafismo”!"” Os gests (diferentes do simples gesticular)encontram sua mellortradugaio.em sua fungao pottica ‘Assim, a poesia, "em ver de ser primeiro uma colegio de objetos (verbais), talvez seja um processo com autonomia suficiente para operar “de maneira semelhante nas construgées de palavras, nas disposigdes de objetos, nas composigdes de gestos”* Pensando, pois, com Galard, que “a operagio poetiea consiste em algum fun- cionamento dos signos (e nao no uso de alguns signos)’, podemos os signos afirmar que “a pocsia, sejaela verbal ou gestual, rea cextintos, para que toda prosa se torne assim mais viva ‘Também para Paul Zumthor, sio ostensivas ¢ primordiaisas relagdes do gesto, do movimento e da danga com apoesia € com 0 dramitico: 85 De qualquer manetra que o grupo social a oriente ou a limite, @ Fungao do gesto na pecformance manifesta a ligagao priméria entre ‘corpo lhumano ¢ a poesia, [nl O gesto gera no espagoa forma ex- terna do poema. Ele funda sua unidade temporal, escandinda-ade suas recorténcias. No mondlogo do griot, de intervalo em interval deve surgir a danga para que a narrativa progrida."" No ambito das oralituras, o gesto nao é apenas uma represen- tagao mimeética de um aparato simbilico, veiculado pela perfor- ‘mance, mas institui e instaura a propria performance. Ou, ainda, o gesto ndo é apenas narzativo ou descritivo, mas, fundamental- mente, performativa. O gesto, como tima poiesis do movimento como forma minima, pode suscitar os sentidos mais plenos. © gesto esculpe, no espaco, as feigdes da meméria, nao seu trago mnembnico de cépia especular do real objetivo, mas sua Pujanga de tempo em movimento. Em Afzica, assim como nas Américas, “o bom dangarino & 0 que conversa com a miisica, que claramente ouve ¢ sente as batidas, e € capaz de usar diferen- tes partes do corpo para criar ‘a visualizago dos ritmo"! Por essa perspectiva, Malone, na esteira de Thompson, conclui que “dangarinos tornamse, eles mesmos, uma forma magnifica de arte escultural”. Em muitas sociedades tradicionais afticanas, esculturas nio visam retratar realistica e mimeticamente 0 cor- Po, pois, em geral, apreciam mais reproduzit posturas corporais, e gestos culturalmente significantes, Muitos escultores africa nos, mesmo na criagdo de mascaras, “parecem menos interessa- dos na precisio das representagdes anatomiicas do que nos mais sutis processos de inferéncia do movimento corporal”? Como assevera Sodré, na cultura negra “a interdependéncia da miisica com a danga afeta as estruturas formais de uma e de outra, de tal 86 mianeira que 2 forma musical pode ser elaborada em fungi de determinados movimentos de danga, assim como a danga pode ser concebida como uma dimensio visual da forma musical” A importancia do gesto na evocagio de Ogum é assim descri- ta por Graziela Rodrigues: ‘Oguim, cujas miios e bragos se translormam em espagos “que cor- tam demandas ¢ abrem caminhos’, no movimento do corte tem a lateral da mio dircita contactada com a palma da mio esquerda (J) correspondendo ao chakra solar, referente A atuagau deste ovina ‘Ounra correspondéncia & que na danga guerrera de Ogun 0 mo. ‘mento das mos como espada, antes de projetar-e para o expago, desenvolie-se eta diregio aos demais plexos situados no tronco e relacionados 4 postura de Ogum."” Suzana Martins, na mesma perspectiva, descreve a conquista dos lugares que a danga de lemanjé instala, nos giros e balangos que bordejam e delimitam os espacos: im outros momentos, Yemanjé Ogunté, sutilmente, executa um movimento muito comum também na danga de outros O: segurando o alfanje com a mio direita, Yemanjé Ogunté alonga ‘o bragodireitoe o apanta para a Frente, em direyio ao chito, quase 0 tocanclo; num impalso rapido, com todo o corpo carregado de peso, .gira sobre o elxo da colina semicurvada, com velocidade aventua- da, riseando um circulo no espago, 20 redor do seu préprio corpo. Nesse movimento ripido do giro, o volume das suas saias ampliaa sensagio visual do espago que seu corpo ocupa com esse movimen- to abrupto, répide e direto, eriando a imagem de um tornado [J Segundo a filha de santo Janail Peixoto (1992), esse giro significa 87 «que *Yemanji Oguinté esta delimitando 0 seu espago, avisando a0 snimigo que ele nfo pode avangar’ 2? © corpo danga o tempo. Bangaré como inscrever, que é como estar no tempo curvo do movimento. O evento criado no ¢ pelo corpo inscreve o sujeito ea cultura numa espacialidade refle- tida, espelhando as temporalidades, Podemos, assim, conceber 4 performance ritual nfo apenas como inseri¢ae do corpo nas espacialidades, mas como projegio do espaigo em uma tempora- lidade que o espelha, As movéncias das dangas mimetizam essa Cireularidade espiralada, quer no bailado do corpo, quer na ocupar ‘io espacial que o corpo em voleiossobre simesmo desenha. O:mo- vimento coreogréfico ocupa o espaco em circles desdobracos, figu- rando a nogiio ex-eéntrica do tempo. Em outras palavras: 0 tempo, em sua dinimica espizalala,s6 pode ser concebido pelo espaco oxi nna espacialidade do hiato que 0 corpo em voltejas ocupa. Tempo e cespaco tornam-se pois, imagens mutuamente espelhadas. Nas derivagées de ntu, sufixo designativo das raizes linguisticas Banto, o terme hantu, como “categoria classificatéria de lugares" de- signa espacialidades, assim como passagens e paisagens temporais: HANTU €a categoria clasificatoria de lugares, Teznos que no pen- samento africano um lugar é definido com relagao a um tempo. A ‘categoria espago-tempo forma im hindmio produzido pela clas- sifieagio em Hantu. As palavras ligadas aos pontos eardeais, aos ‘espagos geogrificos ou as descrigées do tipo mapas esta presentes nesta categoria. Mas também ontem, hojeeamanh3, Manha, tar- de, entardecer, noite ¢ amanhecer. Hantu a qualidade de energia «da localizagio espacial, temporal edo movimento de mudanngas.!2! 88 Nas dangas rituais negras, as coreografias concavas e conve- ‘xas que criam uum espago de circunserigo do sujeito e do cosmos Femetem-nos no apenas ao universo semantico e simbélico da gio ali reapresentada, mas constituem em si mesmas a propria agio como temporalidade, Dangar é performar, inscrever. A per- formance ritual é, pois, um ato de inscrigo, uma grafia, uma corpografia. Nas culturas predominantemente orais e gestuais, como as afticanas e as indigenas, o corpo &, por exceléncia, local ambiente da meméria ‘Mas 0 corpo, nessas tradig6es, no é tio somente a extensio flustrativa do conhecimento dinamicamente instaurado pelas convengdes ¢ pelos paradigmas seculares. Esse corpo/corpus no apenas repete um habito, mas também institu, interpreta erevisa a acto, evento ou acontecimento reapresentado, Daf a importancia de ressaltarmos nessas tradigées sua natureza me- taconstitutiva, nas quais o fazer nao elide o ato de reflexio; 0 contetido imbrica-se na forma, a meméria grafa-se no corpo, que ‘registra, transmite e modifica perenemente. Essa peculiar forma de expressiio, que ericontra no corpo seu yeicttlo exponencial, ainda que nao exclusivo, de linguagem, apoiada numa intrinseca ¢ ndo dissocivel relagio entre 0 som, 0 _gesto € 0s movimentos corporais, reveste o corpo de muitos sabe tes, entre eles suas ritmicas e vocalidades, bordando visualmente no ara palavra, a mdisica e os vocalises, imprimindo assim uma ‘qualidade pictural &s sonoridades, nelas desenhando e gravando asespirais do tempo. 8 ‘Tempo, ritmica de sonoridades Dancar a palavra, cantar 0 gesto, fazer ressoar em todo movimen- toum desenho da voz, um prisma de dicgdes, uma caligrafia rit mica, uma cadéncia, Assim se realiza a emissio da textualidade ‘ral, nos diversos dispositivos pelos e nos quais se compée. Na paisagem sonora, muitas formas no apenas recriam, na ordem dos enuinciados, a prépria reminiscéncia histirica dos povos afti- ‘anos nas Américas, mas a teinventam, transeriam ea inserevem, como responsos, em técnicas e performances de muitos géneros narrativos ¢ variadas treligas da enunciacao criativa dos jogos osticos de linguagem, reinventando os saberes estéticos em ou- tras dicgdes, fraseados e nervuras poéticas Resguardados nas espirais da meméri ‘mos cAnticos e contos, performados em variados timbres vocais, vibrantes em belfssi- exitmicos, esses engenhosos, complexos ¢ miltiplos reperté- ios inscrevem na'grafia da vor e nos rizomas das sonoridades, como ondas e radiacies, os variados transitos e cruzamentos poéticos. Essa pléfade de sonoridades apresenta-se desde as ges- ‘tas mats extensas até as mfnimas eélulas fonicas. E esta nos cantares, vocalidades, percussdes, onomatopeias, assovios, pro- niincias, fraseados, solfejos, vocalives, em variados processos de construgio das lingnagens fonicas ¢ das musicalidades, como gravuras da vor, Segundo Juana Elbein, a palayra éimportantena medida em gu 1m, que é pronunciada, A emissio do som € 0 ponto culminante de um processo de polariza- ‘cio interna, [| De toda formulagio do som nasce como uma sintese ‘um terceiro elemento [.J- © som &o resultado de uma estrutura 90. «dinamica, em que a aparigao do terceiro termo origina movimento, Em todo sistema, 0 mimero trés estd associado a movimento! Esse elemento terceito, 0 trés do movimento, é 0 trés dos trés atabaques na fala dos Candomblés e da Capoeira, ¢ 0 trés do Jongo dos Tambores Minas, é0 trés dos Batuques, assim como co trés dos Candombes, na pratica dos Reinados, indice do mo- vimento espiralar. No pulso dos trés tambores sagrados gravitam veleo as divindades, os ancestrais e as forcas motrizes, 0 sen: que é percepgio, as emocées, as oferendas, a pessoa e toda a co- letividade Os tambores sto fazedores de ritmos. Na textura dos seus timbres brilham as gualidades e complexidades ritmicas. Os ritmos, por sua vez, encantam os sons. “O som, cujo tempo se ordena no ritmo, ¢ elemento fundamental nas culturas africa- nas’, afirma Sodré.™ O ritino &2 qualidade mais distintiva das criagdes verbivocomusicais negras, e se grafa, como sintese, na dinamica do tempo maior, em espirais. Ougamos Sodré: Como todo ritmo ji uma sintese (le tempos), o ritmo negra éuma sintese de sinteses (sonoras), que atesta a integragao do elemento humano na temporalidade mitiea. Todo som que 0 individuo hu mano emite reafirma a sua condigio de ser singular, todo ritmo 1 que cle adere leva-o a reviver um saber coletivo sobre o tempo, onde nie hd um lugay para a angistia, pois o que advém é a alegria transbordante da atividade, do movimento inducido Nas formulagies estéticas negras, os ritmos também se dis- tribuem e se manifestam na linguagem dos instrumentos de percussio, tradutores dessa complexa, sutil ¢ sofisticada reper- ” ‘cusso sonora. Jones jé observara como, no pulsar dos tambores, as qualidades ritmicas se instalam como meiose dispositivos de comunicasa0, nao pelo simples emprego des mesmos num tipo de eodiga Mor- ‘se primitivo, como ja se pensou, mas pela reprodugio fonética das préprias palavras — resultando em que os africanos criaeam unt sentido ritmico extremamente comiplexo, ao mesmo tempo em que se tornavam invulgarmente perceptivos a sutilevas de timbre. A ritmica dos tambores e « percussio de todos os instrumen- tos ecoam na reminiscéncia performitica do corpo, nele fazendo ressoar as radifincias do proprio tempp, numa sintaxe expressiva contigua que fertiliza o parentesco entre os vivos, os ancestres ¢ (os que ainda vo nascer, pois o ritmo africano contém a medida de um tempo homogéneo {a temporalidade césmica ou mitica), capaz de voltar continuamente sobre si’ mesmo, onde todo fiz €orecomeco ciclico de uma situacio"!® Segundo Zumthor, os tambores “anunciam a palavra verdadeira, exalam os sopros dos ancestrais"!” Da palavra proferida Na performance das oralitutas, a palavra como fala, expressio, € um dos radiotransmissores mais importantes, principalmen- tea palavra como poténcia de fala, capaz, como as rodas dos 'moinhos, de fazer ser'o que como som pode se manifestar camo materialidade. A palavra é materialmente som, e como tal é par- te da sintese estruturante de todo o continente de sonoridades 92 dilatadas e encorpadas na dindmica das cinesias. A qualidade ‘uritica e numinosa da palavra, um em si originario, significado ‘ significante, simultaneamente, repereute € ecoa em percussdes fe ritmicas que encorpam os cantares e imantam 0 corpo. No contexto dos sistemas cognitivos africanos e afro-brasilei- tos, a palavra, além de ser signo naquilo que represents alguma ‘coisa, é também investida de eficdcia e de poder, pois a palavra falda mantém a eficacia de nfo apenas designara coisa a que se tefere, mas também de portar nela mesma a coisa em si. Bla trax ems aquilo que evoca; como continente ela contém, como forca de enunciaso, aquilo quea voz nomeou e denominou. Ela é, ert "a palavra si mesma, 0 acontecimento. Como aponta Zumthor proferida pela Voz cria o que diz™™ A palavra detém o poder de fazer acontecer aquilo que libera em sua vibragao. Na palavra sio as divindades, os ancestres, os inquices, as rezas que euram, que performam o tempo oracular dos enigmas, o passado ¢ 0 devir, o som que emite, transmite, esconde, desvela, escurece ou ilumina, Na palavra e nos cantos, ‘osancestres sao e assim como na palavra e nos cantos o tempo & Dai a natureza numinosa eo poder auratico da palavra proferida, Nesses ambientes de linguagem, a palayra oraliturizada adquire uma zessonAncia singular, investindo ¢ inserevenclo 0 sujeito que a manifesta on a quem se dirige em um ciclo de ex pression e de poder. No circuito da tradigao, que guarda.apalavra ancestral, eno da transmissio, que a teatualizae moyimenta no presente, a palavra é sopro, hilito, dicgio, acontecimento e performance, indice de sabedoria. Fsse saber torna-se evento ndo porque se cristalizou nos repertérios da meméria, mas, prineipal- ‘mente, por ser reeditado na performance do cantador/narrador ena resposta coletiva. A palavra oral existe no momenta de sta 3 expresso, quando articula a sintaxe contigua, através da qual se realiza, fertilizando o parentesco entre os presentes, os antepas- sados e as divindades. Conforme nos ensina Zumthor, a palavra pronunciads néo existe ‘num contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de ‘um proceso mats amplo, operando sobre uma situago existen- cial que altera dealgum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos participantes. Na fronteira entre dois dominios semisticos, 0 gestus dé conta do fato de que uma atitude corporal encontra seu ‘equivalente numa inflexao de voz, e vice-versa, continuamente.!® (Como jé pontuei em Aftografias da menaéria,) a palavra oral, desse modo, realiza-se como linguagem, conhecimento e frul Go porque alia, em sua dicgdo e veridiegdo, a miisica, o gesto, a danga, o cantoy ¢ porque exige propricdade e adlequacio em sua execugio, dita de certos e determinados modos para atingir acficicia desejada. Nos Reinados, por exemplo, cada situacio € momento rituais exigem propriedade da Iinguagem, expressa ros cantares: hd cantos de entrada, cantos de saida, cantos de estrada, cantos de caminho, cantos para puxar bandeira, cantos para levantar mastro, cantos para saudar, cumprimentar, invo- ‘car, cantos para atravessar portas, porteiras encruzilhadas, ¢ ‘muitos outros, Assim, em cada situaglo, 0 solista emite o canto adeguado para aquele lugar e momento, pois. sentido da palavra e seu poder de atuacao dependem, em muito, da propriedade de sua execuio, Saber acionar a energia do canto, a vibragio da vor © 05 movimentos gestuais & necessério para a plena eficiéncia e dos sentidos. A performance 6 capacidade do canto na produg 4 BO Recent dd at Menai vat phi pel i ‘quem engendra as possibilidades de significincia e a eficacia da linguagem ritual. Juana Elbein também enfatiza a poténeia da palavra ¢ seu poder de ago: A palavra proferida tem um poder de ago, [J Sea palavra acquire ral poder de ago, é porque ela est4 impregnada de as®, pronunciada como hilito —veiculo existencial —, com a saliva, a temperatura; & apalavza soprada, vivida, acompanhada das modulacdes, da carga ‘emoctonal, da histdrla pessoal e do poder daquele gue. profere,™ Por isso, a palavra é também poder, Aquele que enuncia porta todaa responsabilidade do dito na voz do que diz, pois a palavra também Gordculo ¢ mesmo ago. Amaral acentua esse poder ser dda palavra, sua efied ‘Como em toda a Africa tradicional, também entre os Vatonga de Inhambane, a palavra ¢falada, declamada e cantada para tornéela cada vez mais eficaz.na sua fungao especifica de mediagio entre 0 passado, o presente e o futuro, Para os Vatonga de Inhambane, a palavra pronunciada ‘nao se perde no ar’, porque ela € possuidora deur poder proprio ¢ produc sempre o eftito bentfco, ou maléfico, conforme a intengio, a dignidade ¢ 0 estado de animo do sujeito quea pronuncia® ‘A eficicia do dito amplifica os poderes da vo, pois, como figura sonora, “a voz solta imprime, jf quente, no tecido existencial, o traco daagao por vir’ Assim como em Africa, onde tudo “dentro do espago da vida comunitaria africana se construin/destruiu, por séculos, pela eficdcia da voz que tanto refin)staurava 0 passado 9% quanto impulsionava o presente, como anuinciava o futuro, antes dee durante os sécullos de dominagio branco-curopeia, quando.a escrita ndo era tum pattimOnio cultural do grupo" E pela palavra ritual que se fertiliza o ciclo vital fenomeno- égico, consenso dinamico entre o humano eo divino, os ances: trais, 08 vivos, os infantes e os que ainda vo nascer, num circuito integrado dle complementaridade que assegura 0 préprio equili- brio céstnico e telirico, Por isso, a palavza, como sopro, diego, jndo apenas agencia o ritual, mas é, como linguagem, também ritual. sdo os rituais de linguagem que encenam a palavra, es: pacial e atemporalmente, aglutinando o prot to, o presente eo futuro, voz ritmo, gesto e canto, de mode complementar. Arepetigéo do rito propicta o fullgor da fala como aconteci- ‘mento, Repetir € recriar,reiterar, fazer acontecer. Essa reiterado, segundo Muniz Sodré, vem assinalar “a singular Jade (logo, 0 real) do momento vivido pelo grupo, Esse momento é impor- tante, vital, paraa comunidade, porque ele, ¢ sé ele, écapaz de ‘operat as trocas, de realizar os contatos, imprescindiveis a con- tinuidade simbolica’.> ‘Mas a palavra nfo é um querer scr sozinho. Ela habita uma circunlocucao de distintas sonoridades que a inscrevem numa Paisagem polifénica, por onde também circula a forea vital dos movimentos, Feixes de sons e feixes de palavras. Como sopro, hlito, diego ¢ acontecimento, rftmica sonora, a palavra vocali- zada.e cantada grafa-se e ecoa na reminiscéncia performs corpo, lugar do acontecimento e da sabedoria, ressoando como. voz cantante e dancante, numa sintaxe mutuamente significante expressiva contigua que emana por todo o corpo, Nessa sono. Plastia, como nos ensina Sadré, o som “resulta de um proceso €m que um corpo se faz presente, dinamicantente, em busca de icado % aoe ee Lai aU le, BW, ies. contato com outro corpo, para acionar o axé"°O que também se realiza na cadéncia dos cantares. antares e cadéncias em espirais intos toda a musicalida- Um extenso e rico repert6rio abriga os ddenas culturas negras. Na performance da textualidade oral afro, ‘onde estio os sujeitos esté a possibilidade do cantar, ¢ dos cantares, da fila cantada ou do canto falado, em coléquios de sons, vous, elementos minimos, frases, diegdes, cortes frasais, silabaciex, solfejos, assovios, onomatopeias, anéforas, interjeicoes, versos, timbres, ritmos, pulsos, percussdes, responsos, refrdes, solos, um. sem-ntimero de yocalizagdes, sincopes, batuques, compésitos de uma estética grid, No Brasil ¢ em outros territérios afrorreferen- ciados das Américas, do mais norte ao mais sul, as construgdes € criagBes musicais criadas nas eneruzilhadas manifestam asheran- (gas os acervos musicais negro-africanos, eafirmando o trénsito dda sintaxe musical africana como determinante das construgdes ritmicas negras, como no blues, no jaz e no samba, por exemplo, Segundo Jones, os “antecessores imediatos dos blues foratn as iisicas afro-americanas enegro-americanas de trabalho, que tinham suas origens musicais na Africa Ocidental’2** A mésica tem um poder social agregador e, conforme Malone, proporciona diversio e permite as pessoas celebrarfestivaise fune- tais, competir;recitar a hist6ria, provérbios e poesia; e encontrar 1s deuses. Ensina padrdes e valores sociais e ausilia as pessoas a trabalhar, amadurecer, aclamar on criticar o comportamento dos ‘membros da comunidade.'* 7 Nio hiinessa ritmicaa distingdo ocidental entze misica vocal instrumental, a realizagao sonora instrumental ¢a vocal, pois, para os povos das didsporas africanas, assim como em Africa "a vor humana ¢ os instrumentos musicais ‘fala’ a mesina lin- ghagem, expressam 0 mesmos sentimentos, ¢ unanimemente recriam o universo toda vez em que o pensamento transforma-se ‘em som’.® Na propria construgao musical prevalece um altisst- mo indice de vocalidade, como se os instrumentos ¢ os cantares, rendessem primazia a fala. Sobre essa repercussio Jones sustenta que: “Na verdade, 05 gritos’ ¢ 'berzeiros de campo! pouco mais: ‘eram do que letras altamente ritmicas.”*° (Os cantates, nas suas diversas modullagées, sio radiotransmis- sores de energia, idiomas estéticos dispersos na textualidade oral negra, Em sua rica e complexa enunciagao, revitalizam virios ga- neros, formas e composigses dos tepertérios africanos, assim como riam novas toadas, No canto ena fala sio narrados, performados erecriados gestas,histérias, fabules, contagdes, vissungos, prover= bios, histrias das divindades, das familias, da criacfo do costnos dos seres, histérias das travessias, dos trabalhos e dos dias, dos amores, dos terrores da escravidio, das lutas, das interdigées, mas também das guerras pela liberdade; os ensinamentos, os bichos, plantas ¢ ervas, as praticas tecnoligicas, as plantas medicinais, a ‘aura, as devogSes, o sagrado, as inguizicas e quizumbas, as ladai- mas ¢ 0s corridinhos, as rezas, os desafios, rebentes, o fazer das coi sas, eas técnicas do fazer, zs misturas do barro,o desenho eo for- ‘ato das casas, os lures da lua e do ol, suas nascentes c seus poen= tes, as correntezas, as correntes, os deletes, os enfeitese os aromas. Em tudo isso e em muito mais, os cantos contam a histéria do negro ¢, em sua tessitura performatica, tudo acolhem na poética grid, na qual nao residem monélogos. 98 {Na festa do prazer coletive da narragio oral («J é pela vor do con- tador, do griot, que se poe a circular a carga simbélica da cultura autéetone, permitindo-se a sua manutencio c contribuindo-se para queesta mesma cultura possa resistir o impacto daquela outra que Ihe fot imposta pelo dominador branco-europeu e que tem na letea a sua mais forte aliada, A milenar arte da oralidade difunde as vozes ancestsais, procutra manter lei do grupo, fazendo-se, por isso, um exercielo de sabedoria’” Essa mestna complexidade se instala na diversidade melidica, \das alteragdes de tom has técnicas de emissdo da voz e nas inusi ‘ede timbres das interpretagdes vocais dos cantadores, assim co- mo na performance dos cantos responsoriais. A técnica respon- sorial também nos remete as convengbes estilisticas de matrizes africanas, uma conversa cantada entre um solista que apresenta o tema e um grupo de vozes, 0 Coro, que responde. O mestre da oz prolonga a cantaria, oraimprovisando o tema, criando varia- bes, ofa 0 repetindo, escandindo suas possibilidades enunclati vas. A repetigio do tema e sua improvisaco constituem os anelos das espirais da antcestralidade, Nos cantos, também 0 movimento ‘em espiral se manifesta, como nos informa Glaura Lucas, na pre~ ciosa investigasao sobre a complexa tessitura musical dos cantos nos Reinados: ‘As construgdes musicals do Congado — cinticos, embaixadas ¢ cnvolvem de acorda com uma dindiniea padrées ritmicos — se de: propria do universo das tradigies orais. A cada ano, o antigo res- suurge novo, transcriade em outro tempo, eo novo se faz antiga te) criado a partir da zeferéncia ancestral [. Tanto no plano ritenico dos instrumentos quanto no meléidico dos cantos, a mrisies apre- 98. senta tim cariter ciclico, determinado por uma intensa repetigio depadroes. J Apartirde uma hase, de uma configuracdo minima, esses padres esto sujeitos a graus diferenclados de variagav a0 longo do tempo. © desenvolvimento rftmico, assim, se provessa de ‘maneira espiralar.' No miesmo Ambito dos Reinados, mais conhecidos generica- ‘mente como Congados, vale observar que quando *pega’ o canto, © cantador seguinte, antes de iniciar um outro tema ou mote mantém as espirais no movimento coletivo, repetindo » canto anterior € antecessor por trés vezes. Podemos também pensar a ‘técnica dos responsos como parte de consecucao dessa dindmica espiralar, O céntice vai e volta, ondulado, curvo, ele mesmo saber do tempo como sonoridades espiraladas. Varias formas dle composicio expressam essa complexa zona de prods textual que alude & negrura como episteme plural ¢ Polivalente e 4 afticanidade como amplo espectro e territério de ‘matizes, inguagens e saberes, e nos oferece vasto e rico reperté- rio para nossa reflexio e deleite, # carregam em sivalores éticos, além de processos e técnicas de composi¢ao, Em células minimas, como os 6 6 6, olelée tilelé dos Reina- dos, em poemas oriquis ou em mais extensas cantorias, o canto, em seus manejos, conecta essa heranga estética, étnica e ética or engenhosos modos de sua circunscrico e realizagio. Sobre 6s oriquis, por exemplo, Risério detecta miiltiplos meios de for ‘magdo dessa complexa e nodal realizagio. Designando “nomes, epitetos, poemas’ a “expressiio oriki” recobre “de uma ponta 3 Sutra o espectro da criagao oral em plano postico’. No oriqui-poema, o autor observa a expansio de uma céu- {a temética minima que se desdobra e se expande, “agregando 100 utras unidades que 2 ela se vinculam por lacos de parentesco lingufsico, ow por afnidades sintatcas" “gio hiperbslico da palavra’; as imagens “amplas, coruscantes e contundentes® 0 in- s0lite das metaforas, a nominagéo encadeada “de uma série de sintagmas que, dispostos em sequéncia ou justapostos, atualizam uum paradigma do excesso’, configurando a fisionomia do objeto rectiado; a técnica de encaixes eo jogo de intertextualidades des- entradas, emoldurados pelo pulso da composigio paratatica.!* Interessacnos também observar que os cantares reprisam a propriedade educativa dos provérbios como aportes tedricos, filoséficos, éticos, utilizados ‘para ensinar, explicar ¢, meticulo- samente, codificar e decodificar [kanga ye kutula]”. Nas culturas africanas, assim como nos cantares afro-brasileiros, os provér- bios, como sistemas de linguagem, cumprem uma fungdo peda- gégica e ética exemplar: © provérbio é uma entre as fontes mais importantes gue melhor cexplicam o Mintu africano e seu pensamento,[.] Os pravérbios, «em contexto africano, sio leis, reflexdes,teorias, costumes, normas «valores sociais, prineipios ¢ constituigdes orais, Eles 0 usados; para justifiearo que deve ser dito ou a que foi dito, Desempenham ‘um papel ético muito importante na narcagao de historias, lendas, ete, Maltas vezes, 0s pais, como também os gots (nsamunt] e con- tadores de historias, encerram suas narrativas com provésbios ben propriados. Os provérbios africans sio numerosos ediversos. Trs- tam de pessoas, Deus, ancestrais, animais, lrestas, bens, dinheiro, as, guetras, sol lua, tempo, problemas sociais, educayio, comida, Vida, ku mpémba (round dos ancestrai), tradigBes [Rinku histo- ia Ri-Rulu, plantas, insetos ete." 101 Esses principios de codilicagao, decodificagao, ensinamentos, eriticas s40 muito comuns nos jogos de linguagem das préticas orais e nos cantares e se realgara nas adverténcias, ou desafios, como diz um canto dos Reinados: “Quem nio pode com man inga, nfo carrega patua” Uma outra qualidade relevante na imbricag2o entre fala, can- toe musicalizagbes € a gue se refere a prevaléncia e primazia do prolongamento das vogais, o que imprime uma reverberagio sonora prépria na versio br: ileira da lingua portuguesa. Esse alto {ndice de vocalidade tem urna de suas fontes nas linguas afri= ‘canas, em particular em sua importincia e extensio formadora, nas linguias Banto, que foram decisivas na formatagao do port gus no Brasil, em sua incisio na formagaio do Iéxico, vacabular, assim como na tessitura fonética, na musicalidade e melodia da proniincia, em ques vogais se prolongam como se cantadas, Sio varias as incidéneias das linguas africanas Banto na lingua portuguesa” Além do iéxico, elas se constitufram como lingwas * Yeda Pessoa de Castro, uma das maiores especialistas no Brasil sobre ac linguas africanas, conclui que "historicamente, por parte das linguias africanas, as do grupo banto foransas mais importantes na processa de ‘onfigurasao do perfil do portuguts brasileiz, devido & antiguidade ¢ superioridade numérica de seus falantes ea grandeza da dimen ‘cangada pela sua distribuigao humana no Brasil colonial”. (Casteo, Yeda Pessoa de, Falaresajricanos na Bahia: tin vocabuléro afro-brasileir. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. pp. 74-5,) Cr, também: Queiror, Sénia. Pé _preto no barra branco, a lingua dos negros na Tabavinga. Belo Hozizonte: Editora UFMG, 1998; Lopes, Nel, Bantos, maiés e identdade negra, Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 1988; Vogt, Carlos; Iny, Peter, Cafiandd « Africa no Brasil: Linquagem e sociedade. Campinas: Editora da Unicamp, 2013; Pinto, Vakiina O. Bntrevista. In: Santos. A cosmologia africana dos ‘Bantu-Kongo por Butseki Fu-Kiau: Traducdo negra, reflexéese didlogos a partir do Brasil, pp. 230-3, 102 do segredo, sistemas ¢ cédigos para comunicacio de mensagens especificas, seja do cotidiano, seja dos projetos de Fuga, ouno Jimbito das praticas e dos sistemas religiosos, nos quais eram e ainda sio utilizadas como abrigo dos preceitos, daquilo que nfio deve ser revelado, do que deve ser resguardado, Como € 0 cas de sta designagio como Lingua de Nego, no dmbito do Reina- do ou Lingua do Angola, nos Candomblés de Nagdo Angola, por exemplo. Séo assim também cédigos da dupla fala, um modo alterno de comunicar, burlar as proibigies, rasurar o sistema” ‘Alguinas delas sio ainda hoje utilizadas nos cantares e mesmo na comunicagiia entre membros de comunidades. E sio signos de prestigio daqueles que as dominam, A percussao pode assim também ser onvida como uma exten- so da voz, Jones sustenta que, mesmo no Ambito estritamente fica-se uma certa ascendéncia da vocalidade instrumental, veri sobre outros elementos, pois até a misica puramente instrumental do negro amerieato conte referéncias constantes a mica vocal. A execugio instrumental do blues vera sera melhor imitago da vor humana gue se enconera em qualquer tipo de miisica por mim eonkweido, e os efeitos voeais ‘em que os milsicos de jazz se deliciaram.* Aambiéncia sonoro-musical, como uma sintese, é metont: mica de toda a estrucura do pensamento ancestral negro, uma cartografia, indice de consonancia e de movéncia. A palavra, como fala, as yocalidades e sonoridades, todas as tessituras € particularidades musicais, de timbres e ritmos, os movimentos 0s gestos, assim como os desenhos de policromias ¢ de Junmi- 103 nosidades so concebilos como uma unidade indivisfvel, mutua mente complementares, © canto solicita a danga que borda no aresculturas musicais. A tapecaria musical pode, assim, set lida como um cosmograma, pois em suas radiancias e frequéncias espiraladas retém as qualidades mesmas dessas cartogralias de saberes. Ou seja, as ritmicas sonoras, em si mesmas, como mise en abime, repicam a cultura em sua integridacle e nelas o tempo queas estrutura. ‘Um corpo de aderecos, luminosidades e policromias As vestimentas ¢ o modo do vestirintegram as praticas corporais eaclasacrescentam valores, dindmica ce movimentos ¢ perfis gute, por sua ver, prodiizem imagens, esculpindo movimentos, Bestos e posturas, desenhando cenogratfias, espacialidades e lu- minosidades, traduzindo conceitas e habitos, A composicao vestudria é veiculo de mensagens, pode ex- pandir ou inibir os movimentos, subordinar ou ampliar os li nites das agdes fiste © posig6es, facilitar ou conter os passos e os bailados, imprimir dinamismo ou moderar as ritmicas casadas com as musicalida- flexibilizar ou restringir os movimentos des, impingir compoxtamentos, dar abrigo ou censurar deleites, Assim como as feigSes, o vestuirio molda e esculpe o corpo. Movimentos corporais, expressées faciais, falares, cantarese roupagens sio formulagdes estilfsticas, nos remetem a idiomas € estilos culturais. Como afirma Maultsby “performers estabe ecem uma imagem, comunicam uma filosofia, ¢ criam uma at- mosfera de vivacidade por meio dos vistosos figurinos que ves- 104 rt ret 8) A hh ij tem’ No mesmo viés, Connerton observa que 0 modo de se vestir configura uma gramitica tZo importante quanta a sintaxe da eserita: Leronvestir-se €em certo aspecto siguificaivo similar aleitura ou Acomposigdo de um texto literdrio. [.] Assim: como um grupo inter rallzowa gramaética da literatura, o que os habilite a converter sen tengaslinguisticas em estruturas e sentido literdrios; assim igual- ‘mente 6 outro internalizoua gramética do vestir, 0 que os habilita a converter itens do vestudrio em estruturae sentisos do vestin.5! gs icones estéticos” apontados Suzana Martins, referindo- por Thompson," destaca com muita propriedade este carater nas tradigdes lorubé: significante das roupagens e indumentér (Um desses fcones se refere ao uso esfuziante das cores gue harmo- rizam a fuminosidade das cores quentes, brilhantes e vivas com a suavidade de cores discretas, criando assim uma contraposigéo cromética que remete a um intenso e belo visual, Outro feone se sefere 20s padréus das linhais desenhadas e& textura dos tecidos, 0 {que permite aplicagao na mesma composigao de desenos simples ce desenhos sofisticados, como na combinagao de tragos e formas eométricos (quuadsados, curvas,linhas paralelas, etc) ¢ a utlizagio de varios tipos de teeido (chita, brocado, rendas, elusive o bordado de rechilied, etc) Essa estética de aderegos no aponta simplesmente para uma énfase na ilustrago ou no enfeite decorativo. As vestimentas ¢ indu= mentrias, o desenho dos cabelos, as inscrigdese os adornos, 0 uso 105 de diversosaderecos, os arranjos cromaticos, os jogos de policromias ede luminosidades constituintes das gravuras corporais compoem Cixdigos estéticos com forte intensidade e simbolismo culturai Importa-nosassinalar que, em Africa, assim como nas cultu- ras afro-americanas, um dos modos de escrita do corpo estima utilizagio de conchas, sementes e outros objetos céncavos e con: vexos, em tamanhos cores diferentes, paraa feitura de eolares, pulseiras, brincos ¢ outros arabescos que ornamentam a pele ¢o cabelo, Alinhados numa certa posigo e orcem contiguos, contas- de-ligrimas smentes, conchas, grafites peliculares funcionam como morfemas formando palavras, palavras formando frases ¢ frases compondo narrativas, o que faz da superficie corporal, literalmente, texto, ¢ do sujeito, intérprete e interpretante, emun- lado e enunciago, eonceito e forma, sirmultaneamente. Esses processos evidenciam técnicas de fabricago dos mate- riais reciclados, mas também a instauragio de um sentido e de uma semiose que atestam seu poder de produzir significagio. O adereco integrase ao movimento contiguo da criagio dos pre ceitos, dos sentidos e dos modos de osrealizar, como nos ensina Mestre Didi: “O fazer de um colar com fim ritualistico entre os Yorubi precisa de um certo conhecimento, a exata combinagio de contas, o tamanho, 0 ntimero de voltas ea forma sio de gran- de importincia no seu significado." ‘Toda histéria de constituigao das culturas negras em geral, parece-nos revelar a primazia desses processos de deslocamento, substituigdo e tessemantizacdo, suturanda os varios e as cavida- des originadas pelas perdas. A institui¢a0 desse saber alterno, que ainda hoje fermenta virias comunidades negras, modula as estratégias de resisténcta cultural e social que pulsionaram as revoltas dos escravos, a atuagiio efetiva dos quilombolase de varias outras organizagdes negras contra o sistema escravocrata. ‘© corpo de aderegos & uma derivagao do corpo-tela, um corpo imagem que é pelicula, fundo e volume, um corpo de inputs e ouiputs digitalizando sen ambiente e suas espacialidades, prenhe de mniltiplos sentidos e possibilidades de composigio do aconte- cimento e de uma primorosa produgao semistica. Um corpo hie- 1r6glifo. Lm corpo que é também meméria e traduz, portanto, os mesmos atributos das artes que pulsionam Mnemosine, mater da Fungao poética: tradligio e improviso, lembranga e esquecimento, perenidade e fugacidade, permanéncia e efemeridade, inacaba- ‘mento e completude, presenga e lacumnas, sere devir. Aestética dos aderegos aponta para as escrituras no corpo, assim como parao corpus cultural que as significa, © eorpo-tela é também. ‘um tecido policromético, ilurinado por cores quentes e cores Frias, tons vibrantes intercalados ou sobrepostos a matizes suaves, numa ‘gtamdtica de combinacGes inusitadas, ora com descontinuidades assimetrias de tons e de padries de desenhos, ora geometricamente concebidas e alinhadas. Aqui se inchem a especificidade das roupa- «gens e dos panos branicos como base da espiritulidade, ou a tape aria multicolorida, os modelos diversos de saias, salotes, andiguas, turbantes de varios etilos, brincos, braceletes, sitios € tergos,co- lates, instrumentos amarrados as pemnas ¢ aos bragos, assim como a decorago dos entornos, o enfeite de capelas, mastros, bandeiras, 4rvores, altazes, nichos, com imensa variedade das paletas, instala- es brilhantese vibrantes, estelares, compondo os designs de uma estética das luminosidades fulgurantes e sui generis. {Um corpo que cose e emana aromas, Os sujeitos ¢ as formas artisticas que dai emergem sio tecidos de meméria, escrevem historia. 107 Alquimia de sabores e aromas Na performance ritual, o corpo-tela arrebata e dele emanam to- dos os elementos que o compéem ¢ imantam, a coreografia dos movimentos, as ondas de sonoridade e de voealidade, os vibratos, ritmicas e cadéncias, timbres, selos e sinetes, a composigao do ar nos voleios das silhuetas e figuras que relampejam, ¢ também os cheiros, os aromas ¢ a quimica sagrada das ervas e das temperos ‘Nessa kizomba, a intima relagio com o meio ambiente traduz a conexio do humano com os outros seres da existéncia e com © cosmos, no que se vé ese contempla, na apari¢io dos astros que nos cus faiscam, assim como naquilo que nfo se da visio, que s6 se-vislumbra ou que se mantém velado, mas que aguga os sentidos para sua percepeio, mas nd por isso menos auscultado, pressentido, em sua'imanéncia de presenga. © ancestral, em si mesmo, €actimulo de natureza Aeducagio tom a natureza assenta-se no pensamento de que tudo a natureza se liga, de que tudo nela se transfere, pois dela adyém alimentos e remédios, aromas curativos, os incensos, os perfumes, os lumes ¢ todos os sabotes. A relacio com a natureza é, assim, também uma postura ética, Daf o cuidado com a eco- logia, o que significa reveréncla ao natural e desejo de equilibrio. Nao € de causar estranheza, portanto, que os terreiros negros. sejam habitados por arvores de varias espécies, arbustos, plantas altas, plantinhas, jardins, canteiros, Em toda a natureza o sagrado habita. Nos Candomblés, algu- mas ér-vores espelham e sio constitutivas das divindades e entes da ancestralidade, Assim também, nas tradigdes Banto,o sagrado se instala nos quintais, numa rica flora: em troncos, ratzes, ra- minhas, folhas ¢ flores. Os mastros nos Reinados, por exemplo, im como as arvores, so um deve ser feitos de madeira, pois, asst jo-terrachu radiotransmissor de energia e de interconexdo do cl manidade com as forcas do alto cusmos. © corpo assim, nessas 4é1um corpo chi e simultancamente um corpa-mastro, tradigdes, ; (0 que se retira da natureza deve ser espeitado ereposto, ma relagio de correspondéncias, de miitua troca de substéncias, ‘energizs ¢ insumos que gavantem nao apenas a gobrevivencia alimentar, mas a propria possibilidade plena da existéncia cOs- ‘mica: Conforme Oliveira, ‘a natureza se constitu como fonte davida, A rélagio entre o sagrado.e a natureza ¢ simbidtica, Co- io africano: ‘Kosi ewé, kosi orisd isto € mo diz: um velho provér ; ‘gem ervas (leia-se natureza) ndo hé orixas (eia-se divindades), Natureza e divindade, alids, muitas vezes, s4o 0 signo de uma e rerunhate tain ss embra quae temasCandonBle e Umbandas (designando as diversas religides de base africana) sem folhas, niio temos Candomblés ¢ Umbandas sem normas de respeito & natureza eas suas Forgas ou energias’s¢A mesma rlagdo € fundamental nos Reinacos e em todas as manifestagoes culturais de ascendéncia Banto, para quem a natureza é enfim & assim, como diz Fu-Kiau, um “Iaboratério sem paredes’: aceitam o mundo natural CO povo ifntu, Kongo e Luba, entre les, através dee, eles veem re- como sagrado em sua tatalidade poraue, Aletta a grandeza de Kalinga, A energia superior de vida, aquele que inteiramente completo (unga) por si proprio. Assim, quando wm Mantu (serbumano) vé um minsisculo cristal (ngéngele) elejela vere: Jeno sé sua sacralidade, mas também a presenga divina de Kaldnga. ‘Além da atenco e adtmiragio dadas a montanhas, vales, 20 vent, ao céu eas mudangas do ciclo natural, oM@ntu di especial atengso 109 a0 mundo da loresta porque, como se diz, Mfinda Kasuka tufukil nds perecemos se as florestas so extintas, Por causa dessa visto. popular entre os Bantu, o préprio ato de entrar na floresta tornanse ‘umm ritual sagrado!®” O corpo-tela ¢ cua de sabores, temperos, cheiros e aromas. AS artes culindrias, aalquimia dos elementos da natureza, cozeme compiem este corpo-tela, Nos quintais das casas terreitos, 0 corpo se integra em uma paisagem verdejante, pintada pelas multiplas cores e proprie- dades dos alimentos, das folhas, ervas e raizes. Sejam em seu estado natural ou cozidos e condimentados. Os cheiros e odores dos incensos ¢ esséncias de plantas, frutas e flores, limpam € restauram o corpo, predispem a pessoa para a fungao ritual ¢, como canais de reverberagio, impregnam os espacos ¢ ambien- tes como portdes de entrada e de irtadiagao das forgas vias. ‘Corinhar, cozer, performar é manter relagies ¢ elos sagrados com a natureza, Assim também aquele ou aquela que cozinha transmite no ato de cozinhar uma competéneia ¢ uma substancia {que nutre, mas transmite também sua qualidade interior, seus sentimentos e aprecos, sua boa ot: m4 energia, “a comida parecer boa apenas se se puder experimentar e sentir a mente e 0 coracio da pessoa quea cozinhou. Isto também se aplica as culturas’, pois ‘nds somos 0 gue eonsumimos,aprendemos, ouvimes, vemos # sen ‘imos.[.] Nés sentimos ondas/vibragoes e radiagoes [minika ye ie] porquie produzimos ondasvibeacdes e radiagdes. Somos sensiveis ao calor, fro e eletricidade {tiya, kibzi ye ngolo za nicexi/ sula] somente porque, enquanto organismos, produzimos calor, frio e eletricidade.™ 10 Esse pensamento traduz uma relacio quimica, organica, spas também ética. Um beneficio. Um valor. Uma propriedade eum selo das artes afrorreferenciadas, expostos em suas filoso~ fias, cosmovis6es e nos diversos modos como essa experiéncia ge irradia. m

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