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As Visitas Diocesanas e a Inquisigado na Colénia’ Caio C. Boschi (Wepto. de Histéria da UFMG e PUC/MG) RESUMO Apesar de néo ter s¢ estabelecido no Brasil, a Inquisigao teve marcante. anoagio na coldnia, seja através de agentes ¢ meeanismo gue a ela se subordinavam, seja por intermédio de instrumentos ¢ onganismos que Ihe eram afins, Dentre os limos, merece especial consideragao as visitas diosesanas (ou episcopais), aqui estudadas em seu funcionamento ¢ estrutura, & luz de documentagio relativa a Minas Gerais. ABSTRACT Despite the fact that the Inquisition has never been fully established in Brazil, it did have strong impact on the Portuguese American colony, in part through those agents and institutional instruments subordinated to the Lisbon Inquisitorial ‘Coun and, more importantly, through some organizations associated with the general inquisitorial process. Among the latter, the episcopal visits deserve special attention. ‘These visits, therefore, are the object of this article, in which their structure and function are analised on the basis of historical documents related to Minas Gerais. Na Peninsula Ibérica, o Tribunal do Santo Officio € inexplicdvél se dissociado de suas conotac6es ¢ finalidades politicas. Em Portugal ¢ na Espanha, por forga do instituto do Padroado, as quest6es religiosas eram também — e fortemente — quest6es politicas. Assim, heresia era palavra com ampla abrangéncia e com significado varidvel. Ali, ser contrério aos dogmas e & doutrina catdlicos, cometer desvios da fé e certos pecadas da carne no cram problemas que se circunscrevessem ao fimbito da propria Igreja, fosse porque a heresia, entendida simultancamente como grave delito ¢ como * Texto da comunicagda apresentada no 1° Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisigao, realizado em Lisboa, entre 17 © 20 de feverciro de 1987, numa promogdo da Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIM. [Rev. Bras. de Hist, | S.Paulo_[v.7nti4 Tp. 151-184 pecado, punha em perigo a existéncia mesma da sociedade civil!, fosse Porque a institui¢#o inquisitorial no tinha vida independente do Estado. Por conseguinte, a Inquisigdo, enquanto empresa eclesiAstico-religiosa, funcionava em estreita ligaco com o poder régio, integrando 0 aparelho de Estado com o propésito de, através da submissdio das populacdes a uma tinica crenga ¢ & mais pura ortodoxia da f€ catélica, obter uma nagaio espiritual ¢ ideologicamente homogénea, a servigo dos interesses politicos e da cenwalizacao do poder inerente 4s monarquias absolutistas?. No dizer de Anita Novinsky, “todo o sistema de dogmas que se impunha aos povos portugués e espanhol respondia de um lado aos interesses materiais e ideais das elites dirigentes: coroa, nobreza ¢ clero, ¢ de outro aos interesses dos Préprios inquisidores, agentes internos do campo religioso. Havia uma relag&o direta entre a crenga religiosa ¢ a estrutura do poder”}. Embora se possa considerar alentadoras as infelizmente poucas Pesquisas até agora realizadas no Brasil sobre a temética em pauta, parece ser hoje consensual a dedugio ldgico-histérica sobre a expressiva presenga do Tribunal do Santo Oficio entre nds. Para Minas Gerais, qualquer que seja a definigio dos abjetivos do teferido Tribunal da qual se parta, a primeira vista no mfnimo causa ceria estranheza a auséncia de estabelecimento daquele organismo nesta regifio. Por exemplo, se se toma como ponto de partida que a Inquisigc funcionava em grande parte tendo como respaldo financeiro ou fonte de receita o confisco ou a dilapidagiio de bens dos réus, especialmente daqueles que eram homens de negécios, é de supor que a noticia do achado ¢ a répida e expressiva produgo aurifera que se Ihe segniu tivessem reacendido nos inguisidores © interesse em aqui instituir 0 mencionado Tribunal ou pelo menos aumentarem o ntimero de comissarios ¢ de familiares existentes na regido, © que se ajustaria perfcitamente A proposta metropolitana de centralizagao politica e de fortalecimento do sistema repressivo, Pode-se aventar a hipdtese de. que as autoridades inquisitoriais teriam cogitado do envio de visitagées para as Minas. Por que clas ndo se viabilizaram? Efetivamente era elevado 0 ntimero de comissérios ¢ familiares atuantes nesta capitania? Ainda que n&io numerosos, qual teria ! 4. 8. TURBERVILLE. La Inguisicién Espafola. 4+ 0d., México, Fondo de Cultura Boonémica, 1960 (Col. Breviarios, v. 2),p. 131. 2 Banclomé BENNASAR, “Pour Etat, contre 1 Espognole; XV® XIX® sigcle, Paris, Hachette Littérature, 1979. p. 372, Desse consagrado especialitta, ne mesma coletines ¢ tratando ds identidade entre o aparciho de Estado e o poder inquisitorial, consulte-se o capitulo 3, "Le Pouvoir Inquisitorial”, (pp. 75-104), 3 Anita NOVINSKY. A Inquisizéo. 3¥ed, $80 Paulo, Brasiliense, 1985, (Col. Tudo é Hisi6ria, v.49), p. 88. t". In: BENNASAR, B. ef alii. L'Inquisition 152 sido grau de operosidade ¢ eficiéncia desses agentes? Sao questOes que demandam pesquisas, agugadas por algumas evidéncias bem sintomdticas. Haja vista, por exemplo, 0 conhecimento que se tem do fato de-que varios dos visitadores diocesanos, dei que se vai watar a seguir, também desempenharam funges ¢ se apresentavam como Comissdrios do Santo Oficio. Nessa condigdo estiveram e atuaram em Minas os Reverendos ‘Doutores Manuel Freire Batalha e Francisco Pinheiro da Fonseca. Saliente-se ainda que os visitadores episcopais, mesmo que nfo orientados diretamente pelas autoridades civis, prestavam a essas uma notdvel colaboragiio, pois que os delitos e faltas que descobriam, ¢ denunciavam ~ ¢ mais do que isso, julgavam e condenavam —, apesar de inclufdos no Ambito da algada eclesidstica, nfo eram de natureza exclusivamente espiritual, como certas culpas a que constantemente a documentag&o consultada faz alusiio: manter casas de alcouce e de tavolagem, alcovitar mulheres para homens, explorar 0 lenocinio, perder 0 jufzo com bebidas, comportar-se, escandalosamente, praticar a usura on amotinar 0 povo ¢ perturbar a paz. Nessas oportunidades, beneficiava-se diretamente 0 poder secular sem que para isso se expusesse ou mesmo de imiscufsse na questo. Por outro lado, nfio foram raras as vezes'em que, mesmo investido na condico de autoridade eclesidstica suprema da regiao, e sendo como tal por direito ¢ dever o representante da InquisigSo, o Bispo se sentiu incompetente para, de um lado sentenciar sobre determinados delitos julgados fora de sua algada, de outro para identificar a culpabilidade de certas pessoas. Foi o que suceden com D. Fr. Manuel da Cruz que, em visita A freguesia de So Bartolomeu, em maio de 1753, apurou contra Luis Francisco, alfaiate, morador naquela localidade, de quem constava ser casado duas vezes; dado “no se poder averiguar ao certo, conforme depéem as testemunhas”, optou © primeiro prelado marianense por determinar ao secretério da visita que se 4 Arquivo Eclesidstico da Arquidiocese de Mariana (doravante, simmplesmente referenciado: ‘como AEAM)~Livro das Devassas da Visita empreendida por Francisco Pinheiro da Fonseca, em 1737-1738 (Prateleira Z, Cédice 1) © Livro de “Devaisas’ 1733", tendo como visitador Domingos Luis da Silva (nio-cetalogado). Na visitagio levada a efeito no segundo semestre de 1733, 0 Visitador Pe. Dr. Domingos Luis da Silva apurou a dupla culpe do Pe, José de Sousa Giraldes de “solicitar mulheres na confissio” e de consiamemente embriagat-se, celebrando missa e batizados completamente bébado. Julgando tais crimes, a penalidade aplicada foi a de Temeter os autos pars Manuel Freire Batalhs, que fora visitador em Minas em 1730-1731 e que aqui permanecia na condigo de Comissfrio do Santo Offcio-e a quem competia inquirire julgar amatéria (op, cit. fis. 1OL/I01v). 153 remetessem por treslado os autos ao Tribunal do Santo Oficio, “a quem pertence a averiguagao desta matéria”>, Eis ai claras demonstrag6es dos estreitos lagos que faziam da Igreja- institui¢8o um instrumento da politica colonizadora metropolitana no geral ¢ do Santo Oficio em particular. Ressalve-se, entretanto, que a quantidade de moradores nas Minas Gerais indiciados em processos inquisitoriais levados para a Metrépole € sintoma indicador de que, independentemente das’ ag6es citadas, o Santo Oficio, de alguma forma, teve em Minas Gerais um de seus celeiros mais ticos em réus que contribufram para dilatar a sobrevivéncia do Tribunal de Lisbea. De acordo com Anita Novinsky, referindo-se aos perseguidos sob suspeita’ de heresia judaica, 0 auge da repress&o religiosa no Brasil se verificou “na primeira metade do século XVIII, quando a produg&o de ouro dominava 8 economia colonial”. Recorde-se ainda que Minas Gerais, do ponto de vista social, se formou abruptamente, absorvendo com incomum rapidez uma populag4o heterogénea, fluida e instavel, em virtude da atividade aurifera que a todos atraiu no momento inicial. Criou-se aqui-um corpo social indomavel, facil e atavicamente sensivel aos pecados espirituais ¢ ao descontrole dos costumes, campo fértil para praticas heterodoxas, a0 mesmo tempo terra de tolerfincia social ¢ de rebeldia politica, a desafiar a autoridade ¢ o tino administrativo do Estado absolutista e da Igreja. Em decorréncia, no Brasil Colonial poucas regides apresentavam como Minas condigdes tf0 propicias ¢ chamativas a uma aco permanente, sistematica e direta da instituigao inquisitorial, na sua fungdo de censura: social. Se essa ago existiu ~ infelizmente também nesse aspecto a pesquisa 5 ARAM — Livro de Termos de Devassas da visita empreendida por D. Fr. Manuel’ da Cruz, em 1753 (Prateleira Z, Cédice 6, fis. 11), 6 pani NOVINSKY. Op. cit., p: 79, Amesma autor, em obm que merece melhor divulgacio, cou parte do levantamento. por ela realizado dos residentes no Brasil conduzidos prisioneirs para os cérceres de Inquisi¢fo em Portugal. Esse levantamento, com surpreendente niimero de prisioneiros oriundos da regio mineradora, supera os que. anteriormente foram feitos por Varnhagen, Jo#o Liicio de Azevedo e Arnold Wiznitzer (cf. NOVINSKY, A. Inquisigdo: inventdrios de bens confiscados a cristdos-navos; fontes para a histéria de Portugal e do Brasil (Brasil - século XVIII). Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda — Livr. Cam@es, 2.4. 286 pp -. "Fontes para a histéria econdmica e social do Brasil; inventérios dos bens dos condenades pela Inquisigho (Brasil ~ stoulo XVIII)". Revista de Histdria, 48(98):359- 92, abni-jun. 1974, Este louvével empreendimento de A. Novinsky tem levado outros autores a se debrugarem sobre tfo ricas fontes e temitica, verbigratia: MATTOSO, Katia M. de Queiréz. “Inquisigao: 08 eristéos-novos da Bahia no século XVII". Ciéncia ¢ Cuttura, Séo Paulo, 30(4):415-27, abr. 1978; LEWKOWICZ, Ida, Uma economia em consirugdo: a rigueza em Minas Gerais (1727-1734), s.n., ex. datilo., 23pp. 154 est4 por se fazer ~, ela n&o se efetivon com o vigor que Ihe facultava e facilitava a realidade histérica concreta da regiao. E dificil pensar a sociedade mineradora subordinando-se fielmente aos designios da ortodoxia catélica. Tudo leva a crer, por exemplo, que Minas abrigou uma expressiva ¢ numerosa comunidade de crist%ios-novos, tendo em vista variadas fontes documentais que gradativamente vém sendo apontadas pela incipiente bibliografia dedicada a essa temdtica. Por que entio o Santo Oficio aqui no exerceu sua forga? Por ser, jA nessas alturas, uma instituigAo que esgotara a sua seiva de outros tempos? Por estar ligada aos interesses éstatais € por estarem estes, na ocasi%io, muito mais voltados para a associagao com a burguesia.de origem semita ou cristi-nova do que para a combate & heresia ¢ aos delitos de costume? Em outra diica de abordagem, poder-se-ia dizer que, se de um lado se levanta a hipétese de que o Tribunal do Santo Officio nao se estabelecen em, Minas Gerais porque politicamente ao Estado nao Ihe interessava naquela altura se indispor com o grupo de crist&¥as-novos (a essa época grandes aliados do Estado), por outro lado nfo se pode também deixar de conjemrar que, em Minas, nAo obstante a possivel elevada presenga de cristBo-novos, os tragos culturais e particularmente: religiosos desse grupo (judeus ¢ crist&ias-noves) nao tiveram expresso compativel com a presenga do grupo. Isto 6, os judeus aqui domiciliados nfo se apresentaram como elementos desagregadores da unidade religiosa do império colonial portuguts, permitindo-se supor que grande parte de suas praticas e deveres religiosos se incorporara sincreticamente ao catolicismo ou se diluira no convivio € no. corpo sociais. . Nao hd tracos essencialmente marcantes de manifestages religiosas judaicas nas Minas Gerais coloniais; tais como as praticas negras africanas, também as judaicas se acomodaram a realidade mineira. O judeu se integrou bem ¢ foi bem-assimilado na sociedade mineradora. Por isso, talvez seja imadequado buscar-se identificar tragos marcadamente heréticos entre os cristios-novos fixados na regifio em estudo. Como se. observa nessas colocag6es iniciais, milltiplas so as quest6es que naturalmente vao-se colocando’a reclamar o trabatho dos historiadores no que conceme & agado do Santo Officio na Coldnia em geral ¢ em Minas particularmente, Se assim é, torna-se imperativo analisar ¢ compreender as formas dessa presenga, dada a nfo-institucionalizagio ou a nfo-transplantagao daquete Tribunal para a América Portuguesa. Nessa medida, logo vem & baila, de um lado, a agiio aqui desenvolvida por considerdvel contingente de comiss4rios ¢ familiares inquisitoriais; de outro, a atuagio das varias visitagOes que para cd se deslocaram, Através desses agentes e desses 155 instrumentos, as autoridades inquisitoriais metropolitanas podiam ter uma visio extremamente abrangente do cotidiano da realidade colonial, de vez que seus relatos ou informes nao se limitavam as questées de nalureza puramente espiritual. Seria ingenuidade supor que a Inquisic¢Zo se contentaria com simplesmente receber informagSes de seus agentes no Brasil ou imaginar que esporddicas ¢ localizadas visitag6es dessem conta dos desvios da fé e do relaxamento dos costumes aqui perpetrados. Ainda que tais agentes visitadores atuassem de maneira eficaz, hd que considerar que a essa eficdcia nao correspondiam a forga ¢ 0 poder necessdrios a uma repressio mais vigorosa ou explicita. Consegiientemente, h4 que se sugerir a hipdtese de que, de forma indireta ou nao, a agao do Santo Oficio no Brasil se efetivow também por intermédio de outros instrumentos mais consentineos com as finalidades daquele tribunal, em especial naquelas areas em queas visitagdes nfo se fizeram presentes ou cuja documentacdo a elas respeitante permanece desconhecida. Assim sendo, 0 propésito do texto que se segue € 0 de, sem embargo da importincia do estudo das instituig6es acima referidas, chamar a atengo sobre um outro organismo, através do qual o idedrio ¢ a agao do Santo Oficio se fizeram sentir no Brasil, mais especificamente nas Minas Gerais setecentistas. Entender as visitas diocesanas nessa dimensao € 0 objetivo maior deste trabalho, O bom pastoreio nado pode prescindir do contato freqtiente do bispo com os fiéis ¢ o clero sob sua jurisdicao, o que exige daquela autoridade constantes viagens que Ihe permitam ter um conhecimento tanto quanto possivel abrangente de’ seu rebanho, nele englobados os fiéis propriamente ditos, 0 clero, as instituigées e entidades catélicas, as coisas ¢ lugares sagrados encontriveis no territério de’sua diocese. © Conceilio de Trento (Sessio XXIV, Cap. 3, Decretum de Reformatione) definiu “de que modo hao de os Prelados fazer visita”, explicitando em primeiro lugar que tais visitas deveriam ser realizadas pessoalmente ou, no impedimento do titular, pelo seu Vigdrio Geral ou Visitador, a cada ano, por inteiro ou na maior parte da diocese e, se for o caso, complementadas no ano seguinte’, No.contato dircto com o seu rebanho, tanto de leigos como de clérigos, cabia aos prelados exortar, pregar ¢ esclarecer os mistérios da fé, mas acima de tudo examinar se eram e como eram administrados os sacramentos, inspecionar os locais em que se realizavam oficios religiosos, zelar pelos 7 G SACROSANTO, « Ecumenico Coneilio de Trento em latim e portugnez: dedicado e consagrado aos Excell., e Rev. Senhores Arcebispos, ¢ Bispos da Igreja Lusitana. Nova edigao. Rie de Janeiro, Livraria de Antonio Gongalves Guimaries ¢ Cia., 1864, U2, p. 269. 156 bons costumes disciplinando-os e detectar as transgress6es, remediando umas, reprimindo outras. Como prescrevia a orientacdo tridentina, “o intento principal de todas essas visitas sord estabelecer a doutrina sd ¢ oriodoxa, exclufdas as heresias, manter os bons costumes, emendar os maus com exortacGes e€ admoestag5es, acender o povo & religiaio, paz € inocéncia; e estabelecer 0 mais que o lugar, tempo e ocasiao'permitir para proveito dos fiéis, segundo o julgar a prudéncia dos que visitarem”’. Em face dessas diretrizes, como os bispos coloniais, particularmente aqueles que tinham jurisdic&o. sobre a regido mineradora se desincumbiram dessa importante obrigagao do exercicio de sua fungdo pastoral? Desde logo, 6 sempre conveniente lembrar que as Minas Gerais emergiram para o cengrio histérico colonial na virada do século XVII para o XVII, e tendo na extragao aurifera aluvional a sua atividade econdmica polarizadora. Ressalvas como essas n4o so de somenos. Ao contrario explicam uma politica fiscalista ¢ repressiva mais ostensiva, especialmente se se atentar para o fato de que, nessa época, a situagio econémica da Metrdpole se apresentava claudicante. Do ponto de vista religioso, o novo territério recebeu um tratamento peculiar, que se coadunava perfeitamente com as dirctrizes mencionadas. Esse tratamento pautou-se pela conhecida proibigao da fixagao de ordens primeiras na nova capitania, medida que vigoraria por todo o restante do periodo colonial. O livre acesso e transito pela regio nos primeiros tempos, por parte de religiosos, foi-se restringindo paulatinamente até motivar a adogao de uma legislacao proibitiva ou, no mfnimo, limitativa e cerceadora & presenga eclesidstica nas Minas Gerais, a fim de impedir que 0 clero aqui funcionasse como elemento desarticulador do sistema colonial. Por outro lade, é preciso lembrar que semelhante legislagao nao era algo atipico ou especial naquele contexto. “Ao contrario, 6 mister nfo esquecer queia Capitania de Minas Gerais foi sempre 0 palco (por que nao dizer 0 cenario principal?) da manifestagdo do mais voraz fiscalismo Praticado pela monarquia portuguesa. A maquina administrativa e burocrética ali instalada tinha como diretriz bdsica a tributagdo e, 8 Idem, ibid., p. 271. Para um melhor conhecimento da definicio © da tipologia das devassas episcopais, tais como as entendia 1 legislacSo eclesifistica colonial, cunsulte-se: VID! D. Sebastiao Monteiro da. Constituigdes Primeiras do Arcebispado da Bakia feitas, e ordenadi pelo Mlustrissimo, e Reverendissimo Senhor....propostas, accitas em o Synodo Diocesan, que © dito Senhor celebrou... S80 Paulo, na Typographia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antanes, 1853. 526 pp. (v. em especial o titulo 39 ~ "Das Devassas" (sic)-pp.362/4). 9 Caio César BOSCH Os Leigas e 0 Poder; irmandades leigas e politica colenizadora em Minas Gerais, Sao Paulo, Atica 1986. (Col. Ensaios, v. 116). Consulte-se, em especial, item 3.1,=“A Igreja mineiza no século XVII", pp. 71-95. 157 conseqiientemente, o espirita de cerceamento presidiu toda a evolugao histérica da Capitania. Por isso, ndo devem causar estranheza suas medidas testritivas ao estabelecimento de religiosos na Capitania, porque essas nao sao proibigSes unilaterais e esporddicas; elas se explicam ¢ se ehquadram na mentalidade caracteristica do colonialismo mercantilista-absolutista portugués. Simultaneamente a esse tipo de restrig&o, proibiram-se também a entrada ¢ a fixagao de estrangeiros; controlou-se, a partir do inicio do século, © livre acesso e o fluxo migratério para a regido; controlou-se o comércio abastecedor; controlaram-se, desestimulando, outras atividades econémicas além da minera¢ao; controlaram-se os caminhos e passagens de acesso A Capitania, combateu-se o descaminho do ouro, Enfim, Portugal manteve permanente controle sobre a populagio ali estabelecida”!°, ” Vé-se, portanto, que a aco desenvolvida pela Igreja-instituigto em Minas leva o historiador a percebé-la no universo da centralizagio do poder, soba égide do Padroado, 0 que acaba por transform4-la em um instrumento da politica colonizadora. Integradas nessa politica, as visitas episcopais se apresentam como um dos veiculos mais eficazes para o pleno éxito desse propésito, especialmente pelo amplo ¢-abrangente controle que exerceram sobre a sociedade. Camo bem salientou Laura de Mello e Souza ao trabalhar a documentacdo das devassas eclesidsticas mineiras coloniais, “dentre as matérias a zelar, ocupam o primeiro plano as quest6es referentes & adequagao do culto ¢ observancia da religixo; entretanto, na prdtica, € sobre © comportamente cotidiano da populacko no seu aspecto mais geral - ¢ nao no restrite apenas 4s quesiGes religiosas — que incide o olhar vigilante da Igreja: as testemunhas que comparecem & Mesa da demincia falam. muito mais da vida amorosa, da sexualidade, dos costumes de seus semelhantes, do que da sua regularidade no comparecimento As missas ¢ na obediéncia aos jejuns”!1_ Por conseguinte, os bispos coloniais procuravam salvar os homens em sua fé ¢ paralelamente davam respaldo ao Estado. Através da visita pastoral cuidavam do aperfeigoamento da ética religiosa e do fortalecimento do poder temporal. Desempenhavam missio apostélica ao mesmo tempo que subsidiavam ¢ reforgavam o regalismo metropolitano. Se, stricto sensu, eles no se incorporavam aos quadros do Tribunal do Santo Oficio, na realidade, operavam em favor daquele é6rg4o, atuando como seus agentes no Brasil. * Resta, ent&io, compreender como se articulavam as propostas estatais com os estatutos canénicos, 10 Gaio César BOSCHL Op. cit, pp. 82-3. 1 Laura de MELLO E SOUZA. “As Devassas Eclesidsticas da Arquidiocese de Mariana: fonte priméria pare a histGria des mentalidades”. Anais do Museu Paulista, Sic Paulo, 33:66, 1984. 158 Em principio, as normas de atuagio da Igreja na Col6nia eram provenientes do Concilio de Trento, ¢ sua aplicacio entre nds esté diretamente associada & figura de D. Sebastidio Monteiro da Vide, Arcebispo da Bahia entre 1702 e 1722, Doutor em CAnones pela Universidade de Coimbra e responsavel direto pola realizacao do Sinodo de 1707, evento que divide a hist6ria eclesidstica colonial brasileira em duas fases distintas. Frustrado em seu propésito inicial de realizar um concflio, nem por isso D, Sebastido deixou de concretizar, nesta oportunidade, mais uma de suas contribuigdes 4 sistematizagiio do nosso direito eclesidstico, ao proclamar as Constitui¢des Primeiras do Arcebispado da Bahia, trabalho no seu género to relevante quanto o Regimento do Auditério Eclesidstica, que ele elaborara e publicara em 1704. Homem hicido, D. Sebastiao, de um Jado, via claro a falta de liberdade dos bispos coloniais, submissos e dependentes do Estado, em func4o do regime do Padroado, o qual, em iiltima andlise, transformava a missio pastoral em missdo sacralizadora da politica metropolitana; de outro lado, tinha plena percepgao da inadequagfo ¢ da impropriedade de se transplantar fielmente para a realidade americana a ortodoxia romana. Por isso julgava que, na medida do possivel, era necessério que a Igreja no Brasil procurasse se desvencilhar das orientagBes estatais ¢ que se estabelecesse um texto normativo que se aplicasse as dioceses brasileiras, contendo uma legislagSo amoldada a nossa realidade, isto €, adaptada as nossas peculiaridades, sem contudo descaracterizar ou desobedecer as determinagdes oriundas de ‘Trento. Os esforgos do dedicado prelado nao obtiveram o éxito desejado. Mesmo considerando que “hd uma tend@ncia de fazer um Brasil para os brasileiros, e nesta perspectiva uma legislac&o eclesidstica brasileira adaptada as situagSes brasileiras, no copiadas da legislag&’o européia tridentina, as Constituicdes tiveram de contar com a rigidez da inquisi portuguesa que ndo permitia nenhuma inovacdo, sobretudo nas colénias”!2, Como antes, a0 longo do século XVIII, mais do que nunca o Estado interferiu continua € decisivamente nos assuntos eclesidsticos. Ele se afirmava com ¢ através da aco da Igreja. Beneficiava-se do pastoreio episcopal. Engano’ pensar que as determinacées provenientes de Trento colidissem com o regalismo lusitano; nunca é demais lembrar que este reino ibérico foi um dos poucos paises a “receberem” e colocarem em execucfo, de imediato, tais determinacdes. Nao havia incompatibilidade — antes, houve complementariedade - entre as deliberac6es tridentinas ¢ 0 exercicio do 12 Bauardo HOORNAERT, “A cristandade durante « primeisa época colonial”. Jn: -. at alii. Histéria da Igreja no Brasil. Peuépolis, Vozes, 1977, . 2, p. 280. 159 poder em Portugal; a ortodoxia romana se amoldou aos interesses da politica lusiada. Isto posto, tendo como parametro as diretrizes tridentinas, mas cénscios da perspectiva de que suas atividades pastorais integravam a polftica colonizadora, os bispos coloniais procuravam desempenhar os seus ministérios, Tinham claro que o sucesso de seu munus de pastor estaria condicionado a nao entender ou aplicar aquelas normas sen4o adequando-as, as vicissitudes dessa politica. No que respeita a regido mineradoma, essas atribuigdes, até a.criacaio da diocese de Mariana, em 1745, estiveram confiadas aos bispos do Rio de Janciro. Varios deles, dentro do melhor estilo de Trento, se empenharam. pessoalmente'nas visitas. Por ordem cronolégica, o primeiro titular daquele bispado a percorrer Minas Gerais foi D. Frei Ant6nio de Guadalupe, (1725- 1740), que tantos e to assinalados servigos prestou no exercicio de suas fungdes, especialmente no que diz respeito 4 reforma do clero, Assumindo uma diocese marcada por secular aversao dos moradores pelos seus bispos, dentre os quais “tés foram envenenados (uma suspeita), dois desistiram, trés renunciaram, um foi deposto pela ‘relagao’ da Bahia”, e s6 dois conseguiram passar normalmente © baculo aos seus sucessores, D. Fr. Guadalupe organizou é impés prestigio ¢ regularidade aquele bispado!3, Nele adotou as Constituigdes publicadas por D. Monteiro da Vide e com base nelas deslocou-se a Minas, em visitas pastorais, em us ocasides: 1726-7, 1733 e 1735. Seu sucessor, D. Frei Joo.da Cruz (1741-1745), praticamente marcou sua passagem pela Colénia por uma prolongada visita pastoral a Minas Gerais, entre 1742 e 1745, a qual por certo the trouxe sérios dissabores, pois QS seus atritosos contatos com o clero mineiro resultaram por levé-lo a renunciar 4 mitra ¢ regressar & Merdpole. A criacio do bispado marianense nao isentou Minas de continuar a receber miss6es pastorais originadas da capitania vizinha, Quando o novo trono episcopal foi efetivamente ocupado pelo seu titular, em 1748, uma visita ainda subordinada e ordenada pela sé carioca finalizava suas atividades: Porém, essa visita ndo tinha a lideré-la 0 Bispo D. Fr. Ant6nio do Desterro, mas sim um preposto seu, a quem se faz referéncia em outa passagem deste trabalho. O primeiro bispo de Mariana, D. Fr. Manuel da Cruz, néo poupou esforgos no sentido de-conhecer pessoalmente sua nova diocese, Para quem acabara de percorrer cerca de quatro mil quilémetros de viagem pelo sertao, vindo de Sao Luis do Maranhao, por mais indspitos que fossem os caminhos 13 Eduardo HOORNAERT. “Rio dé Janeiro, uma Igreja perseguida”. Revista Eclesidstica Brasileira, Petropolis, 3(123):590, set. 1971. 160 do interior de Minas, eles nao inibiram o impeto apostélico, D, Fr. Manuel, durante os dezesseis anos em que esteve a frente desse bispado, dedicou. especial cuidado as visitas diocesanas, delas participando diretamente, tal como far4, anos mais mais tarde, um de seus mais ilustres sucessores no trono marianense, D. Fr. Domingos da Encarnagio Pontevel, O cumprimento 4 norma disciplinadora tridentina de que cabia a0 bispo a responsabilidade ¢.0 empenho em realizar as visitas diocesanas nem sempre podia ser respeitado ou cra acatado pelos prelados. Dessa forma, no impedimento ou na impossibilidade de o titular do bispo proceder as visitas aqui relatadas, tal como previsto na legislac4o ordindria, elas se realizavam por intermédio do Vigdrio Geral ou de sacerdotes virtuosos ¢ qualificados, criteriosamente escolhidos pelos prelados titulares. Era taxativo, nessa matéria, o capitulo 383, titulo VIII, do ja mencionado Regimento do Auditério Eclesidstico ao definir que “os Visitadores serio sacerdotes virtuosos, prudentes e zelosos da honra de Deus ¢ salvagiio das almas, ¢ podendo ser letrados, ¢ quando nfo, ao menos pessoas de bom entendimento e experiéncia”. Exortava os ditos Visitadores a “que considerando a grande importincia das Visitagdes que Ihes forem cometidas, se apliquem de tal modo om as fazer que, descarregando a nossa € suas consciéncias, possam com a graca divina alcangar por elas os frutos espirituais que se pretendem”!4, . Os bispos que exerceram sobre Minas Gerais 0 seu offcio pastoral durante o periodo aqui analisado parece terem cumprido integralmente essa diretriz, Sem considerar suas virtudes ¢ zelo apostdlico, esses visitadores diocesanos eram homens bem-qualificados intelectualmente para o bom cumprimento de suas missdes. Praticamente todos eram bacharéis em canones e, no minimo, exerciam vigairarias coladas. Outros ocupavam fungées muito importantes nas suas respectivas cuirias. Manuel de Andrade Varneque, por exemplo, era Vigério Geral e Chantre da Sé do Bispado do Rio de Janeire, quando esteve em Minas, em 1731; Henrique Moreira de Carvalho era o Cénego Doutoral do Cabido do mesmo bispado; Manuel Freire. Batalha, igualmente cénego, era Comiss4rio do Santo Oficio (!); Lourengo José de Queiréz Coimbra ¢ José Justino de Oliveira Gondim eram Governadores do Bispado de Mariana, por ocasifio das visitas diocesanas a que presidiram (cf. Quadro Anexo), 14D, Sebastiio Monteiro da VIDE. Regimento do Auditério Ecclesiastico do Arcebispado da Bahia, Metropoti do Brasil, e Da sua Relagao, ¢ Officiaes da Justia Ecclesiasica, e' mais cousas que tocdo ac bom Governo do dito Arcebispado, ordenado pelo Illustrissimo Senor D. Sebastido Monteiro da Vide, S* Arcebispo da Bahia, e do Canselho de Sua Magasiade. Sdo Paulo, na Typographia2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853, p. 85. 161 Transformando-se, enquanto nelas permaneciam, em suprema autoridade eclesidstica das localidades nas quais se instalassem, esses visitadores deviam tudo observar, vigiar, anotar ¢ punir (se: fosse 0 caso), em relag#o a tudo 0 que encontrassem no percurso de seus trajetos entre uma € outta freguesia: capelas, oratérios, confrarias ¢ sacerdotes, bem como usos, costumes ¢ comportamentos da populaco. A designagao para 0 cargo de visitador se dava por provistio do Bispo ou de seu substituto na sede vacante, entrando 0 nomeado no exercicio de. suas fungdes apés © juramento dos Santos Evangelhos perante a mais alta autoridade diocesana. Empossado, a imediata providéncia do Visitador era dar posse ao secretério ou escrivo'¢ ao meirinho da visita, mediante idéntico juramento que perante ele. os dois auxiliares prestavam, comprometendo-se ambos, no desempenho de suas ocupagSes, a bem e fielmente as cumprirem, guardando em tudo o necess4rio segredo. O primeiro ato de funcionamento da visita era o traslado, em livro préprio, das urés provis6es de nomeagao e do seu edital. O edital da visita tinha como destinatarios os vigérios, os curas, os coadjutores, os capeliies curados, as demais autoridades eclesidsticas ¢ seculares ¢ 0 “povo” da freguesia a ser percorrida, Nesse documento ficavam declarados os solenes objetivos da visita, de “desterrar os vicios, erros, abusos ¢ escAndalos” da Populagiio ¢ zelar pelo seu bem-estar espiritual ¢ temporal!5, A visita se iniciava com 9 seu ansincio 2 comunidade dos fiéis da freguesia na qual se desenvolveria. O objetivo do aniincio era o de exortar a todos, de modo que a ninguém fosse facultada a alegativa de ignorancia, quer da finalidade da visita, quer do dever cristo de se submeter as PrescrigSes contidas no edital. Esse texto deveria ser lido pelo clero e pelas autoridades seculares e eclesidsticas locais, que se encarregariam de noticiar a chegada do visitador em cada uma das igrejas, a fim de que nessas ocasides todos assistissem a Procissio para salvaco das almas dos mortos, que entdo se realizaria, antes de se dar inicio 4 devassa. A esta solenidade, que incinia a visita ao sacrario, aos Santos Oleos, & pia batismal, aos altares ¢ aos paramentos, 0 vigério e 0s demais sacerdotes da freguesia deveriam assistir com as suas sobrepelizes, 0s oficiais das confrarias com as suas opas, “a hobreza ¢ 0 Povo, com toda a decéncia debaixo da pena que me parecer justa impor nocaso em que nado cumpram e nem obedecam a este meu edital’!6, 15 ABAM — Livro de™“Devassas — 1733", tendo como Visitador 0 Rey. Dr. Domingos Lutz da Silva, com termos de abestura © de encerramento datadat’de\Catas Altas, 1°/7/1733. (nio- catalogado), fis. Sv. 18 taem, ibid, Os. Sv, 162 Em seguida, o edital explicitava os parimetros pelos quais a visita se pautaria: “em virtude de Santa Obediéncia ¢ sob pena de excomunhiio major ipso facto incurrenda mando a todas as pestoas, assim eclesifstices, como seculares, que souberem de pecados piiblicos ¢ eseandalosos, venham perante mim denunciar em terme de vinte © quatro horas e para que o {aca como convém ko servigo de ‘Deus os admoesto para que a denunciagfo que fizerem nfo seja movida por dio, vinganga ou respeito,algum tem (...) se nfo por zelo e servigo de Deus nosso Salvador, ¢ debaixo da mesma pena de excomunhio major ipso facto incurrenda, mando que neahuma pessoa eclesisstics ou secular de qualquer grav ou condigso que seja intimide ov trate mal de palavra ou obra as testemunhas que vierem jurar nesta Visitagio, antes ou depois que clas vierem jurar; outrossim, mando debaixo da mesma pena que nenhum Reverendo Péroco, Vigério, Cura, Capelies, Provedor, Tesoureiro, Administrador ou Fabriqueiro mostrem parumentos, que no forem préprios de Igrejas, capelas e oratério que forem por mim visitados, para que astim se poise prover convenientemente do que for necessério, ¢ mando 2 todos os Reverendos Vigérios, Curas, Capeliies, escrivies do auditério eclesifstico tenham prontos seus cartbriog, © testamentos e ris das pessoas que falecerem nos meses da altemativa eclesifstica, com testamento ou sem ele, pars de tudo me poder informar no sto da visitagio; outrossim serfio notificedas todas ax pexsoar que 880 obrigadas a dar contas, registrar missas e capelas, como também as confrarias quaisquer que sejam para que tenharn prontos seus estatutos ¢ erecbes pare serem por mim vistas ¢ examinsdes ¢ Ihes tomar de’ tudo exata conta, ‘pertencendo ela no ato da visitaplo e ox Reverendot Phrocos, Curas ¢ Capelies mando tenham prontos ot r6is dos confessados, livros de batizados, casamentos, de defantos, ¢ 08 mais que sho obrigados a tere assim eles Reverendas Phrocot ¢ Capeliies como todos of mais clérigos das suas freguesias me apresentario os seus papéis com pena de ruspensio ¢ com o favor de Deus hei de continuar eata iis pelaciplaatio pole Frepuseia de haveceva oat jeguindo pela ordem do roteiro que a ene edital vai cosido jum, visitando todos os dias com aquela brevidade que o tempa e a ocasifo permitirem, cada um dos Reverendos Pérocos ¢ pessoas acime nomeadas mandarfo saber a igreja prixima onde eu - Sabrent aren aes won a gone, ele NY ‘aperelhados com, todo o necessirio na forma que de direito silo obrigados ¢ cumprirfo debaixo da pena de suspensio 6 lido ene meu edital em termo de um dis o passaro 20 Péroco que #6 seguir coaforme # ordem que se aponta e terfo cada um prontas a1 cenidées de como @ entregeram 20 PAroco a quem tocava, assentando cada um na certidgo o dia e hore em que Ihe for entregue, ¢ lido o presente edital até a dltima igreja ¢ nela me fark dela entrega o Reverendo Péroco sem vicio nem entrelinhs alguma; ¢ pare que venha a noticia de todar as matérias sobre que ho de testemunher, cada um dos Reverendos ler§ aos seus fregueses ne esiaGio da missa converrual os interrogat6rios seguintes: 19 se sabem on oaviram dizer que slgums pessoe cometen o geavissime crime de heresia ou apostasia, tendo, crendo, dizendo ou fazendo algums coisa contra anossa Santa Fé Catlica em todo ou em algam artigo dela, ainda que disso no infamads; 2? — se algums pessoa tem ow Ié livros de hereges, ou quaisquer outros defesos sem licenga da Sé Apostélica, ou das pessoas que pare isso 2 podem dar; 163 3 —e se sabem ov ouviram dizer que alguma pessoe disse alguma blasfémia contra a honra' de Deus, da Virgen Nossa Senhora ou seus santos, dizendo algumas palavras injurioses ou que nfo convenham & honra de Deve on a Seus Santos; 4° — se sabem que algnma pessoa seja feiticeira, faca feitigos ou uso deles pars rer bem on mal, para ligar ou desligar, para saber coisas secretas on adivinhar ‘8u para outro qualquer efeito, invoque os deménios ou com eles tenha pacto, expresso.on ticiso ainda que disso niio estejn infamada; ‘5~se algums pestoa adivinha ou benze ou cura com palavras ou bengios sem licenga de Sua Itvstrissime ov do Seu Provisor e se hé algoém que v8 buscar ‘orendo que com suas bencox pode haver saiide; 6? ~ s@ algum homem esté casado com duas mulheres vivas ou mulheres com dois maridos, ainda que disso no haja fama; ‘72 se algum clérigo de ordens sacras, religioso ou religiose professa esto casados, ainda que nio haja fama piblics do-caso; # ~ se algum sacerdote cometeu slguma mulher no ato da confissfo on descobrin sigilo dela, ainda que nfo esteja disso informedo; 9° ~ se alguma pessoe cometer 0 crime de simonia, vendende ou comprando, beneficios ou apresentagées dele, ou dé ou receba dinheiro ou coisa temporal por administrar sacramentos, ou outre coisa espiritual ou sobre ela faga convenges ou fatos ilfcitos ou reprovados; 10° — se hd alguma pessoa que pusesse mios violentas em clérigo ou religioso, ‘ou que na igreja e ado dela ferisse ou injuriasse ov espancasse ou por qualquer ‘outra via cometeu sacrilégio; L1® ~se hf alguma pessoa que jurasse fals0 em julzo ou seja disso infamada on ‘acostumada.a jurar fora de juizo joramentas Ialsos e escandalosos: 12 ~ sc algume pessoa dé slconce, em sua casa, consentindo ou induzindo que ela se déem mulheres a homens e disso for infarnada; 13°—se algum pai ov mie consente que suas filhas fagamn mal de si ou marido® sua mulher, senhores a seus escravos e esto disso infamados; 14° — se.alguma pessoa usa de alcovitar mulheres (—) ou excravas para homens ¢ disso esteja infamada; 15° ~ se alguma pessoa cometeu 0 pecado nefando cu de bestialidade; 16% ~ se alguma pesson cometer o crime de incesto, tendo ajuntamento com alguma parenta por consanginidade ow afinidade om gran proibido, on comadre com compadre, ou padrinho com afilhada, ou madrinha com afilhiado, ¢ disso haja fama paiblics; 17? ~ se alguma pessoa eclesifstice, ou secular, solieiros ou casados, que estejam amancebados com escandalo ¢ disso haja fama na freguesia, lugar, roga ou aldeia ou na maior pane da vizinhanga © rus; 18° — se algumma pessoa eclesidstica, on secular que tenha em sua casa alguma mulher de que haja escéndalo ou suspeita na vizinhangs; 19? ~ se-h6 alguns casados que déem mé vida » suas mulheres, com escfindalo, ou vivam apartados sem justa causa; 20° — s0 hé algums pessoa que sejn onzencira, dando dinheito, pio, vinho, azeite ov outras coisas semelhantes emprestado para receberem mais que a sorte Principal ou vendem mercadorias fiadas por mais do que valem, com 0 dinheiro ‘ns milo do prego rigoroso por razio da espera; ou a5. compra por menos do fnfimo coisn considerével por darem dinheiro de antemfo ¢ haja das ditas onzenss fama pablica; 21° — sc hé algumas pessoas que déem bestas de aluguell ou bois ou vacas, com condigdo, ou pacto que se morrerem, nem por isso deixario de Ihes pagar o aloguel delas; 22 = se alguma pessoa ou pessoas esto em Sdio com escfindalo; 23° — se\alguns estfio prometidos de casar © co-habitam como se fossem recebidos em face de Igreja; — se alguma pessoa esté casada em grau proibido sem legitima dispensacto; 25° — se hé alguma pessoa que seja accstumada a comer came em dias proibides sem legitima causa ou licenca ou seja costumada # nfo ouvir missa ov jejuar nos diag de obrigagio ou seju disso infamada: 26" — se hé alguma pesson que esteja obrigada a mandar dizer missas de capela ‘ou a cumprir testamentos ¢ 0 nfo faz.¢ s¢ os sacerdotes om o receber das missas sade ondmero-de cem come lhes esté ordenade; alguma pessoa morren por culpa do Péroco sem sacramentos, sinds que Ls haje fama disso; 28% — seo Péroco & negligente na administragso dos sacramentos, ou por administré-los pede dinheiro ou coisa que o vatha e ainda que seja acostumado no quer administré-los sem primeiro Ihe darem, ¢ ainda que disso nio esteja infamado, ou se. ndo ensina 2 doutrina, crist. como esti ordenado pelas Constitigées ou se em alguma coisa deixa de cumprir as obrigagdes do seu oficio ou se falta em observar a pastoral de Sua Dustrfssima; 29% - s¢.0 Phroco € remisso € negligente em ir encomendar © enterrar 06 defuntos ou nfo quis fazer sem primeire the darem alguma coiss ainda que nia ja fama; 308 — seo Péroco injuria os fregueses ou os trata mal na estagdo ou em outra coisa deixa de fazer seu oficio cbmo deve, ainda que no haja fama; 31% —se algum clérigo € tratante, rendeiro, ou negociador, continua as tabemas, € acostumado a trazer armas pela cidade, vila ou,lugar ou andar em habito de leigo, ou andar de noite, se é taful, brigoso, revoltoso, nfo reze as horas canénicas, (—) nao (—) hébito, « (—) decente ¢ de qualquer das duas coisas esteja infamados; 32% — se algum clérigo se serve de mulher suspeita ou qualquer outra pesson eclesidstica ov secular tem das portas adentro alguma pessoa de que nasca esciindalo, ou os eclesifsticos filhos em casa que hovvessem depois de elérigos; ‘33? ~ se hé alguém que se deixe andar excomungado por espaco de um ano sem pedir o beneficio da absolvicso;, 342 ~ se h& alguma pessoa que nifo.se confessasse e comungasse na quaresma passada ou seja acostumada a trabalhar nos domingos ¢ dias santos; 35° — se hii algumas pessoas que nio pagam as igrejas cu aos ministros delas on dizimos, primfcias © benesses inteiramente como sfo obrigadas; 36 — se hf algumas pessoas que déem ou emprestam ou por outra qualquer via alheie bens das igrejas sem as solenidades que o direito requer, ¢ licenga de Sua Thustrissima om se algumas pessoas tragam usurpados os ditos bens sem o titulo que por direito se-requer, 37 — se hé alguma casa em que se jogue com escndalos ou se dé tavolagens; 38% se sabem ou ouviram dizer que alguma pessoa imimidasse testemunhas, que viessem ou houvessem de vir & Visitacdo para que dissessem.a verdade ou depois de testemunharem as tratasse mal com palavra ov obra; 39" — se sabem que algum oficial de Justiga Bclesidstica, Provisor, Vighrio- Geral, Visitador, Vig&rio da Vara, Promotor, Escrivaes, Meirinhos, Notérios, Solicitadores © porteiro cometerem erros ou detitos em seus oficios levando 165 mais do que se thes deve, tomando peita, descobrindo o segredo da justica ov por our qualquer via; 40° — c finalmeme sc sabem de qualquer pecedo pifblico ¢ escandaloso nos venha dizer"!? Observa-se assim que os interrogatérios da visita diocesana cobriam um ampio e.diversificado elenco de delitos, passando em revista toda a vida social ¢ crist{ de cada paréquia, tanto quanto possivel sondando a fundo a pureza| da fé, da religizo ¢ dos costumes de cada igreja ¢ freguesia visitadas!®, Como foi mencionado, o edital da visita, hem assim as provisées de nomeagao dos trés responsdveis por ela eram transcritos pelo secretario em um dos livros de que a visita dispunha, os quais, uma vez conclufdes os trabalhos, deveriam ser remetidos 4 Camara Eclesidstica do Bispado, juntamente com relatério circunstanciado, inclusive quanto a0 aspecto financeiro. Basicamente, eram dois os livros utilizados em cada visita, sempre contendo termos de abertura e de encerramento, redigidos ¢ subscritos pessoalmente pelo visitador. Um dos livros servia para o assentamento, apds 98 traslados jd referidos, dos termos de confiss6es ¢ de dentincia, on seja, da devassa propriamente dita. Esses livros contém. também, no final dos interrogaidrios de cada fregnesia, o termo de conclusio da visita e o rol das Proniincias, isto €, a sentenga do visitador para cada uma das pessoas confessas ou denunciadas. O segundo livro compreende os langamentos de termos dos culpados e pronunciados, vale dizer, os registros dos atos de 17 dem, ibid, fs. 5v/8. Como se vé, ext editl se destinava b visita fete, no segundo semestre de 1733, & freguosin de Santo Antonio de Itaverava, pertencente i comarca eclesistica de So Toto Del Rei, sendo datado de 8 de julho de 1733. Distinguir o texto de um nico edital, tal como aqui re faz, generalizando sua validade, nflo implica descuido, pois, com poucas modificagSes vocabulares, em todos os demais documentos andlogos consuliados, a esséncin se. mantém. A fGrmula-matriz dees sfo as orientagées tridentinas concementes & matéria, em linhas gerais incorporadas ac Regimento do Santo Oficio da InquisigSo dos Reinos de Portugat, de 1640 (cf. “Edital da Fée Monitério Geral de que se faz meno no Livro I, Tinalo TI, §XT"); no Brasil, adaptadas © consubstanciadas por D. Sebastifo Monteiro da Vide no Regimento do Auditério Eclesifistico do Areebispado da Bahia (cf. Pardgrafo Unico do Tiaulo VILL pp. 87-90 da edigio supra indicada). A respeito dis decis6es do Concilio de Trento sobre as visitas Pastorais, consulte-se a importante obra de Fr. Raul de Almeida ROLO. L’Eveque de la. Réforme Tridentine: sa mission partorale dapr2s le véndrable Barthélemy des Martyrs. Lisboa, Centro de Estudos Histéricos Uktramarinos, 1965. 433 pp.. 18 Fr. Raul de Alineida ROLO. Op. cit, p, 152. Para uma visko resumide ¢ agrupada desses intersogatérios, consulte-se o antigo de Francisco Vidal LUNA ¢ Iraci del Nero da COSTA. “Devassa’nas Minas Gerais: observagdes’ sobre casox de concubinato”. Anais do Museu Paulista, Sto Paulo, 31:221-33, 1982. 166 comparecimento do indiciado perante o visitador, a Ieitura da respectiva pronincia¢ a sua reagao a sentenca que Ihe fora aplicada. Quer seja para revigorar a fé, quer para redengAo e alfvio dos pecados, quer ainda para garantir a sua salvaco e a protegao divina ivrando-se da temivel excomunhaa, o homem colonial, particularmente aquele que vivia em uma sociedade tao promiscua como a da regido mineradora, diante do tom ameacador dos editais de visita, nao titubeava em cumprir prontamente Os ordenamentos prescritos naqueles termos. Apresentava-se ao visitador, reconhecia-se culpado ao lhe confessar seus pecados ou seus delitos, nem por isso se isentando de, naquela mesma oportunidade, denunciar outros. faltosos ou pecadores. Tanto as confissdes como as. deniincias eram cuidadosamente anotadas pelo secretério, delas guardando-se 0 necessdrio segredo. Ambos os atos se iniciavam pelo registro dos dados de identificag4o e qualificagao do depoente, pela tomada de juramento — feito apondo-se a mio direita do. depoente sobre um livro dos Santos Evangelhos -, seguida da promessa de: se dizer a verdade, apés o que, “sendo-lhe perguntado pelos itens do edital da visita”, o confitente ou a testemunha passava ao relato, finalizando por assinar o termo juntamente com o secretfrio da visita. Diferentemente da marcha processual do Santo Oficio, nas confissdes das visitas diocesanas © visitador praticamente: se’ restcingia a ouvir 0 depoimento, determinando a lavratura do respectivo termo. Inusitadamente, intervinha durante a fala ov procedia a alguma inquiticho apds esta. A confiss4o dispensava outros elementos de prova e tinha valor em si mesma. Valia o que o depoente afirmava. O pressuposto era 0. de que a auto- acusago, tal como o depoente a expunha, era satisfatéria, dispensando argiticao sobre, por exemplo, pormenores do relato, condi¢6es atenuantes ou circunstancias atinentes as faltas reconhecidas naquele ato, A rigor ¢ cm linguagem atual, portanto, seria inadequado falar-se de interragatérios na visita pastoral, o mesmo se aplicando, por via de conseqiiéncia, ao termo devassas, pelo qual esses processos sao mais conhecidos ¢ divulgados. Por outro lado, cabe. salientar que a voluntariedade da confisso, ou melhor, o reconhecimento dos préprios erros ¢ pecados nfo fazia jus ao perdio automdtico. Ainda que leves, havia sempre penalidades, tanto espirituais como pecunidrias, as quais 0 confcsso logo se dispunha a resgatar. Em uma sociedade como a das Minas Gerais setccentistas, marcada pela facilitagfio de toda sorte de prevaricagdes e onde a pratica dos pecados capitais era rotineira no interior de sua heterogénea populagao, por certo que ndo seriam a perfeicfo da vida crista ¢ a salvagao da alma as tnicas ou principais razGes que moviam as pessoas.a se apresentarem diante do visitador. 167 Nao se pode desprezar o fato de que exa grande © interesse do inculpado em assumir de imediato a responsabilidade pelos seus erros, dentre outros motives porque a sua antecipagdo em parte poderia neutralizar 0 desdobramento do seu processo. A confissaio neste caso adquiria caréter pragmatico ¢ preventivo, na medida em que evitava que as faltas ¢ os pecados do confitente fossem conhecidos pelo visitador por intermédio’ de terceiros, situago na qual, dependendo da natureza da falta, a devassa tomaya outra dimens%o, podendo mesmo sair da esfera de competéncia do visitador para a do Juizo Eclesidstico ¢ deste, conforme a gravidade da culpa, para a do Tribunal do Santo Oficio. Ademais, as confissSes eram aplicadas penalidades menos pesadas, quase sempre meras admoestagdes, complementadas por penas pecunidrias. Por conseguinte, o cardter auto- acusatério da confissto, de certa maneira € no minimo, resguardava 0 seu autor de complicagSes com o Santo Offcio, com o eventual confisco de bens, por exemplo, no inicio do rito processual, atingindo judeus ou sodomitas. Sem falar que, do ponto de vista espiritual, aliviava 0 confitente do peso ¢ da consciéncia do pecado cometido. Afinal, nunca € demais insistir, 0 fiel cumprimento das qualidades impostas s¢ constituia para o confitente em conditio sine qua non tanto para a salvago da alma, como também para a reconciliag&o com a Igreja. A deniincia estava na razdo de ser da visita, dado 0 feitio intimidatério e ameagador dos textos dos editais, Varias eram as razBes que levavar os individuos a denunciarem, cabendo lembrar, dentre outras, a conviceio, o. zelo ¢ a fidelidade religiosos; o temor da ira divina ou da excomunhfo; 0 desencargo de consciéncia; 0 mero impeto colaboracionista com a Igreja; 0 desejo de vingancas pessoais; 0 édio ou a simples inveja em relagho a0, denunciado. B bem verdade que nesses tiltimos casos, quando detectados, cumpria ao visitador aplicar as sanc6es legais. Para tanto, deveria fazer admoestagSes prévias a respcito. No entanto, era muito dificil para o visitador, dada a fugacidade de sua permanéncia na freguesia, capiar a pureza das intengSes do denunciante. A praxe era a de que, quando nfo convencido da pritica do crime pelo inculpado ow de que os indicios eram insuficientes para o julgamento, o visitador impronunciasse 0 acusado. Também nas denincias o visitador ndo interrogava a testemunha, no procurava se inteirar das relag6es ow dos contatos porventura existentes entre acusado ¢ acusador ou se informar sobre as circunstincias atenuantes, Tal comportamento transforma os termos de deniincia em poderosos, definitivos ¢ irreversiveis libelos acusatérios, agravados pelo fato de que, em grande parte dos casos, o denunciante nao tinha conhecimento pessoal do que relatava, mas sim testemunhava “por ouvir dizer” ow porque afirmava ser o fato “de fama publica”. Pode-se facilmente depreender o 168 receio das pessoas de serem denunciadas numa situag%o em que o rumor piiblico era prova suficiente para incriminar alguém, situag&o em que o onus probandi paradoxalmente cabia ao acusado e no ao acusador, na qual inexistiam critérios seletivos ou restritivos para os denunciantes, Toda e qualquer pessoa estava ‘qualificada ¢ habilitada para testemunhar, independentemente de idoneidade. moral, sexo, idade, origem étnica, posigao social, profisso ou grau de instrucao. Por isso, confessar ¢ reconhecer a exatidao das acusactes sram atitudes muito mais favorfveis aos acusados, pois, quando menos, facilitavam o proceso de sua reconciliagao. Na documentago consultada, a teagBo do indiciado, invariavelmente, era a de reconhecer logo sua culpa, submetendo-se &s penalidades que lhe eram imputadas naquela oportunidade. Ato continuo, assumia 0 compromisso de “se emendar”. Em outra linguagem, abjurava em forma, se bem que se possa constatar a inocuidade das penas aplicadas, de que dio testemunho os freqlientes casos de culpados relapsos ou reincidentes. Havia sinceridade nesses atos de abjuragio? Simulava-se arrependimento com vistas a isentar-se de maiores incémodos? Fica entio a diivida em se saber qual a intensidade do temor ¢ qual o nivel de sinceridade ¢ de fervor nas reconciliacgdes com que a populagio mineira respondia as aludidas visitas. Nao se pode saber até que ponto a mudanca de comportamento era algo circunstancial, que prevalecia apenas enquanto durava a visita ¢ seus ef6meros efeitos sobre a sociedade local, Enh se tratando de dentincias e confisstes como documentos, & oportuno ainda um curto paréntese no sentido de se fazer algumas de: cardter metodolégico, no que respeita & utilizagao daqueles dois tipos de fontes como veiculos privilegiados de informag6es histéticas, a exemplo do que se procura fazer neste texto. : Est4-se diante de fontes histéricas fornecedoras de informagdes dificilmente captiveis em outra espécie documental, seja pelos assuntos nelas tratados, seja pela variada gama de segmentos sociais por ela abrangidos, especialmente quando se constata que a expressiva maioria dos depoentes eram pessoas geralmente exclufdas da documentagao burocratico- administrativa, Nas visitas diocesanas, os individuos no se diferenciavam nas suas deniincias e nas confissdes. O desvio religioso ou a falta contra os costumes igualava a todos; a aplicag&o da lei € que, como sempre, distinguia as culpas. No geral, os documentos em pauta se regem por um modelo, cuja lingaagem ¢ forma praticamente sao padronizadas, 0 que arrefece um pouco a pulsagao do cotidiano social que se poderd captar nas referidas fontes. Até 169 certo ponto é mesmo contraditério que, retratande ocasides nas quais as pessoas tanto se desnudam, o registro dessas emogbes e comporiamentus se apresente de maneira to formal e racionalizada, Estudando documentagSo andloga, Eduardo D'Oliveira Franga ¢ Sénia A, Siqueira chamam a atengao para o fato de que “essas liberagées pelas confissdes voluntérias, ..., ao serem documentadas sofreram um processo de simplificagao porque os dramas intimos, para poderem ser falados ¢ escritos, e registrados em conseqiiéncia, tinham de ser racionalizados, despojados de sua riqueza afetiva, quando eram fichados como atos, com suas implicag6es légicas. Quando a raz4o, com vistas a uma justica social defensiva, penetra as dreas noturnas das paixdes para tomé-las como fatos, objetivamente, a racionalidade deforma o concreto existente. Enxuga umidade dos sentimentos que lubrificavam aqueles comportamentos condendveis”!9, Retome-se a seqiiéncia do texto. Uma vez concluidos os depoimentos de cada freguesia, o visitador determinava ao secretério da visita a lavratura do termo de seu encerramento. A seguir, respaldando-se no edital da visita, nas pastorais diocesanas e na legislaco civil ¢ eclesidstica, escrituravam-se as pronincias da devassa, feitas, na maior parte dos casos, separadamente por crime ou delito; ou, em outros casos, através da lista nominal dos culpados, acompanhados das respectivas penalidades, que eram imediatamente tornadas publicas, a fim de serem cumpridas, Vé-se, pois, que o rito processual das visitas diocesanas cra extremamente simples ¢ sumdrio. Ao nao questionar a confiabilidade e a idoneidade das declaragdes do denunciante, o visitador eximia-se também de proceder as diligéncias indispensdveis & apuragdo da veracidade da dendincia. Uma sé dentncia era suficiente: para a formagao da culpa, dispensando o exame de sua substancia e sua qualificacio. As particularidades e circunstfincias dos delitos eram desprezadas. Nao se concedia ao acusado a faculdade de se defender. Por consegninte, a prontincia, literalmente, j4 era a senten¢a, isto €, a punicdo inexoravel ¢ inapelavel. Cabe ent@o indagar se nas visitas pastorais havia julgamento stricto sensu, quando nada porque, do ponto de vista formal, julgar pressup6e apresentar o libelo de acusagfo e oferecer 0 direito de defesa, Nas visitas, esse rito processual ndo existia em primeira instincia. Em outras palavras, na maioria dos casos, 0 processo nao ultrapassava a fase de. 19 Eduardo D’Oliveira FRANCA ¢ Sénia A. SIQUEIRA. Introdugto. Segunda Visitagto do Santo Officio as partes do Brasil, pelo Inquisidor ¢ Visitador ¢ Licenciado Marcos Teixeira. Livro das Confissies ¢ Ratificagdes da Bahia (1618-1620), Anais do Museu Paulista, Sio Panlo, 17:121-547, 1963. p. V. 170 instrugdo, de vez que a sentenciagdo era suméria, Fique claro, porém, que naqueles casos em que os delitos praticados extrapolassem o limite de poder e de competéncia do visitador, isto é, pela sua gravidade ou pelo seu grau de reincidéncia requeressem um foro superior, os processos & por vezes oO préprio acusado eram remetidos para'essa outra alcada, a qual, € importante frisar, continuava sendo de natureza eclesidstica {predominantemente a Vigairaria da Vara da comarca ou a Vigairaria Geral do Bispado). De toda forma e mesmo considerando que os visitadores diocesanos tinham limitados os seus poderes judicantes a crimes menores, se comparados aqueles abarcados pelo Tribunal do Santo Officio, ainda assim era ineg4vel o cardter arbitrério e absoluto de que tais autoridades se achavam investidas, o que lhes permitia 0 exercicio de suas fungdes com grande desenvoltura ¢ sem sobressaltos de monta, Mais do que isso. Momentos houve em que os abusos praticados pelos visitadores diocesanos foram motivo de forte reacdo da populagao e dos governantes instalados na Capitania. Jd em 1725, expunha ao Rei o Governador D, Lourengo de Almeida “em como os povos destas Minas se queixam gravissimamente e, a meu entender, com justa onusa, porque todos 03 anos so vexados com um grande tributo ou finta que 0 eclesifstico violentamente thes deita (...) porque as visitas que fazem os visitadores nestas Minas nfo constam de outra coisa se nfo de irem tirando r6is das pessoas, que tém negras em casa, ¢ sem outra nenhuma ordem de juizo, nem haver testemunhas, ner! perguntar se hd ou se esedndalo as vai condenando treze ou catorze oitevas de ouro, que executivamente, mandam cobrar, ¢ hé visitadores que levam tantas condenacSes, quantas so as negras que os homens tém em casa, e desta mesma forma condenam a quem na Quaresma come came, sem perguntarem se tém queixa que obrigue 2 comé-la, porque como o sev fim é tirarem ouro, fazem as visitas da forma que digo. Nos juizos dos vigérios das varas se estio levindo. uns emolumentos to grandes que si em muito mais do dobra do que se leva no juizo secular e como V, Majestade tem sido servido mandar fazer regimentos para os oficiais de justign secular, no parece justo que'os oficinis de justige eclesifstica estejam Jevanido exorbditancias, e como dizem que os Cnegos do Rio de Janeiro, que governam o Cabido, so interessados em que se tire muito ouro destas Minas, Porque se afimma que os vistadores e vigintos das varas repertem com cles, por esta causa nfo pdem cobro.n esta violéncia que padecem estes povos’™ Ouvido'o Procurador da Coroa, pauco depois, em 10 de setembro do mesmo ano, foi despachada para as Minas ordem régia determinando aos 20 Arquivo Histérico Ultramarino, de Lisbon (dorevante simplesmente referenciado como AHU) — Minas Gerais - Documentos em organizagio. Caixa 2 (13/maio/1725). wm ouvidores das comarcas devassassem sobre og emolumentos auferidos pelos Oficiais eclesidsticos “e achando-os culpados, procedam contra eles”?! Os anos se passaram e tudo indica que o problema néo se tesolven, pois em fevereiro de 1753, o Bispo de Mariana recebia uma contundente ordem régia que, pela sua riqueza informativa merece ser transcrita, na’ sua esséncia. Provocara essa manifestagao do Rei, emitida através do Tribunal da Mesa da Consciéncia ¢ Ordens, queixa que Ihe fora feita pelos parocos daquele Bispado contra os visitadores diocesanos para ele nomeados, os quais, “esquecidos das’ recomendagSes de\direito © com 0 pretexto que se nio ieceu tempo limitade pare conclufrens respectivamente om cada Igreje ou Paréquia # Visite. Pestoral, tem parsado a tanto excesso que por muitos tempos xe constimuem habitadores em ctsa dos pérocos, obrigando-os uma Procuragio: ‘om agesalho pessoal e de sua familia tio exorbitante que tem havido algum ou alguns a que'n cOngrua da soa igreja no chegow para os gastos dx visita de um ‘ano pelo muito qué 0 visitador se demorou'e pela comitiva que levava ¢ pelas excearivas despesas que os plrocos so necessitados a fazer persuadindo ov. honestando as ditas largas demoras com as contas das capelas € © exces: emolumento de quatso mil réis que Ievem de cada uma fazendo evidente exiensio aoe administradores eclesissticos ¢ seculares, ... Hei por bem ordenar- ‘vos facais regular 08 visitadoves que nomeares pelas disposigSes candnicas, evitande que debsixo de qualqyor preioxto as fraudem em prejulzo dos proces devern levar na forms das ConstituigSes candnicas evitando nelas todo 0 excesso © vexapio'o que mmnito vos recomends Jembrando-vos o escripulo que deveis fazer neste matéria; ¢ pelo que respeits a visita das capelax farcis observar a Lei do Reino:ndo +6 para xe nlio visitarem ax que vos no tocar, mas pare nio lovares mais saldrios dos que ihe pertencem nemtes se no excoderf 80 que levam os provedores 0 qve atsin teres entendido © me dareis cont de assim o observares"2 Se, no entanto, se consideram os fatos ¢ os comportamentos acima como excegdes, poder-se-ia perguntar quais eram.as fontes de recursos dos visitadores, Que condigdes materiais facilitavam a ago desses homens? ‘Qual a lastro financeiro que suportava os encargos das visitas diocesanas? O Concflio Tridentino (Sess90 XXIV, Cap. 3, Decretum de Reformatione) orientou a matéria determinando que os respons4veis pela visita deveriam satisfazer-se 21 Ideen, ibid. Vide, opciomalmente, Ordem Régia de 10 de setembre de 1725, na COLECCAO sumaria das priprias Leis, Cartas Regias, Avisos © Ordens que se acham-nos livros da ‘Secretaria do Governo desta Capitania de Minas Gerait, deduzidas por ordem a tftulos . Revista do Arquive Pitblico Mineiro, Belo Horizome, 16:397, 1911. AHU ~ Minas Gerais, Documentos em organizagio, Caixa 35 (26/fevereiro/!793). 172

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