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Como se pode explicar esse paradoxal fenémeno? Onde nossituamos rekativamente ao conceitode “identidade”? Esti-se cfetuando uma completa desconstrugio das perspectivas iden- titrias em uma variedade de reas disciplinares, todasas quais, de uma forma ou outa, criticam a idéia de uma identidade integral, origindria e unificada. Na filosofia tem-se feito, por exemplo, a critica do sujeito auto-sustentivel que esta no centro da metalisica ocidental pés-cartesiana, No discurso da cctica feminista e da critica cultural influenciadas pela psica- nilise tém-se destacado os processos inconscientes de forma- cio da subjetividade, colocando-se em questio, assim, as concepgties racionalistas cle sujeito. As perspeetivas que teori- zam 0 p6s-modernismo tém celebrado, por suavee,a existéncia de um “eu” inevitavelmente performativo. Tem-se delineado, em suma, no contexto da critica antiesseneialista das concep: «des étnicas, raciais € nacionais da identidade cultural e da “politica da localizagio”, algumas das concepgies tedricas ais imaginativas e radicais sobre a questao da subjetivida- de e da identidade. Onde esta, pois, a necessidade de mais uma discussio sobre a “identidade”? Quem precisa dela? Existom duas formas de se responder a essa questao. A primeira consiste em observar a existéncia de algo que distingue a erftica desconstrutiva d qual muitos destes con- coitus essencialistas tém sido submetidos. Diferentemente daquelas formas de critica que objetivam superar concei- tos inadequados, substituindo-os por conceitos “mais verdadeiros” ou que aspiram & produgio de um conheci- jnento positivo, a perspectiva desconstrutiva coloca certos conceitos-chave “sob rasura”. O sinal de “rasura” (X) indica {que eles nfo servem mais~ no sao mais “bons para pensar” eign sua forma original, ndo-recon strufda, Mas uma vez que les nao foram dialeticamente superados © que no existem outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam subs- titui-los, nao existe nada a fazer sendo continuar a se pensar ‘com cles — embora agora em suas formas destotalizadas © desconstrufdas, nao se trabalhando mais no par radigma no {qual eles foram originalmente gerados (Hall, 1995). As duas Tinhas cruzadas (X) que sinalizam que eles estao cancelados permitem, de forma paradoxal, que eles continuem a ser lidos. Derrida desereve essa abordagem como “pensando no limite”, como “pensando no intervalo”, como uma espé- vie de eserita dupla. “Por meio dessa escrita dupla, precisa- mente estratificada, deslocada e deslocadora, devemos também marcar o intervalo entre a inversao que torna baixo aguilo queeraalto[..)eaemergéneia repentina de um novo ‘conceito’ que nao se deixa mais ~ que jamais se deixou — subsumir pelo regime anterior” (Derrida, 1981, p. 42). A ‘ddentidade 6 um desses conceitos que operam “sob rasura”, no intervalo entre inversio e aemergéncia: uma idéia que fifo pode ser pensada da formaantiga, mas sem a qual eertas questées-chave niio podem ser sequer pensadas Um segundo tipo de resposta exige que observenos onde oem relacao a qual conjunto de problemas emerge a rredutibilidade do conceito de identidade. Penso que # resposta, neste caso, estivem sua centraidade paraa questa da agéncia’ e da politica, Por ‘politica’ entendo tanto a importineia - no contexto dos movimentes politicos em 104 suias formas modemas ~ do significante “identidade” e de sua relagio primordial com uma politica da localizagio, quanto as evidentes dificuldades ¢ instabilidades que tém afetado todas as formas contemporaneas da chamada “politica de identidade”. Ao falar em “agéneia”, nfo quero expressar nenhum desejo de retornar a uma nogio nvio-me- diada e transparente do sujeito como o autor centrado da prdtica social, nem tampouco pretendo adotar uma aborda- gem que “coloque o ponto de vista do sujeito na origem de toda historicidade — que, em suma, leve a uma conseiéncia transcendental” (Foucault, 1970, p. XIV). Concordo com Foucault quando diz. que 0 que nos falta, neste caso, nido é “uma teoria do sujeito cognoscente”, mas “uma teoria da pritica discursiva’. Acredito, entretanto, que © que este descentramento exige — como a evolugio do trabalho de Foucault claramente mostra - é nfo um aban- dono ou aboligéo mas uma reconceptualizagao do “sujcito”. E preciso pensi-lo em sua nova posicao — deslocada ou des- centrada—no interior do paradigma. Parece que é na tentativa de rearticulara relagao entre sujeitos ¢ praticas discursivas que aquestio daidentidade~o1 melhor, a questio daidentifieago, caso se prefira enfatizaro processo de subjetivagio (em vez das priticas discursivas) ¢ a politica de exclusio que essa subjeti- vacio parece implicar — volta a aparecer. O conceito de “identifieagio” acaba por ser um dos conceitos menos bem desenvelvidos da teoria social e eul- tural, quase to ardiloso - embora preferivel ~ quanto o de “identidade”. Ele nao nos di, certamente, nenhuma garan- tia contra as dificuldades conceituais que tém assolado 0 {iltimo. Resta-nos buscar compreensées tanto no repert6rio discursive quanto no psieanalitico, sem nos limitarmos a nenhum deles. Trata-se de um campo semantico demasia- damente complexo para ser deslindado aqui, mas é Gtil es- tabelecer, pelo menos indicativamente, sua relevancia para a tarefa que temos & mao. Na linguagem do senso comum, + dentificacao & construida a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de caracteristieas que sao parti- Thadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de tm mesmo ideal. E em cima dessa fundaglo que ocorre 0 utural fechamento que forma a base da solidariedade ¢ da fidelidade do grupo em questao. Em contraste com 0 “naturalismo” dessa definigio, a abordagem discursiva vé a identificag como uma constru- Gao, como um processo mca completaclo como algo sem~ pre “em processo”. Ela nit 6, nunca, completamente deter~ rr nada no sentido de que se pode, sempre, “ganhi-la’ ou “perde-la’; no sentido de que ela pode sex, sempre, susten- tada ou abandonada. Embora tenha suas eondigdes deter- minadas de existéncia, o que inclui os recursos materiais © Jimbélieos exigidos para sustenté-a,a identificagao é, ao fim ao cabo, condicional; ela esti, 20 fim e ao cabo, alojada na ontingéneia, Uma ver assegurad, ela nfo anularé a dife- renga, A fusio total entre o “mesmo” ¢ 0 “outro” que ela ugere é, na verdacle, uma fantasia de incorporagio (Freud Compre falou dela em termos de “consumir 0 outso”, como vyeremos em um momento). ‘A identificagao 6, pois, um processo de articulagao, uma suturagio, uma sobredeterminagio, ¢ nfo uma subsuncio. Ha sempre “demasiado” ou “muito pouco” — uma sobrede- terminago ou uma falta, mas nunca um ajuste eompleto, tuna totalidade, Como todas as praticas de significagio, cla esti sujita ao “jogo” da différance. Ela obedece & lbgica do vnais-que-um, E uma vez que, como num processo, a iden- fifeagio opera por meio da différance, ela envolve um trabalho discursivo, ofechamentoeamarcagio de fronteiras Simbélicas, a producio de “efeitos de fronteiras”. Para con- solidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora =o oxterior que a constitui. 106 O conceito de identificagio herda, comegando com seu sopscaaltin, um rico legado semantico. Freud chama-a le “a mais remota expressio de um lago emocional com outra pessoa” (Freud, 1921/1991). No contexto do complexo de Edipo,o conceito toma, entretanto, as figuras do pai e da mie tanto como objetos de amor quanto como objetos de competi¢ao, inserindo, assim, a ambivaléncia no centro mesmo do processv. “A identificagao, na verdade, é ambiva- lente desde 0 inicio” (Freud, 1921/1991; p. 134). Em Luto e ee clan Gago que prende alguém aum objeto que existe, mas aquilo que prende alguém a Sa pera Tass eprint, deca acide gem de acordo com o outro”, como uima compensagao pela perda dos prazeres libidinais do narcisismo primal. Ela esta fundada na fantasia, na projegio e na idealizagio. Seu objeto tanto pode ser aquele que & odiado quanto aquele que é adorado. Com a mesma freqiigncia com que ela é transpor- tada de volta ao eu inconseiente, ela “empurrac eu para fora de si mesmo”, Foi em relagio & ideia de identificacio que Freud desenvolveu a importante distingio entre “ser” ¢ ter” 0 outro. Ela se comporta “como um derivado da primeira fase da organizagiio da libido, da fase oral, em que 0 objeto que prezamos ¢ pelo qual ansiamos & assimilada pela ingestio, sendo dessa maneita aniquilado como tal” (Freud, 1921/1991: p. 135). “As identificagdes vistas como um todo”, observam Laplanche e Pontalis (1985), “nao sao, de forma alguma, um sistema relacional coerente. Coexis- tem no interior de uma agéncia como o superego [supereu) por exemplo, demandas que sio diversas, conflituosas ¢ desordenadas. De forma similar, o ego ideal 6 composto de identificagdes com ideais culturais que nao sao necessaria- ‘mente harmoniosos” (p. 208). " Nao estou sugerindo d que todas essas conotagdes devam ser importadas em bloco e sem tradugio ao nosso pensa- mento sobre a “identidade’ elas sto citadas aqui para indi 107 car 0s novos significados que o termo esti agora recebendo. Oconceito de identidade aqui desenvolvido nao €, portanto, tum conceito essencialista, mas um conceito estratégico e posicional. Isto é, de forma diretamente contraria aquilo que parece ser sua carreitasemantica oficial, esta concepgao de identidade ndo assinala aquele macleo estivel do eu que passa, do infcio ao fim, sem qualquer mudanga, por todas as vicissitudes da histéria, Esta concep¢io nio tem como refe~ réncia aquele segmento do eu que permanece, sempre ¢ J, “o mesmo", idéntico a si mesmo ao longo do tempo. Ela tampouco se refere, se pensamos agora na questio da iden tidade cultural, Aquele “eu coletivo ou verdadeiro que se esconde dentro de muitos outros eus ~ mais superficiais ou ‘mais artificalmente impostos — que um povo, com uma historia e uma ancestralidade partilhadas, mantém em co- mum” (Hall, 1990). Ou seja, um eu coletivo capaz de esta- Dilizay, fixar on garantir 0 pertencimento cultural ou uma “unidade” imutével que se sobrepoe a todas as outras dife- rencas ~ supostamente superficiais. Essa concepgio acei {que as identidades nJo sio nunca unificadas; que elas sto, na modernidade tarda, cada vez mais fragmentadlas ¢ fra~ turadas; que clas nao no sfo, nunea, singulares, mas mul- tiplamente construfdas ao longo de discursos, priticas posigdes que podem se enizer ou ser antagdnicos. As iden tidades estio sujeitas a uma historicizagio radical, estando constantemente em processo de mudanga € transformagio. Precisamos vincular as discussdes sobre identidade a todos aqueles processos e priticas que tem perturbado 0 carter relativamente “estabelecido” de muitas populagies te culturas: os processos de globalizagao, os quais, eu argu= mentaria, coincidem com a modernidade (Hall, 1996), ¢ os processos de migragéo forcada (ou “livre”) que tém se tor- nado um ferdmeno global do assim chamado mundo pés-co- Jonial, As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado hist6rico com 0 qual elas continua- 108, ng iam a manter uma certa correspondéncia. Elas tém a ver, entretanto, com a questio da utilizagio dos recursos da historia, da linguagem ¢ da cultura para a produgao nao daquilo que 16s somos, mas daquilo no qual nos tornamos ‘Tem a ver nfo tanto com as questdes “quem nds somos” ou “de onde nés viemos”, mas muito mais com as questies ‘quem nds _podemos nos tornar”, “como nds temos sido vepresentados” e “como essa representagio afeta a forma como nds podemos representar a nés préprios”. Elas tém tanto ver com aintengao da tradigio quanto com a prépria tradigio, a qual elas nos obrigam a ler nie como uma ineessante reiteragio mas como “o mesmo quie se transfor ma” (Gilroy, 1994): no o assim chamado “retorno is raizes”, * mas uma negociagio com nossas “rotas”.’ Elas surgem da narrativizagéo do eu, mas a natureza necessariamente fic~ ional desse processo nao diminui, de forma alguma, sua eficdcia discursiva, material ow politica, mesmo que a sen- sagio de pertencimento, ou seja, a “suturagdo i hist6ria” por meio da qual as identidades surgem, esteja, em parte, no imaginério (assim como no simbdlico) e, portanto, sempre, ‘em parte, construida na fantasia ow, 20 menos, no interior de um campo fantasmitico, E precisamente porque as identidacles so construidas dentro e néo fora do discurso que nés precisamos com- preendé-las como produzidas em locais hist6ricos ¢ institu- cionais especificos, no interior de formagées © praticas discursivas especificas, por estratégias ¢ iniciativas especi- ficas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades especificas de poder e sio, assim, mais o prt duto da marcagio da diferenga e da exclusio do que o sign de uma unidade identica, naturalmente consttuids, eum ‘dentidade” em seu significado tradicional — isto 6, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiviga, sem diferenciagsa interna, . 09 Acima de tudo, ¢ de forma diretamente contriria aquela pela qual clas sto constantemente invocaclas, as icentidades sho construfdas por meio da diferenga e nao fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio da relagio com 0 Outro, da relagio ‘com aquilo que nao 6, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitu- tivo, que 0 significado “positivo” de qualquer termo ~ e, assim, sta “identidade” — pode ser construido (Derrida, 1981; Laclau, 1990; Butler, 1993). As identidades podem fancionat, ao longo de toda a sua histéria, como pontos de identificagao ¢ apego apenas por causa de sua capacidade para excluir, paradeixarde fora, para transformar odiferente fem “exterior”, em abjeto. Toda identidade tem, & sua “mar- gem, um excesso, algoa mais. A unidade, a homogeneidade interna, que o termo “identidade” assume como fundacional nfo 6 uma forma natural, mas uma forma construida de fechamento: toda identidade tem necessidade daquilo que Ihe “falta” — mesmo que esse outro que Ihe falta seja um outro silenciado e inarticulado. Laclau (1990) argumenta, de forma persuasiva, que “a constituigio de uma identidade social é um ato de poder pois se uma identidade eonsegue se afirmar é apenas por meio da repressio daquilo que a ameaga. Dervida mos- trou comoaconstituigéo de uma identidade ext& sempre haseada no ato de excluir algo e de estabelecer uma violenta hieraquia entre os dois pélos resultantes ~ homem/mulher ete. Aguilo que € peculiar ao segundo termo é assim redvaido — em oposicao 3 essenctalidade do primeiro ~a fimgio de um acidente. Ocorre a mesma coisa com a relagio negrofbranco, nia qual o branco obviamente, equivalente a “ser humano”. “Mulhee” & “negro” sio, assim, “areas” (isto 6, termos mareaclos) em ‘contraste com os termos ndo-mareados “homem” e “bran- Laclau, 1990: p.33). Assim, as “unidades” que as identidades proclamam so, na verdade, construidas no interior do jogo do poder 110 € da exclusio; elas sio 0 resultado nao de uma totalidade naturalinevitével ou primordial, mas de um processo natue ie de “fechamento” (Bhabha, Seas “identidades” s6 podem ser ldas a contrapelo, isto 6,ndo como aquilo que fixao jogo da diferencaem um ponto de origem e estabilidade, mas como aquilo que é eonstrufdo na differance ou por meio dela, sendo constantemente de- sestabilizadas por aquilo que deixam de fora, como pode. ‘mos, entdo, compreender seu significado e como podemos teorizar sua emergéneia? Avtar Brah (1992, p. 143), em seu importante artigo “Diferenga, diversidade e diferenciagio”, evanta uma série de importantes questoes que esses novos modos de coneeber a identidade eolocam: Apesarde Fanon, éainda necessério trabalhar muito s Ss dominio psiquieo. Como se deve analisar a subjetividade ‘p6s-colonial em sua relagao com o género e com a raga? O privilogiamento da “diferenca sexual” eda primeira infin- ia na psicandlise limita seu valor explicativo para a compreensio das dlimensées psiquicas de fendmenos sociais tals como 0 racismo? De que forma a “diferenca sexual” ¢ a ordem social se articulam no processo de formagio do sujeito? Em outras pala, de que forma se deve teorizar o vineulo entre a realidade sociale a realida de psfquica? (1992, p. 142) © que se segue é uma tentativa de comegar a responder ‘teste conjunto critico mas perturbador de questies. Em meus trabalhios recentes sobre este t6pico, fiz uma apropriagao do termo “identidade” que nao 6, certamente. partilhada por muitas pessoas e pode ser mal comproendida. Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de en- conta, 0 ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos © as priticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os su- ua Jeitos sociais de discursos particulares e, por ontro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades sao, pois, pontos de apego temporaria as posigies-de-sujeito que as praticas discursivas constroem para nés (Hall, 1995). Elas sao 0 resultado de uma bem-sucedida articulagio ou “fixagdo” do sujeito ao fluxo do discurso — aquilo que Stephen Heath, em seu pioneiro ensaio sobre “sutura”, chamou de “uma intersecgéo” (1981, p. 106). “ Uma teoria da ideologia deve comegar no pelo sujeito, mas por uma descrigao dos efeitos de sutura, por uma deserigio da efetivagéo da jungao do sujeito as estruturas de significagao”. Isto é, as identida- des sio as posigées que o sujeito é obrigado a assumin, embora “sabendo” (aqui, a linguagem da filosofia da cons- ciéncia acaba por nos trait), sempre, que elas si0 repre- sentagdes, que a representagio é sempre construida ao longo cde uma “falta”, ao longo de uma divisio, a partir do lugar do Outro e que, assim, elas no podem, nunca, ser ajustadas — idénticas — aos processos de sujeito que sao nekas investidos. Se uma suturagao eficaz do sujeito a uma posigio-de-sujeito exige ndo apenas que 0 sujcito seja “convoeado”, mas que © sujeito invista naquela posigéo, entao a suturagao tem que ser pensada como uma articulagdo e nao como um processo unilateral. Isso, por sua vez, coloca, com toda a forga, a identificagao, se néo as identidades, na pauta tedrica, As referencias ao termo que desereve o “chamamento” do sujeito pelo discurso ~ “interpelago” ~ nos fazem lem- brar que essa discussio tem uma pré-histéria importante € incompleta nos argumentes que foram provocados pelo ensaio de Althusser “Os aparelhos ideolégicos de Estado” (1971). Esse ensaio introduziu 0 conceito de interpelagio & a idéia de que a ideologia tem uma estrutura especul numa tentativa de evitar o econon no eo reducionismo das teorias marxistas clissicas sobre a ideologi em um éinico quadro explicativo tanto a fungao materialista 2 daideologiana teproducao das relagées sociais de. produgio {marxismo) quanto a fungio simbliea da idoologia ne cone tituigio do sujeito (empréstimo feito x Lacan). Michele Barret dew, recentemente, uma importante contribuighe Para essa discussio, ao demonstrar a “natures profi, mente dividida ¢ contraditéria do argumento que Althueccy estava desenvolvendo”. Segundo ela, “havia, naquele en- saio, duas solugdes Separadas, relativamente ao dificil pro- blema da ideologia, duas solugdes que, desde entio, tem Nao atribuidas a dois diferentes pélos” (Barret, 191, p-96) Nao obstante, mesmo que no tivesse sido bemesuccid, Oensaio sobre as aparelhos ideolégicos de Estado assinalog um jpimento altamente importante dessa discussao, Jace queline Rose, por exemplo, argumenta no seu livro Senay lity in the field of vision (1986) que “a questao da Ties ~a forma como ela é constituida e mantida 6, portanto, a questio central por meio da qual a psicanilise entra. pa campo politico Kstafaquestio da identidade] é uma das razbes pelas quais 4 psicanalise Iacaniana chegou ~ via o eonceito de idcolo. sia de Althusser © por meio de duas tinjetdrias: do fo, Iminismo ¢ a da anslise do cinema ~ a vida intelectual inglesa. © feminismo, porque a questo da forma comn 0s individuos se reconhecem a si préprios como maren, Tinos ou femininos e a exigéneia do que eles assim o fasam parece estar em uma relacao extremamente fun. damental com as estruturas de desigualdade o subord naciio gue o fninismo se prope a muder. O cinema, porque sua foes como tin apse ideoldgico reside hos mecanismos de identificagio ¢ fantasia sexual uais todos nds parecemos purtiipar mee gee feta: cinema, sio admitides, na maioria das vezes, apenes no diva [do psicanalistal. Sea ideologh & efleaz & porque cy age nos nfveis mais rudimentares da identidade © dos impulsos psiquicos (Rose, 1956, p. 5). Entretanto, se nao quisermos ser acusados de abando- nar um reducionismo economicista para cair diretamente 113 em um reducionismo psicanalitico, precisamos acrescentar quo sea ideologia éeficaz€ porque cla age tanto “nos niveis rudimentares da identidade ¢ dos impulsos psiquicos’ quanto no nivel da formagéo ¢ das praticas discursivas que constituem 0 campo social; ¢ que é na articulagio desses campos mutuamente constitutivos, mas nao idénticos, que se situam os problemas conceituais reais. O termo “identidade” — que surge precisamente no ponto de in- terseegao entre eles ~é, assim, o local da dificuldade. Vale apenaacrescentar que éimprovavel que consigamos,algum dia, estabelecer esses dois constituintes [o psiquico € 0 social] como equivalentes ~ 0 préprio inconsciente age como a barra ou como o corte entre eles, 0 que faz do inconsciente “um local de diferimento ou adiamento perpé- tuo da equivaléncia” (Hall, 1995), mas nao é por essa raza. que ele deve ser abandonado. CO ensaio de Heath (1981) nos fazlembrar que foi Michel Pécheux quem tentou desenvolver uma teoria do discurso de acordo com a perspectiva althusseriana e quem, na verdade, registrou o fosso intransponivel entre a primeira e a segunda metades do ensaio de Althusser, assinalando a “forte auséncia de uma articulag3o conceitual entre a ideo- logia e 0 inconsciente” (citado em Heath, 1981, p. 106). Pécheux tentou “deserever 0 discurso em sua relacio com 08 mecanismos pelos quais os sujeitos si posicionados (Heath, 1981, p. 101-2), utilizando 0 eonecito foucaultiano de formagao discursiva, definida como aquilo que “determi- nao que pode e deve ser dito”. Na interpretagio que Heath faz do argumento de Pécheus: Os individuos sao constituidas como sujeitos pela forma in discursiva, processo de sujei¢io no qual faproveitando 2 idéia do carter especular da constituigio da subjetivi- dade que Althusser tomou emprestada de Lacan] o indie Iuo € identificado como sujeito para a lormagio discursiva por meio de uma estrutura de falso reconheci iy mento? (osujetto 6, assim, apresentado.como sendoafonte dos signifieados dos quais, na verdade, ele é um efeito).A nterpelacdo nomeia o mecanismo dessa estrutura de fals0 Teconhecimento; nomeia, na verdade, o lugar do sujeito no diseursivo e no ideolégico —o ponto de sua correspon déncia (1981, p. 101-2) Essa “correspondéncia”, entretanto, continuava inco- modamente ndo-resolvida, Embora continuasse a ser usado como uma forma geral de descrever 0 proceso pelo qual 0 Sujeito 6 “chamado a ceupar seu lugar”, 0 conceito de interpelacio estava sujeito A famosa critica de Hirst. A interpelagio depenclia ~ argumentava Hirst ~ de um rect nhecimento no qual, na verdade, se exigia que 0 “sujeito’ antes que tivesse sido constituido como tal pelo discurs0, tivesse a capacidade de agir como um sujeito. “Esse algo Que ainda nao é um sujeito deve jé ter as faculdades neces- sirias para realizar 0 reconhecimento que o constituird como um sujeito” (Hirst, 1979, p. 65). Este argumento ‘mostrou-se muito convincente a muitos dos leitores subse lentes de Althusser, levando, na verdade, todo o campo de investigagdo a uma interrupgao inesperada, Essa critica era cortamente impressionante, masa inter- rupgio, nesse momento, de toda investigacio, mostrou-se Prematura. A critica de Hirst foi importante, ao mostrar que todos os mecanismos que constituiam 0 sujeito pelo discur- 30, por meio de uma interpelagio © por meio da estrutura especular do falso reconhecimento, descrita de acordo com a fase lacaniana do espelho, corriam 0 risco de pressupor lum sujeito jd constituido, Entretanto, uma vez que ninguém linha proposto renunciar 4 idéia do sujeito como sendo constituilo no discurso, como um efeito do discurso, ainda cra necessirio mostrar por meio de qual mecanismo —¢ de um mecanismo que nio fosse vulnerivel & acusagao de ressupor aquilo que queria explicar ~ essa constituigio podia ser efetuada, © problema ficava adiado, mas nao us resolvido. Pelo menos algumas das dificuldades pareciam surgir do fato de se aceitar sem muita diseussio a proposicio um tanto sensacionalista de Lacan de que tudo que 6 cons- titutivo do sujeito néo apenas ocorre por meio desse meca- nismo de resolugao da crise edipiana, mas mesmo momento. A “resolugio” da erise edips guagem extremamente condensada dos evangelistas laca nianos, era idéntica - e ocorria por meio de um mecanismo cequivalente — A submissto d Lei do Pai, 2 consolidagdo da diferenga sexual, 2 entrada na linguagem, d formagio do inconsciente e (apés Althusser) ao reerutamento as ideolo- gias patriareais das sociedades ocidentais de capitalismo tardio! A idéia mais complexa de um sujeito-em-processo ficava perdida nessas discutiveis condensages € nessas equivaléncias hipoteticamente alinhadas (sera que o s1 ¢racializado, nacionalizado ou constituide como um sujeito empreendedor e liberal tardio também nesse momento [de resolugio da crise edipianal?). O préprio Hirst parecia pressupor aquilo que Michele Barrett chamou de “Lacan de Althusser”. Entretanto, como diz ele, “o compleso ¢ arriseado proceso de formagio de um adulto humano a partir de um ‘animalzinho’ nfo corres- ponde necessariamente ao proceso descrito pelo mecanis- mo da ideologia de Althusser (...)@ menos que a Grianga (..) permanega na fase do espelho lacaniana, ou a menos que és forremos o berco da crianga com pressupostos antropo- légicos” (Hirst, 1979). Sua resposta a isso 6 um tanto per- funet6ria. “Nao tenho nenhum problema com as C € nao quero declaré-las cegas, surdas ow idiotas, simples- mente para negar que clas possuem as capacidades de sujeitos filosdficos, que clas tém os atributos de sujeitos cognoscentes, independentemente de sua formagao ¢ trei- namento como sujeitos sociais”. O que esti em questo, aqui, é a capacidade de auto-reconhiecimento. Mas afirmar 116 que 0 “falso reconhecimento” & um atributo puramente cognitiva (ou, pior ainda, “filoséfieo”) significa expressar lum pressuposto sem qualquer fimdamento. Além disso, é pouco proviivel que ele apareca na crianga de um 36 golpe, caracterizando um momento claramente marcado por um “antes” © por um “depois” 3 Pareee que os termos da questao foram, aqui, inexplica- velmente, formulados de uma forma um tanto exagerada. ‘Nao precisamos atribuir ao “animalzinho” individual a pos- se de um aparato filoséfico completo para explicar a razio pela qual ele pode tera capacidade para fazer um “reconhe- cimento falso” de si préprio no reflexo do olhar do outro, que é tudo o de que precisamos para colocar em movimento a passagem entre 0 Imagindrio e o Simbélico, para utilizar os termos de Lacan. Afinal, de acordo com Freud, para que se possa estabelecer qualquer relagao com um mundo ex- terno, a catexia basica das zonas de atividade corporal © 0 aparato da sensagio, do prazer ¢ da dor devem estar jé “em agio”, mesmo que em uma forma embrionéria. Existe, ja, uma relagio com uma fonte de prazer (a relagdo com a Mae no Imaginario), de forma que deve existir algo que é capa, de “reconhocer" o que é prazer. O proprio Lacan observou, ‘em seu ensaio sobre o estigio do espelho, que “o Bilhote do homem, numaidade em que, por um curto espagode tempo, mas ainda assim por algum tempo, ¢ superaclo em inteligén- cia instrumental pelo chimpanzé, jé reconhece nao obstante ‘como tal sua imagem no espelho”, Além disso, a erftica parece estar formulada cm uma logica binavia; “antes/depois”, “ou isto ou aquilo”. A fase do espelho nao 60 comeco de algo, mas ainterrupedo —a perda, «falta, adivisd0—que inicio processo que “funda o sujeito sexualmente diferenciado (e o inconsciente) e isso depende nao apenas da formagéo instantinea de alguma capacidade cognitiva interna, mas da ruptura e do deslocamento efetua- nz oo dos pela imagem que é refletida pelo olhar do Outro. Para Lacan, entretanto, isso é jé uma fantasia—a prdpria imagem que localiza a crianga divide sua identidade em duas. Além disso, esse momento 36 tem sentido em relago com a pre~ senga ¢ 0 olhar confortadores da mie, a qual garante sua realidade para a crianga. Peter Osborne (1995) observa que, em “O campo do Outro”, Lacan (1977b) desereve “um dos pais segurando a crianga diante do espelho”. A crianga langa um olhar em divegio A mae, como que buscando confirma- Gio: “ao se agarrar a referéncia daquele que 0 olha num espelho, o sujeito vé aparecer, nfo seu ideal do eu, mas seu eu ideal” (p. 257 [242] Esse argument, sugere Osborne, “explora a indeterminagio que é inerente a discrepancia entre, por um lado, a temporalidade da caracterizaco—feita por Lacan — do encontro da crianga com sua imagem eorpo- ral no espelho como um ‘estigio’ e, por outro, 0 caréter pontual da apresentagio desse encontro como uma cena, cujo ponto dramitico esta restrito as relagdes entre apenas dois ‘personagens’: a crianga e sua imagem corporal”. En- tretanto, como diz Osborne, das duas uma: ou isso repre senta um acréscimo critico ao argumento do “estigio do espelho” (mas, nesse caso, por que 0 argumento nio desenvolvido?) ou isso introduz uma légica diferente cujas implicagdes nio sio absolntamente discutidas no trabalho subseqiiente de Lacan, A idéia de que nao existe, ali, nada do sujeito, antes do drama edipiano, constitui uma leitura exagerada de Lacan. A afirmagao de que a subjetividade no esti plenamente constituida até que a crise edipiana tenha sido “resolvida” niio supde uma tela em branco, uma tabula rasa, ou uma concepgio do tipo “antes e depois do sujeito”, desencacleada por alguma espécie de coup de thédére, mesmo que - como Hirst corretamente observou ~ isso deixe sem solugio a us

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