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BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO CYNTHIA LINS HAMLIN: A obra do sociélogo francés Raymond Boudon apresenta-se, sem divida, como uma das mais importantes contribuigdes tedrico- metodoldgicas da Sociologia contemporainea, Caracterizada por ele proprio como uma espécie de “nomadismo temético”, sua obra envolve questées substantivas relativas a temas to diversos quanto educagéo, mobilidade social, mudanga social, ideologia, conhecimento e, mais recentemente, valores morais. Por tras desta vasta produgao tedrica, esconde-se, no entan- to, uma preocupagio metodoldgica constante, definida em termos de uma “epistemologia positiva”, segundo a terminologia de Paul Lazarsfeld, ou “critica da pesquisa social”. A partir desta abordagem critica, Boudon coloca em relevo alguns dos principais debates metodolégicos que caracterizam a Sociologia desde suas origens, como agéncia/estrutura, compreensdo/explicacao, jetivismo/subjetivismo, etc., apresentando-os, no entanto, ndo mais como dualismos cujos termos sao inconcilidveis ¢ incomensurdveis, mas como simples oposigdes nas quais os pélos opostos sao analiticamente diferenciados e relacionados. Ea partir de uma destas oposigées, entre agéncia ¢ estrutura, que pretendo conferir uma unidade a obra de Boudon. A escolha desta oposi¢Zo em particular deve-se ao fato de que, como Derek Layder (1994: 118), acredito que “as reais diferengas entre os socidlogos derivam da questo de como as atividades sociais humanas (incluindo-se as atividades solo dos individuos) sio relacionadas aos contextos sociais nas quais elas ocorrem”. Ainda como Layder, e contrariamente a Jeffrey Alexander (Alexander et al., 1987) e a Margaret Archer (1995), acredito que existem sobreposigdes 64 LUA NOVA N* 48 —99 importantes entre os debates individualismo/coletivismo, agéncia/estrutura e micro/macro, e que estas sobreposigées podem ser resumidas na questo acima; mas, contra Layder e de acordo com Archer, creio que o debate agéncia/estrutura 6 0 mais fundamental ¢ 0 mais penetrante dos trés ¢ reformula de maneira mais adequada os aspectos relativos aquela questo. Deixando de lado as especificidades dos debates acima, é impor- tante salientar que, embora Boudon nunca tenha ativamente tomado parte no debate agéncia/estrutura, & possfvel analisar sua obra desta perspectiva na medida em que a adogio do individualismo metodolégico por Boudon pode ser vista como uma resposta especifica A produgio “estruturalista” que dominou a produgio sociolégica francesa dos anos 50 aos anos 70. De fato, é principalmente através da critica a0 que Boudon qualifica como “tradigdo estruturalista”, e que nos dltimos 20 ou 25 anos assumiu a forma explicita de um individualismo metodolégico, que se pode inferir sua posigao neste debate. De acordo com sua concepgiio de individualismo metodolégico, os fenémenos sociais devem ser explicados a partir das ages dos individuos que esto em sua base. No entanto, estas agdes no ocorrem em um ‘vacuo social’, mas so socialmente indexadas, diferenciando assim individualismo de ato- mismo. E este tipo de preocupagio que permite colocar 0 debate agéncialestrutura no centro de sua abordagem, ainda que de forma indireta. Referéncias mais diretas ao problema podem ser encontradas ocasionalmente em sua obra, como € 0 caso de sua formalizagao do paradigma weberiano!, ou de sua anilise da filosofia da histéria de Simmel, em um dos textos no qual ele procura justificar a centralidade do individualismo metodolégico para uma andlise adequada da realidade social (Boudon; 1986b). De acordo com Boudon (Ibid.: 861), “a questo basica de Simmel é a de que tudo o que é de interesse hist6rico € expresso ou pro- duto de fendmenos mentais”. Os fendmenos sociais so encarados por Simmel como resultado das agdes dos individuos que sdo, por sua vez, pro- duto dos processos mentais destes mesmos individuos. Processos mentais dependem tanto das circunstancias hist6ricas, quanto da situago ou ambi- ente em que os atores se encontram, ¢ & aqui que se pode encontrar a " © paradigma weberiano constitui, para Boudon, uma teoria da ago que & formalizada da seguinte maneira: M=M{ m[S(P)]}; onde “M" é 0 fendmeno macro a ser explicado, “m” é uma agio individual de um certo tipo, “'S” & a situagedo do ator e “P” é um elemento qualquer do sistema ou estrutura. Para uma andlise detalhada desta equagdo, veja Boudon; 1989b: 242. BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 65 relacdo entre agéncia e estrutura: por um lado, os elementos estruturais da situagdo representam fatos externos ou objetivos que sio impostos 20s atores sociais e que se tornam causas da atividade mental; por outro, as atividades mentais agdes individuais constituem as estruturas sociais (ou, na linguagem de Simmel, as formas sociais). Neste sentido, haveria uma telagdo intrinseca entre ago ou agéncia e estrutura ou sistema na medida em que “(...) embora os fendmenos sociais sejam sempre o produto de aces individuais, as agdes so parte de um contexto que tem uma estrutu- ra: estruturas sé podem ser compreendidas com base em agées e aces s6 podem ser compreendidas com base em estruturas.” (ibid.: 862). E importante considerar, entretanto, que, embora Boudon perceba claramente a necessidade de se relacionar agéncia ¢ estrutura, isto é, embora sua abordagem nio estabelega estes termos como incompativeis, mas, mais propriamente, como um continuum, sua adesio ao individualismo metodolégico 0 posiciona no primeiro polo do mesmo. A questo que se colo- ca a partir disto é, portanto, como o individualismo metodolégico possibilita uma sintese entre agéncia e estrutura, ou como as agdes dos individuos rela- cionam-se com 0 contexto macro-social do qual resultam e que originam, No que se refere as abordagens individualistas, é largamente aceito que um de seus focos principais incide sobre 0 carter nao-realista dos conceitos sociais. Como nos chama atengdo Gabriel Cohn em sua introdugiio ao Diciondrio Critico de Sociologia (Boudon & Bourricaud; 1993), a critica de seus autores ao que chamam de ‘realismo totalitétio” incide justamente sobre o ‘realismo’, ou seja, sobre a idéia de que ‘sistemas’, ‘totalidades’ e afins sejam reais, capazes de pro- duzir efeitos também reais. Seu argumento subjacente é que, sempre que tratadas como construges analiticas, as ‘totali dades’ sociais sao (analiticamente) redutfveis as agdes dos seus integrantes individuais. (Cohn; 1993: XXVIID. Nao € claro, entretanto, que Boudon estabelega uma ligagao tao direta entre 0 carter nao-realista dos conceitos sociais e a redugao de con- ceitos coletivos a conceitos individuais, pelo menos no ao longo de sua obra. De fato, dado que 0 conceito de individuo também considerado como um construto analitico (Boudon; 1996a), a justificativa para uma abordagem jualista parece repousar fundamentalmente no em um anti-realismo, mas em sua base epistemolégica (embora eu pretenda deixar claro que estas duas posigdes nio so independentes, como Boudon as 66 LUA NOVAN? 48 — 99 vezes parece sugerir). Para Boudon, o individualismo metodoldgico nao teria um status ontoldgico, isto 6, nao decorreria de uma negacio da existéncia de entidades coletivas em contraposigao a entidades individuais. Seu status seria meramente epistemolégico, derivado de uma concepgao de explicagao sociolégica segundo a qual explicar um fendmeno social sig- nifica estabelecer a relagdo (causal) entre razdes € acdes. No entanto, como pode ser inferido do modelo Simmeliano exposto acima, esta é apenas uma parte da explicagdio, dado que, por um lado, nao deixa claro como as agées se constituem em fendmenos sociais e, por outro, como as razées sao socialmente constitudas (como teremos a chance de perceber, a concepgao alargada de racionalidade defendida por Boudon possibilita o tratamento de razées como varidveis dependentes do contexto social, e nao apenas como varidveis independentes, como é 0 caso das teorias de escolha tacional). Neste sentido, a inica maneira de se sustentar a perspectiva indi- vidualista é reconhecer as propriedades estruturais de certos objetos soci- ais, negando, ao mesmo tempo, que exista uma estrutura que funciona como o meio de “leis sociais” ou como uma “regra através da qual a reali- dade € subjulgada” (Boudon; 1986b: 875), 0 que, segundo a concepgao de causalidade de Boudon, significa negar sua influéncia causal. Mas mesmo esta solug’o nao € satisfatéria. A idéia de uma estrutura social como um construto analitico que no apresenta poderes causais dificulta 0 argumento acerca do status epistemol6gico do individu- alismo e o coloca na fronteira com a ontologia. Isto porque existem basi- camente duas formas de se estabelecer a realidade de uma entidade teérica ‘ou conceitual: através de sua observagao mais ou menos direta na realidade empirica, ou indiretamente, através dos efeitos que ela gera (Bhaskar; 1979). Sendo assim, embora a nogdo de individuo seja um construto analitico e nao haja garantias absolutas de que o objeto a que o conceito se retere tenha sido adequadamente descrito, sua existéncia na realidade pode ser inferida no apenas em termos empfricos, mas em termos causais, pelos efeitos de suas agées. O conceito de estrutura, por outro lado, no oferece nenhuma destas possibilidades: as estruturas sociais nado sdéo empirica- mente observaveis c, ao negar scus poderes causais, Boudon nega a possi- bilidade de sua existéncia independente. Estas consideragGes seriam suficientes para qualificar 0 individ- ualismo metodolégico como uma abordagem atomista, 0 que impossibili- taria qualquer relagiio entre ag@ncia e estrutura, nfio fosse por uma forma alternativa de reabilitar o papel das estruturas sociais: as estruturas so tipos ideais ou modelos que podem se mostrar adequados na medida em BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 67 que representem a agregagdo de acdes individuais ou, como afirma Boudon, uma “sinapse de agdes”. Em outros termos, as estruturas sociais, séio elementos descritivos (¢ nao causais) que podem estar mais ou menos de acordo com a realidade, dependendo da explicagto individualista que esté na base de sua descrigdo. Esta idéia é desenvolvida por Boudon em um de seus primeiros livros, A Quoi Sert la Notion de “Structure”? (Boudon; 1968), antes mesmo de sua adesdo ao individualismo metodolégico. Seria, portanto, conveniente investigarmos a concep¢o de estrutura de Boudon e como ela se relaciona ao seu paradigma da aco, antes de investigarmos a relagiio agéncia e estrutura ao longo de sua obra substantiva. O CONCEITO DE ESTRUTURA ‘A concepgao de esirutura de Boudon deriva da andlise dos papéis que este conceito assumiu em diferentes contextos. A justificativa para tal procedimento deriva do fato que, para Boudon, existem alguns conceitos que se referem a uma realidade que independe das definigdes e das concepgdes que temos acerca dela, mas a estrutura social apenas existe quando é definida. Sendo assim, nao € possivel definir estrutura indutiva- mente, no sentido de se abstrair elementos comuns 20 objeto designado pelo conceito, Estrutura é um termo polissémico, isto é, que adquire diver- sos significados; mais precisamente, a nocao de estrutura é “uma colegio de homénimos pertencente a uma colecio de associagdes sinonfmicas” (Boudon; 1968: 22). A natureza polissémica do termo pode ser observada através de suas associagdes homonimicas e sinonimicas, tanto na linguagem cientifica, quanto na da vida cotidiana: algumas vezes 0 conceito é sindnimo de termos como ‘sistema de relagdes’, ‘soma dos elementos sendo maior do que a soma das partes’, ‘coeréncia’, etc.; outras vezes, envolve certas associagées negati- ‘vas, como estrutura/associagdes externas, estrutura/agregado, estrutura/orga- nizagio, etc.; em outros casos, no pode ser reduzido a nenhuma destas asso- ciagdes, e 0 conceito de estrutura assume diferentes significados, dependendo do tipo de teoria A qual € relacionado ou da qual deriva, Estas diferengas se~ riam fungdes do contexto no qual o conceito aparece e apenas a andlise destes contextos possibititaria a determinagdo do seu significado. Boudon (ibid.) identifica dois tipos principais de contexto no qual 0 conceito de estrutura aparece: contextos definicionais e conceitos operativos. No primeiro tipo de contexto, “estrutura” € utilizado ou para 68 LUA NOVA N° 48 —- 99 enfatizar a natureza sistémica de um objeto, isto é, para indicar que esta- mos lidando com variaveis interdependentes, ou para enfatizar que um certo ‘método’ esta sendo aplicado na descrigiio de um objeto como um sis- tema. Em contextos operativos, 0 conceit de estrutura € incorporado a uma teoria que busca lidar com a natureza sistematica de um objeto (o que obviamente implica em um certo sentido ser atribufdo ao conceito, mas nao como 0 objetivo principal da teoria). Em outros termos, contextos defini- cionais caracterizam-se pela procura de um significado para o conceito de estrutura; contextos operativos, pela tentativa de se determinar a estrutura de um dado objeto. Os papéis desempenhados por cada um destes contextos variam enormemente e sao analisados por Boudon através de uma série de exem- plos extrafdos da Psicologia, Sociologia, Antropologia e Linguistica. Iniciando por contextos definicionais, Boudon conclui que, nestes contex- tos, nao € possivel estabelecer uma definico tinica de estrutura, e qualquer tentativa de se estabelecer 0 contetido do conceito limita-se 4 enumeragiio das associagSes e oposigées evocadas porque 0 conceito ndo apresenta outro contetido, sendo este. Estrutura é, entéo, definida por suas associ- agdes sinonimicas (estrutura/totalidade, estrutura/sistema de relagoes, estrutura/todo irredutivel & soma de suas partes, estrutura/esséncia, etc.) ¢ por suas oposigées (estrutura/sistema superficial, estrutura/aparéncia exter- na, estrutura/caracteristicas observaveis, estrutura/agregado, etc.) (Boudon; 1968: 79). A identidade do conceito de estrutura em contextos definicionais € entio relacionada a este tipo de definigdo constitutiva, ¢ apenas neste sen- tido estrito tem uma identidade e um significado tnico. O segundo tipo de contexto representaria um desenvolvimento do primeiro, no sentido em que a passagem de contextos definicionais para contextos operativos decorre de uma tentativa de se construir teorias cien- tificas apés a constatagdo de que o objeto de investigacao apresenta deter- minadas regularidades, que seus elementos so interdependentes ou, em ‘outros termos, que se constitui em uma ‘estrutura’. O conceito de estrutura em contextos operativos 6, portanto, asso- ciado a um construto Iégico (uma teoria hipotético-dedutiva) que, quando aplicada a um dado sistema-objeto, define a estrutura deste objeto. Desta forma, 0 conceito de estrutura e 0 adjetivo “estrutural” apresentam um cardter homonfmico em contextos operativos, isto é, apresentam diferentes significados, de acordo com a teoria 4 qual sao relativos. Disto Boudon con- clui que as qualidades estruturais de um objeto nao sao intrinsecas ao mesmo, no sentido de representarem sua ‘esséncia’, Para este autor, 0 que BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 69 estd em jogo nao € a nogo de esséncia, mas a de significado, e significado € diretamente associado & teoria no qual 0 termo aparece. Nao € certo que Boudon sustente este intrumentalismo segundo 0 qual 0 significado de uma proposigio deriva dos instrumentos utilizados em sua andlise. Para os instrumentalistas, de forma geral, os conceitos, varidveis, indices, teorias, etc., so uma espécie de ‘ficedo util” para resolver problemas particulares: nao sto verdadeiros ou falsos, mas mais ou menos titeis, mais ou menos ‘trabalhdveis’, sempre em fung3o de um contexto determinado, de um problema particular (Lewis & Smith; 1980). Para Boudon, as teorias referem- se & realidade e, neste sentido, nao sao simples instrumentos que servem para ordenar e resumir proposigdes acerca da realidade, mas podem ser verdadeiras ou falsas (cf. a critica ao critério popperiano de refutabilidade. Boudon; 1972:413-14). No entanto, se se nega a existéncia de uma realidade indepen- dente chamada estrutura social, nao parece haver contradigdo entre se postu- lar a possibilidade de verdade ou falsidade das teorias € consider4-las como simples instrumentos que servem para mostrar as relagGes de interdependén- cia entre as varidveis com as quais lida, Posto isto, é significative que Boudon no faga nenhuma refer- éncia A nogdo marxista de estrutura, segundo a qual as qualidades estrutu- rais de um dado objeto so intrinsecas ao mesmo, embora esta consider- ago nfo tenha nenhuma conotagio ‘essencialista’, dado que a ‘natureza’ dos objetos sociais nao € fixa. Contrariamente a esta perspectiva, para Boudon a estrutura social ndo aparece como um ‘objeto’ que enconira um correspondente na realidade, mas apenas como uma forma de se organizar © real, Neste sentido, a estrutura de um objeto sé pode ser estabelecida através de uma teoria e s6 se pode falar de um ‘método estruturalista’ se com isto se refere ‘2 perspectiva muito geral que consiste em conceber um objeto que se pretende analisar como um todo, como um conjunto de ele- mentos interdependentes no qual se deve mostrar a coeréncia’. (Boudon; 1968: 213). O que Boudon néo aceita é a idéia de um método estrutural, no sentido de uma série de regras metodolégicas para a construciio de teorias: um ‘método estrutural’ nao seria propriamente um método, mas uma classe de teorias cujo carter especffico consiste na tentativa de se dar conta da natureza sistemética dos objetos com os quais ela lida. Dado que a nogdo de estrutura é to intimamente ligada & nogao de teoria, deve ficar claro que, quanto mais ‘forte’ a teoria, mais coerente e sistemdtica a estrutura revelada e o ‘método estrutural’ aplicado. Sendo assim, 0 significado de ‘estrutura’ adotado por Boudon depende funda- mentalmente da teoria desenvolvida em diferentes fases de sua obra. Antes 10 LUA NOVA N°48 — 99 de investigar com mais detalhes estas diferentes fases, gostaria de analisar outro pressuposto metatesrico de sua obra, intimamente associado ao seu individualismo metodolégico, relativo & andlise da ago social. AACAO SOCIAL COMO ELEMENTO EXPLICATIVO De acordo com Boudon (1980), a diferenga entre uma expli- cago individualista (baseada na ago) € uma explicagao coletivista é que, enquanto a Giltima baseia-se no estabelecimento de uma relago causal entre um fendmeno P ¢ um outro fendmeno, P’, (isto é, P*P), a primeira considera o fendmeno P como uma consequéncia das agdes dos individuos sob condigdes P’. Esta diferenga também é expressa por Boudon em ter- mos de duas familias de paradigmas: paradigmas deterministas? e paradig- mas interacionistas, respectivamente. Paradigmas interacionistas orientam aquelas teorias sociolégi- cas cuja linguagem sugere que ‘o fenémeno social a ser explicado é pro- duzido pela justaposigdo ou pela composi¢Zo de um conjunto de agGes’(Boudon; 1979a: 179). Paradigmas deterministas, por outro lado, so aqueles nos quais ‘os atos stio sempre explicados em termos de elementos anteriores a estes atos’(ibid.: 180). Existem quatro tipos de paradigmas interacionistas: marxianos, tocquevilianos, mertonianos weberianos. De maneira suscinta, as diferengas entre eles dizem respeito aos tipos de ele- mentos considerados relevantes para a compreensio da agdio: macro-estru- turas, instituigdes, papéis sociais, socializagiio, recursos cognitivos, etc. Nos paradigmas marxianos, as ages individuais séo consider- adas ‘no vinculadas’ em dois sentidos: o agente as desempenha sem que 2 Determinismo € tomado aqui no sentido espectfico de uma explanagdo exclusivamente em termos de elementos anteriores em questio, Neste sentido, se um ator encontra-se em ‘uma situagao na qual seja forgado a escolher um determinado curso de agao, a explicagio de tal fato ainda pode ser considerada por Boudon como pertencente ao paradigma interacionista, embora seja uma explicagio determintstica no sentido usual do termo (Boudon; 1979a). Esta {idéia € expressa por Giddens em termos de causalidade do agente (agent causality), segundo a qual uma ago "é causada pela monitoragdo reflexiva por parte do agente de suas intengBes em relacdo as suas vontades e as demandas do mundo externo”, € causalidade de eventos (event causality). Para Giddens, como para Boudon, “determinismo nas ciéncias sociais re- fere-se a qualquer esquema tedrico que reduza a ago humana exclusivamente a causalidade de eventos” (Giddens; 1993: 91-92). BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 7 tenha que considerar seus efeitos em outros individuos (elas ocorrem no ‘estado de natureza’3), e as preferéncias sao consideradas Sbvias, assumin- do o status de variaveis independentes. Paradigmas tocquevillianos so definidos por Boudon como aque- Jes nas quais as escolhas so feitas em um ‘estado de natureza’, mas os sis- temas de preferéncias sfio explicados em termos do sistema social a0 qual pertencem. A diferenga entre estes paradigmas e os anteriores refere-se 20 caréter mais ou menos evidente do sistema de preferéncias dos atores. Boudon enfatiza, entretanto, que a explicagao social dos sistemas de prefer- €ncia nfo € uma explicagdo ‘determinista’ porque as estruturas sociais deter- minam as opgdes abertas ao agente o valor relativo das escolhas, mas nio as proprias escolhas. Paradigmas de tipo mertoniano envolvem trés carac- teristicas principais: 1) as ages estudadas ocorrem em um contexto de con- trato, isto 6, a nogdo de papel é fundamental na medida em que se refere a compromissos mais ou menos explicitos dos atores; 2) estas ages, como nos casos precedentes, também obedecem ao prinefpio da busca do interesse individual; 3) as preferéncias, ou melhor, a maneira como elas emergem, podem ser consideradas auto-evidentes ou, alternativamente, como variaveis que precisam ser explicadas. A centralidade da nogao de papel nos paradig- mas mertonianos nio deve ser encarada como um elemento deterministico pois, para Boudon (1979a: 193), a variabilidade, multiplicidade e complexi- dade individual dos papéis sociais deixa muito espago para a interpretacio dos agentes. Papéis sociais sio, portanto, guias de ago, oferecendo uma ‘margem bastante grande de indeterminagao. Finalmente, os paradigmas weberianos tém como caracteristica basica 0 fato de que elementos da agilo, tais quais a estruturagiio dos sis- temas de preferéncia, a escolha dos meios apropriados, etc., devem ser analisados em termos de outros elementos, nao triviais, que a antecedem. Estes elementos nio-triviais dizem respeito nao apenas a fatores estrutu- rais, mas também cognitivos, afetivos, tradicionais, etc.. Na obra de Max Weber, a aco pode ocorrer em um ‘estado de natureza’ ou em um contex- 3 A nogdo de ‘estado de natureza’, que se contrapde ao ‘contexto de contrato’, é depois sub- stitufda por Boudon pela nogao de ‘sistema de interdependéncia’, isto é, ‘sistemas de inter- ago nos quais as agdes individuais podem ser analisada sem referencia & categoria de papel” (Boudon; 1981: 225). Esta terminologia mais recente parece ser mais adequada, na medida em que evita confusdes entre a definigio de Boudon e as definigbes da teoria politica clissi- ca de ‘natureza’ e “contrato’. n LUA NOVA N° 48 — 99 to de contrato, ¢ as preferéncias triviais podem aparecer tanto como va- ridveis dependentes, quanto como independentes. O que esta classificagdo mostra ¢ que, apesar da variagdo dos elementos anteriores & agéio considerados por cada grupo de paradigmas em particular, todos os paradigmas interacionistas parecem ter em comum 0 fato de que a agdo nao € uma consequéncia direta daqueles elementos. Existe, portanto, uma selegdo dos elementos considerados relevantes para a explicagdo que depende basicamente do tipo de problema proposto ou do fendmeno a ser explicado. Isto tem conseqiiéncias para o tipo de relagio que se pode estabelecer entre agéncia ¢ estrutura na medida em que algu- mas questées sociolégicas pressupdem uma concepgdo mais ou menos detalhada de estrutura social, situag&o (micro-interacionista), intengdes, crengas, etc. e, em alguns casos, pode ser perteitamente legitimo ‘adiar’ uma referéncia causal 4 estrutura social, recorrendo a outros elementos ndo-estruturais que intermediam aquela relagio. No que se refere especificamente 4 obra de Boudon, é interes- sante notar que a fase caracterizada por uma preocupagdo geral com 0 esta- belecimento de modelos matematicos para a Sociologia reflete uma relacdio quase que automética entre estes modelos e a busca de relagGes causais entre varidveis macro-estruturais. Quest6es socioldgicas relativas a proble- mas cujas varidveis sdo dificeis ou impossiveis de serem medidas (como crengas, por exemplo), atestam a aplicabilidade restrita dos modelos matemiticos e a necessidade de se explicitar melhor tanto as varidveis re- lativas & estrutura social e a situagéio como um todo, quanto a prépria 16- gica da ago. Neste sentido, 0 nomadismo tematico de Boudon revela dife- rengas importantes na relagdo entre agéncia e estrutura ou, dito de outra forma, Boudon enfatiza diferentes elementos explicativos, dependendo do tipo de fendmeno no qual esté interessado, A questo formulada por Layder a que me referi no inicio deste trabalho, sobre como as atividades sociais sfo relacionadas ao contexto em que ocorrem, s6 pode ser ade- quadamente dirigida & obra de Boudon se se considera o desenvolvimento de suas preocupagdes de ordem substantiva. De forma a analisar este desenvolvimento, dividirei_a obra de Boudon em quatro fases. A primeira delas refere-se ao periodo inicial de sua carreira, na qual Boudon aparece, sobretudo, como um continuador e um eritico da obra de Paul Lazarsfeld. E a fase em que se encontrava imer- so ‘no mundo preto-e-branco da matematica’ (Boudon 1996b), do desen- volvimento de uma linguagem formal para a Sociologia, culminando com a publicagao de sua tese de doutoramento L’Analyse Mathématique des BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO B Faits Sociaux. Dado que esta primeira fase nao € particularmente represen- tativa de sua obra e que Boudon raramente faga referéncia a ela, a deno- minarei ‘fase zero’, para indicar sua anterioridade em relagdo ao problema que me ocupa aqui. E ao final desta fase que Boudon transcende o tipo de preocupagao que caracterizou a obra de Lazarsfeld ao perceber que as pos- sibilidades de uma macro-Sociologia quantitativa no exaurem a gama de problemas metodolégicos da Sociologia (Boudon; 1980). Surgem assim preocupagées relativas & ldgica da andlise funcional ou dos métodos estru- turais, por exemplo, que levam Boudon a pesquisar a nogio de estrutura (Boudon; 1968). A segunda fase, que eu considero como o desenvolvimento ini- cial das idéias contempordneas de Boudon, é representada pelos seus tra- bathos em Sociologia da educagdo. Esta fase (um) caracteriza-se por uma preocupagiio com o sistema social (em consondincia com a fase anterior) € com problemas relativos 4 anélise causal. Jé se pode notar af as sementes de uma abordagem individualistat que sera desenvolvida de maneira bas- tante radical em scus trabalhos sobre conseqiiéncias nao pretendidas da agio social (‘efeitos perversos’). A isto se segue um retorno mais efetivo & nogio de sistema social e uma nova énfase na nogio de situagao em La Logique du Social. Este movimento constitui 0 que chamarei aqui de ‘fase intermediaria’, sendo que as posigées metodoldgicas desenvolvidas nesta fase podem ser consideradas como mais ou menos definitivas (pelo menos até 0 estagio atual de sua produgao intelectual). A fase mais recente da obra de Boudon nao apresenta, portanto, nenhuma mudanga metodolégica significativa. mas caracteriza-se por uma mudanga temdtica ¢ estilfstica: a unidade temdtica passa a ser o estudo das idéias ¢ o estilo torna-se cada vez mais ensaistico. Apesar de certa homo- geneidade metodolégica, é possfvel notar o desenvolvimento de uma abor- dagem menos utilitarista. De fato, quanto mais Boudon se aproxima de questées cujo valor objetivo torna-se dificil de estabelecer, menos orienta- do por uma visio de mundo utilitarista, 4 Bxiste uma alinidade entre positivismo (com excegao do positivismo francés de Comte ¢ Durkheim) e um individuatismo faio sensu. Neste sentido, € conveniente levar em conta 0 ‘nominalismo” do positivismno instrumental de Lazarsfeld (Bryant; 1985: 149ss), sua preocu- pagdo com uma ‘andtise empirista da ago” (Boudon 1997) ¢ a repercurssao que isto pode ter tido mesmo na fase mais inicial da obra de Boudon, 4 LUA NOVA N* 48 — 99 A PRIMEIRA FASE: SOCIOLOGIA DA EDUCACAO E em seu livro sobre educagiio, oportunidades e desigualdade social, publicado no Brasil com 0 titulo A Desigualdade das Oportunidades (1981)5, que os modelos teéricos desenvolvidos por Boudon ganham um ‘verniz’ individualista a partir do desenvolvimento de uma ‘andlise sistémica’ que desse conta das relagdes, geralmente bastante complexas, entre a desigualdade das oportunidades educacionais mobili- dade socials, No prefacio da edigdo inglesa (Boudon; 1974), desigualdade das oportunidades educacionais (DOE) é definida como ‘diferengas no nivel de instrugio em fungio da heranga social’ (status sécio-profissional da familia), e mobilidade, como as diferengas no status s6cio-profissional em fungdo da ‘heranga social’. Quando mobilidade € considerada neste senti- do estrito, a imobilidade social representa uma ‘desigualdade das oportu- nidades sociais’ (DOS). Assim, uma sociedade € caracterizada por uma certa quantidade de DOE se, por exemplo, a probabilidade de chegar & faculdade é menor para o filho de um trabalhador bragal do que para o filho de um advogado. Da mesma forma, uma sociedade é caracteri- zada por uma certa quantidade de DOS se a probabilidade de se alcangar um status social alto for menor para a primeira crianga do que para a segunda. (Ibid. XI) Contrariamente & visio dominante, segundo a qual a desigual- dade das oportunidades educacionais seria em grande medida responsavel pela imobilidade social ¢ profissional de uma geragio a outra, ou seja, de que haveria uma correlacio positiva e mecfinica entre educagdo € mobili- dade social (ou, dito de outra forma, entre a diminuigao das desigualdades escolares ¢ a redugdo da heranga social), Boudon tenta dar conta de uma série de paradoxos empiricamente observados acerca desta correlago teoricamente estabelecida, Para ele, estes paradoxos derivariam da inade- 5 A primeira edigao francesa data de 1973 © Conforme se depreende da definicdo de estrutura ou sistema em contextos operacionais, nfo ha, para Boudon, nenhuma contradigao entre uma abordagem individualista e uma andlise sistémica, BOUDON; AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 5 quaco dos instrumentos de andlise estatisticos e tedricos até entio empre- gados nesta area, 0 que ele tenta resolver através de uma andlise sistémica: as desigualdades sociais de todos os tipos devem ser consideradas como resultado de um conjunto complexo de determinantes cuja influéncia no pode ser tomada isoladamente, mas como um sistema. A expectativa de uma relagiio mecainica entre diferentes formas de desigualdade é entio sub- stituida por uma abordagem probabilistica, segundo a qual a relagao entre duas (ou mais) varidveis deve ser percebida como conseqiiéncia de um con- junto complexo de fatores estruturais, situacionais ¢ individuais. A tese desenvolvida por Boudon é, de maneira suscinta, ade que um aumento da igualdade das oportunidades escolares nio gera, necessari- amente, um decréscimo na desigualdade das oportunidades sociais. Dado que minhas preocupagdes aqui se referem ao aspecto metodolégico desta fase, mais especificamente & relacéio agéncia/estrutura, nao me preocuparei com 0 contetido substantivo da teoria em questo. Neste sentido, limitar- me-ei aqui A investigagao da referida relagdo conforme desenvolvida no modelo referente aos mecanismos geradores da desigualdade das oportu- nidades escolares (DOE). Analisando as teorias macrosociol6gicas relativas ao problemas da desigualdade das oportunidades peranté 0 ensino, Boudon (1981: 66ss) conclui que os mecanismos geradores de desigualdade nas sociedades industriais situam-se fundamentalmente no nivel microssociolégico, isto 6, do ambiente imediato, como a famflia nuclear, por exemplo. Isto porque, comparando as estruturas sociais (relativas & distribuicdo do status sécio- profissional) e educacionais, Boudon conclui que as primeiras podem ser tratadas como varidveis independentes ou ex6genas, mas nao as segundas: embora alguém possa ter aptiddo para preencher uma vaga em um dado tipo de trabaiho e assim alcangar o status relativo ao mesmo, para que isto ocorra, a existéncia da vaga deve anteceder seu preenchimento. Por outro lado, a estrutura educacional, ou a distribuigdo educacional é, na maioria dos casos, efeito das vontades dos individuos. O argumento é o de que um indivfduo nao pode (ou raramente pode) criar uma posicZio no mercado de trabalho, mas pode entrar na universidade, desde que seja qualificado?. Mas esta vontade individual nao é concebida por Boudon como uma va- tidvel independente, mas ‘é certamente determinada por fatores sociais’ 7 Boudon refere-se aqui a sistemas de ensino de ‘tipo liberal’ (1981: 65), 16 LUA NOVA N°48— 99 (Boudon; 1974: 21)8. O que esté em questdo aqui €, portanto, a refutagiio das teorias macrossociolégicas na medida em que uma explicagdo macro- estrutural é quase sempre finalista (pressupondo que os comportamentos individuais sdo determinados pela funcio de reprodugao social) e nao dé conta da mudanga. (Boudon; 1981: 70). Posto isto, a Sociologia deve se preocupar com a influéncia do meio imediato (como a familia, o estabelecimento escolar, etc.) sobre as motivagées dos individuos, 0 que s6 pode ser feito através de uma teoria microssocioldgica, e 0 modelo desenvolvido por Boudon procura sintetizar trés tendéncias micro-tedricas principais: a primeira representa o que ele chama de ‘teoria do valor’, segundo a qual o principal fator respons4vel pela desigualdade das oportunidades escolares é a existéncia de valores que variam em fungao da classe social, ou seja, ‘as desigualdades que se obser- va com respeito a0 éxito ou ao nivel escolar, etc., devem-se em grande parte a que as atitudes com respeito ao éxito, o valor conferido ao ensino, etc., variam segundo as classes sociais’. (Ibid.: 70-71). A segunda tendéncia, a que ele se refere como ‘teoria da cultura’ ou, na edic&o brasileira, ‘explicacic pela heranga cultural’ é representada por uma explicacdo em termos de capital cultural, isto é, pela diferenga entre o que é positivamente avaliado e ensinado na escola e em casa. Boudon acredita que estas teorias nao do conta do que ocorre na realidade: a teoria do valor tende a desconsiderar os intimeros casos des- viantes relativamente aos valores de classe; a teoria do capital cultural, por outro lado, limita os efeitos de estratificagdo a diferencas culturais, deixan- do de lado outras fontes de desigualdade, Além disso, nfo consegue explicar porque, nos tiltimos anos do ensino secundério e dentre as familias de mesma renda, a relagao entre diploma dos pais e éxito escolar dos filhos 6 insignificante, do ponto de vista estatfstico. Sendo assim, Boudon propde o desenvolvimento da terceira tendéncia identificada, que ele chama ‘teoria da posicao social, segundo a qual a ‘significagao conferida por um individuo a dado nivel escolar varia em fungaio da posicao social deste individuo’(ibid. 73). Esta posigao ¢ rela- cionada & teoria do valor, reformulando-a no sentido de, ac invés de pres- supor que diferentes classes sociais atribuem diferentes valores & educagiio, pressupde apenas que as expectativas individuais devem ser relacionadas a 8 sta consideragao nao parece ser mencionada na edigdo brasileira. BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO, 7 suas origens sociais. Assim, se um individuo de classe mais baixa e um individuo de classe média pretendem tornar-se advogados, 0 nfvel de aspi ragdo destes dois individuos nao € 0 mesmo, mas o do primeiro € mais alto, dado que deve percorrer ‘uma maior disténcia’ no sentido de satisfazé-la. Para Boudon, isto significa que alcangar um determinado nfvel de instruciio ou um determinado status implica estar exposto a custos, beneficios & riscos que diferem de acordo com a posicao social do individuo. desenvolvimento deste esquema te6rico, que representaria uma sintese das trés tendéncias indentificadas, possibilitaria no apenas a expli- cago daquilo que ele chama de ‘efeitos primérios de estratificacZo’, isto é, a heranga cultural do individuo ou as desigualdades culturais decorrentes da posigio social, mas também os desvios em relagio & norma. Este desvio € considerado uma fungdo dos diferentes sistemas de expectativas gerados pela posico social do individuo (efeitos secundérios de estratificago) & também de elementos como QI, desempenho escolar, desempenho verbal, etc., que tendem a compensar as diferengas culturais de classe, desempenhando um papel fundamental para os estudantes de classes mais baixas Com a finalidade de estabelecer 0 aspecto dindmico do modelo de explicagaio, Boudon introduz o pressuposto de que algumas varidveis exégenas, como, por exemplo, 0 aumento geral da qualidade de vida nos pafses industrializados, fazem com que haja um aumento das probabili- dades de que um indivfduo qualquer permanega na escola (ou uma diminuig&o da evasao escolar), mas esta probabilidade esté sujeita ao que ele denomina ‘efeito de teto’, isto é, uma probabilidade que j4 € alta aumentaré menos do que uma probabilidade mais baixa no mesmo perfo- do: ‘quando uma classe social envia 10% de seus efetivos escolarizaveis & universidade em determinado periodo, pode esta porcentagem dobrar no perfodo seguinte: isto é aritmeticamente imposstvel quando a porcentagem inicial & de 80%. (ibid. 5) © que © modelo dinamico mostra é que, contrariamente aos resultados obtidos em andlises sincrénicas, nas quais o fator cultural e a posicdo social assumem um peso causal semelhante na explicagio, & medi- dia em que se considera o desenvolvimento do sistema ao longo do tempo, 05 efeitos do fator cultural tendem a desaparecer, mas nao os da pos social (ou, mais especificamente, dos efeitos secundatios da estratificagao). ‘A explicago dada por Boudon pode ser resumida da seguinte forma: primeiramente, criangas das classes mais baixas tendem a apresentar desvantagens culturais em relagio as criangas das classes mais altas, tenden- do assim a apresentar um desempenho mais fraco na escola. Se 0 estudante é B LUA NOVA NP 48 — 99 relativamente inteligente (ou apresenta determinadas habilidades verbais, etc.), poderd permanecer na escola além de um certo limite com probabili- dades to altas quanto um estudante de uma classe mais alta. O que isto sig- nifica é que, depois de um certo tempo (nas classes mais adiantaidas), as dife- rengas no desempenho escolar como resultado direto das diferengas culturais so menos observadas em um grupo de estudantes. Diferengas de ‘aspiragao como uma fungao da posiggo social, por outro lado, existem ao longo do tempo, independentemente do nivel escolar na qual a observagao é feita. Sendo assim, Boudon conclui que a redugio das desigualdades perante o ensi- no nao depende (exclusivamente) de reformas escolares ou de outras medidas que atenuem a desigualdade das oportunidades de acesso & escola, mas da redugo das desigualdades econdmicas e sociais. Em anilises posteriores deste modelo, Boudon (1979a; Boudon & Bourricaud; 1993) interpreta as conseqiiéncias metodolégicas do mesmo a partir da necessidade de mediagiio que a nogiio de ago deve desempen- har no estabelecimento da relagdo entre dois (ou mais) fendmenos estrutu- rais. No entanto, é importante notar que a ago é em grande medida expli- cada a partir de varidveis estruturais que antecedem a mesma, O que esté ‘em jogo neste modelo é uma nogdo de causa segundo a qual uma dada estrutura (de estratificagdo) ‘determina’ ou direciona as expectativas e aspi- ragées dos atores sociais que, por seu turno, reproduzem ou modifica aquela estrutura, O problema surge quando Boudon qualifica esta relagao entre agéncia e estrutura em termos individualistas. A fim de qualificar seu modelo como pertencente ao paradigma interacionista, isto é, como fundamentalmente ndo-determinista, Boudon ‘opera uma diferenciagio entre um determinismo realista e um determinis- mo ‘metodolégico’: este ultimo, embora obedeca a uma sintaxe determin- ista, isto é, baseie-se inteiramente em proposigées do tipo ‘A (anterior a B) explica B’ (Boudon; 1979a), concebe as relagées estatisticas como uma sinépse de agées cuja estrutura légica pode ser entendida em um estégio posterior da explicacao a partir da construgdo de um novo modelo intera- cionista. Uma relacao ‘causal’ do tipo (P—P’) € entaéo concebida como uma proposigdo descritiva que deve ser explicada, para usar a expressio de Giddens, a partir da causalidade da agéncia (agent causality). Enfatizar o cardter descritivo ou ‘ndo-realista das estruturas sociais apenas ‘adia’ o problema da determinagdo da ago e néo oferece nenhuma garantia acerca da possibilidade desta determinagao. Contrariamente ao que Boudon parece sugerir, isto no se deve & impossi- bilidade de uma regressio ad infinitum, mas ao fato de que, como 0 proprio BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 79 Boudon (1974) reconhece, as vontades, desejos, expectativas individuais sdio, em grande medida pelo menos, determinadas por fatores sociais, Neste sentido, talvez nao seja uma hipétese implausfvel a idéia de que a énfase de Boudon em uma abordagem individualista, nesta fase de seu trabalho, visava simplesmente relativizar 0 peso causal dos fatores estruturais. Relativizar a influéncia dos fatores sociais na ago humana nao implica, no entanto, em uma abordagem individualista. De fato, acho mesmo plausfvel que o modelo desenvolvido por Boudon em A Desigualdade das Oportunidades nao leve, necessariamente, a uma con- clusao deste tipo. A relagio entre estrutura e agiio nao precisa ser entendia em termos deterministas, e uma alternativa possivel ao sociologismo ¢ 20 voluntarismo seria interpretar a determinagio da ago em termos de tendéncias estruturais que podem ou nao ser efetivadas, dependendo de se os ‘poderes causais’, tendéncias ou ‘capacidades’ inerentes aos atores pos- sibilitam esta efetivagdo. A explicagdo pode, entéio, assumir a seguinte forma: existe uma tendéncia (estrutural) segundo a qual os individuos per- tencentes aos estratos mais baixos do sistema de estratificagao apresentam um baixo desempenho escolar, mas esta tendéncia nao € sempre efetivada porque os poderes causais de certos individuos (QI alto, capacidades ver- bais, etc.) podem neutralizar os poderes causais da estrutura social Além disso, nao é certo que determinados poderes causais indi- viduais possam ser explicados (sociologicamente, pelo menos) sem refe- réncia A estrutura social. Sem querer entrar em detalhes acerca da definigio de termos como QI, muitos atributos individuais nado podem ser definidos simplesmente em fungdo de capacidades pré-sociais, inerentes aos indivi- duos (0 que nao significa que atributos deste tipo nao existam ou que nao tenham nenhum papel na determinagao da agi). Finalmente, a idéia de que as estruturas sociais sio meramente proposigdes descritivas, nulas de poderes causais e que no encontram re- ferente na realidade, significa, de acordo com a prépria definigao de estru- tura em contextos operacionais (Boudon; 1968), ou que a teoria que expli- ca a emergéncia de uma estrutura educacional particular niio pode ser con- siderada ‘verdadeira’ (seja qua! for a definigao deste termo), ou que a ativi- dade social cientffica ndo é um empreendimento acumulativo, no sentido estrito de que suas descobertas anteriores podem ser utilizadas para a expli- cagiio de fenémenos novos ou ainda inexplicados. ‘Apesar dos problemas relativos a uma interpretagio individua- lista dos modelos de educagdo desenvolvidos por Boudon. a importancia que os mesmos apresentam para o desenvolvimento de sua obra posterior 80 LUA NOVA.N® 48 — 99 pode ser atribuida & énfase no caréter puramente heurfstico da andlise estru- tural. Com afirma o préprio Boudon (1986a: 314), ‘(...) foi sobretudo a par- tir de L'Inégalité des Chances que eu percebi o cardter mais propriamente heurfstico que explicativo da anélise causal’. E também neste livro que aparecem suas primeiras indagagdes acerca de questdes relativas a racionalidade e escolha individual, e que o fazem mudar o foco da deter- minagio das relagdes entre variéveis macro-sociais, para para a relagio entre as decisdes tomadas a nfvel individual e 0 resultado estrutural de sua agregagio. A FASE INTERMEDIARL. SOCIAL EFEITOS PERVERSOS E ORDEM Efeitos perversos referem-se aquilo que é normalmente chama- do ‘conseqiiéncias nao-pretendidas da aco social’, ‘efeitos emergentes’, ‘efeitos de agregagio’ ou, nos termos de Popper (apud Boudon; 1979a:7), ‘repercussdes sociais nao-intencionais de ages humanas intencionais’. Os efeitos perversos encontram-se no centro da problematica agéncia/estrutu- ra, j4 que a concepcio de ator inerente a esta abordagem caracteriza-se como um Homo Sociologicus racional, isto é, ‘no determinado por forgas sociais exteriores’, cuja racionalidade é limitada, ou seja, um ator relativa- mente consciente das exigéncias estruturais que limitam suas possibil dades de agio (ibid.: 13-15). ‘A importancia dos efeitos perversos para a obra substantiva de Boudon deriva do fato de que so concebidos como uma forma importante de mudanga social, ¢ sua influéncia pode ser sentida em situagdes da vida cotidiana, na Iégica da aco coletiva, na mudanga institucional, etc. De forma a ilustrar esta generalidade, Boudon trabalha com trés tipos prinei- pais de exemplos: aqueles tirados da vida cotidiana, exemplos ficticios que assumem a forma de modelos e exemplos tirados de dados sociolégicos empiricos, fatos reais, etc. Para Jean Pierre Favre (1980), 0 valor demons- trativo destes exemplos seria afetado pela heterogeneidade dos mesmos, na medida em que alguns parecem ter sido construfdos com o propésito Gnico de demonstrar a centralidade dos efeitos perversos para a Sociologia, mesmo em casos onde a ocorréncia do fendmeno nao parece inteiramente caracterizada, Apesar do carter viesado e talvez. um tanto artificial de alguns dos exemplos oferecidos por Boudon, existe um grande ntimero de casos BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 81 que efetivamente comprovam a importéncia de se perceber as estruturas sociais como resultantes deste tipo de efeito. No entanto, pretendo argu- * mentar aqui, existe uma diferenga fundamental entre perceber a estrutura social como o resultado da combinagio (nao da simples agregaciio) de ages individuais (0 que pode gerar algum ‘efeito emergente’), ¢ assumir que as estruturas sdo sempre redutiveis as agdes dos individuos Efeitos Perversos e Ordem Social (1979a) apresenta-se como uma colegio de artigos nos quais Boudon tenta estabelecer a importancia destes efeitos para a teoria sociolégica. E em La Logique du Social (1979b) que Boudon extrai grande parte das conseqiiéncias tedricas desta idéia ao analisar 0 tipo de estrutura social que facilita a ocorréncia dos efeitos per versos, por um lado, e que é gerada por cles, por outro. Além disso, af € introduzida uma outra categoria para dar conta do nivel micro da andlise e que representa um elemento importante para a relagio agéncia/estrutura: o conceito de situagai A ocorréncia dos efeitos perversos esta intimamente associada a um tipo de estrutura ou sistema social, denominada de sistema aberto ou de interdependéneia, Esta terminologia é, de fato, uma reformulagio da idéia de contexto natural ou contexto de natureza (Boudon; 1979a) na qual a triade sistema aberto/de interdependéncia/de natureza opde-se a sistema fechado/funcional/de contrato. A diferenca entre estes dois conjuntos de conceitos refere-se, fundamentalmente, & ‘margem de autonomia’ do ator social frente ao contexto social em que se encontra, Neste sentido, quanto menor a margem de autonomia do agente individual, menores as chances de efeitos perversos, embora eles também ocorram em sistemas fecha- dos/funcionais/de contrato, dada a existéncia de uma margem de autono- mia na interpretacaio dos papéis sociais e na existéncia de sub-sistemas de interdependéncia em qualquer sistema funcional. B importante notar, nesta fase, a énfase quase que exclusiva no aspecto restritivo da estrutura social. Embora Boudon insista em afirmar que a acdo individual é sempre resultado de escolhas individuais, a dife- renga estabelecida entre sistemas de interdependéncia e sistemas fun- cionais sugere uma oposigio entre estrutura social e liberdade individual. Esta oposicao, se tomada estritamente, leva ou a uma negagao da influén- cia de fatores estruturais na agio (e entao ela é ‘auto-causada’), ou 4 visio de que nao hé lugar para a ago quando houver influéncia de fatores estru- turais, A reconciliagao entre liberdade individual e determinismo social & tentada através de uma qualificagao do postulado durkheimiano acerca do cardter externo e objetivo das estruturas sociais: 82 LUA NOVAN? 48 — 99 .) a divisdo do trabalho, a nuclearizagiio da familia, o cardter oligdrquico dos partidos democréticos e a anomia no so conse- quéncia da vontade de ninguém. Este fenémenos impdem-se ds vontades individuais de tal forma que parecem aos individuos pro- dutos de forgas andnimas. Contudo, estas forgas imateriais sto simples projecdes de estruturas de interdependéncia. Estas estru- turas ndo podem ser reduzidas aos individuos que as compéem. Isto ocorre, nao s6 porque, de maneira geral, os agentes envolvi- dos em situagdes de interdependéncia nio escolheram direta- mente as instituigdes que as definem, mas também porque a colegéo de individuos constitui uma totalidade que é irredutivel & soma de suas partes. (Boudon; 1981: 281). (Minha énfase). Esta tentativa de demonstrar todas as estruturas sociais como derivadas de sistemas de interdependéncia e, em dltima andlise, das ages individuais, representa um dos paradoxos mais fundamentais do individua- lismo metodolégico de Boudon: se se considera que os efeitos perversos so resultado da agregagdio de ages e que este resultado ¢ irredutivel a0 que foi agregado, entiio as estruturas sociais necessariamente apresentam um status ontolégico que garante uma certa autonomia das mesmas em relagio as ages. Por outro lado, se esta autonomia & percebida meramente em termos um elemento inibidor ou coercitivo cuja existéncia é inferida através ‘dos efeitos de pressfio que condicionam a conduta’ dos atores (Giddens; 1979: 51), entdo sobra pouco espago para a agdo na explicacio sociolégica. A questo central parece ser, entdo, a de como conciliar a autonomia relativa das estruturas sociais sem eliminar a ‘causalidade da agéncia’.. Este problema parece ser minimizado (embora nfo resolvido) através da utilizagao da nogao de situaco, um elemento mediador de agén- cia ¢ estrutura, na medida em que possibilita a integragdo de normas e regras sociais na explicagio através de uma teoria da motivagio que leva em conta os pélos objetivo e subjetivo da andlise. Para Boudon, a agao € resultado tanto da estrutura social, quanto da situagio no qual 0 individuo se encontra. A idéia de uma légica da situagao (cf. Popper) est no cerne de sua concepcao de efeitos perversos, mas, na maioria das vezes, nao se distingue da nogdo de estrutura na fase com a qual estamos lidando. Curiosamente, Boudon nunca define situagiio de maneira precisa e recusa- se a dar uma definicdo @ priori, apesar da centralidade do conceito. Indagado acerca desta questo, responde: ‘situagao refere-se a todos os dados que esto 14, na mente das pessoas ou em seu ambiente, e que eu ‘BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 83 devo acessar se quero responder a uma questo. (...) Os elementos que vocé deve considerar dependeriio do que vocé quer explicar, portanto vocé nao pode defini-la (a priori). E um grande saco de coisas, eu reconheco, mas € importante tomar conta deste grande saco.’ (Boudon; 1996b). E na fase mais recente de sua obra que Boudon distingue de forma mais efetiva entre os aspectos micro- ¢ macro-sociais da nogio de ituagdo, especialmente no desenvolvimento de seu modelo de ‘racionali- dade cognitiva’. A FASE RECENTE: O ESTUDO DAS IDEIAS A fase mais recente da obra de Boudon pode ser caracterizada, grosso modo, pelo desenvolvimento de uma teoria da racionalidade na qual a explicagio dos sistemas de preferéncia assume um papel fundamental Esta idéia pressupde uma teoria das crengas e do conhecimento e, por esta razi0, Boudon concentra-se no estudo das ‘idéias recebidas’ (idées recues) ou, em termos da problematica agéncia/estrutura, como a estrutura social e a situacio do ator afetam as crengas, 0 conhecimento e, indiretamente, a ago. Isto nao significa uma mudanga no foco da andlise, no sentido de que aagéncia passa a ser 0 efeito, e no a causa das estruturas sociais (afinal, © principal objetivo da Sociologia é, para Boudon, a explicagio de fend- menos macro-sociais), mas simplesmente que a compreensdo e explicagdo das crengas coletivas pressupde uma certa concepgao da estrutura e situ- ago sociais que as precedem. A teoria da racionalidade desenvolvida por Boudon, contrariamente as teorias de escolha racional, possibilita uma explicagdo das crengas e preferéncias, isto é, pode-se consider: varidveis dependentes. O estudo da origem das idéias inclui crengas falsas ou frigeis de todo tipo, assim como crengas sdlidas e verdadeiras. As primeiras sio tratadas, principalmente em A Ideologia (1989a)9 e em L’Art de se Persuader (1990 a), enquanto que as tltimas. em Le Juste et le Vrai (1995 a). Ideologia € definida por Boudon como conhecimento falso, embora 0 conceito nao seja redutfvel & idéia de argumentos cientiticos ilegitimos. Ideologias so um ingrediente normal do conhecimento cient las como 9 A primeira edigdo francesa data de 1986. 84 LUA NOVA N° 48 — 99 fico porque os modelos desenvol vidos para explicar a realidade so sempre imperfeitos ¢, neste sentido, sdo freqiientemente o produto de uma inter- pretaco realista ou, 0 que para Boudon é a mesma coisa, essencialista destes modelos. Além disso, as ideologias so produzidas néo ‘apesar’ de 0s atores serem racionais, mas ‘porque’ o so: ideologias so fenémenos compreens{veis, o que para ele significa que sio fenémenos ‘mais ou menos racionais’ ou nos quais a irracionalidade assume um papel expli tivo residual. De forma a apreender 0 significado das ideologias, isto é, de compreender suas origens, Boudon considera fundamental tomar os atores que as produzem e os que as adotam como situados. Isto porque 0 mundo. nao € percebido da mesma forma de todas as perspectivas, e um ponto de vista particular depende ndo 6 da posigdo que um ator ocupa na estrutura de estratificagdo, mas também daquilo que se sabe e daquilo que nao se sabe. Esta idéia é desenvolvida através de uma categoria que Boudon con- cebe como ‘efeitos de situacdo’, que compreende ‘efeitos de posigdo’ e de ‘disposigao’. Efeitos de posigao derivam da posig&io social do ator e podem engendrar outros tipos de efeitos, como ‘efeitos de perspectiva’ e ‘efeitos de papel’. A nogio de disposigao, por outro lado, refere-se &s intenciona- lidades dos atores, no sentido husserliano do termo, isto é, aos objetos aos quais a atengiio é dirigida. Deve-se notar, entretanto, que Boudon enfatiza a dimensao cognitiva da intencionalidade, em detrimento de uma possivel dimenso simbélica e, neste sentido, as disposigdes sdo definidas em ter- mos de recursos cognitivos. Além disso, quando as disposig6es assumem uma dimensdo ética ou afetiva, Boudon fala de habitus, tomando um grande cuidado para diferenciar 0 sentido que atribui ao termo daquele atribufdo por Pierre Bourdieu (cf. Bourdieu; 1996). Boudon identifica, corretamente a meu ver, a nogao de habitus de Bourdieu a um programa no sentido informatico do termo, a uma espé- cie de reflexo. Para Boudon (1989a: 291) as ‘boas definigées’ de habitus derivam de Aristételes, S. Tomés de Aquinas, Wittgenstein e G. Ryle, para quem o conceito no exclui um certo grau de voluntarismo na agio, nio é inconsciente, nao tem um contetido fixo, néo é mecanico, nao é determi nado exclusivamente de maneira social nem produto exclusivo da posigao dos atores no sistema de estratificagao. Outra categoria importante desenvolvida por Boudon para a andlise da ideologia é a de ‘efeitos de comunicagao’. Esta categoria esta intimamente relacionada & de autoridade, no sentido de que certas idéias BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 85 so tomadas como verdadeiras porque as pessoas consideradas experts no assunto a que se referem as consideram verdadeiras. De forma a ilustrar este processo, Boudon faz. uso das nogdes cibernéticas de ‘caixas-brancas’ e ‘caixas-pretas’. Dado que certas disposigées, ou certos recursos cogni tivos, so associados a posigdes sociais particulares, certas idéias si0 nor- malmente tratadas como ‘caixas-pretas’ porque, ao invés de incorrer nos custos associados ao conhecimento especializado, pode ser mais racional de um ponto de vista individual nao buscar os argumentos que embasam uma idéia particular, mas apenas considerd-la como verdadeira com base em um argumento de autoridade. Finalmente, existe uma terceira categoria de efeitos aos quais os produtores de ideologias esto sujeitos: os efeitos epistemoldgicos. Estes efeitos sto derivados dos a priori, quadros de referéncia ou paradigmas uti- lizados pelo sujeito cognoscente ao aprender a realidade. O argumento principal desenvolvido por Boudon na caracterizagiio dos efeitos episte- moldgicos € que tanto o lexicon quanto os paradigmas da ciéneia so cheios de ‘formas a priori’, isto 6, de nogdes consideradas auto-evidentes ou suficientemente aceitas para que no sejam questionadas. Embora nao disponha aqui de espago suficiente para anali nenhum dos estudos de caso desenvolvidos neste livro, gostaria de chamar atengao para uma limitacio da teoria da ideologia, decorrente, possivel- mente, de uma énfase exagerada nos aspectos voluntaristicos da aco. A maneira como a nogao de situaco € trabalhada nesta obra tende a descon- siderar alguns aspectos importantes da relagio entre a posig&o ¢ as dis- posigdes dos atores pois, de forma a negar uma relagdo necessaria e sufi- ciente entre estes dois elementos através da idéia de que nada ocorre ‘nas costas’ ou independentemente da vontade dos individuos, Boudon elimina uma categoria importante de seu estudo: o poder. ‘Como Boudon reconhece, a percepcio nao € um fendmeno dire- toe imediato, e a propria idéia de uma perspectiva social inclui outros ele- mentos apenas indiretamente ligados &s habilidades cognitivas individuais. A percepcdio é uma fungdo da intencionalidade (no sentido acima definido), mas também € fungado da habilidade de certos individuos e grupos de manipular e enganar outros. Esta habilidade nao pode ser adequadamente compreendida através do conceito de autoridade e, neste sentido, os efeitos de comunicacdo (que também sio relativos a efeitos de posigdo e de posigdo) devem fazer referéncia a relages de poder que nao se baseiam simplesmente em processos de autoridade: existe um equilfbrio delicado entre persuasdo e coergéio na medida em que a crenga em determinadas 86 LUA NOVA N° 48 — 99 idéias falsas também envolve a aceitaciio de regras de um jogo que nem sempre so questionadas. Este argumento é particularmente importante para analisar fendmenos como a influéncia restrita das teorias desenvolvi- das em paises ‘subdesenvolvidos’ (cf. Boudon; 1989a : 225-248). E importante considerar que a redug3o das disposigdes A sua dimensao cognitiva refere-se As tentativas de Boudon de estabelecer uma teoria da racionalidade que enfatize a importancia dos elementos cogni- tivos para a explicagao social e, neste sentido, ela € plenamenie justificé- vel. Por outro lado, esta reducio minimiza, talvez excessivamente, outros elementos fundamentais da ago humana, que passam a ser vistos como simples resfduos explicativos. E através deste recurso, por exemplo, que Boudon negligencia 0 conceito de habitus e deixa suas origens e efeitos inexplicados. Apesar da critica & definigao de Bourdieu, Boudon ndo ofe- rece uma alternativa adequada do conceito, e tal alternativa € necesséria tanto no sentido de fornecer uma descrigéio adequada das relagdes de poder envolvidas na interagio social, quanto no sentido de estabelecer um elo mais forte entre os aspectos objetivos da posigio social dos atores e dos aspectos subjetivos das disposigGes ligadas a ela. Curiosamente, em Le Juste et le Vrai (1995), Boudon reformula a nogao de disposigao e, embora o termo nao seja definido de maneira pre- cisa, esta claramente mais préximo da definigdo de Bourdieu do que em L'ldéologie. A dimensio cognitiva do termo nao € mais enfatizada, em compensago © mesmo ndo é mais considerado explanatério: as dis- posigdes podem ser individuais ou coletivas e, embora disposigées indivi- duais possam explicar alguns fendmenos psicoldgicos, as disposicgdes so- ciais encontram-se na raiz da fraqueza dos conceitos coletivos. Segundo Boudon (1995: 258), conceitos coletivos (...) imputam as disposigdes a responsabilidade exclusiva das ages, que reduzem, assim, ao status de comportamentos; difi- culdade suplementar: eles fazem das disposigdes a causa tinica dos comportamentos individuais. Terceira dificuldade: estas dis- posicdes coletivas tém o cardter de forgas ocultas; toda possibi- lidade de critica pelo real de uma teoria que inclua tais conceitos € entdo, por princfpio, exclufda. Nao € certo que Boudon redefina disposigo para eliminar o aspecto voluntaristico de uma nogao baseada exclusivamente em habilidades cognitivas individuais. Quaisquer que sejam suas razdes, esta redefinigao BOUDON; AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 87 ainda deixa sem solugao 0 problema acerca do grau de consenso de determi- nadas idgias falsas. Este consenso, como afirma Margaret Archer (1996) 6, em larga medida, resultado das relagdes de poder que ocorrem no nivel da agio e, embora 0 conceito de poder nao apresente nenhuma dificuldade adi- cional 4 andlise social no nivel da aco, deve-se considerar que ele coloca sérios problemas a uma abordagem voluntaristica ¢, possivelmente, a uma teoria da racionalidade baseada na idéia de ‘boas razes’. A énfase na agéncia humana e em uma nogio de racionalidade cognitiva ainda est presente em L’Art de se Persuader (1990), embora de maneira menos voluntarista do que em A Ideologia. O titulo daquele livro é sugestivo (A arte de se persuadir), pois pode ser entendido tanto no sentido de se persuadir a si préprio como de se persuadir outros. Seu tema central re- fere-se aos ‘efeitos epistemoldgicos’ jé referidos em A Ideologia e sua proposicio basica € a de que conclusdes inaceitdveis podem ser alcangadas a partir de premissas sélidas, isto 6, de que os individuos tém, freqiientemente, boas razées para crer em idéias falsas ou ‘frdgeis’. A nogdo de ‘boas raze: como um elemento explicativo descarta a idéia de que os atores sociais so sempre movidos por forgas que escapam a avaliagao subjetiva de suas situa ges, embora Boudon nio negue que algumas causas afetivas possam entrar na explicagao de crengas (Ibid.: 46). Por outro lado, esta concessiio a causas afetivas ndo implica em nenhuma concessio ao determinismo (no sentido estrito em que Boudon define o termo) dado que sempre pode existir um ele- mento de racionalidade em aces afetivamente orientadas. E importante notar que a nogdo de boas razdes inclui razdes objetiva e subjetivamente boas ¢ também aquelas apenas subjetivamente boas, isto ¢, boas de acordo com a perspectiva do ator. E na obra de Simmel que Boudon encontra uma série de razGes subjetiva mas nao objetivamente boas (designadas pelo termo geral de ‘boas razGes’) para se crer em idéias falsas ou frageis e, desenvolve, a partir dela, um modelo para explicar este fendmeno que ele chama de ‘modelo Simmeliano’ Segundo Boudon (1990), Simmel aceita 0 principio kantiano de que 0 conhecimento nao é uma cépia da realidade, mas pressupde uma inter- vengao ativa do sujeito em sua produgao através da mediagao de elementos iori. Por outro lado, actedita que os a priori sio muito mais numerosos ¢ varidveis, no tempo e no espaco, do que Kant estabeleceu. Os a priori sto concebidos como uma espécie de quadro de referéncia para o pensamento, percebidos pelo sujeito apenas de maneira meta-consciente e considerados como evidentes o suficiente para ndo serem questionados a cada situacao. Os @ priori neo-kantianos, por serem socialmente indexados, isto é por nio 88 LUA NOVA N* 48 — 99 serem auto-evidentes no mesmo sentido que os a priori kantianos, possibili. tam o conhecimento, por um lado, mas também podem gerar falsas idéias acerca da realidade. A idéia central do modelo de Simmel 6, entiio, a de que uma argumentacdo perfeitamente valida pode conduzir a idéias falsas na medida em que nao percebemos as proposigGes implfcitas que a circundam © em que n&o tomamos consciéncia do fato de que nossas conclusdes derivam também destas proposigdes implicitas que nés adotamos implicita- mente porque temos boas razdes para adoté-las. (Boudon; 1990: 60-61). Enquanto que L'Art de se Persuader lida com a explicagao de crengas positivas (acerea do que 6), Le Juste et le Vrai (1995) lida tanto com crengas positivas quanto normativas (acerca do que deve ser); daf o subtftulo: ‘Etudes sur ’objectivité des valeurs et de la connaissance’ (estu- dos sobre a objetividade dos valores e do conhecimento). A preocupagao de Boudon com as crengas normativas leva ao desenvolvimento da nogio weberiana de racionalidade axioldgica, que deve ser interpretada como conseqiiéncia da regra metodolégica de explicar os fendmenos sociais através das razdes dos individuos. As crencas positivas normativas que Boudon procura explicar sio coletivas, e 0 cardter coletivo das mesmas é percebido como uma con- seqiiéncia da ‘objetividade’ das razdes que estéo em sua base. Enquanto que as crenas individuais devem ser interpretadas em termos do significa- do que elas assumem para um dado individuo, as crengas coletivas so con- sideradas como resultado das razées que qualquer ‘duo daquela cole- tividade tem para adoté-las, isto é, crengas coletivas so o resultado de razSes que todos percebem como vélidas. A abordagem cognitivista desenvolvida por Boudon opde-se 20 que ele denomina ‘causalismo’ e que, em termos do problema agéncia/estrutura, refere-se aos elementos que devem considerados como causalmente eficazes na explicagao sociolégica. Para Boudon, existem duas categorias principais de causas que sao preferidas pelos ‘causalistas’: causas afetivas (psicolégicas) e causas sociais. Sem negar a importancia das causas afetivas na explicagio de diversos tipos de comportamento (inclusive social), Boudon acredita que este tipo de explicagio tende a ser super-valorizado ¢ estendido a dominios nos quais uma explicagao por razbes seria mais apropriada. Talvez o problema seja melhor caracterizado em termos de um ‘emocionalismo’, no sentido de uma relagio causal que se estabelece dos sentimentos para as razSes (sentimentos como causas das razes), jd que, para ele, nos sentimentos morais, a causalidade normal- mente se estabelece das razSes para os sentimentos: BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 89 Nao é mais questo de negar que, na maioria dos casos, ele- mentos afetivos ¢ elementos racionais se misturam indissociavelmente. O sentimento de indignacao que nés experimentamos quando uma pessoa enfraquecida pela idade € privada (soulagée) de seus recursos de maneira indelicada por alguém que Ihe € préximo, fundamenta-se em razdes uni- versais'0, E porque este sentimento apéia-se em razes imediatamente compreensfveis por qualquer um que é experimentado de maneira tio viva no plano afetivo. Mesmo estas razées sendo apenas imperfeitamente con- scientes para 0 sujeito, so exatamente elas que constituem a causa de sua reagGo ¢ do sentimento que ele experimenta. (Boudon; 1995: 169). O ‘causalismo social")! seria um outro adversario da explicacdo através de razGes. Nesta abordagem considera-se a socializagiio como a prin- cipal, sendo a nica, causa das crengas e das ages. A critica de Boudon a esta abordagem refere-se ao fato de que, embora as crengas e ages variem no tempo, espago, circunstincias e de acordo com o contexto social em geral, esta dependéncia da situagao social nfo é valida em si mesma: a forga da convicgiio nao deriva da socializagaio, mas da crenga do ator de que ela det va de razGes que podem ser defendidas através da argumentagio. ‘A questo que nos surge agora é a de como Boudon dé conta das razSes que fundamentam as crengas. Uma forma possivel seria caracterizar © ator como racional, no sentido de que ele sempre procura maximizar seus interesses ou preferéncias. Boudon, no entanto, discorda desta solugao, argu- mentando que esta abordagem pressupde 0 estabelecimento de uma relagdo consciente entre meios € fins ¢ que existe um grande ntimero de agdes inspi- radas por razes meta-conscientes que nao apresentam nenhum fim (instru- mental) particular. Segundo Boudon (ibid.: 530), a redugo dos diversos tipos de ago 3 acdo instrumental leva a uma teoria da agdo humana que é no ape- nas abstrata, mas irrealista. Uma teoria mais realistica deve levar em conta que as razées derivam mais ou menos diretamente de uma conjungdo de principios e fatos empfricos, légicos e morais, alguns dos quais universais, outros contextualmente indexados, Em suma, uma teoria da ago humana deve levar em conta todos aqueles elementos que influenciam a agao e que Boudon resume na nogao abstrata de situagao. '0 A ironia da frase original fica perdida na tradugio. No original, ‘Le sentiment d"indigna tion quén éprouve lorsqu’une personne affaiblie par I"age est soulagée de ses ressources. par tun proche indélicat se fonde sur des raisons universelles.” 'T Este termo néo é de Boudon, mas constitui uma tradugdo livre do termo ‘analyse causal- iste’. Deve ser entendido no mesmo sentido de ‘determinismo social’, 90 LUA NOVA NP 48 — 99 © modelo de racionalidade cognitiva ilustra particularmente bem a maneira pela qual estes elementos da situaciio podem ser incorpora- dos em uma explicagdo de crengas ¢ ages: ‘X fez Z porque tinha boas raz6es para fazer/crer (em) Z, dado que...’. O tipo de argumento apés as re- ticéncias pode ser mais ou menos complexo, dependendo do tipo de fend- meno a ser explicado e das perguntas que guiam a explicacdio. Exemplos de argumentos diferentes que podem ser indefinidamente desenvolvidos sao oferecidos por Boudon (1993: 17): (1) dado que Z era a melhor maneira de se alcangar G, .(2) dado que X acreditava que Z era a melhor maneira de se aleangar G e que ele ou ela tinha boas raz6es para acreditar nisto, dado que... (2.1) Z & verdadeiro, (2.2) Z 6 consequéncia de T e que X tinha boas razdes para crer em T, dado que... (2.3) Z € bom, (2.3.1) dado que é desejavel a todos, (2.3.2) dado que resulta de T, (2.3.2.1) e que X tinha boas razGes para crer em T, -(2.3.2.1.1) dado que que Boudon procura enfatizar neste modelo & que, exceto em casos marginais, o comportamento intencional inclui dimensdes nao inten- cionais, ou ‘atitudes proposicionais’ (Davidson; 1980), do tipo acreditar que, esperar que, temer que, etc. Estas atitudes, devem ser explicadas com recurso 2 estrutura social c & situago dos atores, dado que nogdes como o verdadeiro, 0 bom , 0 justo, etc, so socialmente construidas. O cardter socialmente construfdo da nogio de verdade pode ser determinado mesmo em dreas do conhecimento consideradas como absolutamente objetivas. Considere-se 0 exemplo seguinte extrafdo da matematica e analisado por Boudon (1995: 333): Por que uma proposico do tipo “nao existem um p € um q inteiros tais que p/q= V2", pode ser considerada como objetiva- mente valida? Porque esta proposiciio é corretamente deduzida de princf- pios que esto de acordo com as regras de dedugiio l6gica. Dado que ‘cor- retamente’ refere-se a estas regras de dedugiio I6gica, a proposigao acima 6, em um sentido importante, uma verdade construfda. Embora seja, em principio, possfvel uma aritmética baseada em outros prinefpios, os princf- pios existentes explicam a realidade de maneira satisfat6ria 0 consenso estabelecido em torno deles é 0 produto de razées sélidas. BOUDON: AGENCIA, ESTRUTURA E INDIVIDUALISMO METODOLOGICO 9o1 Da mesma forma, a validade de proposigdes axiolégicas deve ser acessada através da qualidade das razSes que estéio em sua base. A va- riabilidade de sentimentos coletivos acerca de questées como o valor de diferentes sistemas politicos deve ser encarada mais como uma fungao de os indivicuos encontrarem-se em ambientes cognitivos distintos do que como uma falta de objetividade daqueles valores. Para Boudon, a histéria afeta a descoberta da verdade, nao a verdade em si. Neste sentido, a histéria da teoria moral nao deve ser tomada como prova de que os valores morais carecem de objetividade, mas como evidéncia de que as teorias referentes a0s mesmos so produtos sociais e, como tais, so afetadas de maneira dupla: ndo apenas o ambiente cognitivo dos atores muda, mas também a situagio social mais ampla a que as teorias se referem. Note-se que estas consideragées acerca do cardter socialmente indexado das crengas normativas ¢ positivas no autoriza um ceticismo ou mesmo um relativismo generalizado (ontolégico), apenas um relativismo de tipo epistemolégico. Para Boudon, crengas positivas ¢ normativas podem ser verdadeiras ou falsas, mas o estado atual de conhecimento pode nfio nos autor- izar nenhuma conclusao definitiva a este respeito (0 que nao significa afirmar que algumas questées néo podem ser resolvidas ¢ outras, provisoriamente resolvidas). Este tipo de relativismo implica o reconhecimento de uma reali- dade objetiva, relativamente independente de nossas concepgées acerca dela. E a partir da necessidade deste reconhecimento que se pode questionar a adesio ao individualismo metodolégico € a conseqiiente exclusio de uma dimensio social objetiva, representada pela nogio de estrutura social. De fato, € possfvel observar que esta dimensiio nao é propria~ mente eliminada das andlises substantivas de Boudon. Através de recursos como um suposto ‘determinismo metodolégico’ ou de uma concepgiio meramente descritiva de estrutura social, as tendéncias ou poderes causais estruturais so ‘contrabandeados’ para seus modelos, desempenhando um papel fundamental em suas anélises, seja para determinar as causas das agGes e crengas, seja para estabelecer a existéncia de ideologias e todo tipo de idéias falsas a partir daquilo que Steven Lukes (1994) concebe como uma disjungiio entre as representagées coletivas € as realidades sociai Falta a Boudon, entretanto, 0 reconhecimento destes papéis ¢ a atribuiga0 de uma existéncia real c ndo meramente virtual as estruturas sociais. CYNTHIA LINS HAMLIN 6 professora visitante ¢ bolsista de Desenvolvimento Cientifico Regional do CNPq no Programa de Pés Graduagio em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. 92 LUA NOVA N? 48 — 99 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALEXANDER, J. tall. (ed). The Micro-Macro Link. 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It is argued that the possibility of a synthesis between agency and structure is linked with the combination of two kinds of causality: one related to the actor and the other related to social structures. It is further RESUMOS/ABSTRACTS 241 argued that this combination is implicitly made in Boudon’s works, in spite of his methodological prescriptions.

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