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ROBERTA PIRES DE OLIVEIRA SENANTICA FORMAL: UMA BREVE INTRODUCAO NERO? em LENDS ‘DADOS WTEANACIONAS EE CATALDGAGHO NA PUBLICAGAO (SP) {Sendo Tv Hk, NS — capa nogsaitonaicos 1. Sarna oma Unga O18 elon nebo Linguagom ccdnayde. Moka ds ure Mavloe Mata ( marosar) ewoabo eater ‘are Oubaaro Ganeree Sha ‘Mone Avs aie pa Vane Rota Gai capo orm Cae Pg Feta "Rens Wars eto Bid, xn tao oa rane su rine eet Pec Pesaro Enso de Gano Prat Furted Pind ge A098 Osa Use - Unwed Foon oe Sara Coarna ‘ce Unveetaa, Trs Ptanae, $C ‘IRET98 RESERVADOS PARA ALINGUA PORTUGUESA: “evn GOMDENE ubACADO OE LETRAS? ato du nae Sur, “aul (9) 087584 1aor0ri6=Carmprae SP Bast sennho REUSTAE ATUALIZAOA Conte roves oo da ea bo Lego 8c a 8198 ‘ABRIL /2012 swenessio ora aba rd pots pla TOR profi ou reprocufo ptt ut) ‘eon aquoszoe vac eer. Ociner Soar jr de praiaee prt — Para 0 Andrée a Cecilia Agradecimentes ete Livro surgi das aulas de Intredugéo & Seméntica ‘ministradas pare a graduagéo.om Letras da Universidade Federal de Santa Catarina, nos anos de 1998 e 1999. Embora meu trabalho, desde o mestrado, tonha sido a ‘questéo do significado e as fronteiras entre seméntica 6 ‘pragmatic, este Luro marca 0 inicio de um estudo mais _profundo sobre a soméntica formal. suas aplicagoes para oportugués brasileiro, A sua realizacao foi possivel graces A colaboragéo de muitos. Agradego a todos. (One could not say what one meant ‘Virginia Woolf, To the Lighthouse Verdade A porta da verdade estava sempre aberta, ‘mas sé doizava passar -meia pessoa de cada vez. Assim néo era possivel atingir teda a verdad, ‘Porque a meia pessoa que entrava 86 traziao perfil de meia verdade. Esua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. Eos meios perfis nao coincidiam. Carlos Drummond de Andrade ‘SUMARIO ‘TOMANDO CIENCIA D0 SIGNIFICADO: AINPORTANGIK A SANT (caso ds opsentdii Copinda 0 CAMPO DA SEMANTIC. Forenda cna do sated Delmitandoo objeto de estes Gopitulo 2. RESTRICOES A CONSTRUCAO DE ‘UN MODELO SEMANCO pita 3 SIGNIFICADO: SENTIDO E REFERENCIA.. ‘A Sena Yeritncona Goto Frage: sigitiado& sentido Contexto extensional e contexto intensional A mga exter sings as Brertis......... aiulo4 NOCDES BASICAS PARA OPERAR LUM SISTEMA FORMAL. Copilo (opie ‘AAMILISE FORMAL E A SEMANTICA DAS LINGUAS NATURAIS. 229 - BS BIBLIOGRAFIA . TOMANDO CIENCIA DO SIGNIFICADO: A IMPORTANCIA DA SEMANTICA A pergunta “por que 6 que a gente tem que aprender isso?" ecoa sistematicamente nos cursos de introdugdo @ Se- mantica Formal. Ela parece ser fruto, por um lado, do caréter abstrato do estudo do significado e, por outro, do espirito ins- trumental, de tendéncia tecnicista, que move nossa sociedads © 80 reflete nos cursos de Letras. Hé mais de uma razéo prética pera estudarmos semantica, entre elas a elaboragao de progra- ‘mas computacionais —um tradutor automético, por exemplo-e 8 construgéo de dicionérios (monolingues ¢ bilingues). Acima de tudo a reflexéo formal sobre o significado tem importancia porcue auxilia na formagéo do cidadao. independentemente deele estar diretaments interessado na descri¢éo de linguas naturale. Esse jé nos parece argumento suficiente para que professores de Mfagua, em especial professores de portugués brasileiro, dem especial atengao aos estucos sobre o significado. E evidente que a somantica éimprescindivel para aqueles cxjo objeto de reflexdo ¢ a linguagem humana, j4 que a propria definigéo de linguagem supée a existéncia de significado. Inde- pendentemente do quadro teérico do pesquisador, uma defini- ‘go de lingua (ou de linguagem) carrega sempre uma remisséo A semntica. Ferdinand de Saussure (1981 ~ publicado pela primeira vez em 1916), consideradoo pai da Linguistica, afirma- ‘va que o signo linguistico é a jungao de significante e significa- do. Noam Chomsky (1986) diz que a sintaxe permite 0 emparelhamento entre forma fénica e forma logica, ou soja, entre som e sentido, Essa definicao é compartilhada por George Lakoff (1987), um dos propagadores da _semantica Cognitive e opositor do programa cientifico encabegado por Chomsky. As ‘sim, para aqueles interessados na linguagem, a relevancia da ‘Semintica é incontestavel. No entanto, até bem pouco tempo, ela era empurrada para fora dos dominios da Linguistica,’ em especial porque nao hé uma teoria unificadora do significado e porque a seméntica ainda mantém um forte vinculo com a Metafisica. Embora sem consenso sobre o que 6 0 significado & ‘come ele se rolaciona ao mundo, a pesquisa em semantica Ch, explodiu nesses tiltimos anos, de tal modo que, hoje em dia, ninguém nega seu lugar na Linguistica.” (O caso da aposentadoria Por que ostudar seméntica ¢ importante? Ha muitas respos- tas possiveis a essa pergunta, vamos desenvolver apenas uma delas: a sua importéncia para a formagao do cidado, EmmonBach (1989), na introdugéo informal & Seméntica Formal, cita um poema de Zang Zi, que diz 0 sequinte: “As palavras néo elo apenas ar soprado, Blas tém significado”. E continua: "Nisto as palavras pparecem diferir do canto dos passaros", Portanto, a resposta mais trivial para a nossa pergunta ¢: estudar SemAntica importa porcue aspalavrase sentengas de uma linguatém significado, Ora, refletir 1. Veriian (1982) 2. Ver os comentérios de Bach (1988) de Chierchia & MeConnell-Ginst (41998). 2 FF GenteanEwto BO ] Bla 6 verdadeira apenas na tiltima situagao. E a sontenga em (2)? Essa é uma sentenga complicada, porque, como veremos no capitulo 4, o conectivo ‘ou’ pode receber duas interpretagées: uma leitura inclusiva e uma letra exclusiva. A leitura inclusiva, parafraseada em linguagem jurfdica por'e/ou', 4, na verdade, a tinica leitura possivel, pragmaticaments; afinal nos: ‘um tanto irracional admitir que alguém, para se aposen- "tar, tivesse quoter ou 65anos de idade ou90 de trabalho. Em outros ‘termas, se uma pessoa tivesse 65 anos de idade e 30 de trabalho, centao ela ndo poderia se aposentar porque estaria preenchendo as duas condiges simultaneamente. Suponhamos, pois, que, por razdes pracméticas, a interpre- tagdo do ‘ou’ na sentenga em (2) 6"e/ou'-Nesse cazo, nossa tabela de situacbes de aposentadria é bem diferente da tabela anterior: ao | Ro ENE | Taco mopege | remagee [ amee . |<) <) l saiu, Nossa maquina seméntica deve fomecer essas duas in- terpretagées. Ese ela trabalhar com uma Semantica Discursiva, 23 {sto 6, uma SemAntica que leve em consideracao sequéncias do sentengas,' deverd ser capaz de escolher entre as duas intor- pretagdes tendo em vista o contexto discursivo em que a sen- tenga ocorre. Imagine, por exemplo, que a sentenca em (1) soja proferida como resposta & pergunta: (2) Onde esta o Pedro? Nesse contexto, nossa mquina deve impedir que a inter- pretagao em (18) seja acionada. Como é que isso acontece? Para construir essa maquina, o semanticista deve, por- tanto, explicar por que o falante interpreta desse modo endo de outro. Por que & que a sentenca om (1) 6 ambigua — isto 6, tem dues interpretages —, a0 passo que a sentenga em (3) 96 admite uma (inica interpretagéo? (3) Ble disse que Joao saiu. Nesse caso, ‘ele’ e ‘Joao’ nao podem ser co-referenciais, {isto 6, indicar 0 mesmo indivfduo no mundo. Em outros tenmos, 0 individue que disse que Joao saiu nao pode ser 0 Joao. Que regra explica que a sentenca em (1) tenha duas interpretagies ‘e que a sentenca om (3) admita apenas uma tinica? Que tipo de regra ou regras regem esse comportamento? Essas obviamente nao so questées simples, © 0 semanticista tem que enfrenté- las, poraueé a explicitacéo dessas regras que permitiré que sua méquina funcione. Como dissemos, o objetivo do somanticistaé mimetizar a capacidade seméntica de um falante, portanto sua maquina deve nao apenas fornecer interprotagdes adequadas para qual- quer sentenga da lingua que esta sendo estudada, mas também TL Vor Kamp e Reyle (1993) para uma introdusio a0 concaite de Seméntica Discuroiva, ‘ter uma plausibilidade pstcolégica. Imagine que o semanticista tenha construido uma maquina que seja empiricamente ade- quada porque fornece para uma sentenga qualquer da lingua- objeto uma interpretagéo, mas seja montada a partir de uma lista imensa de sentencas da lingua. Para isso, essa maquina precisa de uma meméria enorme. Nesse caso, o modelo pode funcionar muito bem, mas ele ndo tem validade psicolégica, Porque sabemos que a meméria humana néo comporta uma infinidade de sentengas. Sabemos, também, que o ser humano aprende uma lingua muito répido e produz sentengas que ele nunca ouviu antes. Esses fatos inviabilizam a hipstese de que nosso conhecimento semantico seja uma lista de sentencas. O modelo do semanticista deve, se o objetivo mimetizar anossa capacidade para atribuir significado a sentencas de nossa lin- ‘gua, responder & plausibilidade psicolégica Seria ainda preciso acrescentar que, ao construir seu modelo semantico, o semanticista deve evitar hipéteses ad hoc. Ele deve evitar criar uma hipétese que explique um fenémeno particular, sem conexéo com as outras hipéteses domodelo que ele est construindo. Quanto maior for o nimero de hipéteses isoladas, menos 0 seu modelo explica a capacidade do falante, porque nao é possivel que um falante, para interpretar, lance mao de regras isoladas, que sé funcionem para um determinado fendmeno. Nesse sentido, um modelo deve ser econémico: ex- plicar 0 maior nimero de fendmenos com um menor namero de hipéteses “avulsas”, isoladas. Essa 6 uma propriedade impres- Giudivel se nosso objetivo for comparar dois modelos to6ricos. Imagine que dois grupos de semanticistas tenham construido duas méquinas seménticas. Elas se comportam de maneira absolutamente idéntica com relagao aos dados empiricos, por- ‘ue provéom as mesmas interpretagdes, © s30 igualmente ade- ‘quadas, pois excluem sentengas inaceitaveis. Nesse caso, como afirmar que uma delas é melhor? Aquela que for mais econémi- ca, cuja construcdo depender de um numero menor de “instru- ‘g608", seré a melhor. Como no estaremos comparando teorias, ‘esse aspecto nao sera levado em consideracao neste livro. A Somantica Formal na Linguistica contemporénea No momento atual, a reflexéo sobre o significado, a0 menos na Linguistica, ndo pode ser caracterizada como mono- Iitica. Hé varias maneiras cientificas de se estudar 0 significado, endo parece haver ainda argumentos suficientes para demons- ‘rar que uma dessas altemativas soja a melhor teoricamente. Se tomarmes 0 caso brasileiro atual, podemos detectar, com razod- vel seguranga, trés grandes orientacSes tesricas na Semaintica: ‘a Semantica Argumentativa, a Seméntica Cognitiva e a Seman- tica Formal. Excluo dessa lista a Semidtica porque 6 possivel ‘axgumentar que ela se constitui numa disciplina & parte.” ‘A Semantica Argumentativa funda-sena Franga,nadécada de 70, com o trabalho de Osvale| Ducrot (1972, entre outros) sobre os operadores argumentativos. Sua principal desavenga com a ‘SemAntica Formal centra-sena questo da referéncia. A Seméntica ‘Argumentativa acredita que usamos a linguagem néo para falar algo sobre o mundo, mas para convencermos o nosso interlocutor ‘entrar no nosso jogo argumentativo. Nessa perspective, n&o intereasa se um proferimento 6 falso ou verdadetro, interessa se ele serve aos propésitos do convencimento. Desfazem-se, assim, ‘as fronteiras entre a Somantica ¢ a Pragmitica. £ por isso que, na SemAntica Argumentativa, néo é possivel investigar a forma se- ‘mantica que se mantém inalterada nos vérios usos que fazomos dela. Na anélise argumentative, uma sentenga como ‘Joao no ‘comeupouce'6 diferente dependendo dos encadleamnentosargumen- tativos em que ela se situa. A Somantica Formal descreve a forma semantica dessa sentenca, recuperando a informagéo linguistica que se mantém constanto nesses varios encadeamentos." ‘Pera uma discussdo mais datelhada sobre eases trés modelos tobricos da Semdatics, ver Pos do Oliveira (1996) 3, Oleltor pode comperar # andlise do ‘no e6...mas também, foita por A Semantica Cognitiva surge na década de 80, com a publicagdo de Metaphors we live by, de Goorge Lakoff e Marie Johnson, em franca oposicéo a abordagem gerativa na sintaxo @ & abordagem formal na semantica. Uma diferenca marcante entre a abordagem formal ¢ a cognitiva esta no conceito de pensamento. Para a soméntica Formel, o pensamento é propo- “sicional, ele funciona como uma linguagem. A Seméntica Cog- nitiva vé 0 pensamento como estruturado por esquemes de imagens, que se manifestam na nossa fala ordinéria. Nessa porspectiva, a linguagem ordinéia, nossas agées © nosso pen- ‘samento so estruturados, om sua maior parte, por metéforas, mapeamentos entre dominios conceituais distintos. Uma sen- ‘tenga como ‘Jodo gastou dois dias neste trabalho é metaférice, porque ela é uma manifestacao de um mapa cognitive que entende o tempo como algo que consumimos, que gastamos. Esse mapa tem como dom{nio-fonte nossas experiéncias compo- reas com objetos concretos que so consumicios. O significado 6, portanto, motivado. Além disso, nessa perspectiva, nao hé uma faculdade da linguagem, um médulo responsével pela interpretagdo das sentencas de uma lingua. Muito mais deveria ser dito se nossa intengéo fosse uma pesquise comparativa que buscasse determinar qual das teo- tas seménticas é a melhor, mas nao esse nosso objetivo. Queremos, antes, apresentar o leitor & Seméntica Formal A roflexéo formal tam uma longa trajetéria cujo inicio esta na Grécia antiga com os estucos sobre o silogisme realizados por _Ansisteles — 0 exemplo classico de silogismo &: "Todo horiem é mortal. Joao é homem. Logo, Joo ¢ mortal” E nos titimos anes conhecou uma orescente expanséo, ‘ue tiveram resultados om empregos tecnolégicos (méquinas do tradugao, corretores sutométicos...), que, por sua ver, rever- “Guimardes (1985), na perepectiva argumentativa & descrigto formal apresontada por Tar (3067). a teram em mais pesquisas. Esta explosao dos estudos formais permitiu um crescimento espantoso de explicagdes sobre a seméntica das linguas naturais e, consequentemente, um cres- cente desenvolvimento de intimoras pesquisa. Esta, aliés, 6 ‘uma das razéos para quo este livro soja apenas uma pequena introdugdo: 0 campo da Seméntica Formal é, hoje em dia, im- pressionantemente vasto e heterogénoo. Falamos em Seménti- ‘ca Formal como se fosse um vinico modelo para nos referirmos auma maneira de descrever 0 dado linguistico, mas ela engloba diferentes modos, nem sempre compativeis, de realizar essa descrigio. Apenas para citar um exemplo, a SemAntica de Situa- ‘gaoesté em compaticfo com abordagens exclusivamente exten- sionais do significado.‘ A diferenca dos demais modelos, a Seméntica Formal entende que as relagdes de significado devem ser descritos formalmente. Vejamos 0 que isso quer dizer. Aristételes mos- tra néo apenas que a sentenga em (c) é dedutivel da verdede das sentoncas em (a) ¢ (b), mas que se mantivermos as relagdes seménticas estabelecidas nessas sentencas, o racio- “einlo serd sempre valido, independentemente do significado das palavras. (@a. Todo ser humano é mortal. b. Jodo 6 homem. & Jodo & mortal, Se as sentencas em (a) 6 om (b) so verdadeiras, entao, necessariamente a sentenga em (c) é verdadoira."E possivel que Para @ Semintica do Sttuagéo, ver Barwise @ Perry (1983), para uma ‘abordagem tetalmanto extensional, vor Higginbotham (1985) 5, Como veromos ao longo desta introdugio, a Semintica Formal uiliza © ‘conceita de verdade em sua descrigao do significado. Osignitcadode uma ‘sontenge pode ser epreendide pola oxplcitagto das condigées em gut sentenge é verdadeira. Voltaremos a esse questo. hhaja coisas que sejam mortais 6 ndo sejam humanas (as plantas, por exemplo), e coisas que nao sejamnem mortais nem humanas (0s deuses). Mas, se algo é humano, entao ele é mortal. Aristé- teles mostra que que importa 6 a relagdo entre os conceites, a estrutura do silogismo. Por isso, trata-se de uma relagéo formal. ‘Veja que a mesma estrutura esté presente no seguinte conjunto de senteng: ()a. Todos os cachortos so chatos. 6, Munique & uma cachorra, ¢ Munique & chata, Se as sentengas em (a) e (b) so verdadeiras, entéo a sentenga em (c) é verdadeira, com certeza. (ue relagac formal esté presente nos dois conjuntos de sentengas? Repare que Joio e Munique s4o membros de um _sonjunto, o dos homens e o dos cachorros, respectivamente, “Esse conjuunto, por sua vez, est contido num outro conjunto: © dos mortais © 0 dos chatos, respectivamente. Graficamente, obtemos o seguinte desenho: Conjunto dos mortaisichatos conjunto dos humanosicachoros rmembro €6 conjunto dos humarosfeachoros (Gedo. Munique, espectvarente) Podemos mostrar essa relagao entre conceitos por meio do lotras, que representam uma sentenga qualquer ou um indi viduo qualquer. Vamos usar a letra miniscula x para repre- ‘sentar um elemento qualquer, que pertence a um conjunto H, uum conjunto qualquer. Vamos precisar de outra letra, digamos ‘M, para representar um outro conjunto qualquer, que contém o ‘conjunto HI, Neste caso, se x portence a He H est contido no conjunto M, entdo x pertence a M. f légico, nao? $e vooé ainda lembra de teoria de conjuntos, podemos representar essa rela- go assim: sexe He HM, entéo xe M. Essa “equagéo" esta no lugar de intimeras possibilidades: se Jodo pertence ao con- junto dos humanos, e se 0 conjunto dos humanos esta contido zno conjunto dos mortais, entao Joao pertence ao conjunto dos mortais; se Munique pertence ac conjunto dos cachorros, ese 0 conjunte des cachorros esta contido no conjunto dos chatos, ‘ontéo Munique com certeza pertence ao conjunto dos chatos: ¢ assim sucossivamente. Vocé pode multiplicar os exemplos & vontade, Eis uma descrigao formal! Néo dificil ver nesse empreendimento um carater universalista: a relagéo descrita acima independé da lingua que falamos, Bla vale para Aristéte- les falando grego antigo no século V a.C. e para qualquer um de nés, cada um falendo uma lingua distinta. Uma breve histéria Se as raizes da reflex formal remontam a Aristételea,o projeto de estudarmos a semantice das linguas naturais a partir {Go uma perspectiva formal é bastante recente, Sua insergao na linguistica esté associada ao aparecimento do projeto da Gra- mética Gerativa, iniciado por Chomsky no final da década de 50 eas propostas na filosofiaanalitica para a descricéo daslinguas, aturais, em particular aos trabalhos de Richard Montaguo, acreditaram que as linguas naturals eram por demais vagas € amibiguas para poderem ser descritas numa linguagem formal E essa a ctenga que encontramos em Alfred Tarski (1944), por x, vg | Muitos filésofos ¢ légicos, durante boa parte do século XX, S exemplo, que, na década de 30, mostra quo as linguas natursis, so somanticamente abertas, isto 6, elas permitem a criagao de paradoxes, néo sendo, portanto, suscetivels de uma descrigéo Jégica. Durante boa parte do século XX, naohhavia na Linguistica ‘tampouco espago para pensarmos nas linguas naturais como sistemas légicos. Basta lembrarmos que o século XX foi estru- | turatista. A publicagéo de Syntactic Structures, de Noam Chomelxy, em 1987, pode ser considerada como o marco que permite explorer a tese de que uma ingua natural, mais especificamente a sua sintaxe, comporta-se como umsistema formal. Para o autor, essa afirmacéo se traduz na compreensac de que a sintaxe de uma lingua natural é ‘um sistema de regras rocursivas, isto 6, regras que podem sor aplicadas quantas vezesdasojarmos. Até esse momento, devido,em grando parte, & influéncia do estruturalismo, as linguas naturais ‘exam descritas como um conjunto finito de sentencas. E essa hipé- tese que Chomsky vai mostrar inadequada empiricamente, porque ‘Produzimos ¢ interpretamos sentengas que nunca ouvimos antes. ‘Somos criativos, Essa constatagao encontra uma explicacéo na tese do sistema formal as linguas naturais néo so uma lista de senten- as — como postulava o estruturalismo (tanto o francés quanto 0 ‘americano), mas um conjunto de regras que se aplica recursivamen- te, podendo, portanto, gerar infinitas sentengas. Vamos explorar essa ideia no capitulo 3 Chomsky, no entento, falava sobre a sintaxe das linguas naturais. Sua posigo com relacdo & seméntica 6 menos clara, Se a semantica se referir a relagées internas (formais) entre elementos, entdo ela é parte da sintaxe; em outros termos, ela 6 um sistema recursivo de regras. Mas se por seméntica enten- dermos 0 estudo do significado em sua acepgo robusta, como sinnimo de contetido, entéo Chomsky reproduz a tradigao de Bloomfield e Harris de critica ao estudo cientifico do significado. 0 estudo do significado, se entendido como a relagio entre a¢ palavras e o mundo, nao pode ser cientifico, porque nao ha wma oi natural (causal) que estabeloga uma ligagao nocesséria entre as palavras e as coisas, E mesmo com relagdo & semantica-sintaxe, a posicéo de Chomsky é de que as linguas naturais néo séo sistemas formais no sentido em que o légico entende sistemas formais: as linguas naturais nao so sistemas de deducao. Chomsky separa o mé- dulo da linguagom do médulo das linguas artifciais, entre elas © sistema légico-formal. Um filésofo que discordou dessa posi- go foi Richard Montague (1974). Em sous eseritos, que datam_ do final dos anos 60, ele afirma que as linguas naturais podem ser tratadas da mesma maneira que as linguagens formais dos l6gicos. f famosa sua afirmagao de que néo ha diferenga entre ‘aslinguagens formais as linguas naturais: “Rejeitoaafirmagao de que existe uma diferenga tedrica entre as linguas naturais © ‘as formais”.° Ao dar esse passo, Montague néo apenas permite ‘que oconhecimento formal sobre as linguas artificias enaturais, acumulado desde Aristételes, seja transportado para a pesqui- ‘sasobre linguas naturais, mas, sobretudo, afirma que as linguas naturais so (em alguma medida) sistemas légicos. A jungéo desses duas abordagens, 0 gerativismo ¢ a ‘gramética categorial de Montague, se deu, na década de 70, elas méos de Barbara Partee que pode ser considerada a mée da seméntica formal das Inguas naturais. Delimitando o objeto de estudos do semanticista ‘Seméntica nao 6 Metafisica Afirmar que o semanticista 6 um cientista resolve, como dissemos, parte da nossa definigéo de suattarefa. Na verdade, essa “Tradugée minha. No original: “T reject the contention that an important ‘heorotical difference aiste botween formal and natwallanguages” (1974: 188). ‘afimagéo apenas restringe 0 seu modo de atuagio, obrigando-oa fazer hipéteses sobre o significado quo sejam empiricamente observaveis, que tenham um certo grau de previsibilidade e que sejam econémicas. Mas essas restrigées sao ainda insuficientes, ‘Porque, como qualquer cientista, o semnanticista deve delimitar claramente 0 seu objeto de estudos. A tarefa do semanticista, afirmamos, é descrever e explicar o conhecimento que um falante tem sobre o significado das sentengas de sua lingua, sua intuigéo semantica. Nada dissemos, no entanto, sobre o que “significado” significa. Entender o que’é o significado tem sido lugar de disputa ‘entre os estudiosos: filésofos, semanticistas, légicos, psicélo- 190s" discordam sobre o que é o significado, e alguns autores, ‘como Davidson (1984), preferem se ver livres desse conceito, ‘buscando construir uma teoria do significado sem utilizélo. H4 autores que créem que o significado 6 uma relagéo causal entre uum objeto no mundo e um dado na mente. Por exempio, quando vejo uma vaca, aciona-se na minha mente © conceito vaca. Outros créem que o signiticado 6 fruto de uma convengao entre 08 individuos que compdem um grupo social. Néo vamos aqui nos estender sobre essa questo, Por agora, basta mostrarmos que o significado para 0 se manticista ndo é exatamente aquele do senso comum. E por isso «que livos de introdugéo a seméntica t8m um comego cléssico: eles se iniciam abordando o problema do significado de ‘significado’.® uso técnico de significado que o semanticista faz nao recobre todas as ocorréncias de ‘significacio’ na linguagem ordinéria. E se, ‘como dissemos, umn modelo seméntico deve ser consistente,entao temos que saber em que sentido o termo esté sendo usadio para o mantermos constante. ‘Vejamos alguns exemplos de uso de significado: (© loiter intereasado pode ao inciar londo © cldssico Ogden @ Richards (1876) e, mais recontomense, Putnam (1975). 8. Ver Lyons (197) e Rompsen (1960), entv outros, {6) Qual o significado da cor azul? {7) Qual o significado da palavra ‘azul'? {8) Qual o significado deste ato do governo? (9) O que significa ter febre alta? {10) © que significa a expresséo ‘ter uma casa’? (11) © que significa ter uma casa? Quais das sentengas acima, voc8 acredita, descrevem melhor o objeto de estudos do semanticista? Se vocé respondeu ‘KA. @)e (12), acertou, muito provavelmente utilizando a sua intuigao © 0 fato do que ou jé havia dito que o semanticista se preocupa com 0 significado de sentengas © palavras. Mas possivel justificar essa escolha. Note que (6) (7) constituem grupos distintos de perguntas, porque as respondemos diferentemen- te. Considere a primeira pergunta; ela indaga sobre o significa- do da cor azul, 0 significado de algo no mundo, Se ela for proferida no contexto de uma aula sobre a técnica Feng Shui, a resposta sera “o azul significa espiritualidade, porque ele é um elemento terra e est4 associado ao hexagrame Ken do I-Ching, ‘@montanha”. Se a pergunta em (6) estiver numa provade fisica, seu intérprete deve fomecer uma descrigéo cientifica de azul: cor da radiagéo eletromagnética de comprimento de onda com- preendido, aproximadamente, entre 480 ¢ 510 milimicrons. Cer- ‘tamente, um especialista poderia dar uma resposta ainda mais sofisticada. De maneira bastante distinta, as duas respostas remetem a uma metafisica, isto 6, uma teoria sobre como a realidade 6, sobre o que é 0 azul como fenémeno no mundo. A pergunta em (7), no entanto, versa sobre um espectro de respostas bem diferente; ela nos questiona sobre o significa- do da palavra ‘azul’ em uma dada lingua; no caso, no portugués do Brasil, Para responder a ela, poderiamos apontar uma amos- trade azul no mundo: a palavra azul significa + uma amostra de azul no mundo ‘Como veremos no préximo capitulo, estamos aqui diante da intuigao bésica das chamadas teorias referenciais do signi- ficado: 0 significado de uma palavra esté relacionado ao objeto no mundo, que é apontado, “dedado” (), pela palavra. Essa é a propriedade da referencialidade qué"és linguas naturais tém, ela nos permite “aleangar” objetos no mundo. Outra resposta possivel seria dar o significado da palavra ‘azul’, quer por um dicionério, quer pela tradugo para uma outra Iingua que o falante conhece. Imagine que a pergunta em (7) seja proferida por um americano, que jé aprendeu a formula “qual o significado da palavra___?”. Uma resposta possivel e informativa seria ‘biue’. Nesse caso, estamos construindo uma espécie de dicionario bilingue entre o portugués brasileiro © 0 inglés americano. Podemos identificar aqui uma segunda ma- neira de fazer seméntica, que tem sido comumente adotada por teorias_mentalistas do significado. Na abordagem mentelista cldssica, traduzimos de uma lingua extema para uma lingua intema, isto 6, tracuzimes a ingua externa para uma ropro- ‘sentagdo intemalizada que temos do significado das sentengas, para uma lingua mental. £ possivel também assumir a hipétese do que a tarefa do semanticista seja construir uma maquina de ‘traducdo sem, no entanto, assumir os pressupostos da teoria mentalista, Nessa interpretagao instrumental, o semanticista utiliza omodelo de tradugio para deaerover uma lingua utilizan- do outra lingua que ele conhece intuitivamente, por exemplo, uma linguagem légica, 0 célculo de predicados, Seguindo quer o caminho da tradugao quer o da roferencialidade — caminhos que, aliés, néo sao incompa- tiveis —, 6 preciso fazer a diferenga entre a pergunta em (7), que versa sobre o significado de uma palavra numa lingua, © a pergunta em (6), em que se indaga sobre o significado do “objeto” azul. Ao nos colocarmos a pergunta em (7), fazemos ‘| Seméntica; com a pergunta em (6), fazemos Metafisica. Repare ‘que as sentengas em (8) e (9) se aproximam da sentengaem (6), porque também perguntam sobre o que significa um certo fendmeno ou evento no mundo: ter febre alta significa doenca (© evento ter febre 6 causado por algum distirbio fisico); 0 ato do governo significa o fechamento das universidades publicas. Eo parem (10) ¢ (11)? A pergunta om (10) s6 admite um tipo de resposta: um esclarecimento sobre 0 significado do sintagma verbal ‘ter uma casa’. Se utilizamos o recurso da ‘tradugéo, podemos arriscar algo como: ‘ter uma casa’ significa tera posse legal de uma residéncia. A pergunta em (11) admite ‘um espectro muito maior de respostas, dependendo da situago om que ela é usada, “Deixar de pagar aluguel” pode ser uma resposta para a pergunta em (11), mas nao para a pergunta em (10). Em (11), 0 falante supée que seu intérprete saiba o signifi- cado das palavras que ele esta usando e esté perguntando o significado de um evento no mundo. Em (10), ofalante pretende que seu intérprete perceba que ele nao sabe 0 significado das palavras © que o esclarega precisamente sobre esse aspecto. E ‘essa tltima apostura do semanticista: se ale estiver analisando sua prépria lingua, ele faz de conta que néo sabe o significado das palavras e sentencas daquela lingua que esta analisando — a chamada lingua-objeto — e se prope a constnuir uma ‘méquina que fornega uma interpretacao para qualquer sentenca dessa lingua desconhecida na lingua que ele, semanticista, conhece, a metalinguagem. O semanticista éum estrangeiro de sua propria lingua. ee Uso e mengso ‘Voc certamonte jé é capaz de dizer em que as sentences abaixo so diferentes. {12) Qual o significado da vida? (13) Qual o significado de ‘vide"? 36 (© exemplo recupera a estéria (ou ansdota) de que Austin’ teria dado um curso em Oxford, eujo toma era algo semelhante & sentenga em (13), “What's the meaning of ‘ife’?". Para sua surpresa, pola primeira vez em sua carreira académica, a sua sala de aulas estavalotada Foi aos poucos que Austin entendeu que muitos na sua audiéncia estavam ali para ouvir uma respos- ta A questdo om (12), Em inglés a situagéo é ainda pior, porque acadeia sonora é exatamente a mesma: “What's the meaning of 1ife?”. Note que no PB a diferenca aparece superficialmente na T distingdo entre ‘da vida’ e ‘de ‘vida”. Austin inquiria sobre 0 significado da palavra ‘vida’; um bom diciondrio deveria forne- ‘cer uma resposta ¢ ele. Jéa sua audiéncia fazia uma pergunta Lmetatisica: 0 que 6 a vida. Ora, essa, evidentemente, é uma ‘Pergunta cuja resposta, em ultima ineténcia, 6 o siléncio (ou 0 mistério, para alguns), mas que nao pode ser respondida pela semAntica porque é uma pergumta sobre o significado do mundo. © semanticista ndo tem nada a dizer sobre essa questéo diffcel. Sua tarefa é muito mais simples (!); como cientista da Inguagem, ele esté sempre se perguntando sobre o significado linguistico que uma palavra ou uma sentenga tem. As questées em (12), assim como aquelas em (6), (8), (9) e (21), estdo, portanto, fora do ambito da seméntica e mesmo da pragmética. Essa diferenga fica ainda mais clara se langamos mao de ‘uma distincéo importante: a distingo entre uso e mengao. E muito provavel que essa diferenga faga parte do seu conheci- mento seméntico, pois voc8 bem sabe, embora posse ter pro- blemas para explicitar, quando um falante esté usando uma palavra e quando ele esté moncionando essa mesma palavra. Nocasodas sentencas em (12) ¢em (13), essa diferenca aparece marcada na presenga versus auséncia do artigo definido acom- ‘Austin foi © flésofo da tingusgem que introduzia os cancaitos de ator Iocuctonrios,locuciondniose perlocuconsrios, que deram origem ateoria ppragmética doe atoo de fala. Ver Auatin (1962); acbre © autor, ver Rajacopelen (3990), a7 panhando a preposigdo. A palavra ‘vida’ esta sendo mencionada na sentenga em (13) e usada na sentenga em (12). Nonossodia-a-dia, vivemos situagées em que as palavras so mencionadas. Imagine a situagao de uma mae dirigindo 0 carro com seu filho no banco de trés. Querendo comegar uma conversa, a mae diz: “Fala alguma coisa”; eo filho responde: “alguma coisa”. O que 6 que esté acontecendo? Certamente, ao ‘usar o sintagma nominal ‘alguma coisa’, a mae estava pedindo que ele com ela. O filho a interpreta —talvez como uma maneira do dizer que ele nao estd querendo conversa, talvez para brincar cor ela — como se ela estivesse mencionando o sintagma nominal: “alguma coisa”. # porisso que ele diz: “alguma coisa", obedecendo @ ordem da mie. Outro exemplo da diferenca entre uso e mengao é quando as mes proferem para seus filhos: "Diz, filhinho, ‘obrigado' pro mogo”, Negse caso, as maes mencionam a palavra ‘obrigado’ @ ‘querem que 0s filhos usem a palavra. Blas ndo estéo— aomenos néo diretamente — performando o ato de agradecer. Jé ao usarmos “obrigada", estamos agradecendo, Esses exemplos parecem mostrar que a distingéo entre usar e mencionar é intuitiva. Quando mencionamos, queremos falar sobre a pala- ‘vra, o sintagma, a sentenga destacada. Por exemplo, em ‘quan- tas silabas tem a palavra ‘palavra'?’ temos um uso da palavra ‘palavra’ ¢ uma mengao da palavra ‘palavra’. ‘Quando mencionamos uma palavra ou sentenga, a desta- camos do texto por meio de algum recurso grafico, em geral 0 italico ou as aspas simples. Na oralidade, é possivel que heja. uma marcacdo entoacional, As sentengas analisadas neste livro estardo todas sendo mencionadas endo usadas, precisamente porque o semanticista quer descrever o significado das palavras © sentengas de uma lingua que ele no estA usando, mas mencionando. A diferenga é sutil, mas importante, porque ela nos pemnite levar adiante a tarefa de construir um modelo seméntico consistente, Antes, porém, de justificar essa afirma- gé0, consideremos a sentenca a seguir: (14) 0 Pelé ama mulheres." A tarefa do semanticista é esclarecer o significado que um falante atribui as palavras que compéem a sentenca em (14); o somanticista nao esta de fato usando a sentenca acima. E porque no aestamos usando queoleitor deste livro sabe quenaoestamos e fato afimando que Pelé tem uma relagao de amor com as mulheres; nao estamos nos comprometendo com essa afirmagao, estamos apenas indagando sobre o significado da sentence. Se no fosse assim, entdo Pelé poderia nos processar por calinia, Um falante, ao usar ‘O Pelé ama mulheres’, tem, além da intencao de que o sou intérprete atribua as suas palavras 0 sentido que o ‘préprio falante Ihes atribui (sua intencao semAntica), também utras intengées, entre olas a de que seu proferimento seja sma evidéncia de que ele acredita que Pelé de fato ama mulheres. ‘Bvidentemente, akguém que usa a sontonga acima pode tor vérias ‘outras intengées além da de afirmar o que a sontonga diz; ele pode, por exemplo, ter a intengio de quo o seu intéxprete desista do tentar conquistar Pelé. Determinar essas e outras intengées nio & mais tarefa da semantica. Cabe & pragmética descrever os usos da linguagem. A semAntica, mais modesta {!), quer falar sobre significado da sentenga cue se compée de ‘o’, ‘Pelé’, ‘ama’, ‘as’ e ‘mulheres’. Voltaremos adiante aos limites entre semintica © pragmética, Lingua-objeto e metalinguagem Soparar uso de mengao é um mecanismo engenhoso que permite, ao mesmo tempo, separarmos nivels de lingua. Em special permite separarmos a lingua que desejamos descraver, ‘achamada lingua-objeto, da lingua que utilizamos para explicar 40. Quando citarmos as sertengas destacando-as do corpo do texto no “tilizaremos aspae simples. A presenca da numaracio dos exemplos J fodiea que se trata de ums mangio. No corpo do texto, optanas pela ‘agpas eimplos. ‘essa Uingue-objeto, a chamada metalinguagem. J4 dissemos ‘que uma maneira de fazer semantica é construir uma espécie T’ de maquina de tradugéo. Essa méquina toma como dado exter- no sentencas de uma lingua que queremos descrever, a lingua objeto, e zetornar a sua interpretagéo numa outra lingua, uma lingua que controlamos melhor — como océlculo de predicados. Essa segunda lingua, na qual seréo estabelecidas as condigoes de | imtorpretagdo da sensenga da lingua-objto, éa metalinguager. Essa distingao foi criada por Alfred Tarski com o intuito do eliminar de seu empreendimento sentengas paradoxais, ‘como a sentenga abaixo:"” (15) A sentenga em (15) do capitulo 1 do livro Seméntica Formal: Uma Breve Introdugéo ¢ falsa. A sentenga usa e menciona a prépria sentenga em (15), de ‘modo que, se ela é falsa, ela 6 verdadeira; e, se cla é verdadeira, entdo ola 6 falsa. Experimente! Por isso ela gera paradoxo. Tarski ‘no acreditava que seria possivel descrever logicamente as lin- guas naturais precisamente porque olas s4o “semanticamente abertas”, isto 6, elas criam paradoxos como esse.” Se temos a nossa disposigao a disting&o entre uso e mengao, entdo podemos afirmar que a sentenga (16), que pode soar muito estranha quando lida pela primeira vez, pode ser a base para uma teoria do significado: (16) ‘aneve é branca’ é verdadeira se e somenteseaneve Sbranca. 1 Ver Taree (1940. 12. Por camiahos disintos, tanto Davidson quanto Montague se contrapdemn a Tarski, porque eles acreditam que possivel empreender uma descrigso formal das inguas nacurais. © antecedente, o que esta A esquerda, é uma mengéo, daf a sentenca aparecer entre aspas simples. Trata-se, pois, da Hngua que queremos descrever, a lingua-objeto. Ao explicitar que a sentenga mencionada significa que a neve é branca no consequente, o que esta @ direita, em negrito, o semanticista est usando uma cutra lingua, uma lingua que ele, semanticista, ‘pode controlar ou cujo significado ele sabe intuitivamente, para fomecer as condigbes de interpretagéo da sentenga na lingue- objeto, Trata-se da metalinguagem. Agora deve estar claro por ue essa sentonga é informativa, mesmo que ela parega dizer 0 Sbvio: ela traduz a lingua-objeto, externa, para a minha lingua. Ao executar esse movimento, entendoo significado da sentenga ue ofalante diz, Se vocé ainda ndo sentiu a forga dessa estéria, Dbasta imaginar que a lingua mencionada é uma lingua que voc8 desconhece: (IT) ‘Het sneuweenist wis’ 6 verdadeira em holandés se @ somente se aneve 6 branca. Se a lingua-objeto for o holandés, e a metalinguagem, a linguagem que usamos para descrever 0 significado da lingua mencionada, o PB, entao aprendemos algo quando lemos/ouvi- mos a sentenga acima, porque ela reproduz na metalinguagem as condigdes de verdade da sentenca da lingua-objeto. Bis af ‘um modelo para nossa miquina de tradugao. ‘Seméntica e Pragmética ‘A distingSo entre uso e mengao pode nos ajudar a com- render outra distingdo classica nos estudos do significado: aquela entre seméntica ¢ pragmatica. O trecho a seguir, uma assagem famosa de Rudolf Camap, formula a distingao entre sintaxe, semantica e pragmética: | | ‘Se em uma investiga € fit referencia explicita wo locator, em termos mais geais, aos vilizadores da lingua, ent tl investigao pertence ao campo da pragma (e neste cso fetareferécia também 08 significado ou no no faz aes dferaga para eta clasifica io), Se faze abstr do utlizaor da lngnaeanalisemossomente as exprsstesc seas signiticades, estamos no campo da semitice. Es, Tiralimene, faemos absraclo também dos signifcados anaisamos ‘apenas as relagde ene expresses, estamos no campo da sintaxe (gia) (Camap, 1942, 94° Podemos dizer que o estudo sobre o uso efetivo da lingua- gem cabe & pragmatica, ao passo que & soméntica caberia a descrigéo da sentenga isolada de sou contaxto de uso, fazendo abstracao do falante. A semAntica analisa a sentenga mencio- nada endo a usada, Essa distingao classica 6 muito util, princi- palmente quando comegamos a refletir sobre os limites entre ‘esas areas, porque ela revela bem uma das tarefas da seman- tica: descrever 0 significado das sentencas de uma lingua. Analisemos a sentenga abaixo: (18) Este casaco 6 bonito. ‘Uma das tarefas do semanticista 6 fomecer, na sua meta- linguagem, as condicbes em que a sentenga 6 verdadoira, sem fazer referéncia eo ao efotive deaaa zentonga. Vamos utiliser 0 proprio PB como metalinguagem. Podemos dizer que asentenca ‘Este casaco é bonito’ éverdadeira se e somente se o objeto que © falante esté apontando é um casaco ¢ se esse casaco possui 1 propriedade de ser bonito. Um falante pode usar essa senten- a, om diversas situagbes distintas e pode fazer muitas coisas com ola, ter diferentes intengées. Imagine uma situagao em que sama nee 18. Apu Dasoal (1982) aw a uum falante profere ‘Este casaco 6 bonito’ ironicamente. Imagine, agora, essa mesma sentenca proferida em frente a uma loja de casacos de pole pela esposa de um empresério que utiliza frequentemente 0 recurso do ato de fala indireto para pedir coisas ao maridinho. Séo iniimeros os usos possiveis dessa sentenga. A forma semaatica permanece, no entanto, a mesma fem todos esses casos, porque ela recupera o significado da sentenca, que &, por sua vee, consiru{do a partir do significado das palavras que a compoem: ‘este’, ‘casaco’, 'é' e “bonito! Esses outros, "significados’, que remetem & intengéo do falante para além do sua intengao seméntica, para além do que a sentenca significa, so normalmente objeto de estudo da prag- ‘mitica e so comumente chamados de “significado do falante’, ara diferenciar do “significado da sentenca”, ima Separar a seméntica da pragmética a partir da ideia de que a sernintica descreve o significado “fora de uso” e a prag- ‘maatica, 0 significado em uso, nao 6, no entanto, de todo adequa- do, embora seja pedagogicamente eficiente. Por isso, muitos manuais de introducdo separam esas éxeas, colocando, de tm lado, 0 estudo do significado da sentenga fora de seu uso, ¢, de outro, a sentenga em uso. Mobilizam, para isso, a ideia de contexto. Nessa perspectiva, a soméntica néo trabalha com 0 contexto de proferiments da sentenca. Embora essa distingao seja itil, ela pode ser enganosa,Gorqud ha elementos da son- tenga cujas interpretagSes dependem de informagdes contex- tuais, mas que nem por isso podom ser clasificados do Pragmidticos, em especial dado 0 carater sistemanico de sua interpretagao. # esse 0 caso dos déitices, ou também das cha- madas expressées referenciais.”* A descrigéo do significado da sentenga acima depende do significado do sintagma ‘este ca- aco’, mas, para interpretarmos esse sintagma, precisamos saber para que ofalante esté apontando, 0 significado de ‘este’. ‘Este’ pega ostensivamente um objeto na situacéo de fala. 14. Sobre 08 dBitios, vor Laud (1979). a Eivwo : TEM FO Assim, 6 apenas com referéncia a um contexto que podemos atribuir uma interpretagdo semiintica & sentenga em (21). Excluir os déiticos da seméntica implica deixar de repro- uzir na nossa maquina sentengas t4o banais quanto: (19) A Maria casou porque ‘casou' carrega um elemento déitico, O sufixo'-ou marca que 0 evento sobre o qual estamos falando, o casamento de Maria, ocomeu num instante anterior ao momento em que ocorre o proferimentode'a Maria casou’. Imaginemos umalinha do tempo para visualizarmos que o evento 1, 0 casamento, antecede o evento2, o proferimento da sentenga‘a Mariacasou’ Eo eee eee ee evento 4 ‘evento 2 casamento de Maria proferimento de “a Maria casou" ‘Trataremos, no capitulo 6, do tempo verbal. Por enquanto basta mostrar que, se os déiticos, como jé se tomou classico na literatura, so elementos cujas interpretagdes remetem ao con- texto, e 0 morfema temporal 6 déitico, porque esté ancorado no momento de fala, ent4o a semAntica ndo poderia explicar a sentenga acima, Mas um modelo que busca descrever 0 conhe- cimanto que um falante tem do significado das sentengas de sua lingua néo pode deixar de descrever esses elementos, porque @ sua contribuigéo para o significado da sentenga 6 sistemética, Sabemos que 0 déitico ‘eu’ remete sempre aquele quo fala, ¢ ‘voce’, Aquele que 6 o intérprete do falante: quando eu falo, eu sou 0 ‘eu’ e voc’, ‘vocé'; quando vocé fala, voce 6 ‘eu', ¢ eu sou ‘voce’, Essas so relagbes sisteméticas, por isso 6 posstvel dar um tratamento semintico a esse tipe de fenémano e deixar @ pragmatica uma teoria da intencionalicade, quo Eveca Lt explica os atos que realizamos por meio da linguagem. A prag- mética deve explicar como as pessoas conseguem_agir por intermédio do que elas dizem. Vejamos um exemplo dessa separagdo entre Semantica e Pragmética, Suponha que Maria esté num restaurante e que ela diga a0 gargom: "Eu gostaria de um copo de agua”. A Maria pode ‘usar essa sentenga pare fazer varias coisas, entre elas, para pedir, ao gargom que Ihe traga um copo de égua. Se seu ato de fala for bem-sucedido, ela consegue realizar omesmo que se ela tivease dito “Me traga um copo de agua”. Falar 6 realizar um ato." Imagine agora que Maria profere a mesma sentenca apés escalar uma montanha. De novo, ela pode estar fazendo muitas coisas comesse proferimento. Pode estar apenasreportandoum desejo ou pods estar reciamando, fazendo com que seu compa- nheiro — que insistiu tanto na caminhada e esqueceu a égua— se sinta culpado. Embora o significado da sentenga nas duas situagGes seja o mesmo, elas tém interpretacées diferentes, porque desencadeiam agées distintas ‘Como & que sabertos isso? Essa 6 a pergunta que a prag- :ética procura responder, A Seméntica cabe explicar a contribut- gdode‘ou’ sara 0 significado da sentenga. Responder pergunta da pregmétice depende de levarmos em consideracio outras infonmagées além da informagéo Linguistica; por exemplo, © conhecimento de mundo compartilhado, nosses experiéncias com restaurantes, escalacas de montanha e relagées afetivas, eas ‘expectativas que temos sobre os motivos que evam alguémadizer algo. A pragmética é, pois, 0 estudo dos usos_situacionais da linguagem. Ela enxerga os usos da linguagem como agées que visam a um efeito intencionado: pedir um copo de égua, reclamar da escalada, reportar um desejo, .."* 18. Ao Todigit esto livro, resi, evidentomente, um ato de fala que osté {nvostido das mais diferente intongSes. 16, Para uma inrodugio & progmética, ver Levinson (1980). 4s Muitas vezes, no entanto, néo 6 fécil separar 0 conheci- ‘mento que o falante tem das palavras e sentengas do uso que ele faz dessas palavras e sentongas; 6, as vezes, dificil separar que a sentenga significa do que o falante quer significar com ‘seu proferimento. Os limites entre a semantica ea pragmatica 18m sido, aliés, motivo de muita controvérsia.”” Para fins didéti- cos, deixemos & semantica a tarefa de descrever, explicar € prover o significado das palavras sontengas, incluindo ai o significado dos déiticos, pois eles certamente fazem parte do conhecimento semantico de um falante. A pragmdtica cabe o ‘estudo sobre as possiveis intongSes do um falante ao proferir algo, que agbes ele pretende desencadear com seu ato linguis- tico. A semantica fomece o significado de uma sentenca sem fazor referéncia aos possiveis usos e agées que com ela se produzem. Como veremos, essa tarofa nao é nada simples. Exercicios 1. Leia o trecho abaixo: “0 dente-de-leso é uma flor conhecida pelo seu admirével poder de renovacéo. Suas pétalas séo na verdade semen- tes, que se espalham com um sopre ou com o vento & significam a vida e a renovagéo.” (Qual o significado de ‘significam’ nesse contexto? f esse 0 significado de ‘significado’ do semanticista? Justifique a sua resposta. 2. Que tipo de problema as sentencas abaixo colocam para uma teoria do significado? (a) Ele saiu. (b) Isto é azul. 17, Sobre a distingzo ver Pixos da Olvera @ Banoo (2007). Faga uma anélige seméntica intuitiva da sentenga abaixo, isto 6, explicite o significado da sentenga em ( (a) Este aluno ¢ excelente. ‘Em seguida, crie pelo menos dois contextos de uso que mostrem que essa sentenca pode veicular diferentes signi- ficados do falante. Explique em que consiste a diferenca entro as sentencas (a) @ (b) nos grupos abaixo: (a) © que significa ser casado? (b) © que significa ‘ser casado"? (@) Ontem eu fui a praia. (©) ‘Ontem eu fui a praia’, Utilizando os conceitns de uso e mengéo e as aspas simples, reesctevaas sentencas abaixo de modo a tomé-las coarentes: (a) Florianépolis 6 ac norte de Porto Alegre, mas" Porto Alegré néo 6 ao sul de Florianépotis: (b) A Gitima palavra para a melhor solugao da sentengaem (a) € Florianépolis. (©) A esposa de Carlos chama ele de’Carlos: (portugués brasileiro) (@) Nasentenga acima a palavrd esposd'est4 sendo usada. (@) De acordo com W.V.duine, "Boston nomeia Boston ¢ Boston nomeia Boston, mas 9 néo designa 9°(Exemplo adaptado de Cartwright, apud Larson & Segal (1995),) Assentenga abaixo ¢informativa? Justifique a sua resposta. {@) ‘Ser casadio’ ser casado. 7. Imagine que a sentenga em (a), é proferida num dia de chuva torroncial: (a) Que dia ensolarado! Analise a sentenga do pont de vista semantico @ do ponto de vista pragmético. aie (aitlo 2 Z ARESTRICOES A CONSTRUCKO DE UM MODELO SEMANTIC © semanticista, dissemos, busca reconstmuir o conhec- ‘mento que um falante tem sobre o significado das palavras e sentengas de sue lingua Faz isso a partir da construgio de uma méquina que nao apenas toma sentencas de uma lingua-objeto, queo semanticista descenheco ou finge desconhecer, e forece, ‘usando uma me:alinguagem, indicagées sobre as condigées em que tal sontonga 6 verdadeiza, Mas 0 objetivo do semanticista é mais do que fazer um ‘manual de tradugéo para uma lista de sentengas; é reproduzit 8 capacidade seméntica, intuitive, que um falante tei de sua lingua. E no apenas um falante sabe muito sobre o significado das palavras e sentenges de sua lingua, como também ele 6 criativo, ele inventa palavras, sentengas, interpreta outras que nunca ouviu antes. Ele néo fala apenas sobre as coisas do mundo, aprende sobre outros mundos através da linguagem. E ‘mais, seu conhecimento sobre as sentengas de sua lingua néo um conhecimento isolado; trata-se, antes, de uma rede de sentengas que se relacionam. Essas trés propriedades, a js) Stiatividade, a referencialidade e a rede de sentengas, porque f° | Parecem ser essenciais para termos uma lingua, funcionam 4a i como restrigdes a maquina que o semanticista est construindo. ‘Um modelo que nao as reproduza é inadequado.e precisa, entao, ser revisado, Pode haver outras propriedades das linguas natu- ais que ainda nao conhecemos, mas nao hé ciividas sobre a importancia dessas trés. Iremos, neste capitulo, exploré-las, A ctiatividade 6 nossa capacidade de entender (e produ- zir) sentengas novas. A referencialidade diz respeito ao fato de que usamos a Iingua para falar sobre o(s) mundo(s) (inclusive o ‘mundo interior, o dos sonhos, o da ficgdo). A rede de sontoncas diz respeito ao fato de que saber uma sentenca ¢ sabet muitas outras, porque as sentengas de uma lingua se inter-telacionam. © somanticista busca reconstrair em sua maquina semantica essas trés propriedades das linguas naturais. Criatividade Com certeza, vocé dificilmente teré ouvido a seguinte sentenga: (I) Tem um eachorro cor-de-rosa na sala. No entanto, se vocé é um falante do PB, nao tem problema algum em atribuix uma interpretacao @ cadela sonora ropre- sentada graficamente em (1), Vocé consegue inclusive imaginar a situagéo. Como isso ¢ possivel? E possivel porque voc8, como ser humano ¢. Maria; caiu no colo do marido delai. Oisubscrito.a VJoao'e ‘ele’ demonstra o vinculo anaférico entre esses elementos; garante que estamos falando sobre o mesmo individuo, Esses elementos esto co-indexados, e ‘Joao’ 6 cantecedente do pronome ‘le’. Julgamentos deco-eferencialidade envolvem a capacidade de perceber a dependéncia da referén- cia de uma expresso aquela atribuida por outra expresséo, por isso falamos em cadeia; a referéncia atribufda a ‘Jogo' projeta, Por cadeia, a referéncia de ‘ele’ A intuigdo dos falantes para a relagdo anaférica parece ser bem clara. Considere: (33) Joao disse que ele saiu. 10. Actegoria vazia 6 comumente representada na sintaxe pore, do inglés ‘empty

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