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SOCIEDADE,

CULTURA E
CIDADANIA

Pablo Rodrigo Bes


Racismo e formação das
identidades étnicas
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Reconhecer o processo de formação da identidade e da autoimagem


pessoal, que ocorre durante a fase estudantil.
 Identificar os desafios da formação da identidade étnica para indi-
víduos de etnias que são minoritárias em um dado contexto social.
 Discutir o posicionamento do professor diante de racismo e de
injúria racial.

Introdução
A formação da identidade pessoal ocorre desde o nascimento, a partir das
experiências e vivências nos campos sociais. Nesses campos, as pessoas
aprendem a respeito da cultura de cada grupo étnico. Nesse contexto,
cada etnia tem uma cultura própria, forjada a partir das experiências
históricas que vivenciou, das ideias e normas sociais que produziu com
o passar dos tempos e que procurou transmitir de geração em geração.
A vida em sociedade, algumas vezes, faz com que determinadas
etnias tenham mais poder e dominem as demais. Isso afeta a produção
das identidades e pode abalar a construção da autoimagem dos sujeitos
dominados e inferiorizados. Quando a cultura de um grupo étnico é vista
como superior e procura servir como padrão para todas as demais, pode
haver efeitos indesejáveis, como o racismo e a discriminação étnico-racial.
Neste capítulo, você vai estudar a formação da identidade e da au-
toimagem pessoais, sobretudo no espaço escolar. Também vai aprender
sobre os desafios da formação de uma identidade étnica quando se trata
de grupos minoritários. Além disso, você vai verificar a necessidade de o
professor posicionar-se de forma antirracista em suas aulas.
2 Racismo e formação das identidades étnicas

Formação da identidade e da autoimagem


Para analisar o processo de formação das identidades, você deve compreender
o conceito de cultura. Esse conceito é decisivo para que as identidades sejam
produzidas nos sujeitos. O termo “cultura”, nesse caso, pode ser utilizado
“[...] para se referir a tudo o que seja característico sobre o ‘modo de vida’
de um povo, de uma comunidade, de uma nação ou de um grupo social [...]”
(HALL, 2016, p. 19). Essa definição é interessante pois remete aos vários
aspectos antropológicos e sociológicos presentes na cultura. Dessa forma, não
a restringe a “[...] um conjunto de coisas — romances e pinturas ou programas
de TV e histórias em quadrinhos —, mas sim [a define como] um conjunto de
práticas [...]” (HALL, 2016, p. 20).
Logo, os indivíduos que partilham da mesma cultura tendem a apresentar
uma interpretação de mundo semelhante, uma atribuição de sentido similar sobre
as coisas. Afinal, eles aprendem no interior das práticas cotidianas de seu grupo
étnico a respeito desses conceitos e seus significados. Considere, por exemplo,
uma criança pequena. Ela desenvolve traços de comportamento similares aos dos
pais ou irmãos, na maioria das vezes. Na escola também ocorre esse processo.
É a partir da conduta do professor ou dos colegas na educação infantil ou anos
iniciais do ensino fundamental que os alunos aprendem formas de agir que farão
parte da sua identidade. Para compreender melhor como ocorre o processo de
formação das identidades, veja algumas características inerentes a ela:

 negação;
 diferença;
 relação.

Os sujeitos constituem a sua identidade a partir da negação daquilo que não


são. Ou seja, sou “branco” porque não sou “negro” ou “amarelo”; sou um sujeito
“calmo” pois não sou “nervoso” ou “agressivo”. Esse mesmo mecanismo que
faz alguém definir quem é (ou pretende ser) exclui as demais possibilidades,
normalmente inserindo o sujeito em um sistema de classificação social que
possui representações simbólicas sobre as diferentes categorias. Ou seja,
quando alguém se posiciona como “branco”, por exemplo, assume todos os
significados que essa classificação proporciona. Isso inclui os privilégios his-
tóricos, bem como uma posição que simbolicamente denota maior confiança,
ou que é associada à competência profissional, etc.
O segundo elemento que você deve considerar é que a identidade é pro-
duzida também a partir da marcação da diferença. Assim, um sujeito é da
Racismo e formação das identidades étnicas 3

forma como é porque é diferente dos demais com os quais não se identifica.
É importante você notar que “[...] a diferença é um elemento central dos
sistemas classificatórios por meio dos quais os significados são produzidos
[...]” (WOODWARD, 2012, p. 68). O problema com a questão da diferença
ocorre quando ela é utilizada dentro desse sistema classificatório para realizar
juízo de valor e construir representações ruins, negativas e que inferiorizam
algumas identidades.
Isso foi muito recorrente, por exemplo, durante os processos colonizadores
no Brasil. Nesse contexto, assumiu-se a identidade europeia (dos coloniza-
dores) como a central, mais importante e poderosa do que todas as demais.
Nesse processo, indígenas e negros foram representados como subalternos,
inferiores, selvagens e sem cultura. Convém reforçar ainda que “[...] temos
o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença
que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades [...]” (SANTOS,
2003, p. 56). As diferenças são marcadores que constituem as pessoas, as
tornam seres singulares e especiais. Dessa forma, devem ser reconhecidas
e valorizadas socialmente.
O terceiro aspecto talvez seja o mais importante de todos: o caráter rela-
cional da identidade. A identidade é produzida a partir das relações nos grupos
sociais e nas instituições que fazem parte das experiências dos sujeitos: “Nós
participamos dessas instituições ou ‘campos sociais’, exercendo graus variados
de escolha e autonomia, mas cada um deles tem um contexto material e, na
verdade, um espaço e um lugar, bem como um conjunto de recursos simbólicos
[...]” (WOODWARD, 2012, p. 29).
Os campos sociais são importantes e decisivos para que as relações
e interações sociais ocorram e, assim, contribuam para que os sujeitos
produzam suas identidades. Nesse contexto, a escola é uma importante
instituição, que as crianças frequentam de forma obrigatória a partir dos
4 anos de idade no Brasil e que acolhe aos mais diversos grupos étnicos e
culturais. As escolas também possuem seus contextos particulares e seus
simbolismos. Por exemplo, uma escola pública pode ser muito diferente de
uma escola privada nas questões estruturais, curriculares e, até mesmo, em
relação ao público que atende.
O processo de formação da identidade também envolve aspectos psíquicos.
O indivíduo produz tanto selfs sobre si mesmo quanto sobre todos os demais
com quem convive, formando o seu autoconceito. Segundo Goñi e Fernández
(2009, p. 25), “[...] o conceito que uma pessoa tem de seu self surge das intera-
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ções com os outros e reflete as características, expectativas e avaliações dos


demais [...]”. O autoconceito se relaciona estreitamente com a autoimagem
e com a autoestima que os sujeitos possuem. Por sua vez, “A autoimagem é
uma descrição que a pessoa faz de si, a forma como ela se vê, estando esta
percepção também relacionada ao modo como os outros a percebem. Por
seu turno, a autoestima é uma avaliação que o sujeito faz de si, estando esta
valoração relacionada também com o modo como os outros o avaliam [...]”
(MENDES et al, 2012, p. 7).
Como você pode perceber, durante o processo de formação das identidades,
existe uma estreita relação entre o autoconceito, a autoimagem e a autoestima,
o que tem importância significativa. Caso o sujeito, ao conviver em seus
campos sociais, perceba que simbolicamente sua identidade é representada
como inferior ou excluída em relação às demais, pode ter sérios problemas de
autoestima e autoimagem. Nesse caso, ele assume para si as representações
distorcidas que o desvalorizam. É o que acontece, por exemplo, com identidades
culturais minoritárias que sofrem estigmatizações, preconceitos, racismo e
violências diversas.
Bee e Boyd (2011, p. 284), ao analisarem o autoconceito e o ambiente
escolar, comentam que “A criança em idade escolar também começa a ver
suas próprias características (e as de outras pessoas) como relativamente
estáveis e, pela primeira vez, desenvolve um sentido global de seu próprio
valor [...]”. É possível inferir que, na escola, os mecanismos de produção das
identidades encontram terreno fértil para que as mais variadas relações e inte-
rações necessárias se estabeleçam. Cabe ao docente estar atento, percebendo
e intervindo sempre que esse processo possa ser prejudicado por práticas
racistas ou preconceituosas durante suas aulas.

Quando uma cultura é tida como central, seus efeitos na formação das identidades
são muito negativos. Isso ocorre pois todos aqueles que não se enquadram na cultura
dominante tendem a ser representados socialmente como inferiores e invisíveis. Por
essa razão, contemporaneamente têm surgido políticas sociais e educacionais que
evocam o multiculturalismo, a diversidade cultural e a interculturalidade. A ideia é que
tais iniciativas produzam uma sociedade mais justa e equitativa.
Racismo e formação das identidades étnicas 5

Identidade étnica: desafios dos grupos


minoritários
Você já viu que a formação das identidades individuais ocorre a partir das
relações estabelecidas entre os grupos e instituições sociais às quais os sujeitos
pertencem. Essa formação também envolve os aspectos internos, ligados ao
desenvolvimento psicológico. É aí que são estabelecidos o autoconceito, a
autoimagem e a autoestima. Da mesma forma, a cultura tem importância
fundamental. Por meio dela, os indivíduos aprendem as práticas sociais dis-
cursivas (o que se diz) e não discursivas (o que se faz) do seu grupo étnico.
A cultura, dessa forma, envolve todos os simbolismos e representações que
foram estabelecidos com o passar das experiências históricas do grupo. Ela
costuma servir como balizador, como norte a guiar as ações futuras daqueles
que fazem parte de determinada etnia. Assim, as características étnicas con-
tribuem significativamente para a formação das identidades.
Como exemplo, considere algumas alusões a traços ou comportamentos
culturais de determinadas etnias: “o povo alemão sabe melhor como poupar”,
“os italianos são mais acolhedores e hospitaleiros”, “os indígenas são mais
espiritualizados e desapegados dos bens materiais”, etc. Essas afirmações
procuram essencializar os traços de uma identidade étnica, o que pode ou
não ser verdadeiro para todos os que compõem a etnia.
A formação das identidades culturais e étnicas é um processo histórico e social
produzido nos embates de poder e força entre as etnias existentes. No decorrer da
história brasileira, houve, acompanhando as tendências internacionais, o favore-
cimento de algumas etnias. Além disso, ocorreu a construção de representações
simbólicas que favorecem tais etnias e, ao mesmo tempo, desqualificam e infe-
riorizam todas as demais, produzindo grandes desigualdades sociais e raciais.
Dessa forma, os mecanismos de colonização no Brasil estabeleceram uma
relação entre cor e raça que serviu para classificar as populações, bem como para
executar a “[...] inferiorização de grupos humanos não europeus, do ponto de
vista da produção da divisão racial do trabalho, do salário, da produção cultural
e dos conhecimentos [...]” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 16). A colonização
não se deu somente no território físico, na materialidade dos recursos e na
exploração da mão de obra do colonizado, mas também colonizou os saberes,
impôs novas formas de pensar e agir socialmente.
As sociedades ocidentais e, mais particularmente, a sociedade brasileira
desenvolveram um processo de racialização em que foram cristalizadas al-
6 Racismo e formação das identidades étnicas

gumas características essenciais ao sujeito moderno, que serve de referência


a todos os demais. Louro (2011, p. 65) reforça essa ideia ao argumentar que
“[...] no contexto da sociedade brasileira, ao longo de sua história, foi sendo
produzida uma norma a partir do homem branco, heterossexual, de classe
média urbana e cristão [...]”. Dessa forma, as minorias sociais são compostas
por todos aqueles que por quaisquer motivos não se encaixem na norma: as
mulheres, os negros, os indígenas, os homossexuais, aqueles que possuem
outras religiões (como as de matriz africana), as pessoas com deficiência, os
pobres, etc. Embora, em grande parte dos casos, esses grupos apresentem-se
quantitativamente maiores do que os que servem de referência, são conside-
rados minoritários devido à sua falta de força e de poder nas relações sociais.
O professor, ao desenvolver suas atividades na escola, deve estar atento
para que as suas aulas não reforcem uma estratificação social que se vale
dos aspectos étnico-raciais dos sujeitos. Ele não deve ceder espaço a uma
pedagogia que “[...] educou o olhar deste sujeito branco que julga; ela educou
seu modo de compreensão sobre a pertença racial. Ela o educou para pensar
que ele, branco, não tem raça nem cor e, portanto, pode, do alto de seu estatuto
de incolor, julgar quem são, afinal, os ‘de cor’ [...]” (KAERCHER, 2010,
p. 87). Ou seja, o docente, seja ele branco, negro ou de qualquer outra cor
de pele, deve ter consciência de que as características étnicas influenciam
e são importantes para a formação da identidade e, consequentemente, da
autoimagem e da autoestima de seus alunos, coibindo práticas racistas e
preconceituosas.
Ao analisar a produção histórica relativa ao conceito de racismo e suas
modificações com o passar das décadas no Brasil, Guimarães (2004, p. 33)
comenta que “[...] o nosso desafio atual, ao formar as novas gerações, é teorizar
a simultaneidade desses dois fatos aparentemente contraditórios, apontados
por todos os que nos precederam: a reprodução ampliada das desigualdades
raciais no Brasil coexiste com a suavização crescente das atitudes e dos com-
portamentos racistas [...]”. O autor faz uma crítica e um alerta ao fato de que
no Brasil entende-se que não há racismo devido ao mito da democracia racial.
O fato de haver miscigenação na formação do povo brasileiro não faz com
que, naturalmente, as relações sociais sejam harmônicas e justas. O mito da
democracia racial mascara o grande abismo que é produzido desde a época
colonial e reproduzido em instituições como a escola, colocando alguns grupos
étnicos em condição desigual, marginalizada e empobrecida.
Você deve entender que “[...] a identidade étnico-cultural, mesmo quando
aparece como marginalizada, excluída, não é uma realidade muda, simples
objeto de interpretação. Ela é fonte de sentido e de construção do real. Os
Racismo e formação das identidades étnicas 7

processos culturais são processos conflitivos [...]” (KREUTZ, 1999, p. 83). Os


conflitos normalmente surgem a partir dos movimentos sociais de algumas
etnias em busca de sua igualdade de direitos políticos, econômicos e sociais,
procurando quebrar a hegemonia de poder que se instituiu historicamente.
Como exemplo, considere o movimento negro brasileiro, que, com suas lutas,
conseguiu incluir nos currículos escolares a obrigatoriedade do ensino da his-
tória e da cultura afro-brasileiras por meio da Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de
2003. Além disso, esse movimento teve participação decisiva na implantação
do sistema de cotas raciais e sociais nas universidades públicas e na criação
do Estatuto da Igualdade Racial, entre outras conquistas que visam a reparar
danos históricos causados às etnias afrodescendentes.
A escola, como instituição social que se estende a todos, independentemente
de sua identidade étnico-cultural, deveria promover cursos que “[...] alargassem
a compreensão que os/as estudantes possam ter de si mesmos/as e de outras
pessoas, ao examinar eventos que enfoquem um senso de responsabilidade
social e moral [...]” (GIROUX, 1995, p. 91). Dessa forma, cabe à escola, ao
professor, conduzir seus alunos a:

[...] examinarem criticamente sua própria localização histórica em meio a


relações de poder, privilégio ou subordinação. [A escola] Pode, também, ajudá-
-los a perceberem as especificidades étnico-culturais próprias, distinguindo
e reconhecendo as especificidades dos grupos étnicos, incentivando-os a um
diálogo intercultural (KREUTZ, 1999, p. 93).

A escola e os professores dispõem de uma gama de possibilidades para


trabalhar as questões que tanto contribuem para que a formação e a afirmação
das identidades étnicas ocorram em simetria e equidade. Assim, podem ajudar
a produzir uma sociedade melhor e mais justa para todos.

Para que a educação possa realizar a sua parte no trato das questões culturais e étnicas
tão presentes na sociedade brasileira, cada região deve ser analisada de acordo com
as suas especificidades. Cada cultura étnica precisa ser considerada a partir de suas
diferenças e semelhanças. A escola deve enaltecer as diferenças como algo positivo que
compõe cada identidade. Todos devem ser vistos como iguais em direitos e diferentes
nos aspectos que compõem a sua cultura, a sua leitura de mundo e a sua etnia.
8 Racismo e formação das identidades étnicas

O posicionamento do professor frente


ao racismo e à injúria racial
O professor deve ser um bom observador. Além disso, deve conhecer as ca-
racterísticas pessoais e culturais de seus alunos. A ideia é que ele atue como
um mediador entre os mais diversos grupos étnico-culturais que se encontram
sob sua docência. Dessa forma, ele deve conhecer muito bem os conceitos
listados no Quadro 1 para que possa tomar as atitudes adequadas.

Quadro 1. Conceitos importantes para uma prática docente intercultural

Opinião preconcebida em relação a determinada pessoa


Preconceito ou grupo. Tal opinião não é baseada em uma experiência
real ou na razão.

Conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou


Racismo
coletividade. Geralmente, refere-se a crimes mais amplos.

Tratamento injusto ou negativo de uma pessoa (ou


grupo) por pertencer a determinada classe, grupo ou
Discriminação
categoria (como raça, idade ou gênero). É o preconceito
ou racismo em forma de ação.

Ofensa à dignidade ou ao decoro que utiliza elementos


Injúria racial de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa
idosa ou com deficiência.

Fonte: Adaptado de Conselho Nacional de Justiça (2015) e de Diferença.com (2019).

Conhecer os conceitos apresentados no Quadro 1 é fundamental. Você


deve considerar que, na formação de sua identidade étnica e cultural,
as pessoas podem se apropriar de preconceitos, ideias distorcidas e/ou
crenças equivocadas a respeito de outras etnias e suas características. Isso
pode levar a comportamentos discriminatórios e, inclusive, culminar em
crimes de racismo e injúria racial. Essas situações não são admissíveis
em nenhum segmento da sociedade e especialmente na escola, por ser
um espaço privilegiado de formação das identidades étnicas e culturais.
Como as crianças entram precocemente na escola, a partir dos 4 anos de
idade, já na educação infantil o professor pode observar e desconstruir tais
preconceitos. A ideia é que ele ajude os alunos a desenvolver uma conduta
intercultural que reconheça e respeite a todos sem distinção.
Racismo e formação das identidades étnicas 9

Ao se deparar com situações que envolvam racismo e injúrias raciais entre os alunos,
o docente deve agir pontualmente. Ele deve propiciar reflexões que levem ao reco-
nhecimento e à valorização das diferenças que possam existir entre as etnias e as suas
culturas. O ideal é que faça isso a partir da análise de situações do cotidiano de cada um.

Como exemplo, considere o caso de um professor que atua com uma turma
de alunos do 5º ano do ensino fundamental de uma escola de periferia. Tal
escola recebe crianças e jovens em condições de vulnerabilidade social. Na
turma em que o professor trabalha, existem dois grupos étnicos com uma
rivalidade muito grande, que se manifesta tanto entre os meninos quanto entre
as meninas. Um grupo é de alunos afrodescendentes e o outro é de alunos que
se consideram “brancos”.
O professor decide analisar o contexto dos alunos, conhecer sua vida
social, as particularidades de sua rotina diária. Assim, ele percebe muitas
semelhanças entre eles. Com base nisso, resolve confrontar ambos os grupos
e provocá-los a pensar sobre a sua condição social. Para iniciar a discussão,
o tema escolhido é a situação de pobreza em que se inserem, as perspectivas
e planos que têm para o futuro, suas angústias e desafios cotidianos, seus
problemas familiares, entre outras situações. No decorrer das aulas, o professor
realiza algumas dinâmicas de grupo e abre o canal de comunicação para que
todos se manifestem sempre que achem oportuno.
As trocas de experiências entre os estudantes negros, brancos e todos os
demais que não se identificam com esses dois grupos são muito produtivas e
significativas. Muitos percebem semelhanças em suas relações na sociedade,
nas mazelas que lhes afligem socialmente, na carência dos bens materiais,
nos sofrimentos sentidos durante a infância, nas frustrações, decepções e
mágoas familiares, nos planos para o futuro e nas perspectivas que possuem.
Essa vivência faz com que os grupos de alunos se aproximem muito e une
a todos já no primeiro bimestre. Resolvidas as questões que provocaram o
choque cultural entre os jovens alunos, não há mais problemas de ofensas
raciais ou estereótipos de qualquer natureza. O diálogo torna os estudantes
mais tolerantes, respeitosos e acolhedores das diferenças.
Oliveira e Candau (2010) refletem sobre a importância do reconhecimento
de todos os grupos étnicos nos debates interculturais realizados nas escolas
visando a uma educação antirracista. Eles afirmam que:
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[...] o termo reconhecimento implica: desconstruir o mito da democracia racial;


adotar estratégias pedagógicas de valorização da diferença; reforçar a luta
antirracista e questionar as relações étnico-raciais baseadas em preconceitos
e comportamentos discriminatórios [...] (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 32).

Para que isso possa ser realizado pelo docente, é necessário que haja co-
nhecimento, interesse e posicionamento sobre essas questões tão importantes
e presentes na sociedade. A proposta é que os alunos entendam que a diferença
torna os sujeitos ricos e não os deprecia ou inferioriza.
Cabe aos professores e professoras, no decorrer de suas práticas docen-
tes, independentemente do nível educacional em que atuam, da educação
infantil ao ensino superior, “[...] promover processos de desconstrução e de
desnaturalização de preconceitos e discriminações que impregnam, muitas
vezes com caráter difuso, fluido e sutil, as relações sociais e educacionais que
configuram os contextos em que vivemos [...]” (CANDAU, 2012, p. 8). Para que
possa superar esse desafio, você deve estar atento às questões apresentadas de:

 naturalização;
 igualdade e diferença;
 currículo escolar;
 culturas;
 intereações.

A naturalização de características que se relacionam com alguma etnia


específica deve ser observada pelo professor. Assim, pode ser contestada e
desconstruída junto aos seus alunos. Dessa forma, conforme explica Hall
(2016), a naturalização muitas vezes opera para fixar as possíveis “diferen-
ças” que são produzidas dentro de uma lógica etnocêntrica e monocultural.
Partindo desse princípio, é comum que os alunos utilizem expressões e
noções naturalizadas sobre determinadas etnias. É o caso da associação
dos afrodescendentes com esportes de luta e corrida. Nesse caso, se propõe
que essa seja uma “verdade” recorrente a todos os negros, o que os exclui
de outras realizações ao mesmo tempo em que impossibilita demais etnias
de ter sucesso nessas modalidades.
A igualdade e a diferença devem sempre ser colocadas em discussão. Elas
são importantes para a formação das identidades étnicas e culturais de todos os
alunos, marcando que as diferenças existem e constituem os sujeitos. Por sua
vez, a igualdade remete aos direitos que todos possuem. Da mesma forma, o
Racismo e formação das identidades étnicas 11

currículo escolar deve ser observado com atenção pelos professores, em cada
detalhe, na seleção de conteúdos, textos, livros didáticos e técnicas a serem
utilizadas. Deve-se reconhecer que todo saber carrega consigo o poder de
produzir um entendimento sobre o mundo.
Ao trabalhar junto aos alunos os processos de formação de suas identidades
culturais, os professores podem valer-se do importante recurso das histórias de
vida desses sujeitos. Ao narrar a sua trajetória, os alunos exercitam o processo
de escolha de suas memórias e percebem os aspectos que lhes são mais caros
e pertinentes. Da mesma forma,

É importante que se opere com um conceito dinâmico e histórico de cultura,


capaz de integrar as raízes históricas e as novas configurações, evitando-se
uma visão das culturas como universos fechados e em busca do “puro”, do
“autêntico” e do “genuíno”, como uma essência preestabelecida e um dado
que não está em contínuo movimento (CANDAU, 2012, p. 8).

Cabe ao docente entender que a cultura é um processo mutável. Ela se


reconfigura e é influenciada por várias questões sociais atuais, como o
consumo, as mídias, as redes sociais, os aspectos globais que procuram
homogeneizar e universalizar a todos, etc. Esses pontos devem ser discutidos
e problematizados. Por fim, o diálogo, as interações e os relacionamentos
devem ser exercitados e promovidos como a grande técnica de negociação de
conflitos e busca de respeito e harmonia intercultural entre todos na escola.
Os professores que aplicarem esses princípios terão maiores possibilidades
de construir projetos educacionais em que o racismo, o preconceito e a
discriminação não ocorram.

Para aprender mais sobre a importância de uma educação intercultural que considere
as diferenças e desigualdades em suas práticas, assista à entrevista com a professora
Vera Maria Candau disponível no link a seguir.

https://goo.gl/Y4f5ob
12 Racismo e formação das identidades étnicas

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Leitura recomendada
BRASIL. Lei nº. 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera
as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de
julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em: 9 fev. 2019.

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