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Teoria Geral

do Direito Civil I
Regente: José Alberto Vieira
Assistente: Pedro Afonso Martinez

1.1. Princípios fundamentais do Direito Civil

1.1.1. Princípio da Personificação Jurídica do Homem

Um dos efeitos do princípio da dignidade humana é o reconhecimento de personalidade jurídica a


qualquer indivíduo. O Direito considera o ser humano um centro de imputação de situações jurídicas
devido à sua natureza e atribui-lhe a reputação de pessoa.

O Artigo 1.º da CRP declara a dignidade humana como pilar fundamental e como fundamentante do
Estado. Para além deste, o artigo 6.º da Declaração Universal de Direitos do Homem também o faz,
sendo este aplicável ex vi (= por força/determinação expressa) do artigo 16.º da CRP, quando afirma
que “todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade
jurídica”.

A qualidade de pessoa inerente ao ser humano é um princípio estruturante e imanente ao próprio


ordenamento, independentemente da sua afirmação legal, daí a positivação deste princípio apenas
venha reforçar esta ideia.

[Esta é, no entanto, uma visão contemporânea, na medida em que no passado admitiu-se a


possibilidade de negar a personalidade jurídica de um ser humano e foi feito ao longo dos tempos,
como por exemplo, com a escravatura.
O mesmo acontece com a morte civil (= extinção da personalidade jurídica dos indivíduos, mesmo
estes continuando vivos) e com o que foi feito aos judeus durante o regime nazi.]

O ser humano desempenha um duplo papel no sistema jurídico:


• Causa eficiente — o Direito é feito a partir de pessoas;
• Causa final — o Direito é feito para as pessoas.

O conceito de personalidade jurídica é um conceito técnico-jurídico, mas o conceito de dignidade


humana não o é — é um conceito transistemático que não atende somente a elementos normativos
retirados do direito positivo, daí o legislador não ter liberdade neste domínio, não lhe competindo
definir a personalidade singular, pois esta impõe-se.

1.1.2. Princípio do Reconhecimento dos Direitos de Personalidade

Noção e características dos direitos de personalidade

O Código Civil regula os direitos de personalidade nos seus artigos 70.º a 81.º do Código Civil (CC).

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A atribuição de personalidade jurídica ao homem implica reconhecer-lhe a titularidade de direitos de
personalidade. Os direitos de personalidade são identificados pelo seu objeto — os bens da
personalidade (modos de ser da pessoa, tanto a nível físico, como psíquico, como ainda jurídico).

o Noção de direito de personalidade (CRITÉRIO DO OBJETO) – os direitos de


personalidade caracterizam-se pelo objeto (bem da personalidade), sendo este
objeto, no caso, o bem da personalidade, o que os individualiza.
▪ BEM DA PERSONALIDADE: São modos fundamentais de ser do ser humano.
São manifestações do nosso ser. Modos de ser do ponto de vista jurídico,
físico, psíquico, moral… Ex: imagem, reserva da intimidade da vida privada, a
honra, a vida, a integridade física, etc.
Assim, o direito de personalidade tem um determinado objeto, um bem da
personalidade, que é aquilo que o caracteriza e individualiza a sua personalidade, ou
seja, um modo físico, psíquico ou jurídico de ser.

o Distinção entre direitos de personalidade e figuras afins. Muitas vezes faz-se uma
dupla confusão – por falta de rigor ou porque um direito pode congregar em si várias
classificações (ex: direito à vida). Contudo, estes direitos não são iguais:

▪ Direitos fundamentais (CRITÉRIO DA FONTE) – O direito fundamental tem


por fonte a Constituição (é lá que estão previstos) e não o objeto.
• Os direitos de personalidade podem ser direitos fundamentais, mas
se o disser, estou a dizer duas coisas, nomeadamente que “o direito
tem por objeto um bem da personalidade e está previsto na
Constituição”. (Não são sinónimos)

▪ Direitos originários (CRITÉRIO DA PRÉ-POSITIVIDADE) – É um direito


resultante da própria natureza humana, que existe e vale por si só e que a
ordem jurídica reconhece mas não cria.
Existe independentemente do Direito Positivo. O valor provém dele próprio,
este direito impõe-se e é uma decorrência natural da própria vida, e mesmo
se a ordem jurídica não o reconhecer, ele existe e é vinculativo.

▪ Direitos humanos (CRITÉRIO DA TITULARIDADE) – Direitos específicos do ser


humano, são inerentes a qualquer pessoa, onde quer que ela se encontre é
sempre titular desses direitos.

▪ Direitos pessoalíssimos (CRITÉRIO DA INTRANSMISSIBILIDADE) – Está tão


ligado ao seu sujeito que não é transmissível (o direito de propriedade é
transmissível. O direito à vida é intransmissível). Pode provir de razões de
natureza (em que tem uma ligação umbilical ao sujeito e é daquela pessoa e
não pode sair daquela pessoa) ou de razões jurídicas/legislativas.

▪ Direitos pessoais (CRITÉRIO DA NÃO PATRIMONIALIDADE) – Um direito


pessoal é aquele que não é suscetível de avaliação pecuniária. Contrapõe-se
aos direitos patrimoniais (suscetíveis de avaliação pecuniária), isto é, não têm
um valor monetário.

Como os direitos tratam de classificações diversas, podem reunir em si alguns destes atributos ou até
todos.

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Exemplo: O direito à vida é um direito de personalidade, é um direito fundamental (está previsto na
Constituição), é um direito originário (é pré-positivo, não é o Direito que o cria, apenas o reconhece),
é um direito humano (está por natureza na titularidade do ser humano), é um direito pessoalíssimo
(é intransmissível por natureza) e um direito pessoal (não é possível valorar a vida, não está suscetível
de avaliação pecuniária), MAS POR RAZÕES DISTINTAS.

O número de direitos de personalidade especificamente previstos no Código Civil fica aquém dos
contemplados individualmente pela Constituição.

Será que os direitos de personalidade são apenas direitos das pessoas singulares?
Isto é, quem são os sujeitos dos direitos de personalidade?

O Direito reconhece dois sujeitos:


• Pessoas singulares (seres humanos);
• Pessoas coletivas (sociedades, fundações, associações, criações pelo ser humano ou por
outras pessoas coletivas com vista à persecução de um determinado fim).

Ninguém contesta que as pessoas singulares são titulares dos direitos de personalidade.
Mas há dúvidas quanto a titularidade de direitos de personalidade por parte das pessoas coletivas.
Até porque estas não podem ser titulares de direitos humanos, por exemplo.

O problema provém dos artigos 70.º e seguintes, que aparecem num capítulo do Código Civil dedicado
a pessoas singulares.
O Artigo 70.º/1 CC, começa por dizer “a lei protege os indivíduos…”.
E, portanto, a sua inserção sistemática (capítulo das pessoas singulares) e a letra da lei (“indivíduos”)
levantam a dúvida.

No entanto, há quem ache que as pessoas coletivas também se dotam de direitos de personalidade.

Então, como é que se fundamenta que as pessoas coletivas gozam de direitos de


personalidade?

➔ Artigo 12.º da CRP – Enquadra-se na Introdução aos Direitos Fundamentais – e diz que as
pessoas coletivas também gozam de direitos de personalidade: “as pessoas coletivas gozam
dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”
Os direitos aí previstos não são só fundamentais (por estarem previstos na Constituição), mas
também são direitos de personalidade (direito à vida, à integridade física, à honra, à
intimidade da vida privada, à imagem, à identidade pessoal…) porque o objeto é um bem da
personalidade.

Assim, pode concluir-se que a Constituição dota as pessoas coletivas de direitos fundamentais. Como
os direitos fundamentais são simultaneamente direitos de personalidade (bastando para tal que o
respetivo objeto seja um bem da personalidade) e como as pessoas coletivas são titulares de direitos
fundamentais, isto quer dizer que as pessoas coletivas são titulares de direitos de personalidade.

A única diferença é que as pessoas singulares são titulares de todos os direitos de personalidade
(princípio da generalidade), enquanto as pessoas coletivas só são titulares de direitos de
personalidade “compatíveis com a sua natureza” (princípio da especialidade).

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➔ Artigo 160.º do Código Civil – Capítulo das pessoas coletivas.
“A capacidade das pessoas coletivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou
convenientes à prossecução dos seus fins”
Diz-nos que as pessoas coletivas podem ser titulares de qualquer direito (de personalidade inclusive)
desde que seja necessária a prossecução do seu fim e desde que este não esteja vedado por lei ou
seja exclusivo do ser humano.
Este artigo não limita a titularidade dos direitos de personalidade por parte das pessoas coletivas. O
leque de direitos da titularidade de uma pessoa coletiva é menor do que o cômputo dos direitos de
uma pessoa física, mas não é inexistente.

As pessoas coletivas podem ser tituladas de direito de personalidade, mas não podem ser titulares de
todos os direitos de personalidade.
Por exemplo: As pessoas coletivas são titulares do direito ao nome, mas não podem ser titulares do
direito à vida ou integridade física porque não têm um corpo biológico e não faz sentido salvaguardar
o direito a um corpo inexistente, assim, estes não são necessários à prossecução do seu fim.

➔ Artigo 484.º CC: Ofensa do crédito ou do bom nome – “Quem afirmar ou difundir um facto
capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva,
responde pelos danos causados.”
Este artigo atribui implicitamente a titularidade do direito ao bom nome (direito de
personalidade) à pessoa coletiva.
(O artigo 187.º do Código Penal faz o mesmo ao incriminar a ofensa ao crédito e bom nome
de um organismo, serviço ou pessoa coletiva.)

Quais são as características dos direitos de personalidade?


(para além do seu ADN – objeto)

Nota: estas características não são exclusivas aos direitos de personalidade.

• Natureza absoluta – Há 2 critérios para estabelecer se um direito é absoluto: eficácia erga


omnes e o critério da estrutura .
▪ Eficácia erga omnes (o direito era absoluto quando era invocável contra
qualquer pessoa) – Tradicionalmente, um direito era absoluto quando gozava
desta eficácia.
• Um direito seria relativo quando só era invocável perante
determinada(s) pessoa(s) – eficácia inter partes – no caso a
contraparte, o devedor.

Este critério tem sido posto de lado pela ideia de que tal direito pode
ser violado por terceiro, que impede o cumprimento e, portanto,
deve ser responsabilizado (eficácia externa).

• Eficácia externa das obrigações – a doutrina foi tratando e a


jurisprudência vem adotando este critério.
Isto significa que se admite que a violação de um direito de crédito
pode provir não apenas do seu devedor, mas de um terceiro. Um
terceiro pode impedir o pagamento e, assim, está a violar o direito de
crédito do devedor.

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Exemplo: António deve-me 100€. Apenas António podia violar esse
direito de crédito, porque só António é que tinha esse dever e se não
o entregasse, estava a violá-lo. (Era esta a visão da eficácia erga
omnes/inter partes).

Com a eficácia externa das obrigações, adotou-se uma outra visão,


que nos diz que não é só António que pode violar o meu direito de
crédito, pois, qualquer terceiro que interfira neste pagamento
(roubo, rapto, etc), está a violar o meu direito.

Assim, conclui-se que em rigor todos nós temos um dever de


respeitar todos os direitos alheios (sejam direitos de propriedade, de
crédito, etc) e TODOS os direitos são eficazes contra todas as pessoas,
no sentido em que todos nós temos de respeitar este direito alheio.

o CRITÉRIO DA ESTRUTURA (considera absolutos os direitos autossuficientes, ou seja,


cuja existência não está na dependência da existência de uma situação de sinal
contrário, em contraste com os direitos relativos alicerçados numa relação jurídica
entre um sujeito ativo [titular do direito] e um sujeito passivo [adstrito ao
correspondente dever]) –

Nasceu, então, a necessidade de ter um outro critério para explicar o que é isto de
direito absoluto: A diferença entre um direito absoluto e um direito relativo não tem
a ver com a eficácia (que seria idêntica), mas sim com a estrutura.
O direito absoluto vale por si só, não precisa de mais nenhuma situação para poder
ser exercido e satisfazer os interesses do seu titular – é autossuficiente e não precisa
de nenhuma situação de sinal contrário (i.e., uma situação passiva).
O direito relativo existe porque há um dever contrário. Eu só posso satisfazer o meu
direito relativo (ex: direito de crédito) quando o devedor cumprir com o seu dever.
Estes direitos não são autossuficientes, já que a sua existência está dependente da
existência de uma situação de sinal contrário. Há um dever genérico por parte do
devedor, e há um vínculo, uma interdependência entre o direito e o dever, pois para
existir um direito de crédito, alguém tem de ter o dever de pagar esse crédito. Se não
houver o dever de pagar 100€, a existência do direito de receber 100€ não tem
fundamento.

Ex: O direito de propriedade é autossuficiente, não precisa de um devedor. Se eu tiver


um telemóvel, não preciso de mais nada para o poder usar livremente. Para que o
direito de propriedade exista e eu fruía do telemóvel não existe nenhum nexo de
dependência e eu não dependo de nenhuma outra situação para poder satisfazer este
direito.

Questiona-se se todos os direitos de personalidade são oponíveis erga omnes e


autossuficientes. A questão é levantada devido aos artigos 75.º e 76.º CC que
estabelecem um regime de confidencialidade das cartas-missivas, impondo deveres
especiais de sigilo ao destinatário de uma comunicação confidencial.
No entanto, julga-se que o facto de a lei ter sentido necessidade de regular
especificamente a relação entre o remetente e o recetor da mensagem não altera a
natureza do seu direito de personalidade. Qualquer pessoa se acha adstrita de um
dever genérico de sigilo. E enquanto recetor encontra-se numa situação privilegiada,

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o que justifica que a lei reforce a tutela do direito, impondo ao potencial infrator um
dever acrescido de reserva.

• Não patrimoniais ou pessoais?

o DIMENSÃO NÃO PATRIMONIAL/PESSOAL (esfera imaterial)


▪ Diz-se que os direitos de personalidade não são patrimoniais porque estes
direitos não são suscetíveis de avaliação pecuniária. É verdade que o bem da
personalidade não tem um valor e há uma dimensão não patrimonial nos
direitos de personalidade. O bem em si não é avaliado em dinheiro e não é
transmissível.
▪ Os bens de personalidade em si não tem um preço e não podem ser trocados
por dinheiro.

o DIMENSÃO PATRIMONIAL (esfera comercial)

▪ É possível receber valor monetário através da exploração comercial de um


direito de personalidade.
▪ O bem da personalidade em si não tem um preço (ex: cara de uma pessoa
famosa), mas a sua exploração tem um preço (ex: fotografias da sua cara).
• Ex: direito à imagem – a imagem muitas vezes é vendida e as
personalidades recebem dinheiro pelas suas imagens. Direito à
reserva da intimidade da vida privada – as pessoas recebem dinheiro
nos reality shows, onde não dispõem de intimidade.

• Dupla inerência (= dupla ligação — do direito ao sujeito e ao objeto)


Traz duas consequências de regime muito importantes – a intransmissibilidade e a
indisponibilidade dos direitos de personalidade.

o LIGAÇÃO DO DIREITO AO SUJEITO (INTRANSMISSIBILIDADE DO DIREITO)

▪ O direito é daquele sujeito e apenas daquele sujeito – é intransmissível – o


direito é pessoalíssimo. Está ligado àquele sujeito e morre com ele, não pode
ser cedido, nem vendido.

o LIGAÇÃO DO DIREITO AO OBJETO (INDISPONIBILIDADE DE RENUNCIAR O DIREITO)

▪ O direito é sobre aquele objeto. O objeto é um bem da personalidade de um


sujeito particular e não de outro. O modo de ser é específico a cada um, é
dotado de uma individualidade própria. O sujeito não se pode desapegar do
objeto. Há uma ligação inquebrável do direito ao objeto – indisponibilidade –
não se consegue renunciar a estes direitos (exceção do direito à vida).

O direito é indissociável quer do seu titular, quer do respetivo objeto. Os direitos de personalidade
são intransmissíveis, inter vivos e mortis causa, e indisponíveis, não se admitindo a renúncia dos
mesmos. No caso do direito à vida, questiona-se até que ponto este não pode ser renunciável, mas
isso está redirecionado para casos como a eutanásia.

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A natureza pessoalíssima do objeto deste tipo de direitos, mercê da sua inseparabilidade do
correspondente sujeito, impossibilita a sua transmissão a outrem.

• Imprescritíveis e não caducáveis


Há a questão da possibilidade de se poder continuar ou não a exercer um direito após passar
x tempo ou se acontece alguma coisa ao longo do tempo. A prescrição e a caducidade são
efeitos decorrentes do decurso do tempo.

o Não prescritibilidade – O artigo 298.º/1 diz-nos que os direitos indisponíveis não são
passíveis de prescrição e os direitos de personalidade têm um caráter indisponível.
Não há limitações temporais para se exercerem pretensões relacionadas com os
direitos de personalidade, sobretudo com a sua tutela.
Não há perda de coercibilidade. Não podem ficar sem efeito porque não há prazo legal
(não são caducáveis).
o Não caducidade – Não se pode sujeitar o exercício de um direito de personalidade ou
de uma pretensão fundada num bem de personalidade a prazos ou condições.

OS DIREITOS DE PERSONALIDADE NÃO SÃO PASSÍVEIS DE PRESCRIÇÃO OU DE CADUCIDADE


– nunca vão perder a coercibilidade e nunca se vão extinguir. As pretensões que assentem
em direitos de personalidade também não são suscetíveis de prescrição ou caducidade.
O tempo não produz nenhum efeito extintivo ou modificativo do direito de personalidade.
Trata-se de uma especialidade dos direitos de personalidade, porque em regra não é assim.

(Estes direitos de personalidade só se extinguem com a morte, em que se deixa de ter uma
pessoa singular e se passa a ter um cadáver).

• Detentores de tutela penal – As ofensas aos direitos de personalidade estão tipificados no


Código Penal e são crime. A maior parte de ofensa a direitos não são crimes, mas a estes são
e estão previstos como tal no nosso Código Penal.
Isto não impede que ao mesmo tempo estes bens poderem beneficiar da tutela civil (artigo
70.º/1 CC)

Aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações entre particulares

Muitos dos direitos de personalidade são simultaneamente direitos fundamentais e a Constituição


prevê muitos direitos fundamentais (muitos não são direitos de personalidade, mas são importantes
para o Direito Civil).

Os direitos fundamentais surgiram para fazer frente ao Estado. A sua ideia era de uma posição de
defesa perante o Estado. Era uma relação vertical (cidadão e Estado) e criaram-se os direitos
fundamentais como uma barreira entre estes, sendo estes um limite ao Estado. Logo, não faria sentido
aplicar estes direitos aos particulares.
Os direitos fundamentais representavam um meio de tutela do cidadão em face dos abusos do poder
político.

No entanto, ao longo do tempo, chegou-se à conclusão de que os problemas não eram específicos da
relação que o cidadão tinha com o Estado, porque entre particulares também podia haver esse
problema. Há direitos fundamentais que não são direitos de personalidade, como por exemplo, o

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direito à não-discriminação e não é por isso que este direito também não deve ser aplicado às relações
entre particulares.
Ou seja, o seu papel foi sendo alargado, pelo que atualmente se admite que estes direitos comportam
uma dupla-faceta:
• A posição defensiva dos direitos dos cidadãos face ao Estado.
• O poder de exigir proteção por parte do Estado relativamente aos bens sobre os quais se
erguem.
A sua eficácia não se limita às relações com o poder público, sendo igualmente aplicáveis nas relações
entre privados.

Assim, veio-se questionar (gerando muita controvérsia):

Até que ponto é que os direitos fundamentais são aplicáveis nas relações entre
particulares?
(Pretende discutir-se o âmbito e a natureza mediata ou imediata desta eficácia)

O problema APENAS se coloca relativamente aos direitos fundamentais cujo âmbito de aplicação não
foi predeterminado.

Da análise aos direitos consagrados na Constituição, é possível divisar 3 grandes grupos:

1. Direitos necessariamente dirigidos ao Estado — somente a título secundário é que tais


direitos podem produzir efeitos frente a um particular.

a. Exemplo: direito à tutela jurisdicional efetiva ou o habeas corpus.

2. Direitos configurados de forma a produzir efeitos nas relações entre privados — a própria
norma estabelece a vinculação dos privados.

a. Exemplo: direitos ao bom nome, à imagem, à reserva da intimidade da vida privada


ou o direito à greve.

3. Direitos cuja extensão não foi previamente definida — a falta de predefinição justifica a
colocação da questão sobre se os direitos contemplados se aplicam unicamente às relações
frente ao Estado ou também face aos particulares.

a. Exemplo: direito à liberdade religiosa e presunção de inocência.

(Menezes Cordeiro: Esta questão tem razão de ser, uma vez que a atuação do Estado é
qualitativamente diferente da das pessoas privadas, não podendo, por isso, ser feitas transposições
automáticas.
Por exemplo: parece evidente – perante a nossa cultura – que o Estado deve tratar todas as pessoas
de modo igual. Mas um particular não está nas mesmas condições: ele poderá, arbitrariamente,
escolher contratar com uma ou outra pessoa, sem justificações nem preocupações igualitárias, salvo
particulares limites impostos no caso concreto pela boa fé ou pelos bons costumes.
Há, pois, que distinguir, o sentido de certos direitos fundamentais – quando dirijam comandos ao
Estado, não cabe, deles, extrapolar regras diretas para os particulares.

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Nos restantes casos, em termos civis, os direitos fundamentais podem ser atendidos como
reformadores das posições já consagradas, maxime (principalmente) pelo direito da personalidade.
Não obstante, fazem-no com limitações que lhes restituam o seu verdadeiro sentido normativo:

❖ Com adequação axiológica (adequação em função dos valores do sistema – pode haver a
intervenção civil, pois estão em causa valores que devem ser adequados [ampliados ou
restringidos] em certos aspetos) — recorda que os direitos fundamentais não tratam
simplesmente de acautelar certos valores; atentam em certos valores de forma adequada ou
perante violações que eles considerem adequadas. É somente nesta dimensão que os direitos
fundamentais podem surtir efeitos civis.
o Exemplo: a recusa em celebrar um contrato – maxime de prestação de serviço ou de
trabalho – pode pôr em perigo a vida ou a integridade da outra parte. Mas, o direito
à vida, como fundamental que é, não exige a celebração do contrato (em princípio),
por não haver adequação axiológica em tal dimensão.

❖ Com adequação funcional — obriga a compreender as próprias violações em si: também


estas podem situar-se no termo de funções estranhas ao direito fundamental considerado,
quer por conflitos de deveres em que este ceda (ex: o soldado na guerra pode [e deve] matar),
quer por simples alheamento ou desconexão (ex: a pessoa que professasse uma religião que
proibisse o trabalho não poderia, legitimamente, receber um salário sem trabalhar, em nome
da liberdade de consciência).

Os direitos fundamentais contribuem para a concretização de conceitos indeterminados. Admitem


uma aplicação direta quando o seu sentido normativo, em termos de adequação axiológica e
funcional, lhe dê lugar. Esta matéria deve ser acompanhada pelo Direito Civil, com especial cuidado,
aquando do estudo dos direitos de personalidade.)

O Artigo 18.º da CRP trata especificamente deste problema.

1. “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente
aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.

Embora a letra da lei seja absolutamente clara e pareça inequívoca, a doutrina e a jurisprudência
discutem o que isto quer dizer.

Assim, encontram-se duas orientações face a esta interpretação:


Há quem diga que o que é admitido no artigo 18.º/1, CRP é a chamada eficácia mediata dos direitos
fundamentais nas relações entre privados e há quem diga, pelo contrário, que o que se admite é a
eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações entre privados.

É inquestionável que o preenchimento de conceitos indeterminados ou de cláusulas gerais, que a


interpretação e aplicação dos direitos de personalidade, etc, são decorrências dos direitos
fundamentais e têm que ser valorados face a estes. A única questão é se a eficácia dos direitos
fundamentais se limita a isto ou há mais para além disto. A teoria da eficácia mediata diz que o
procedimento de se ler tudo à luz dos direitos fundamentais é suficiente, enquanto a teoria da eficácia
imediata diz que é insuficiente.

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Não obstante, dentro destas duas orientações, há muitas variantes.

• Eficácia mediata (é a teoria que se aplica sempre; é inquestionável) – Os direitos


fundamentais não se aplicam diretamente os direitos fundamentais à relação entre privados,
só indiretamente, pelo que necessita de haver algo de primeiro.

o Teoria da eficácia irradiante:


Assenta na dupla dimensão dos direitos fundamentais:
• Direitos subjetivos;
• Estruturas objetivas que exprimem certos valores essenciais.
Para esta tese, os direitos fundamentais só gozam de eficácia nas relações entre
privados enquanto estruturas objetivas que exprimem certos valores essenciais, pelo
que os direitos subjetivos só seriam invocáveis contra o Estado.

▪ 1. Os direitos fundamentais não se aplicam diretamente nas relações entre


particulares, só frente ao Estado. [esta é uma premissa comum a todas estas
visões]
• Um privado não pode invocar a titularidade de um direito
fundamental face a outro privado.
o Então, como é que se aplicaria os direitos fundamentais aos
particulares?
▪ (Através da interpretação e da integração.)
▪ Como todo o Direito privado está vinculado à
Constituição, tem de se obedecer aos seus cânones e
assim o efeito irradiante dos direitos fundamentais
traduz-se na necessidade de interpretar as normas
de Direito privado e integrar as suas lacunas
conforme à Constituição e, desse modo, de acordo
com os direitos fundamentais.

▪ 2. No entanto, sempre que se está a interpretar uma norma de Direito Civil


(trata de particulares) e a interpretar ou integrar lacunas, temos de o fazer
conforme à Constituição, respeitando os direitos fundamentais.

Esta posição vem dizer que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares fazia-se irradiando o conteúdo daqueles direitos para operações
necessárias, como a interpretação, a aplicação, integração de lacunas e por aí fora.
(Aplicação conforme à Constituição)

Crítica:
• Esta teoria, juntamente com a vinculação do legislador de Direito
Privado e a teoria da vinculação dos tribunais são inutilidades, pelo
que não acrescentam nada a este problema. Qualquer norma, pública
ou privada, tem de ser interpretada conforme à Constituição. Isto
decorre da hierarquia dos atos normativos. A Constituição é a lei
suprema e todo o direito ordinário tem de ser interpretado conforme
a esta (limita-se a aplicar a hierarquia das fontes decorrente do artigo
112.º da CRP).

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o Teoria da eficácia mediata (sentido estrito) – Para esta tese, a aplicabilidade dos
direitos fundamentais nas relações entre particulares dá-se de forma indireta, através
da densificação de certos institutos próprios do Direito privado — preenchimento de
conceitos indeterminados, cláusulas gerais, configuração e desenvolvimento dos
direitos de personalidade ou dos deveres de segurança no tráfego jurídico.

(Esta teoria tem muitos adeptos em Portugal e ninguém contesta que está correta.
De facto, está certa. Assume-se que os conceitos e os institutos de Direito privado aí
referidos devem ser densificados à luz dos direitos fundamentais. A questão é se esta
teoria é suficiente, ou seja, se a eficácia destes direitos se confina a esta dimensão ou
se é mais ampla do que isso.)

▪ 1. Os direitos fundamentais não se aplicam diretamente nas relações entre


privados, só indiretamente, mediatamente.
Como?
▪ 2. Através de preenchimento de conceitos indeterminados (muito comuns no
nosso Código, como por exemplo, a boa fé e os bons costumes). Para
sabermos o que são estes conceitos, temos de recorrer à Constituição e aos
direitos fundamentais.
▪ Cláusulas abertas – O nosso Código muitas vezes, propositadamente
estabelece normas que são abertas (as chamadas cláusulas abertas). Aquilo
que dizem é exemplificativo, admitem situações que não estão lá. Para
percebermos que situações podem estar a ser contempladas pela norma,
podemos recorrer à Constituição e aos direitos fundamentais.
▪ Direitos de personalidade – os direitos de personalidade são uma
concretização de direitos fundamentais no âmbito civil, segundo esta visão.

Segundo esta visão, os direitos fundamentais aplicar-se-iam nas relações entre


privados através destas operações: preenchimento de conceitos indeterminados e
cláusulas gerais, através dos direitos fundamentais, através dos deveres do tráfego
(certas condutas que temos de adotar quando estamos a negociar).
É através destes esquemas de direito privado que devemos introduzir os direitos
fundamentais.

o Teoria da vinculação do legislador de Direito Privado — Esta tese confina a eficácia


dos direitos fundamentais nas relações entre particulares à necessidade de o
legislador, ao conformar os regimes de Direito privado, observar as normas
constitucionais. Isto justificaria, por exemplo, o estabelecimento de limites à
autonomia privada dos particulares.

▪ Os direitos fundamentais não se aplicariam diretamente às relações entre


particulares (estes não poderiam invocar este direito frente ao outro).
▪ A aplicação do direito fundamental às relações aos particulares é da
competência do legislador, pelo que lhe cabe a ele contemplar situações
conformes aos direitos fundamentais, ou seja, criar mecanismos à luz do
preceituado.
• Crítica: Trata-se de uma banalidade. Não há legislador específico para
o Direito Privado. Os legisladores são a Assembleia República (ou o
Governo – quando autorizado), e legislam tanto sobre matéria de

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direito público como de direito privado e ambos estão vinculados à
Constituição.
o Ou seja, quer esteja a legislar normas de Direito privado ou
público, o legislador é sempre o mesmo, tal como a sua
vinculação aos parâmetros constitucionais.
• Limita-se a aplicar a hierarquia das fontes decorrente do artigo 112.º
da CRP.

o Teoria dos deveres de proteção — Defende que o Estado, para além do dever
(negativo) de respeito pelos direitos fundamentais, se encontra igualmente adstrito
a deveres (positivos) de proteção, destinados a tutelar os bens jurídicos que
constituem o objeto desses direitos. Como o sujeito passivo dos deveres é o Estado,
o cumprimento destes deveres de proteção pode passar pela projeção da eficácia
daqueles direitos nas relações privadas, regulando-as de modo a tutelá-los,
nomeadamente, vinculando os sujeitos à adoção de certos comportamentos.

▪ Os direitos fundamentais não se aplicam diretamente às relações entre


particulares.
▪ Os direitos fundamentais nasceram como posição de defesa perante o
Estado, para impedir que houvesse abusos por parte deste.
▪ Progressivamente, os direitos fundamentais foram ganhando outra
vestimenta. Não são só direitos de defesa, mas também exigem uma
proteção. Permitem ao respetivo titular exigir do Estado uma proteção do
direito fundamental.
• Assim, os direitos fundamentais têm uma dupla faceta: defesa e
proteção.
▪ Quando o Estado está a cumprir o seu papel de protetor, pode fazê-lo
diretamente ou pode delegá-lo no titular; impondo no titular certos
comportamentos que visam proteger os direitos fundamentais dos restantes
particulares.
▪ De acordo com esta visão, a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
entre particulares dar-se-á apenas naqueles casos em que o legislador delega
no particular a proteção daquele direito fundamental.
▪ Ex: Artigo 200.º do Código Penal (omissão de auxílio) - Qualquer um de nós
que encontre um sinistrado (alguém que precisa de auxílio) tem o dever de
proteger esse sinistrado, sob pena de cometer um crime.
• Assim, protege-se a integridade física e a vida do próximo. É imposto
ao particular a proteção dos direitos fundamentais dos terceiros.

Pontualmente, o legislador pode fazer isto, mas isto não é um sistema.


Também está em causa a defesa do direito fundamental e esta teoria não
trata da defesa, não nos diz nada no sentido em que um particular pode
invocar os direitos fundamentais na defesa contra outro particular.

o Teoria da vinculação (supletiva ou excecional) dos tribunais — Considera que a


vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais se dá por intermédio dos
tribunais, que estão impedidos de decidir contrariamente aos direitos fundamentais
e adstritos de deveres de proteção desses mesmos direitos, quer na sua atividade
hermenêutica/interpretativa e de desenvolvimento jurisdicional do Direito, quer nos
casos de omissão legislativa (lacunas).

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Os direitos fundamentais não se aplicam diretamente às relações entre
particulares.
▪ O único âmbito em que os direitos fundamentais podem produzir efeitos nas
relações em particulares é através da atuação dos tribunais.
▪ Os tribunais deveriam aplicar o Direito de acordo com a Constituição,
descobrindo omissões legislativas e aplicando e interpretando o Direito à luz
da Constituição. Cabe aos tribunais este papel.
• Esta teoria limita esta interpretação/integração conforme à
Constituição aos Tribunais (distinguido-se assim da teoria da eficácia
irradiante).

• Crítica: É uma banalidade. A própria Constituição vincula os tribunais


à Constituição e é evidente que eles têm que agir conforme esta.
• Limita-se a aplicar a hierarquia das fontes decorrente do artigo 112.º
da CRP.

Críticas gerais às teorias de eficácia mediata — Em qualquer uma das teorias, expressa-se a
subordinação do legislador ou dos tribunais à Constituição. Sendo verdade, em nada acrescenta
relativamente ao problema de base, pelo que descuram a especificidade das normas que prevêem
direitos fundamentais em face das demais normas constitucionais.

• Eficácia imediata – Posso invocar diretamente o direito fundamental na relação entre


privados. A dúvida que existe é a de âmbito, a de delimitação. Questiona-se se se pode sempre
ou apenas em determinadas situações. As três teorias respondem sim à questão da aplicação
de direitos fundamentais nas relações entre particulares, mas duas delas (as primeiras duas)
dizem que essa aplicação é feita num âmbito mais restrito e a terceira mantém uma visão
geral.
(Esta teoria, tradicionalmente identificava-se como “eficácia externa/horizontal”dos direitos
fundamentais, mas hoje em dia fala-se desta eficácia como defensora da vinculatividade dos
direitos fundamentais nas relações entre particulares, uma vez que “externa” daria a entender
que esta questão é secundária e a vinculação dos privados pode ser precisamente o cerne do
direito, como acontece no direito fundamental à greve; “horizontal” sugeriria a existência de
paridade entre os particulares, quando pode haver uma relação vertical, como por exemplo
entre a entidade patronal e o trabalhador.)

o Teoria da vinculação do poder privado — Tem por base uma conceção dos direitos
fundamentais como direitos de defesa, sustentando que estes não devem valer
apenas frente ao Estado, mas também frente aos diversos poderes privados ou
poderes de facto existentes na sociedade (ex: face aos detentores do poder
económico). Ou seja, para si, os direitos fundamentais constituem direitos de defesa
contra o poder, seja ele público ou privado.

▪ Parte da ideia que os direitos fundamentais eram originalmente direitos de


defesa. Com a evolução da sociedade, para além do poder público do Estado,
cada vez mais assistimos a fenómenos em que particulares têm poder sob
outros particulares.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Os direitos fundamentais são direitos de defesa frente ao Estado OU a
qualquer situação de poder (ou seja, também se aplicam às situações de
poder entre privados).
▪ Esta teoria faz uma analogia a esta situação de poderoso vs. sem-poder e diz
que o que interessa é a disparidade de situações, não sendo relevante se é ou
não de direito público ou privado.

o Teoria da vinculação (ao conteúdo essencial dos direitos ou) à dignidade da pessoa
humana — Admite a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre privados,
sem ser necessária a intervenção do legislador. O âmbito de aplicação neste caso é
mais restrito quando comparado na sua aplicação nas relações com o Estado. Para
esta tese, a autonomia individual não permite que estes direitos vigorem nas relações
entre privados na sua integralidade de conteúdo, mas apenas de forma mitigada,
devendo reduzir-se o seu alcance ao seu núcleo essencial, limitando-se o seu campo
de atuação a situações extremas.

▪ Os direitos fundamentais aplicam-se nas relações entre particulares, mas o


âmbito da aplicação é mais restrito.
▪ Numa relação com o poder público, o particular pode invocar o direito
fundamental na sua configuração mais ampla.
▪ Enquanto, nas relações entre privados, só se pode invocar o núcleo essencial
do direito (e não o que consta da periferia do direito).
• Só faz sentido invocar o direito fundamental se o que estiver em
causa for a tutela da dignidade humana (núcleo essencial do Direito
– que não pode ser nunca restringido).
• Todo o anel à volta do núcleo, i.e. a periferia deste núcleo está
restringido porque já não é imprescindível para a tutela da dignidade
humana.
▪ (Esta é uma aplicação com menor âmbito.)

o Teoria da eficácia imediata (sentido estrito) — Esta é a teoria mais abrangente das
três, admitindo que os direitos fundamentais se apliquem plenamente nas relações
entre privados, sem necessidade de intermediação.
Contudo, chama a atenção para as diferenças de configuração das relações frente ao
Estado – onde apenas o particular é titular de um direito fundamental – em
comparação às relações estabelecidas entre particulares – onde ambos os sujeitos são
titulares desse tipo de situação.
Há, então, nas relações entre particulares, uma obrigação de fazer uma ponderação
adequada com os outros princípios constitucionais, nomeadamente, com o princípio
da autonomia privada ou o princípio do livre desenvolvimento da personalidade.

▪ Os direitos fundamentais aplicam-se nas relações entre particulares.


▪ Não há justificação para não ser assim.
▪ Olhando para o Artigo 18.º/1, CRP, não há razão para dizer que os direitos
fundamentais não se aplicam nas relações entre particulares.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
A diferença entre estas teorias é o âmbito de aplicação.
➔ A 1ª (teoria da vinculação do direito privado) limita o âmbito de aplicação às situações em que
há uma hierarquia (um tem poder e o outro não tem).
➔ A 2ª (teoria da vinculação à dignidade humana) limita essa aplicação às situações em que está
em causa a dignidade humana – o núcleo essencial do direito.

Estas primeiras duas teorias não olham para a situação em concreto e afirmam que o âmbito de
aplicação é menor, definindo-o.

➔ A 3ª (teoria da eficácia imediata [sentido estrito]) não estabelece limites ao seu âmbito de
aplicação, a priori. Aceita, como ponto de partida, que o âmbito de aplicação possa ser
semelhante entre particulares. No entanto, na prática, o âmbito de aplicação não poderá ser
igual.
o Porquê?
▪ Quando numa situação está o senhor António contra o Estado, o particular
pode invocar a plenitude do seu direito fundamental, pois este é o único
titular de direitos fundamentais.
▪ No entanto, quando o âmbito da relação tem sujeitos detentores de direitos
fundamentais (relação entre particulares), estes direitos fundamentais não
vão poder aplicar-se na sua dimensão mais ampla, pois a partir do momento
em que temos dois sujeitos titulares de direitos fundamentais, os direitos
fundamentais de ambos restringem-se reciprocamente, através do princípio
da proporcionalidade.
• Ou seja, quando, do outro lado, está um particular, não o pode fazer;
o particular pode invocar o seu direito contra outro particular, mas
do outro lado vai haver um outro particular que também é titular de
outro direito. Assim, ficamos com dois direitos fundamentais em
confronto, que vão ter que se limitar.
• O âmbito de aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares é fatalmente menor.

➔ A 1ª e a 2ª teorias dão a resposta sem analisar a situação, pelo que o caso concreto não
depende da aplicação.
➔ A 3ª parte de um prisma aberto, com uma mentalidade de “aplicar o máximo possível”, mas
para saber como fazê-lo e qual será o âmbito da aplicação, só através do caso concreto, onde
vou ver qual é o direito restringido e qual não é, à luz do princípio da proporcionalidade.

À luz do ponto de vista metodológico, a terceira teoria é a mais adequada.


As primeiras duas têm uma visão abstrata e a terceira tem uma visão concreta.

As questões que se levanta a estas teses é a de se, uma vez aceite que os direitos fundamentais se
aplicam diretamente nas relações entre privados:
➔ Existe algum critério objetivo e vinculativo que justifique a limitação da extensão da aplicação
dos direitos fundamentais às relações entre privados, quando se verifica a supremacia de um
particular frente ao outro? Ou quando está em causa a violação do cerne essencial do direito?
o Não se nega que muitas vezes a solução prática será justamente proceder-se a um
juízo de proporcionalidade — uma ponderação adequada entre os direitos prima facie
envolvidos.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o No entanto, duvida-se que faça sentido afirmá-lo a priori e de modo geral e absoluto,
pois é uma solução à que se deve chegar casuisticamente.
▪ A variedade de estruturas normativas dos direitos fundamentais e a
diversidade das circunstâncias do caso concreto impedem pré-soluções.

Daqui parece resultar que a verdadeira questão não é definir se estes direitos são ou não aplicáveis
nas relações entre particulares – dada a natureza aparentemente positiva da resposta –, mas sim
determinar a medida dessa vinculação.
Sem prejuízo do juízo de proporcionalidade perante as circunstâncias do caso concreto, considera-se
legítimo dizer que o âmbito de aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre privados pode
ser diverso do âmbito de aplicação dos direitos fundamentais nas relações com o Estado, pois nas
relações entre privados deparamo-nos com dois sujeitos portadores de direitos fundamentais.
Este facto obrigará a que se proceda à delimitação recíproca do âmbito de garantia efetiva de cada
um dos direitos fundamentais potencialmente aplicáveis.
Os direitos fundamentais são princípios constitucionais que se traduzem em mandatos de otimização
– os seus comandos são abertos e não tem de ser sempre e exatamente aplicados, devendo ser
realizados de forma gradual, em função das possibilidades fácticas e jurídicas de uma situação. Isto
quer dizer que essas normas determinam soluções prima facie e não definitivas.

PROCEDIMENTO A REALIZAR PERANTE UM JUÍZO DE PROPORCIONALIDADE:

Perante uma colisão de princípios, o intérprete-aplicador do Direito deve aferir qual o princípio
colidente que na situação concreta tem um maior peso relativo e que, por conseguinte, deve ser
realizado preferentemente.
Para o efeito, deve ponderar, atendendo às circunstâncias do caso concreto, qual o princípio que, se
não for realizado, é mais afetado e qual o princípio que, se for aplicado, é mais satisfeito, devendo
optar por dar preferência àquele cujo grau de satisfação é superior, desde que a medida da afetação
do outro não seja superior à satisfação deste.
Isto é o mesmo imposto pela lei da ponderação, segundo a qual “quanto maior é o grau de não
satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior tem que ser a importância da satisfação do
outro”.
O PESO DOS PRINCÍPIOS NÃO É DETERMINÁVEL DE FORMA ABSTRATA, ABSOLUTA E APRIORÍSTICA,
MAS UNICAMENTE POR CONTRAPOSIÇÃO A OUTROS PRINCÍPIOS E ATENDENDO SEMPRE ÀS
CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO. Um direito fundamental não é superior ao outro, pois são
ambos queridos e estabelecidos pela Constituição, logo não se dispõem hierarquicamente. Só se pode
optar em função de um mediante as especificidades do caso concreto.

Numa situação concreta onde se perfilem como potencialmente aplicáveis vários direitos
fundamentais, entre si conflituantes, a análise da situação à luz do princípio da proporcionalidade
demonstrará que os direitos em questão não são direitos definitivos, mas sim prima facie, pelo que
um deverá converter-se em direito definitivo.

Esse direito definitivo trata de uma “relação de preferência condicionada” entre os referidos
princípios, pois tal princípio só prevalece ao outro em certas circunstâncias. Se as circunstâncias se
alterarem, a prevalência pode ser decidida em sentido oposto.
Essas circunstâncias constituem as condições cuja verificação é necessária para que um princípio seja
preferido face a outro e sempre que estiverem preenchidas, há um benefício que ter preferência
relativamente ao outro, aplicando-se, por conseguinte, as suas consequências jurídicas.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
“As condições sobre as quais um princípio prevalece sobre o outro constituem o pressuposto de facto
de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio relevante.”
A regra é a lei de colisão e sempre que se verificam certos pressupostos de facto, há uma determinada
estatuição/consequência jurídica.

Tem-se entendido que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais justifica a imposição
de um dever de respeito (e não de um dever de proteção — pois estes poderiam tornar a vida em
sociedade sufocante, ao converterem-se em obrigações, pois haveria uma interferência permanente
dos outros, movidos com o intuito de evitar responsabilidades).
Isto não significa que ocasionalmente os particulares não possam estar vinculados a deveres de
proteção, quando tal for imposto pelo legislador — exemplo: dever de garante subjacente à tipificação
das omissões impuras, dever de auxílio, certos deveres deontológicos e deveres de segurança no
tráfico — pelo que todos visam evitar a exposição dos outros a perigos ou riscos.
Autolimitação dos direitos de personalidade

A indisponibilidade e a intransmissibilidade dos direitos de personalidade impedem a renúncia à


titularidade do direito, mas não a sua possibilidade de autolimitação voluntária do seu exercício ou da
sua tutela. Exemplo: artigo 81.º/1 e 340.º CC e artigos 38.º e 39.º CP.

• Autolimitação (do exercício) do direito de personalidade: Artigo 81.º/1 do Código Civil.

Artigo 81.º
Limitação voluntária dos direitos de personalidade
1. Toda a limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade é nula, se for
contrária aos princípios da ordem pública.
2. A limitação voluntária, quando legal, é sempre revogável, ainda que com obrigação de
indemnizar os prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte.

Este artigo aceita expressamente a validade da autolimitação do exercício dos direitos de


personalidade, desde que não violadora dos princípios de ordem pública. Apesar da lei só se
referir aos princípios da ordem pública, é evidente que os limites ao objeto negocial
estabelecidos no artigo 280.º gozam igualmente de aplicação.

A declaração de autolimitação do exercício do direito de personalidade é valida desde que se


mostre física e juridicamente possível, conforme às normas imperativas, determinada ou
determinável e respeitadora dos bons costumes.
Graças a isto, muitas vezes, a autolimitação, por não precisar o objeto da limitação ou da
duração temporal ou o âmbito espacial da mesma, deve ser tida como indeterminada (e
indeterminável) e, consequentemente, como nula.

A questão que a formulação deste artigo levanta é: será que este artigo trata da limitação ao
exercício dos direitos de personalidade ou da limitação aos próprios direitos de
personalidade?

o PONTO DE VISTA LITERAL: A epígrafe diz “Limitação voluntária dos direitos de


personalidade”, mas a letra da lei diz “toda a limitação voluntária ao exercício dos
direitos de personalidade...”.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Este artigo está pensado para uma possibilidade de se autorizar algo que, à
partida, estaria proibido. (No Direito Privado tudo o que não está proibido, é
permitido)

Caso prático: o sujeito A autoriza que uma empresa lhe tire fotografias e proceda à sua
comercialização numa campanha publicitária.

Esta declaração de vontade feita por A corresponde a uma autolimitação ao exercício do


direito ou a uma autolimitação ao próprio direito?

➔ Dúvida: o que é que é preciso para haver responsabilidade civil, ilicitude, dever de
indemnização? Quando é que há a violação do direito de imagem, por exemplo?

o Há quem diga que para se violar o direito de imagem, basta captar a imagem de
alguém. Basta haverem comportamentos positivos (comportamento humano, dano,
nexo de causalidade, culpa e ilicitude).

▪ Quem responde que basta captar a imagem de alguém para violar o direito
de imagem dessa pessoa tende a interpretar o artigo 81.º/1 como uma
autolimitação do exercício do direito – a pessoa permite, voluntariamente,
que hajam limites ao exercício do seu direito durante um certo período ou
para um certo propósito.

o Há quem diga que para se violar o direito de imagem e para haver responsabilidade
civil, não basta captar a imagem de alguém e haverem comportamentos positivos,
também é preciso que haja a ausência de algo – um elemento negativo – a ausência
de consentimento (acordo por parte do titular do bem).
Olhando para o consentimento desta forma, o consentimento que o artigo 81.º fala é
um consentimento que tem por efeito limitar o âmbito de proteção do próprio direito,
ou seja, o objeto do direito. Não seria apenas o exercício a ser limitado mas a própria
configuração/conteúdo do direito que seria definido pelo titular, através dos seus
próprios consentimentos.

Ou seja, olha-se para a letra da lei, como referente a uma autolimitação do direito de
personalidade, ao permitir que o titular do direito restrinja o seu âmbito, observando
naturalmente os parâmetros legais.
Nos casos em que houvesse consentimento, o elemento negativo do tipo de
responsabilidade não estaria preenchido, não havendo por isso lesão do bem (ainda
que lícita).
Neste sentido, partilhar algo privado ou autorizar outrem a divulgar uma informação
dessa natureza deve ser ainda visto como uma forma de exercício do direito à reserva
à intimidade da vida privada.
Ao fazer isto, o titular do direito não se limita a consentir uma lesão, procedendo
antes à conformação do próprio objeto e conteúdo do direito.

Esta autolimitação do direito de personalidade não pressupõe a capacidade jurídica


do declarante, sendo suficiente a sua capacidade natural (capacidade de entender e
querer um ato). Um incapaz pode, deste modo, ter capacidade para autorizar a
“lesão”. Nos casos em que o consentimento possa disputar com o âmbito de atuação

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
dos representantes legais, será de exigir o consentimento quer do incapaz, quer do
representante.

▪ Só sou responsável pela violação ao direito de imagem, se o A não tiver dado


consentimento.
▪ Ao interpretar a lei de forma a que se chegue à conclusão que, para haver
responsabilidade civil é preciso não só a atuação potencialmente lesiva do
bem da personalidade, mas simultaneamente a ausência de consentimento,
olha-se para o artigo 81.º e diz-se que este representa uma autolimitação ao
próprio direito.
• É uma autolimitação ao próprio direito porque quando o A consente
e se deixa ser fotografado, está a limitar o próprio direito, está a dizer
que o seu direito de imagem não é afetado por esse tipo de
comportamento.

➔ O que está em causa nesta situação (e neste caso prático) é conceder a outrem um direito de
aproveitar uma manifestação concreta de um direito de personalidade.
o Neste caso, não se está a transmitir a imagem, mas está-se a proceder ao
aproveitamento da imagem. O senhor A, permite ao senhor B, num contrato, que
este tire e comercialize as suas fotografias, constituindo a favor do senhor B um
direito a se aproveitar de uma manifestação concreta da imagem dele (as fotografias).

Quando celebro um contrato com alguém em que permito que me tirem fotografias e que
utilizem essas fotografias na campanha publicitária, recebendo dinheiro por isso, vai nascer
um direito para essa empresa que me contrata para a campanha publicitária de me tirar as
fotografias e utilizá-las numa campanha publicitária. O empresário fica com um direito
subjetivo.

O Artigo 81.º também tem um n.º 2 que nos vem dizer que a limitação voluntária quando
conforme à lei é sempre revogável, ou seja, quando está em causa a limitação a um direito de
personalidade, o sujeito pode desvincular-se unilateralmente de um contrato, mas é imposto
ao sujeito um dever de indemnização do prejuízo da contraparte (obrigação de indemnizar os
prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte).

No Artigo 81.º apenas estão em causa os direitos de personalidade, estando inserido na parte
do Código Civil dedicada aos direitos de personalidade.

A declaração de autolimitação tanto pode consubstanciar um negócio jurídico unilateral como um


contrato, sendo livremente revogável (artigo 81.º/2 CC). O caráter pessoalíssimo dos direitos justifica
a licitude desta desvinculação unilateral, livre e arbitrária.
Caso a declaração esteja integrada num contrato, tal ato continua a ser permitido, contrariamente ao
princípio geral vigente nas relações contratuais — pacta sunt servanda.

No entanto, razões de tutela da confiança fundamentam que a lei tenha sentido a necessidade de
prever a responsabilidade do titular do direito pelos danos sofridos pela contraparte com a
mencionada desvinculação.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
(Ter em conta que as fronteiras do bem da personalidade são, em grande parte, fixadas pelo próprio,
na medida em que a forma como nós vemos e encaramos esse bem de personalidade influencia a
medida de proteção do mesmo, já que a dimensão do direito não será igual. O objeto de um direito
de quem valoriza a privacidade acima de tudo será mais amplo do que o outro objeto de alguém que
publica tudo on-line).

Os direitos têm diferentes objetos e nós podemos limitar o objeto dos nossos direitos
voluntariamente.

Artigo 81.º
Limitação voluntária dos direitos de personalidade
1. Toda a limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade é nula, se for contrária aos
princípios da ordem pública.

O limite da ordem pública não é o único.

O Artigo 280.º do Código Civil estabelece os limites ao objeto negocial.


(No direito privado podemos fazer tudo, exceto o que é proibido e este artigo estabelece o que é
proibido)
Limites:
➔ Não pode violar a ordem pública;
➔ Não pode violar os bons costumes;
➔ Não pode violar a lei imperativa;
➔ Não pode ser impossível (físico ou legalmente);
➔ Não pode ser indeterminado.

Como o artigo 81.º pressupõe a existência de uma declaração de vontade, esta está sujeita aos limites
de validade presentes no artigo 280.º e dessa forma, não é apenas a ordem pública, sendo também
os bons costumes, a possibilidade, a determinabilidade e a lei imperativa.

• Autolimitação da tutela jurídica conferida ao direito de personalidade:

oArtigo 340.º do Código Civil


Consentimento do lesado
1. O ato lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na
lesão.
2. O consentimento do lesado não exclui, porém, a ilicitude do acto, quando este for
contrário a uma proibição legal ou aos bons costumes.
3. Tem-se por consentida a lesão, quando esta se deu no interesse do lesado e de
acordo com a sua vontade presumível.

o Artigo 38.º CP
Consentimento
1. Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude
do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto
não ofender os bons costumes.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
2. O consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade
séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, e pode
ser livremente revogado até à execução do facto.
3. O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 16 anos e
possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no
momento em que o presta.
4. Se o consentimento não for conhecido do agente, este é punível com a pena
aplicável à tentativa.

o Artigo 39.º
Consentimento presumido
1. Ao consentimento efectivo é equiparado o consentimento presumido.
2. Há consentimento presumido quando a situação em que o agente atua permitir
razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria
eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é
praticado.

Qualquer um destes preceitos trata do consentimento do ofendido.


É necessário entender a diferença entre este tipo de limitação (autolimitação da tutela
jurídica) e a limitação constante no artigo 81.º (autolimitação do exercício do direito de
personalidade).
Da autolimitação presente no artigo 81.º vai nascer um direito para alguém de poder
beneficiar de manifestações concretas do meu bem de personalidade.
Nas situações de autolimitação da tutela jurídica não é isso que acontece, não há a concessão
de um direito a um terceiro de aproveitar manifestações concretas de um bem de
personalidade. Nesta situação, abdica-se temporariamente da tutela jurídica conferida pelo
direito de personalidade, criando uma situação de tolerância perante a agressão. Aqui, não
concedo um direito a outrem, mas autorizo a outro que proceda de determinada forma.

Ex: Preciso de uma cirurgia, tenho de consentir para que o cirurgião realize essa cirurgia (que
consiste numa agressão à integridade física).
A diferença entre permitir que se tirem as fotografias para a campanha publicitária e permitir
ao cirurgião que realize a cirurgia é que na primeira hipótese, o titular do direito concedeu ao
empresário um direito subjetivo de utilizar essas imagens. Enquanto na segunda hipótese,
quando o paciente autoriza a cirurgia, ele não está a conceder um direito ao médico, apenas
está a abdicar temporariamente e especificamente para aquele ato da tutela jurídica que lhe
é conferida pelo seu direito de personalidade.
A situação torna-se lícita e tolerada, mas não constitui um verdadeiro direito do médico.

Estes artigos (340.º do CC e 38.º e 39.º do CP) estão pensados para qualquer direito subjetivo
(o seu âmbito de aplicação é mais vasto e não se restringe aos direitos de personalidade)
tratam de situações em que se permite uma lesão, que tanto pode ser um direito da
personalidade ou de outros.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Critérios para que o consentimento seja válido e efetivo (quando há uma declaração de
consentimento por parte do titular do direito):
• Vontade livre, séria e esclarecida – tem que haver liberdade para decisão, seriedade e toda a
informação necessária para a pessoa poder decidir lucidamente e não em erro.
• Não violar a lei.
• Disponibilidade do bem – só pode haver consentimento quanto a bens disponíveis e não
quanto a bens indisponíveis. (Ex: a integridade física é disponível; furar as orelhas, cortar as
unhas etc é permitido, mas continuam a ser agressões à integridade física.)
• Capacidade natural – avalia a capacidade de um indivíduo (titular do direito – quem emite o
consentimento) querer e entender os seus atos, para saber se o sujeito está em condições de
emitir declarações. A pessoa tem capacidade para determinar a atuação de outrem em função
da sua declaração.
o Um menor de idade pode ter capacidade natural, o Código Penal admite que haja
capacidade natural para menores com 16 e 17 anos. Não aceita que alguém com 15
ou menos tenha capacidade natural.
• Não ofender os bons costumes
o É preciso ter em conta os motivos e o fim, quer do agente, quer do ofendido.
Em qualquer destes preceitos, para o consentimento ser válido, não pode haver
violação dos bons costumes.
O Código Penal vai mais longe e no seu artigo 149.º vai-nos dar critérios para aferir a
lesão dos bons costumes. Para saber se um determinado consentimento viola ou não
os bons costumes, precisamos de ter em conta:
▪ Os motivos e o fim quer do agente, quer do ofendido;
▪ Os meios utilizados;
▪ O efeito – a intensidade da lesão (se é ou não irreversível).

Ex: há consentimento para que o médico ampute o braço do paciente, mas não é isto
que faz com que os bons costumes estejam a ser respeitados.

Assim, podiam haver duas hipóteses:


1. Motivos legítimos de saúde: o paciente está com uma infeção e se não for feita
uma amputação, o paciente pode morrer.
a. Neste caso, o fim é conforme ao Direito e respeita os bons costumes. Há
consentimento à causa de justificação. A causa de justificação exclui a
ilicitude da proibição.
2. Motivos ilegítimos: o paciente quer ser amputado, pois descobriu que ao ter o
estatuto de deficiente, há uma grande redução da carga fiscal.
a. Neste caso, o fim não é conforme ao Direito, trata de uma ofensa
irreversível à integridade física para pagar menos impostos e, assim, não
respeitam os bons costumes. Este ato é proibido e ilícito.

Para haver responsabilidade civil, é preciso que haja um facto ilícito.


Os artigos 340.º do CC e os artigos 38.º e 39.º do CP vêm excluir a ilicitude de certos atos,
através da justificação da tolerância dos mesmos.
➔ A lei proíbe a agressão à integridade física, mas permite o consentimento para a agressão, e
este consentimento, quando válido, torna a agressão lícita. Um dos critérios para aferir a
validade do consentimento são os bons costumes.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Consentimento presumido (Artigo 340.º CC e 39.º CP):
A presunção consiste em friccionar um facto face a outro que é tido como certo.
Só pode haver consentimento presumido quando dois pressupostos estão simultaneamente reunidos:
• urgência em ter a declaração do titular do bem;
• impossibilidade do titular do bem de prestar essa declaração.

Exemplo: o sinistrado entra inconsciente no hospital e precisa de uma intervenção cirúrgica urgente.
Há uma urgência para ter um consentimento e uma impossibilidade de obter uma declaração. Assim,
presume-se que há esse consentimento e opera-se.

Tutela (cível) dos direitos de personalidade:


A tutela do direito civil não prejudica a tutela penal ou outras formas de tutela dos direitos de
personalidade.

• Inter vivos – o que está em causa é saber como se protege uma pessoa viva de uma agressão
a um direito de personalidade de que seja titular. No momento da agressão, a pessoa está
viva.
o Artigo 70.º/2 do CC:
▪ Responsabilidade civil extra-obrigacional (artigos 483.º e seguintes)
• Responsabilidade civil significa repor a situação quando é possível ou
indemnizar o prejuízo.
• Está em causa a violação do dever genérico de proteção dos direitos
de personalidade alheios, que é ilícito. Para estarmos perante
responsabilidade civil tem que haver:
o Dano;
o Prejuízo;
o Nexo de causalidade entre a ação e o dano;
o Culpa (o comportamento do agente pode ser alvo de censura
– a culpa é um juízo de censura).
▪ Providências adequadas a evitar a consumação da ofensa ou a atenuar os
seus efeitos (a serem decretadas pelo tribunal).
• Critério da adequação – um juiz, quando tem de decidir qual a
providência a adotar, tem de escolher aquela que é idónea (apta) a
evitar a consumação da agressão ou a atenuar os seus efeitos, mas
tem de ser sempre a medida idónea menos gravosa para o agressor.
• Há uma situação que não está contemplada na letra da lei, mas está
indiscutivelmente contemplada no seu espírito. Pretende-se:
o Evitar a lesão/ofensa, que a ameaça se concretize (medida
preventiva);
o Limitar os efeitos quando a ofensa está consumada (medida
limitadora);
o Os casos em que a ofensa já está em curso, mas ainda não
terminou – estes casos não estão previstos na letra da lei,
mas é amplamente aceite que faz parte do espírito da lei.
▪ Objetivo: evitar o prolongamento da ofensa,
provocando a sua cessação.

• Post mortem – o que está em causa são as agressões que ocorrem após a morte do titular.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Caso prático utilizado como exemplo: publicação de notícias a difamar a vítima que já faleceu,
podendo lesar o que restava da honra do titular, depois desta morrer.

o Artigo 71.º do Código Civil – “Ofensa a pessoas já falecidas”


o Problemas:
1. Bem ou interesse protegido e titularidade desse interesse:

• Que bem é que estamos a proteger?


• Quem é o titular desse bem?

o Bem de personalidade do morto + morto:

(Ninguém aceita esta hipótese, por se tratar de um contra


senso, ao aceitar em termos literais que o Direito estabelece
mortos-vivos. O António estaria morto exceto no que toca
aos seus direitos de personalidade, onde este continua vivo).

▪ Hipótese sugerida pelo Professor Antunes Varela.


▪ A publicação destas notícias ia violar a honra do
morto (bem da personalidade) e o titular é o próprio
morto.
▪ Diz que este artigo constitui uma exceção ao artigo
68.º, CC, que diz que a personalidade jurídica cessa
com a morte. Quando a pessoa morre, extingue-se a
personalidade jurídica para tudo, menos para a
titularidade dos direitos da personalidade, criando
assim um morto-vivo, pois no que toca aos direitos
de personalidade, trata-se como se este tivesse vivo.

• Crítica: Desconsidera a dupla inerência:


permite que o direito de personalidade
exista, mesmo que o titular já não exista. O
direito está ligado à pessoa e não vive sem
ela. O direito não vive sem o seu objeto.

o Bem de personalidade do morto sem sujeito:

▪ A personalidade do morto extinguiu-se, mas os seus


direitos de personalidade não se extinguiram.
▪ A morte do titular não significa que os direitos
tenham que se extinguir.
▪ A pessoa morre, mas o direito persiste sem sujeito.
▪ Há o direito à honra do A, mas que neste momento
vive na nossa ordem jurídica sem sujeito.
• Crítica: Desconsidera a dupla inerência:
permite que o direito de personalidade
exista, mesmo que o titular já não exista,

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
desconsiderando que o direito não consegue
viver sem sujeito.

o Bem de personalidade do morto + herdeiro

▪ O bem tutelado é do morto, sendo o seu direito de


personalidade.
▪ Mas este direito não continua a ser do morto, nem
fica sem sujeito. Este direito integra a herança e vai
ser adquirido pelo herdeiro.
• Ex: as mulheres e os filhos do António
adquirem o direito à honra de António,
podendo reagir por si.
▪ Crítica: Desconsidera a dupla inerência – permite que
o direito seja transmissível e desrespeita a ligação
inquebrável do direito ao objeto e a sua
indisponibilidade.

o Bens das pessoas previstas no artigo 71.º/2 + pessoas


previstas no artigo 71.º/2, CC

▪ O que está em causa não é um direito de


personalidade do morto, mas sim um bem que surge
aquando da morte, no caso a memória do morto por
parte dos seus descendentes.
▪ Aquilo que o artigo 71.º trata é a criação de um bem,
fruto da memória que os vivos têm do morto, pelo
que são esses que têm a memória os titulares do
direito.
▪ Crítica: É uma fuga ao problema: o objetivo do artigo
71.º é tutelar um bem de personalidade (está
inserido na secção dos bens de personalidade) e se o
objetivo do artigo 71.º fosse tutelar a memória que
os vivos têm do morto, não era preciso haver um
artigo 71.º, pois já há um artigo 483.º (trata da ofensa
dos bens dos vivos – a partir do momento em que
este bem pertence aos vivos aquando a morte da
vítima, esse bem seria suscetível de gerar
responsabilidade civil).
• Não haveria lógica em colocar este artigo
71.º nesta secção se este não estivesse
relacionado com os bens de personalidade. A
memória que os vivos têm do morto não é
um bem de personalidade, por isso a
localização sistemática deste artigo seria
descabida.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Dimensão objetiva do direito de personalidade do morto +
pessoas previstas no artigo 71.º/2
Esta teoria parece a mais adequada. É a que vem ver a tutela
da dimensão objetiva do bem neste artigo 71.º, uma vez que
a dupla inerência leva à extinção do direito subjetivo, mas o
valor (dimensão objetiva) perdura, por este ser comungado
pela sociedade. Este artigo 71.º não atribui o valor a ninguém,
porque o valor não pertence a ninguém e vale por si. Em vez
disso, atribui o direito de defesa às pessoas que gostavam do
morto (previstas no artigo 71.º/2), para protegerem esse
valor.

▪ Rejeita tudo o que está para trás e diz que os direitos


de personalidade, tal como os direitos fundamentais
têm uma dupla dimensão. O direito de personalidade
têm a dimensão subjectiva (direito subjetivo – o
poder e o espaço de liberdade que se confere a
alguém) e uma dimensão objetiva (valor que o direito
encarna).
▪ Temos o direito subjetivo do António, mas também o
direito objetivo (o valor que tem a honra de uma
pessoa).
▪ Quando uma pessoa morre, o direito subjetivo
extingue-se por causa da dupla inerência (estreita e
inquebrável ligação entre o direito e o respetivo
objeto e entre o direito e o respetivo titular).
• Se o António morre, desaparece o titular e
também a honra do António enquanto
direito subjetivo.
▪ A morte causa a extinção da dimensão subjetiva, mas
não é necessariamente assim no que diz respeito à
dimensão objetiva deste direito – o valor honra
persiste e devemos continuar a respeitar esse valor.
▪ Esta hipótese diz que o artigo 71.º vem respeitar a
dimensão objetiva deste direito – ou seja, o valor da
honra.
• Quem é o titular desse interesse?
o As pessoas previstas (cônjuge,
descendentes, ascendentes, irmãos,
sobrinhos e herdeiros) no artigo
71.º/2, CC, têm um direito de defesa
desse valor.
o Objeto: valor.
o As pessoas não são titulares do valor,
apenas têm um direito de o
defender.
• Em geral, não pode haver indemnização às
pessoas que agiram em defesa do objeto, a
indemnização pertence à herança
(património), então só se forem os herdeiros

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
a agir em defesa a este valor, é que há
coincidência. Ex: pode ser o irmão a agir e
este não se qualifica como herdeiro,
portanto não recebe a indemnização.

2. Legitimidade para desencadear as medidas de tutela:

É necessário distinguir duas situações: a causa da ilicitude resulta da falta de


consentimento ou não?
Exemplo:
1º caso: Situação em que depois da morte da pessoa, alguém utiliza o nome
dessa pessoa, fazendo-se passar por ela.
— O comportamento é ilícito, pois não podemos utilizar o nome de
outro. Este é um comportamento que é sempre ilícito, ou seja, a
ilicitude não resulta de falta de consentimento.
2º caso: Depois da morte de uma pessoa, alguém utiliza fotografias dessa
pessoa, numa campanha publicitária.
— A utilização de fotografias alheias só é ilícita se não houver
consentimento. Neste caso, a ilicitude resulta da falta de
consentimento, pois só há ilicitude se não houver consentimento.

A lei trata de forma diferente essas duas situações.

• Quem é que pode desencadear as medidas de tutela?


o Ilicitude não resultante da falta de consentimento: artigo
71.º/2 (artigos 73.º e 75.º) / sem ordenação
▪ Quando a ilicitude não resulta da falta de
consentimento, quem tem legitimidade são as
pessoas previstas no artigo 71.º/2, CC, pelo que
qualquer uma pode agir, não estando perante uma
ordem.

o Ilicitude resultante da falta de consentimento: só quem tem


legitimidade para consentir – artigo 71.º/3 (artigos 76.º e
79.º) / com ordenação
▪ Quando a ilicitude resulta da falta de consentimento,
quem tem legitimidade para agir são as pessoas que
tinham legitimidade para consentir. Neste caso
tínhamos de procurar quem tinha legitimidade para
consentir a publicação das fotografias, pois são essas
pessoas quem tem legitimidade para desencadear as
medidas de tutela.
▪ Assim, temos de identificar estas pessoas.
▪ Para o caso do exemplo (2º caso), a resposta é fácil
porque nos é dada diretamente pelo artigo 79.º CC,
que responde a esta pergunta, dizendo-nos que
“depois da morte da pessoa retratada, a autorização

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
compete às pessoas designadas no artigo 71.º/2,
segundo a ordem nele estabelecida”. (Neste caso
são as mesmas pessoas de que temos estado a falar,
mas podiam não ser).
▪ Só passamos ao patamar inferior, na ausência de
patamar superior: os descendentes só podem se não
houver cônjuge, etc...

3. Meios de tutela disponíveis:

• Quais são os meios de tutela disponíveis?

o Providências adequadas – é inquestionável que uma das


formas de tutela é a aplicação dessas medidas adequadas.

o Responsabilidade civil? – A dúvida que surge relativamente


à responsabilidade civil é se pode haver o pagamento de uma
indemnização.
▪ Esta dúvida surge por motivos literais:

Artigo 70.º
Tutela geral da personalidade
1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade
física ou moral.
2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida
pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação
da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

Artigo 71.º
Ofensa a pessoas já falecidas
1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular.
2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º 2 do artigo anterior o
cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.
3. Se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam prestar
têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer as providências a que o número anterior
se refere.

• O artigo 71.º/2 e 3 faz referência ao artigo


70.º/2, que fala tanto de responsabilidade
civil como de providências adequadas.
o Quando este artigo remete apenas
para o artigo 70.º/2 falando apenas
de providências adequadas, induz
que exclui a responsabilidade civil
como meio de tutela.
————————————————————

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Por outro lado, olhando para o artigo 71.º/1,
vemos que diz “igualmente” e, sabendo que
vem imediatamente a seguir ao 70.º/2, leva-
nos a pensar que se refere tanto a
providências adequadas, como a
responsabilidade civil.
▪ O efeito da indemnização é ressarcitório, é de
compensar o dano e colocar o lesado na situação em
que estaria se não tivesse sofrido o dano
(idealmente).
• Aqui não faria sentido, pois se a pessoa já
morreu, não há dano. Logo, ela não sofreu
nada. Assim, não há nenhum dano a
compensar, logo não há responsabilidade
civil.
▪ No entanto, isto é uma visão simplista.
▪ Há dano porque o dano pode ser visto de um prisma
puramente objetivo, no sentido em que há a violação
de um valor.
▪ Além disso, a responsabilidade civil também tem
uma função preventiva e sancionatória (e não apenas
ressarcitória).
• Deixar passar estes atos sem qualquer tipo
de responsabilidade civil, faria com que
outros pudessem fazer o mesmo ou a pessoa
até repetisse, porque não haveria
prevenção. Não estaríamos perante a
coercibilidade do direito.
▪ Ainda, se não aceitássemos a responsabilidade civil,
não tínhamos como restituir o lucro ilicitamente
obtido por quem agiu contrariamente à lei, e ele
manter-se-ia nas mãos dessa pessoa.

Por essa razão, apesar do nº2 do artigo 71.º não permitir estabelecer concretamente os meios de
tutela, graças ao número 1.º e a esta justificação, a doutrina tem entendido que quer as providências
adequadas, quer a responsabilidade civil são meios de tutela disponíveis.

Direito geral de personalidade

Artigo 70.º
Tutela geral da personalidade
1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua
personalidade física ou moral.

Dúvida: este artigo 70.º/1 estabelece um direito subjetivo sobre toda a personalidade ou estabelece
uma cláusula geral?

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Direito subjetivo de personalidade (direito geral de personalidade) – reconhecido a cada
pessoa e teria por objeto toda a personalidade dessa pessoa, i.e. o conjunto das
manifestações dessa pessoa. A pessoa, enquanto todo, seria o titular deste objetivo.
o Críticas:
▪ Não é lógico, porque assim, todo o homem seria o objeto do direito e ao
mesmo tempo o titular do direito.
▪ Há uma duplicidade de tratamentos: se há um direito de personalidade sobre
toda a personalidade, qual é a justificação para haver a especificação dos
imensos direitos de personalidade. Para quê falar de direitos de
personalidade parcelares, se havia um todo? (Ex: direito de imagem, do
nome, etc).
▪ É muito difícil definir o respetivo objeto. Numa pessoa singular não é tão difícil
entender isso, apesar de também não ser fácil (a personalidade não é apenas
o que é, mas aquilo que pode ser), mas com as pessoas coletivas é muito difícil
definir este todo.
▪ O direito subjetivo de personalidade surge no BGB, que apenas fala do direito
ao nome e não tem mais nada sobre os direitos de personalidade. Fala apenas
da dignidade humana e respeito pelo desenvolvimento pessoal e os tribunais
usam essa menção para justificar um direito geral de personalidade, para
permitir tutelar todos os restantes direitos de personalidade. Através da ideia
de dignidade humana, defendem um direito geral de personalidade, para
conseguirem abarcar todos os outros direitos, uma vez que o seu BGB não
especifica.
▪ Na lógica do sistema português, isto não se justifica. Faz mais sentido uma
cláusula geral.

• Cláusula geral – norma aberta; é ideia de que a própria norma reconhece que há mais
situações para além daquelas que trata e aceita qualquer uma que venham a acontecer.

o O artigo permite qualificar como direito de personalidade qualquer realidade que seja
um bem de personalidade, ainda que não esteja previsto na lei.
▪ Ex: hoje em dia entende-se como direito de personalidade o direito à
identidade da genética, podendo dizer que é um direito de personalidade que
merece todos os mecanismos de tutela destes direitos, mas quando o Código
Civil foi feito, o código genético ainda não tinha sido descoberto, portanto
este direito ainda não existia e portanto não era compreendido como tal.
o É a ideia de abertura a novas manifestações da personalidade – podemos ir criando
direitos de personalidade que não eram previstos como tal à medida que se vão
explorando os direitos de personalidade.
o (Assim, garante-se uma visão atualista.)

Direito à vida

• Artigo 24.º CRP e Artigo 70.º/1 CC (qualquer direito de personalidade – engloba a vida)

o Bem superior da nossa Constituição – é o que mais vale – mas não é absoluto.

• Passível de restrições:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Não há nenhum bem no nosso ordenamento jurídico que não seja passível de
restrições.
o A vida é passível de restrições.
▪ Ex: legítima defesa.

• Início da proteção:

o A vida humana inicia-se com a conceção.


▪ A questão é: quando é que se inicia o direito à vida? Com a conceção ou com
o nascimento?
• Até a um passado recente, a ideia que existia é que com a conceção
o valor vida passava a existir (dimensão objetiva), mas o direito
subjetivo só passava a existir com o nascimento com vida.
• A proteção conferida ao valor é menor do que a proteção conferida
ao direito.
o Mais recentemente, isto foi posto em causa e veio a ser
admitido que o direito à vida começa com a conceção
(problema: como resolver o artigo 66.º?).

• Renunciabilidade? Disponibilidade?

o Renunciabilidade: No Direito Penal, a resposta é que o direito à vida é renunciável. A


tentativa de suicídio não é punível (não há crime, nem responsabilidade civil, uma vez
que é o titular a atentar o seu próprio direito e não um terceiro).
o Disponibilidade: Atualmente, em Portugal, a eutanásia ativa é proibida e é um crime,
portanto, não há disponibilidade à vida. No regime vigente, não podemos autorizar
outrem a matar-me. Mas podemos autorizar outrem a dar-nos medicamentos muito
fortes que auxiliam na dor, mas resultam na morte – eutanásia ativa indireta .
Também é permitida a eutanásia passiva – recusa de tratamentos, que podem
provocar a morte.
▪ Por enquanto, é proibido autorizar outrem a matar diretamente, mas é
possível haver eutanásia ativa indireta e eutanásia passiva.
▪ Suicídio assistido — ???

• Dano morte ou dano da perda da vida

Questiona-se se a supressão da vida por ato de outrem constitui um dano autónomo sofrido pela
própria vítima, que deve ser indemnizável.

Direito à honra e ao bom nome

• Artigo 26.º CRP/ Artigo 70.º1, CC (está abrangido pela cláusula geral do artigo 70.º/1 CC)
• É um direito amplo, que abarca e tutela duas dimensões:
o Honra social (externa – respeito/deferência que os outros têm por nós)
o Honra pessoal (interna – a perceção que o sujeito tem de si mesmo [a sua
autoestima])

➔ O direito à honra e ao bom nome não aparece na lista como direito de personalidade, mas o
Código Civil a propósito da responsabilidade civil faz uma referência a este direito.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
➔ Quando se fala da violação deste direito, essa violação pode ser feita de duas maneiras:

1. Imputação de factos potencialmente lesivos.


2. Emissão de juízos de valor potencialmente lesivos.

• Artigo 483.º (norma geral sobre responsabilidade civil) – o artigo 483.º abarca todas as outras
situações de violação da honra pessoal (imputação de factos + juízos de valor) + a violação da
honra social, quando em causa esteja a emissão de juízos de valor potencialmente lesivos.

• Artigo 484.º (norma sobre responsabilidade civil pela violação do crédito a bom nome) – é o
artigo 484.º que trata das situações de violação da honra social, quando são imputados factos
potencialmente lesivos da honra.

• Limites intrínsecos (autoconformação):


o Para chegar à limitação intrínseca, temos de olhar para as normas que regulam o
direito, vendo quais as situações abrangidas/não abrangidas por elas, qual é o objeto
dessa norma, que direito é que confere e qual o seu perímetro e que limite tem esse
direito
o Durante anos, a doutrina assumiu que não havia qualquer limitação ao direito à
honra. Hoje em dia, no entanto, a jurisprudência do tribunal europeu dos Direitos
Humanos têm contribuído para que se reconhecesse que a norma não admite
praticamente quaisquer limites, mas reconhece um – a autoconformação – como a
norma é aberta, acaba por ser o sujeito a determinar o limite e perímetro do direito
sobre a sua determinada honra.
▪ As pessoas ofendem-se de forma diferente e têm sensibilidades diferentes.
▪ Ao escolhermos profissões de maior notoriedade, estamos a reduzir o
perímetro do direito à honra. Ex: os políticos não se podem sentir ofendidos
ao serem avaliados pelo público, pois isso é algo inerente à profissão.

➔ Temos que olhar para o direito à honra através do elemento sistemático e assim chegamos
aos limites extrínsecos (limites/perímetro do direito não traçado por ele próprio, mas sim
pelas normas que prevêem os outros direitos).

• Limites extrínsecos
o Ex: liberdade de expressão
▪ Quais é que são os limites intrínsecos da liberdade de expressão?
• Insulto gratuito e desproporcionado;
• Enganar, não podemos mentir descaradamente e enganar o próximo
propositadamente (ex: burlão)
• Incitamento ao ódio
• Utilidade social?
o A liberdade de expressão não deve abranger as trivialidades. A lei proíbe a censura e
não nos diz que só podemos dizer o que é útil para a sociedade.
▪ Quais são os limites extrínsecos à liberdade de expressão?
• Direito ao bom nome e reputação.

➔ Como é que nós vamos conjugar a liberdade de expressão com o direito ao bom nome e
reputação?

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Olhando apenas para o direito ao bom nome e reputação diríamos: “nunca ninguém
vai poder dizer mal sobre alguém porque isso é um atentado ao direito ao bom nome
e reputação de outro”
o Olhando apenas para o direito à liberdade de expressão, diríamos: “toda a gente pode
dizer o que quer, porque há liberdade de expressão.
• Como um ato não pode ser proibido e permitido ao mesmo tempo, somos nós, intérpretes
que temos que descobrir os limites destes direitos e perceber onde termina um e começa
outro.
• As normas que prevêem estes direitos são princípios – conferem mandatos de otimização –
a ideia é proteger AO MÁXIMO estes direitos, mas sabemos que apesar desta perspetiva, isto
tem de ser feito dentro do que é juridicamente possível e, por isso, temos de proceder à
delimitação recíproca destes direitos. Só assim percebemos como esses se delimitam.
• As normas estabelecem um âmbito de tutela muito vasto, mas o âmbito de tutela não é o
âmbito de garantia efetiva (aquilo que efetivamente é protegido). Para passar do âmbito de
tutela para o âmbito de garantia efetiva, temos de fazer um juízo de proporcionalidade.

Num caso em que tenhamos um conflito entre direitos prima facie, temos de descobrir qual é o direito
definitivo, ou seja, qual é a norma que limita a outra (direito definitivo).

Conflitos de direitos prima facie (prima facie = em princípio há direito, mas as normas não
estabelecem direitos definitivos, apenas estabelecem mandatos de otimização, mas não estabelecem
uma garantia):

• Liberdade de expressão prima facie + direito ao bom nome e reputação prima facie —> Direito
definitivo

O objetivo é chegar ao direito definitivo.

Direito à vida + direito de defesa —> Direito definitivo


(O juízo de proporcionalidade consiste em descobrir qual é o direito que se torna em direito definitivo)

Juízo de proporcionalidade (exige que haja um balanceamento dos bens) em concreto:

Veracidade dos factos


Intensidade da ofensa +
(tutela da honra e do bom nome) Interesse legítimo na divulgação
(tutela da liberdade de expressão)

Liberdade de
expressão:

➔ Intensidade da ofensa – determinar o alcance da possível ofensa. É preciso graduar a


intensidade e isso só se faz em concreto.
o Ampla, estreita – se é muito ofensivo ou não.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Irreversível ou não – É preciso saber se a ofensa sobre a pessoa pode afetar
permanentemente a sua reputação.

➔ Quando está em causa a imputação de factos:


o É preciso, para que não haja ofensa do bom nome, que esse facto goze de veracidade
(veracidade ≠ verdade), a veracidade é a forte probabilidade de ser verdade, pelo que
não é obrigatório haver um juízo de certeza.
▪ É preciso haver um juízo de forte probabilidade:
• É necessário que a pessoa aja em boa fé e que seja diligente na
obtenção da informação.
• Tem de cumprir as leges artis (as regras da arte: conjunto de regras
científicas e técnicas e princípios profissionais de cada profissão) – ex:
o jornalista tem de cumprir os deveres que a profissão lhe impõe, por
exemplo, os deveres de informação.
o Tem de haver um interesse legítimo na divulgação – tem de se averiguar o
destinatário da informação, se é alguém que precisa daquela informação para o juízo
de valor que faz sobre outrem.

➔ Se estes factos se verificarem, a liberdade de expressão é o direito definitivo.


➔ Quando está em causa um juízo de valor, em geral, o que está em causa é a liberdade de
expressão, sendo esta o direito definitivo. (só os juízos de valor em que são feitos insultos
gratuitos e desproporcionados, acreditando que aquilo não é verdade é que nos afastam da
tutela da liberdade de expressão)

Direito à reserva da intimidade da vida privada

➔ Norma que tem a natureza de princípio, estabelecendo um mandato de otimização (lógica de


proteger ao máximo a intimidade da vida privada).

O direito à reserva da intimidade da vida privada proíbe a captação de informação sobre a vida privada
ou íntima de alguém e/ou a divulgação ou aproveitamento dessas informações. Quer a obtenção, quer
a utilização dessas informações são proibidas, porque se quer garantir a cada um de nós um espaço
de liberdade em que não estamos perante o escrutínio de outros, pois o que diz respeito à nossa
privacidade é algo que está restrito a quem não damos consentimento.

• Artigo 26.º CRP e 80.º CC

• Objeto do direito: intimidade privada


o O que é isto da intimidade privada?
▪ É um conceito em sentido amplo em que inserem informações sobre a nossa
identidade genética, origens familiares, saúde, situação patrimonial,
conceções políticas, informações sobre as nossas relações de amizade
(sobretudo as mais estreitas) e as nossas relações amorosas e familiares.
▪ Tomando conhecimento de informações de qualquer um destes aspetos,
permitem às pessoas que teve esse conhecimento, conhecer um pouco mais
da intimidade de alguém. Tudo isto está proibido. Não podemos ter acesso a
informações, sem consentimento do titular.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Conteúdo do direito (Não podemos ter acesso a essas informações, sem consentimento do
titular, pelo que não podemos usar essas informações)

• Limites intrínsecos – a própria norma estabelece estes limites:

o Natureza do caso

▪ Teoria das esferas?


• É usada pela doutrina (e criada por si, não estando prevista na lei) e
pelos nossos tribunais. É um critério jurídico, suscetível de muitas
críticas.
o Qual é a natureza do caso?
• Nós temos de distinguir consoante o caso se insira numa de três
esferas:
o Esfera pública (dimensão da nossa vida, que partilhamos com
os outros sem qualquer tipo de problemas — não está
abrangida ao direito da reserva da intimidade da vida
privada. Esses dados são absolutamente suscetíveis de serem
recolhidos e partilhados, desde que haja interesse nisso.)
[não tem a ver com o espaço onde o facto acontece]
o Esfera privada (relações de amizade — esfera social, de
convívio social, que já não se partilha com todos, mas com
um número mais restrito)
o Esfera íntima (saúde da pessoa, património da pessoa,
relações amorosas – aquilo que a pessoa não quer partilhar
com ninguém ou só partilha com um número muito
restrito/próximo)
• Esta teoria diz que a reserva da intimidade da vida privada apenas
tutelaria informações relativas à esfera privada e à esfera íntima e
não da esfera pública.
• Críticas: a teoria cria estratos e fronteiras que podem não haver, pois
não podemos compartimentar toda a nossa vida nestes termos.

o Condição da pessoa

▪ Notoriedade daquela pessoa (se o público conhece)


• Só está fora do âmbito da tutela da reserva da intimidade da vida
privada aqueles factos que estejam diretamente relacionados com a
causa da notoriedade daquela pessoa.

▪ Cargo ou profissão
• Ex: Caso do Figo – um jornalista tinha publicado fotografias da casa
do Figo e descrito como era a causa. O Tribunal vem entender que
havia violação da RIVP pois ele tinha notoriedade, mas graças ao
futebol e o que estava aqui em causa era a vida privada dele e a forma
como ele vive não tem absolutamente nada a ver com a forma como
ele é visto pela sociedade.

▪ Postura da pessoa

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Se a pessoa tem por hábito de partilhar tudo o que lhe acontece,
inclusivamente as coisas mais íntimas, é normal que o seu âmbito de
tutela da RIVP seja menor do que aquelas pessoas que são mais
reservadas.
• O próprio titular define o âmbito de tutela do direito em função do
seu comportamento.

➔ O âmbito de tutela da reserva da intimidade da vida privada é definido desta forma.

• Limites extrínsecos – limites provenientes das outras normas que prevêem outros direitos (de
personalidade ou fundamentais):
o Ex: Liberdade de expressão

Juízo de proporcionalidade em concreto:

Liberdade de expressão (direito prima facie)


Reserva da intimidade da vida privada (direito prima facie)

Em determinada situação pode questionar-se se uma pessoa (ex: jornalista) pode partilhar
informações da vida privada de alguém.
Para sabermos isto, temos de ver, dentro destes dois direitos prima facie, potencialmente aplicáveis,
qual deles se vai tornar em direito definitivo — isso faz-se através de um juízo de proporcionalidade
— um balanceamento em concreto.

1.º Temos de ver qual a área da reserva da intimidade da vida privada (íntima ou privada — quanto
mais íntimo, mais difícil é dizer-se que se pode partilhar aquela informação)
2.º Dimensão da afetação — intensidade.

Do outro lado, temos de ver o interesse legítimo na divulgação. Se não houver interesse legítimo na
divulgação, o direito definitivo é a RIVP, mesmo que a intensidade da afetação seja menor.

Área da reserva da intimidade da


vida privada afetada
+ Interesse legítimo na divulgação
Intensidade dessa afetação (tutela da liberdade de expressão)
(tutela da RIVP)

Direito à confidencialidade das cartas missivas

• Artigos 75.º e 76.º do CC

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Trataremos deste direito, porque este se encontra previsto no Código Civil, mas em rigor, este direito
não tem autonomia e é uma manifestação da reserva da intimidade da vida privada, sendo esse o
direito que está a ser tutelado. O legislador apenas sentiu a necessidade de especificar uma
manifestação concreta deste direito — as cartas missivas.
Aquando a feitura do Código, em 1966, o legislador referia-se a cartas de papel quando falava em
cartas missivas, mas a verdade é que a interpretação é objetivista e atualista, pelo que devemos
acompanhar a evolução — as cartas missivas atualmente são qualquer carta/mensagem/e-mail.

Este artigo deixa claro que as cartas missivas confidenciais não podem ser partilhadas com terceiros,
sem a autorização do autor. A proibição deste artigo é só relativa a cartas confidenciais.
Então, o mais importante é determinar:

• Caráter confidencial:
o Quando é que uma mensagem é confidencial?

▪ Teoria subjetiva – diz que uma mensagem é confidencial quando o seu


emissor assim considera e escreve “esta mensagem é confidencial”.
• A maior parte da doutrina diz que a confidencialidade das mensagens
não é determinada pelo emissor.
• Não podemos estar a tornar uma mensagem confidencial, só porque
assim é determinada.
• Assim, caberia ao emissor nomear a confidencialidade das
mensagens e tendo em conta que há um regime de tutela de
confidencialidade, permitir isto levaria a um mau uso desta
titularidade.
o Ex: uma pessoa que se esquecesse de colocar que a
mensagem era confidencial, deixava de usufruir dessa tutela.
• O emissor determinar a confidencialidade das suas mensagens não
determina a aplicabilidade dos artigos 75.º e 76.º do CC.

▪ Teoria objetiva – diz que o que está em causa é a aplicação de um


determinado regime jurídico, por isso cabe ao direito determinar quais são as
situações em que as mensagens estão suscetíveis de confidencialidade.
• É o Direito que deve estabelecer o que está sujeito a
confidencialidade.
• São confidenciais as cartas que tratam, por exemplo, de:
o matérias que dizem respeito a sigilo profissional.
o direitos de personalidade.
• Crítica: esta teoria tem sido considerada como ampla demais.
• É inquestionável que uma carta que está abrangida pelo sigilo
profissional é confidencial. O que se questiona é se serão
confidenciais para os efeitos dos artigos 75.º e 76.º, uma vez que
estes estão na parte que regula os direitos de personalidade.

▪ Teoria dos direitos de personalidade


• Relativamente ao regime previsto nos artigos 75.º e 76.º, o critério
que podemos utilizar para saber se a carta é ou não confidencial é o
critério dos direitos de personalidade, nomeadamente aquilo que é
abrangido pela reserva da intimidade da vida privada.
• Será confidencial uma carta cujo conteúdo esteja tutelado pela
reserva da intimidade da vida privada e não estará confidencial, para

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os efeitos dos artigos 75.º e 76.º, uma carta cujo conteúdo não seja
tutelado pela RIVP.

• Direito à confidencialidade ≠ direito de propriedade ≠ direito de autor


o É importante fazer esta distinção.
o Ex: António escreve uma carta a Bento, na qual se lamenta que a namorada acabou
com ele, diz o que sente e partilha com ele um poema que escreveu para a namorada.
o Esta carta tem associado 3 direitos:
▪ Direito à confidencialidade – o que está em causa é a RIVP do António,
tutelando tudo o que diz respeito às relações amorosas dele e aos seus
sentimentos (artigos 75.º e 76.º, CC)
▪ Direito de propriedade – Papel onde a carta foi feita – quando a carta foi feita,
a carta (papel) era do António, mas quando a envia a Bento, está a transmitir
o direito de propriedade a Bento.
▪ Direito de autor – pertence a António, que foi quem escreveu; foi ele que
escolheu aquelas palavras, aquela construção e foi ele que escreveu aquele
poema.

• Memórias

o O regime da tutela da confidencialidade das cartas missivas vale, por maioria de razão,
para as memórias.
▪ Ex: Diário – a pessoa escreve as suas informações íntimas, mas não as partilha
com ninguém, não as envia.
o As memórias, por natureza, têm conteúdo relativo à reserva da intimidade da vida
privada. O autor não quis partilhar. Escreve-se no diário, coloca-se na gaveta e não se
partilha com ninguém.
o Há um dever de sigilo quanto aos diários – não podemos ler diários alheios, durante
a vida da pessoa, e se for de um morto, não podemos divulgar o seu diário.

• Cartas não confidenciais

o As cartas não confidenciais não estão sujeitas à tutela da confidencialidade.


o Não gozam da tutela dos artigos 75.º e 76.º, mas podem gozar de tutela – tutela da
confiança:
▪ Um dos princípios fundamentais dos nossos direitos.
▪ Significa que temos de proteger outrem da confiança que criámos nesse
outrem.
▪ A ideia de acreditar no próximo é valorada pelo Direito e é muito importante.
Essa confiança tem de ser protegida.
▪ Posso escrever algo que não tem nada a ver com a reserva da intimidade da
vida privada, mas que quero confiar a uma pessoa e não quer partilhar com
outros e confio que aquela pessoa não a vai divulgar.
▪ Assim, se o destinatário partilhar a missiva, podemos ter uma violação da
tutela do princípio da confiança.

➔ Se o autor consentir na partilha, não há tutela. No caso da morte, o consentimento é dado


pelas pessoas previstas no artigo 71.º/2, CC.
o A pessoa pode dar consentimento e revogá-lo, mas vai ter que ter os encargos do
prejuízo causado a terceiros.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Ex: a pessoa dá consentimento em publicar diários, a editora gasta imenso
dinheiro a imprimir os livros e está pronta para os publicar, assim que a
pessoa revoga o consentimento, vai ter que indemnizar a editora.

Direito à imagem

• Artigo 26.º/1 CRP / Artigo 79.º, CC


• Relação com a reserva da intimidade da vida privada — alguns autores entendem que a
imagem é uma manifestação da RIVP, porque a forma como nos apresentamos revela algo
sobre a nossa personalidade. No entanto, é perfeitamente possível haver violação do direito
à imagem, sem haver violação da RIVP. E assim, percebemos que estamos a tratar de 2 bens
e não de 1 só.

• Artigo 79.º CC: O CC só trata da configuração externa da dimensão da imagem.

o N.º 1 – Estabelece a regra: proibição de captação e divulgação da imagem alheia (a


menos que haja consentimento)
▪ Não estabelece a proibição da captação, apenas da divulgação, mas assume-
se que é um lapso da parte do legislador, e assume-se, sem qualquer dúvida,
que a captação também é proibida.
▪ Só com consentimento é que se pode captar e divulgar.

o N.º 2 – Estabelece a exceção, ou seja, os casos em que é possível captar e/ou divulgar
SEM CONSENTIMENTO:
▪ Notoriedade ou cargo da pessoa
• O que vimos para a RIVP também se aplica aqui. A
captação/divulgação da imagem tem de estar relacionada com a
razão da notoriedade/cargo da pessoa.

▪ Fins de polícia ou de justiça


• Em certas situações, é possível filmar e tirar fotografias às pessoas –
as situações estão previstas no Código de Processo Penal.

▪ Finalidades científicas
• Ex: Mundo da medicina – quando está em causa uma determinada
patologia, é muito comum documentar o processo de tratamento
através de imagens e é muito importante para o progresso científico.
As imagens devem ser partilhadas, mas deve-se sempre tentar
captar/divulgar imagens que não permitam identificar a pessoa.

▪ Lugares públicos
• A lei permite tirar e divulgar fotografias de lugares públicos, mesmo
que apareçam lá pessoas, desde que a fotografia esteja centrada no
monumento/lugar público.

➔ Se um dos requisitos para estas exceções estiver preenchido, pode haver captação/divulgação
da imagem.

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o N.º 3 – Limite à exceção do n.º 2: direito à honra
▪ CUIDADO: Pode haver uma exceção desde que a imagem não comprometa o
direito à honra/não ofenda o bom nome da pessoa.

Direito ao nome

• Artigo 26.º/1 da CRP / Artigos 72.º e 73.º do CC

• Função do nome

o Função vocativa – temos que conseguir individualizar as pessoas, para as


conseguirmos chamar.
o Função distintiva/ de identidade – permitir identificar as pessoas e distingui-las entre
si.

• Composição

o Podemos ter um ou dois nomes próprios


o Ter até 4 apelidos e a esses podem-se juntar até mais dois, em virtude do casamento.
o Quem escolhe o nome, em princípio, é os pais. Quando não chegam a um acordo, é o
juiz.
o Se o bebé for abandonado, é o conservador do registo civil que chega ao acordo.
o Podemos escolher apelidos relativamente aos quais haja relações de família
(parentesco, afinidade, ou de adoção) e não há ordem (não somos obrigados a colocar
o sobrenome do pai em último).

• Princípio da imutabilidade

o Em regra, não podemos mudar o nosso nome.


o EXCEÇÃO: Podemos mudar em caso de:
▪ Erro (ortografia, etc)
▪ Casamento/divórcio
▪ Adoção
▪ Alteração do sexo
▪ Nacionalidade – adquiriu nacionalidade portuguesa, pode colocar um nome
português.
▪ Mediante requerimento ao conservador do registo civil em que nenhuma das
situações anteriores se verificam, mas há uma razão ponderosa para requerer
isso.

• Conteúdo — O que significa ser titular do direito ao nome?


o Temos o direito de usar o nosso nome.
o Podemos abreviar o nome como quisermos.
o Temos o direito de exigir que os outros não utilizem o nosso nome sem o nosso
consentimento.

• Homonímia
o Um dos problemas que pode surgir em função do direito ao nome – quando duas ou
mais pessoas têm o mesmo nome.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Isso cria um problema quando num caso concreto se surge um conflito de interesses
(as pessoas vivem no mesmo sítio, exercem a mesma profissão, etc).
o Quando a identidade de nomes compromete a possibilidade de distinguir os sujeitos,
o tribunal pode ser chamado a intervir neste conflito de interesses.
o Quando as pessoas que têm o mesmo nome provém da mesma família, uma maneira
de resolver é acrescentar o laço familiar no final (Ex: António Silva Junior/filho/neto).
o Quando as pessoas não provém da mesma família, abreviam-se os nomes de forma
diferente. Como em geral uma pessoa tem pelo menos dois apelidos, um pode ficar
António Silva e o outro António Lopes.

• Figuras afins
o Pseudónimo – o nome que a pessoa voluntariamente adota para se fazer designar.
▪ É diferente da alcunha, que é dada pelas outras pessoas.
▪ O pseudónimo é quando o próprio passa a usar outro nome.
o O pseudónimo goza da mesma tutela do que o direito ao nome (apenas não tem a
mesma natureza), podendo ser usado em relações sociais e até profissionais, mas esse
pseudónimo nunca fica registado, então, quando estamos a lidar com situações
oficiais, nunca podemos utilizar os nossos pseudónimos.
▪ Quem utilizar o meu pseudónimo sem a minha autorização, viola o meu
direito ao nome.
o Também se tem atribuído a tutela do direito ao nome ao nosso endereço de e-mail,
pois retrata a nossa identidade digital.

➔ No que diz respeito ao nome, as pessoas coletivas não são titulares ao nome propriamente,
são titulares de firma (pessoa coletiva constituída de acordo com o direito comercial) ou de
denominação social. Apesar do rótulo ser diferente, a função é a mesma e a tutela é a mesma.
Continuam a ser titulares de um direito ao nome, mas no caso de um direito à firma ou de um
direito à denominação social.

1.1.3. Princípio do Reconhecimento da Personalidade Coletiva

Princípio da admissibilidade da personalidade coletiva

O nosso ordenamento jurídico aceita como sujeito de direito e de obrigações, não apenas as pessoas
singulares (seres humanos), mas também as pessoas coletivas (entes criados pelos seres humanos,
para satisfazer fins dos seres humanos — ex: sociedades, fundações, associações (— determinadas
pessoas juntam-se e criam um ente diferente, ou constitui-se um património e esse património vai dar
origem a um ente diferente). As pessoas coletivas também são reconhecidas pelo Direito como
sujeitos.

• Artigo 12.º da CRP


• Artigos 160.º e seguintes do CC

[Vamos dar especificamente esta matéria no final do semestre (tal como o direito de personalidade
do ser humano)].

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
1.1.4. Princípio da autonomia privada

Princípio da autonomia privada

Está previsto na nossa Constituição de forma difusa, não havendo um artigo que trate especificamente
do princípio da autonomia privada, decorrendo da conjugação de vários princípios. É um direito
fundamental de natureza análoga (não está previsto especificamente, mas de forma difusa, não se
pode dizer que seja um direito fundamental enquanto tal, mas é algo que a Constituição trata como
direito fundamental, portanto o seu regime é o mesmo).

O Código Civil trata especificamente do princípio da autonomia privada, consagrando-o no artigo 405.º

• Artigos 1.º, 16.º, 26.º, 47.º, 61.º, 62.º e 80.º da CRP


• Artigo 405.º do CC

Este princípio tem 2 grandes dimensões.

1. Liberdade de exercício de direitos subjetivos

o Ao ser titular de um direito, posso decidir se o exerço ou não, não sendo obrigada a
exercê-lo. Esta liberdade de decisão é uma manifestação na autonomia privada.

2. Liberdade contratual:

o Negativa – a liberdade de não contratar.


o Positiva – a liberdade de decidir celebrar o negócio. Tem 3 manifestações:
▪ Liberdade de celebração – consiste em poder decidir se pratico ou não o ato.
▪ Liberdade de estipulação – é poder determinar ou escolher os efeitos do ato.
▪ Liberdade de escolha da contraparte – Eu posso escolher com quem vou
negociar.

➔ Ato jurídico = quando o direito só confere liberdade de celebração.


➔ Negócio jurídico = liberdade de celebração + liberdade de estipulação

• Limites à liberdade de celebração – limites à possibilidade de decidir se se celebra ou não o


negócio.
o Obrigação de contratar – Ex: contrato de seguro-automóvel ou contrato de incêndio
do condomínio – o legislador obriga a celebração do contrato. Nestes casos, apenas
se pode escolher a contraparte (companhia com quem se celebra), mas a celebração
do contrato é obrigatória.
o Proibição de contratar – Ex: caso em tribunal de um litígio que diz respeito ao imóvel
– a lei proíbe que o imóvel seja vendido ao juiz que está a apreciar a causa.
▪ Em certos casos, a proibição é relativa – só é possível contratar, mediante o
consentimento de alguém. Ex: a venda de pais para filhos só é válida se os
irmãos consentirem essa venda.

• Limites à liberdade de estipulação – limites a desenhar o conteúdo do negócio e a determinar


os efeitos do negócio. No caso concreto, temos de ver qual o objeto que temos em mãos, ver
qual é a legislação específica para esse objeto e averiguar se há algum limite específico.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Limites específicos – Há leis especiais que especificamente vêm determinar que certo
conteúdo negocial é proibido. Ex: contrato de trabalho têm muitos limites – limites
ao termo, à discriminação.
o Limites genéricos

• Limites à liberdade de escolha da contraparte – Ex: quando existe alguém que é titular de
direito de preferência, isso significa que o titular tem prioridade para celebrar o negócio. Por
exemplo, quando o senhorio quer vender a casa, o inclino tem direito de preferência e se
quiser celebrar o contrato nos termos do senhorio, o senhorio tem que celebrar o negócio
com o inclino.

➔ Limites genéricos à liberdade de estipulação:

• Artigo 280.º do CC – Artigo que vem elencar limites genéricos à liberdade de estipulação.
o Enumera 5 pressupostos de validade do objeto negocial (esta expressão tem um
sentido muito amplo, uma vez que nos estamos a referir ao conteúdo do negócio e
aos efeitos que ele vem perseguir, quer à realidade a que esse conteúdo se refere [ex:
coisa, prestação, pessoa, etc]). O que nos interessa é ver se o conteúdo preenche
estes requisitos e ver se o objeto em sentido estrito (realidade a que o negócio se
refere) preenche estes requisitos.

➔ Possibilidade física e jurídica

o Impossibilidade física – o que está aqui em causa é saber se as leis da natureza


permitem aquela prestação e se ela é fazível ou se as leis da natureza conhecem
aquele objeto (se existe) e se existir, se é alcançável.
▪ Ou seja, o que temos de aferir é se a coisa existe e se existir, se é alcançável.
Ex: a lua existe, mas não a podemos vender. A areia das praias existe, mas não
podemos celebrar um contrato no qual nos comprometemos a retirar toda a
areia das praias, porque não é alcançável.

o Requisitos da impossibilidade física:


▪ ORIGINÁRIA – Para haver impossibilidade física, essa impossibilidade tem de
ser originária – tem de existir à data da celebração do negócio. Em Portugal,
há um regime diverso para caso da impossibilidade superveniente (quando
ocorre depois do negócio ter sido celebrado).
▪ ABSOLUTA – Para além de ser originária, tem de ser absoluta (para todos e
não para aquele devedor em concreto), tem de ser uma impossibilidade
genérica – aquela coisa ninguém faz, não existe para ninguém.
▪ DEFINITIVA – Tem de ser definitiva – “eu agora não consigo e com base nos
conhecimentos que temos agora, não conseguirei” o juízo de prognose tem
de ser “esta prestação nunca seria exercível, esta coisa não existirá e nunca
será alcançável.
• Se o objeto do negócio for fisicamente impossível, isso significa que
estamos a ultrapassar os limites da autonomia privada. O negócio
será nulo e não produzirá efeitos.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Impossibilidade jurídica – quando se fala de possibilidade jurídica, pode falar-se tanto
do conteúdo quanto do objeto. Existe sempre que o Direito não conhece aquela figura
ou não confere as ferramentas necessárias para a criação daquela figura.

▪ Há uma dúvida teórica se faz sentido distinguir a


possibilidade/impossibilidade jurídica da conformidade/contrariedade à lei.
▪ Por isso, como temos que assumir que o legislador é bom e que sabia o que
estava a fazer ao distinguir estes conceitos, a doutrina tem vindo a esforçar-
se para distinguir a impossibilidade jurídica da contrariedade à lei.
• Ex de impossibilidade jurídica: António vende a Bento um
determinado bem. Imaginando que àquela data, já Bento era
proprietário daquele bem, mesmo ambos achando que era de
António. Neste caso, há uma impossibilidade jurídica deste negócio,
pois um contrato de compra e venda serve para transmitir a
propriedade do vendedor ao comprador e se o comprador já era
titular do direito, então, é juridicamente impossível o vendedor
transmitir um direito de propriedade.
• Ex #2: No nosso ordenamento jurídico, é proibido matar outrem. Se
celebrar um negócio de prestação de serviços em que A vai matar B,
este negócio é nulo porque viola o artigo 131.º do Código Penal. Se
eu, em vez de celebrar o contrato de prestação de serviços com A, em
que o serviço é matar B, celebro um contrato de promessa – um
contrato no qual as partes ou uma das partes promete vir a celebrar
um negócio (muito frequente na compra e venda de imóveis). O
contrato de promessa tem por objeto a celebração do contrato
prometido. Neste caso, não é juridicamente possível celebrar um
contrato de promessa em que o contrato prometido é a celebração
de serviços e o serviço é matar outrem. Já não está em causa ser
contrário à lei, porque não é contrário à lei celebrar um contrato de
promessa relativamente a um contrato de prestação de serviços, mas
estaremos perante um problema de impossibilidade jurídica, porque
este contrato nunca vai poder ser cumprido e nunca poderei ir a
Tribunal pedir a condenação de A por não celebrar comigo o contrato.

o Requisitos de impossibilidade jurídica:


o ORIGINÁRIA – Tem de existir à data da celebração do negócio.
o ABSOLUTA – Com base nos conhecimentos à data, não será possível celebrar aquele
negócio.
o DEFINITIVA – Para sempre.
▪ Sempre que o conteúdo/objeto do negócio for juridicamente impossível, o
negócio é nulo.

➔ Determinabilidade – é avaliada à data de celebração do negócio.

o A maior parte das vezes, o problema não se coloca porque os negócios têm um
objeto/conteúdo determinado. Ex: António vende o livro x a Bento. Objeto – livro x.
Conteúdo do negócio – contrato de compra e venda, transmissão da propriedade,
constituição da obrigação de pagar o preço e de entregar a coisa.
o Às vezes, o conteúdo/objeto não está determinado. O problema não é o
conteúdo/objeto não estar determinado, pois para o negócio ser válido o

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
conteúdo/objeto não tem de estar determinado, mas a lei exige que o
conteúdo/objeto seja determinável.
o Se for determinável, estamos dentro dos limites de autonomia privada.
o Se for indeterminável, temos um caso de nulidade.
▪ Muitas vezes, os negócios jurídicos que incidem sobre os direitos de
personalidade têm um problema de determinabilidade, porque não se
estabelece até quando há essa autolimitação de direito.

➔ Conformidade à lei – A autonomia privada permite fazer tudo, desde que não viole uma
norma imperativa.
o Como é que se viola uma norma imperativa? Há duas possibilidades:
▪ Violação direta – O artigo 131.º do CP diz “é proibido matar”. António celebra
um contrato de prestação de serviços com Beto em que acordam matar C.
Neste caso, viola-se diretamente a lei, pois o conteúdo daquele negócio é
diretamente contra legem.
▪ Violação indireta – Há casos em que a desconformidade à lei é indireta – o
negócio, à primeira vista parece estar de acordo com a lei, mas na realidade
não está. Há FRAUDE À LEI, uma contrariedade indireta à lei. As partes
celebram um negócio com a aparência de cumprir a lei, mas na realidade não
estão. Ex: quando temos uma norma proibitiva, ela pode dizer que é proibido
fazer A, B e C e sabemos que se fizermos A, B e C estamos a violar diretamente
a lei, mas essa norma pode estar a proibir A, B e C a titulo exemplificativo e
em rigor pode estar a querer proibir certo resultado. A norma não está a
proibir o ato em si (o acento tónico da proibição não está na ação), mas no
resultado. Quando isso acontece, haverá fraude à lei sempre que o negócio
implique uma ação que em si mesmo não está proibida na lei e a ação em si
parece permitida, mas é uma ação que conduz ao resultado proibido.
• Sempre que a razão da proibição está no resultado, qualquer ação
que conduza a esse resultado – mesmo que não esteja prevista –
estará proibida.
• A fraude à lei é a possibilidade de ser celebrado um negócio que prevê
uma ação que a lei diretamente não proíbe, mas que conduz a um
resultado proibido.

➔ Respeito pelos bons costumes e ordem pública (artigo 280.º/2 CC)– A autonomia privada
permite tudo desde que não se viole os bons costumes e a ordem pública.

▪ Estes dois conceitos são indeterminados, ou seja, para percebemos o que


querem dizer temos que os preencher/dar-lhe conteúdo.
▪ Há uma divergência doutrinal, porque se discute muito como estes conceitos
vão ser preenchidos:

o BONS COSTUMES:
▪ Os bons costumes são uma cláusula de receção no ordenamento jurídico de
normas morais (é uma porta no Direito que se abre, para receber normas
morais, aceitando que o Direito dá cobertura a normas morais).
▪ É uma cláusula de receção porque o Direito vai permitir e conferir valor
jurídico a normas morais.
▪ Há duas visões quanto a quais são as normas aceites e cobertas pelo Direito:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Visão tradicional: os bons costumes são um conceito extra-
sistemático – as normas morais das pessoas de bem/ moral
socialmente dominante.
• Menezes Cordeiro: isso significaria acabar com a ordem moral
através dos bons costumes, porque toda a ordem moral entraria na
ordem jurídica.
o Normas morais relativas à família
o Normas morais relativas à conduta sexual
o Normas morais de deontologia

o ORDEM PÚBLICA:
▪ Visão tradicional: encara a ordem pública como um conceito sistemático que
agrega todos os princípios previstos na Constituição.
▪ Visão mais recente: está a por a visão tradicional em causa por razões
puramente jurídicas – a autonomia privada é um Direito Fundamental de
natureza análoga.
• O artigo 18.º CRP diz-nos quando é que podem haver restrições à
autonomia privada.
• Este artigo vêm-nos dizer que só é possível haver restrições se for
para tutelar outro valor constitucionalmente relevante.
• Num caso destes, tem de ser um bem previsto na Constituição e que
naquele caso concreto seja considerado como mais importante.
• Ora, se tivermos em conta o enquadramento constitucional,
percebemos que não será possível haver restrições a direitos
fundamentais com base em valores morais, só com base em valores
jurídicos.
• Por essa mesma razão, essa visão tradicional que considera que os
bons costumes são normas morais tem sido posta em causa porque
se considera que a moral não pode limitar um Direito Fundamental.
Apenas o direito pode limitar direito.
• Adicionalmente, é pacificamente aceite que o preenchimento de
conceitos indeterminados deve ser feito à luz da Constituição e
sobretudo à luz dos Direitos Fundamentais (aplicabilidade dos
direitos fundamentais nas relações entre privados – teoria da eficácia
mediata em sentido estrito – é pacificamente aceite).
o Considerar que os bons costumes são normas morais foge a
esta visão de preenchimento de conceitos indeterminados à
luz da Constituição.

o Se partimos do princípio, à luz do artigo 18.º da CRP, que quer o conceito de bons
costumes, quer o conceito de ordem pública têm que ser preenchidos, enquanto
conceitos indeterminados, por valores constitucionais – torna-se claro que os bons
costumes não podem ser considerados cláusulas de receção de normas morais, pois
têm que passar a ser preenchidos com valores jurídicos presentes na Constituição.

➔ A questão, então, passa a ser: como distinguir? Quais são os valores constitucionais que
preenchem o conceito indeterminado de bons costumes e de ordem pública?

o Bons costumes: vamos buscar à Constituição valores que tenham conteúdo ético e
que pautem a vida do indivíduo nas suas liberdades. São normas relativas à conduta
da pessoa individualmente considerada (dizem respeito à pessoa em concreto).

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Ex: contrário aos bons costumes – prostituição.

o Ordem pública: Valores constitucionais que dizem respeito à organização da própria


sociedade — princípios fundamentais do sistema.
▪ Ex: contrário à ordem pública – negócios que pusessem em causa o regular
funcionamento da sociedade – ex: negócio em que me comprometo nunca ir
a tribunal, ou a impedir que alguém volte num partido, etc...

o Artigo 282.º do CC – negócios usurários são proibidos e existem sempre que alguém,
aproveitando-se da vulnerabilidade de outrem, explora essa situação.
▪ Ex: alguém, que está com dificuldades económicas, precisa de vender um bem
para pagar dívidas e a outra pessoa aproveita-se disso para retirar um
benefício excessivo.

o Leis da concorrência – estabelecem-se limitações à negociação para permitir que haja


concorrência e para que o funcionamento do mercado não seja deturpado.

1.1.5. Princípio da Igualdade

o Princípio da igualdade?
▪ Será que o princípio da igualdade limita o princípio da autonomia privada? É
possível celebrar negócios dizendo que só o faz com pessoa de determinado
sexo, religião, orientação sexual, raça?
▪ O que é que é o princípio da igualdade?
• “Igualdade é tratar o igual de forma igual e o diferente de forma
diferente, na medida da diferença”
• Então, temos que ver se estamos a tratar de realidades iguais ou
diferentes.
• O juízo de igualdade é um juízo comparativo, que pressupõe, por
isso, um critério de comparação.
• O que interessa para saber se há igualdade ou desigualdade é aferir
se o critério selecionado é materialmente adequado ao fim/razão
da comparação e tem de ser bem aplicado. O que interessa não é a
igualdade absoluta, até porque, na maior parte dos casos, é
impossível.
o Ex: um Professor dá notas – critério para comparar:
conhecimentos dos alunos – os alunos são tratados de forma
diferente, em termos de nota, graças ao critério de
comparação dos conhecimentos. Se o Professor decidir usar
o critério da altura para dar notas, estava a tratar de forma
igual (todos os que tinham 1,80m tinham 18 e por aí fora),
mas não estaria a respeitar o princípio da igualdade porque o
critério selecionado era materialmente adequado ao fim da
comparação, que era determinar a avaliação do aluno. Não é
adequado saber se é alto ou baixo e é irrelevante para isto.

• Será, então, a igualdade um limite à autonomia privada?


• Podemos estar a falar entre dois princípios que se limitam
mutuamente (autonomia privada vs. Igualdade) ou podemos falar

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
mais concretamente entre a liberdade de contratar/iniciativa
económica/escolha da contraparte vs. Direito a não ser discriminado
– voltamos ao problema de averiguar qual é o direito definitivo. Para
isso:
o 1.º — Saber se há leis que tratam do assunto; há leis
específicas que proíbem a utilização de certos critérios.
o 2.º — Na ausência de lei – juízo de proporcionalidade (olhar
para as circunstâncias concretas e ponderar):
▪ É preciso entender que liberdade de autonomia
privada confere a autoridade de fazer escolhas.
▪ Devemos distinguir se estamos a falar de um mero
particular (a sua liberdade é maior) ou de um
particular que tem um estabelecimento aberto ao
público (para ter um estabelecimento destes,
necessitamos de uma licença e se nessa licença não
há uma delimitação que tal estabelecimento só está
aberto para o público [e isso não acontecerá], a
pessoa não pode recusar clientes, com base em
critérios não admissíveis.
• Ex: ginásio só para mulheres – há ou não
razão para excluir os homens desse ginásio?
Materialmente pode haver e o ginásio pode
permitir um tipo de aulas adequado ao corpo
feminino e não ao masculino. É
perfeitamente compreensível que se queira
especializar num tipo de mercado, e
contratar Professores especializados em
exercícios voltados para o corpo da mulher.
• Ex: pasteleiro recusou-se a fazer 2 figurinhas
do mesmo sexo para o topo de um bolo do
casamento – não pode porque tem um
estabelecimento aberto ao público e nas
regras de licença não cabe essa limitação.

• Em geral, a igualdade não é um limite ao princípio da autonomia


privada, a menos que meta em causa a dignidade da pessoa humana
ou as atividades para as quais foi concedida uma licença para serviço
ao público, mas tirando esses domínios, a maior parte das vezes é a
autonomia privada que se torna direito definitivo e não o direito à
não discriminação.
o Pode haver justificação para dizer que se escolhe celebrar um
determinado contrato com um homem ou com uma mulher,
mas é preciso haver um fundamento material para tratar de
forma diferente homens e mulheres, como por exemplo a
invasão da esfera da intimidade.

1.1.6. Princípio da propriedade privada e sua transmissão


Princípio da propriedade privada e da sua transmissibilidade

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Polissemia: utiliza-se a palavra propriedade em vários sentidos, tanto vulgarmente, como
juridicamente – CRP vs. CC.

o Linguagem vulgar – às vezes é utilizada com certos significados que estão errados.
▪ Ex: confundir propriedade com titularidade (muitas vezes é dito “sou
proprietário do direito”). Assim, titularidade distingue-se da propriedade
enquanto nexo que existe entre o direito e o sujeito.
▪ Ex #2: identificar o objeto com o direito – é muito frequente designar certo
terreno como propriedade.

o Conceitos jurídicos: também há polissemia a nível jurídico, sendo ambos os conceitos


aceites.

▪ Artigos 62.º/1, 61.º, 82.º e 89.º da CRP – A Constituição utiliza “propriedade”


como sinónimo de direitos patrimoniais, sendo um direito patrimonial
quando é suscetível de avaliação pecuniária.
• A nossa Constituição tem um sentido amplo de propriedade –
Garante a todos o acesso, a manutenção e a defesa à propriedade.
Quando isso não é possível, por exemplo, em casos de expropriação,
garante a obtenção do valor da propriedade.

▪ Artigo 1305.º e ss. do CC – O Código Civil não usa o conceito em linguagem


vulgar nem com o conceito jurídico da Constituição (definição ampla), mas
sim em sentido rigoroso.
• O direito de propriedade é um direito subjetivo, é um direito real
(tem um objeto que é uma coisa) de gozo maior (é o maior de todos).
Confere ao seu titular 3 faculdades – gozar, fruir e dispor.
• O proprietário beneficia da plenitude das potencialidades da coisa,
podendo aproveitar-se de todos e beneficia a título exclusivo.

• Transmissibilidade: inter vivos e mortis causa – os direitos patrimoniais, em regra, são


transmissíveis.

o O Direito sai da esfera jurídica de uma pessoa e entra na esfera jurídica de outra
pessoa.
o Esta transmissão pode assumir uma de duas modalidades:

▪ Inter vivos (entre pessoas vivas) – Quando o negócio é celebrado entre


pessoas vivas e produz efeitos com as pessoas vivas. (Ex: negócio de compra
e venda.)
▪ Pode ser:
• Gratuita – essa transmissão implica vantagens económicas para uma
das partes e desvantagens económicas para a outra parte. Ex: doação
– quem doa só tem desvantagens económicas, porque não tem
benefícios patrimoniais.
• Onerosa – essa transmissão implica vantagens e desvantagens
económicas para ambas as partes. Ex: compra e venda – ao vender
alguma coisa, temos a vantagem de receber o preço mas perdemos o
objeto vendido e todas as utilidades que lhe são associadas. E a
mesma coisa para o comprador.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Mortis causa – a transmissão do direito vai-se dar por causa da morte, sendo
esta que determina a transmissão do direito. O nosso sistema é que, quando
morre alguma pessoa, há direitos que perduram e por isso, é necessário um
sucessor (herdeiro) que vai tomar o lugar do dono e tornar-se ele o titular do
direito, via TRANSMISSÃO MORTIS CAUSA.
• Esta continuidade é muito relevante por razões familiares (aqueles
bens, que integravam o património daquela pessoa, continuam na
mesma família) e para o direito de crédito dos credores, que podem
continuar a receber aquilo a que têm direito, sendo esse dever
transmitido para os herdeiros (que têm onde executar os seus
créditos caso precisem).

o Disponibilidade – possibilidade de renunciar ao direito. Dá-se quando se abdica da


titularidade do direito, sem a transmitirmos a ninguém. Não estamos vinculados a
continuarmos a ser titulares do direito – regra de liberdade: ninguém está preso à
propriedade, podemos renunciar à mesma (e paralelamente, há a regra da
transmissibilidade – podemos transmitir e a morte não implica a extinção do direito,
nem a saída do bem da família).
▪ Nestes casos, discute-se qual a nomenclatura correta entre renúncia e
abandono.
• Há quem diga que renúncia é para imóveis, e que abandono é para
móveis.
• Há quem diga que o termo renúncia se aplica quando há um
texto/articulação de palavras, ou seja, quando há uma declaração
(“eu renuncio ao meu telemóvel) e o abandono seria para atos
materiais (pegar no telemóvel e deitá-lo no caixote de lixo).

1.1.7. Princípio da Responsabilidade Civil


Princípio da imputabilidade dos danos

• Regra do nosso ordenamento jurídico: quem sofre o dano, suporta o dano.


• Noção de dano – supressão de uma vantagem juridicamente reconhecida.
• Ubi commoda, ibi incommoda – princípio romano, sendo algo que ainda hoje perdura.
o Se alguém tem uma vantagem (ubi commoda), também vai ter que ter a desvantagem
associada (ibi incommoda), caso ocorra.

Princípio da responsabilidade civil

Este princípio é o reverso do princípio da imputabilidade dos danos.

1.º Há certos casos em que quem sofre o dano, não vai ter que suportar o dano.
o Ex: contratos de seguro – se existir um dano, quem vai suportar o dano é a seguradora.
Neste caso, já não vou ter que aplicar o princípio da imputação dos danos, porque
consigo transferir o suporte do dano para a seguradora.

2.º Os outros casos são a responsabilidade (responder por) civil (pelo dano).
Nestes casos, imputa-se a responsabilidade do dano a quem não o sofreu, no caso, quem vai
suportar o dano é o terceiro que o causa ou que retira benefício com o dano.
o A mais valia do princípio da responsabilidade civil é a possibilidade de imputar a
suportação do dano a alguém que não aquele que sofreu o dano.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
➔ Temos 2 modalidades de responsabilidade civil:

• Responsabilidade subjetiva – assente na ilicitude e na culpa (só preenchidos esses requisitos


é que há responsabilidade objetiva).

• Responsabilidade objetiva – esta responsabilidade não exige, para que se efetive, que haja
um ato ilícito e que haja culpa.
o Responsabilidade pelo risco – quem retira benefício de uma fonte de perigo deve
arcar com as consequências e custear os danos criados pelo perigo.
o Responsabilidade pelo ato lícito ou pelo sacrifício – o legislador diz-nos que o ato é
permitido, mas quem vai suportar o custo é quem pratica o ato ou quem retira
beneficio do ato. É uma ideia de proporcionalidade e de razoabilidade.
▪ Caso do direito de necessidade (artigo 339.º CC)
▪ Caso da autolimitação dos direitos de personalidade (artigo 81.º/2 CC)

Responsabilidade civil subjetiva (por ato ilícito e culposo)

• Regra: é o lesante que compensa o dano sofrido pelo lesado.


(Antítese do princípio da imputação de danos)

➔ Pressupostos cumulativos – Para que haja responsabilidade civil por ato ilícito e culposo, ou
seja, para que eu possa imputar alguém a suportação do dano, tenho que conseguir preencher
5 requisitos CUMULATIVAMENTE (facto, ilicitude, dano, nexo de causalidade, culpa):

o Facto
▪ Quando se fala de facto, o que está em causa é um ato (uma ação praticada
por uma pessoa singular ou coletiva).
• O que é isto de ação? – Discute-se hoje qual é o conceito de ação para
o Direito Civil. Tradicionalmente, o conceito de ação era um
comportamento controlável pela vontade, mas, hoje em dia, devido
aos avanços do Direito Penal, cada vez mais se vem dizer que não há
razão para tratar a ação cível diferentemente da ação penal, até
porque quando um facto é passível simultaneamente de gerar
responsabilidade civil e penal, ele é julgado nos tribunais penal
simultaneamente – o tribunal criminal vai julgar a responsabilidade
civil e penal em conjunto, pelo que o mesmo comportamento é
analisado à luz dos dois tipos de responsabilidade e por isso, tem-se
vindo a pensar que não faz sentido tratá-lo de forma diferente.
• Não há um pensamento unânime – a ação é um comportamento final
(Direito Penal) vs. a ação é apenas um comportamento controlável
pela vontade (Direito Civil).
o Ex: A está violentamente a dar murros ao B. Chega a polícia e
detém o A. Os procuradores do Ministério Público acusam
por tentativa de homicídio ou por ofensas corporais
consumadas a B?
o Esta pergunta é difícil de responder, pois o ato material de
dar murros tanto pode ser uma ação de matar que não
chegou ao fim, como pode ser uma ação de agredir e essa sim
chegou ao fim.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o O Direito Penal vem dizer que materialmente elas são
idênticas e, portanto, é necessário atender ao fim da ação,
para responder a essa questão.

▪ Isto significa que o conceito de ação, para o Direito Penal, assenta no fim da
atuação. É o fim que permite identificar/individualizar a ação.
• No Direito Penal, o conceito de ação é um conceito finalista, i.e.
conseguimos identificar as ações em função do fim pretendido pelo
agente.
▪ O Direito Civil e grande parte dos civilistas dizem que para haver uma ação, é
preciso que aquele comportamento fosse controlável pela vontade. Não é a
questão de ser controlado, mas sim de ser controlável.
• Ex: uma pessoa sonâmbula que causa danos está a ter um
comportamento que não é controlável pela vontade e nesse caso não
haveria ação.
▪ Quando falamos de facto ou de ação, estamos a falar quer do ponto de vista
positivo, quer do ponto de vista negativo. Pode ser um comportamento
positivo, como pode ser uma omissão. Pode haver responsabilidade civil por
algo que se faz, mas também pode haver responsabilidade civil por algo que
não se faz, mas que se deveria ter feito – uma omissão é o incumprimento do
dever de ação, num determinado caso em que o há.

o Ilicitude
▪ Violação de uma situação jurídica: ativa ou passiva?
• A ilicitude é tida por todos como a violação de uma situação jurídica
– a dúvida é se se trata de uma situação ativa ou passiva.
(A Professora Elsa Vaz Sequeira considera que se trata de uma
situação passiva.)
• A responsabilidade por ato ilícito está prevista em 3 sítios diferentes:
• A letra do artigo 483.º/1 CC sugere que a ilicitude estaria na violação
de um direito alheio ou numa disposição legal destinada a produzir
interesses alheios – estando aqui em causa a violação de um direito
ou proteção indireta (situação jurídica ativa).

• Artigos 798.º e 799.º CC – responsabilidade contratual – há a violação


de uma obrigação (situação jurídica passiva).
• Artigo 227.º CC – o que está aqui em causa é a violação dos deveres
impostos pela boa fé, o que gera ilicitude (situação jurídica passiva).
• Esta dúvida é legítima porque a lei não é coerente e diz coisas
contrárias.
• Para a Professora Elsa Vaz Sequeira faz mais sentido a violação de
uma situação jurídica passiva do que ativa. Para haver uma omissão
é preciso que haja um incumprimento de um dever de ação, pelo que
a omissão é ilícita (a menos que haja uma causa de justificação) e a
ilicitude na omissão afere-se pelo dever. A ilicitude penal afere-se
pela violação dos deveres impostos pelas normas. Por isso, não há
razão para a ilicitude por ação ser diferente da ilicitude por omissão.
• Como explicar a letra do artigo 483.º/1 CC? O objetivo deste artigo
era explicar que não é a violação de qualquer dever que gera ilicitude
para se aplicar este artigo, só de certos deveres – os que visam

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
respeitar direitos subjetivos ou os deveres inerentes às proteções
indiretas, pelo que os outros deveres não interessam.

▪ Ausência de uma causa de justificação


• A ilicitude não basta com a violação da situação jurídica – é preciso
um elemento positivo (a violação) e um elemento negativo (a
ausência de causa de justificação).
• Em certas circunstâncias, o ordenamento jurídico vem dizer uma de
duas coisas – que o ato é permitido ou que o ato é devido.
o Se o ordenamento jurídico diz isto, não podemos vir depois
considerar esse ato ilícito, sob pena de por em causa a
coerência do sistema.
o Ex: A mata B – há a violação de situação jurídica, porque há a
violação do dever genérico de respeitar a vida alheia. Mas o
ato é ilícito? Depende da causa de justificação. Se for legítima
defesa, não há ilicitude.
o Este ato de A matar B vai ser um ato permitido, por causa da
agressão atual e ilícita. A vai estar a exercer o seu direito de
defesa.
• Quando há legítima defesa, direito de necessidade, consentimento
do ofendido, cumprimento de um dever não há ilicitude, porque há
uma causa de justificação.
o Ex: um polícia vê alguém a assaltar outrem ou a arrombar
uma porta, o polícia tem o dever de deter essa pessoa em
flagrante delito, não está a praticar um crime de sequestro
porque há uma causa de justificação – naquele momento o
polícia tinha o dever de deter.
• Perante um caso concreto, não podemos ficar por saber se o dever
genérico foi ou não violado, mas também temos de saber se há uma
causa de justificação – uma norma que permitisse ou impusesse o
ato naquela situação. Se isto se verificar, o ato é lícito e não ilícito.
• A ilicitude na responsabilidade por omissões traduz-se na violação
de um dever de ação, não havendo uma causa de justificação. Não
há como justificar a omissão, sem ser através da violação de um
dever, porque a omissão por natureza não causa nada. Para o Direito
Penal, a ilicitude é a violação de um dever.

o Dano
▪ Noção – supressão de uma vantagem juridicamente reconhecida.
▪ Tipos de dano – classificações:
• Dano Real vs. Dano de Cálculo
o Dano real – vantagem que foi suprimida.
▪ Ex: Perdi a vida. O dano foi a vida. Partiram-me o
carro. O dano foi o carro.
o Dano de Cálculo – expressão monetária desse dano real
(quanto vale).

• Dano não patrimonial vs. Dano patrimonial – o critério é saber se é


ou não suscetível de avaliação pecuniária.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Nos danos patrimoniais (suscetíveis de avaliação pecuniária),
distinguimos entre:
▪ Dano emergente – supressão de uma vantagem já
existente. (Ex: tinha um carro, tinha uma vantagem,
fiquei sem ela e sem tudo o que o carro me permitia
– o valor do carro, as utilidades do carro, etc).
▪ Dano de lucro cessante (artigo 566.º CC)– supressão
de vantagens que eu iria ter e por causa do ato ilícito
deixei de ter (ex: partiram-me o carro e eu ia usar o
carro para o meu trabalho de motorista e não recebi
a remuneração do meu trabalho, por causa desse
dano – a vantagem não existia, mas ia existir e o
comportamento impede essa verificação).

o Nexo de causalidade
▪ Ligação que existe do facto (comportamento do agente) ao resultado (dano)
– é provar que aquela ação causou determinada consequência.
▪ A causalidade física não é suficiente.
• Ex: A deu um estalo ao B. B desequilibra-se e morre. Será justo A ser
culpado por isso? Não. Por isso, a causalidade física não é suficiente.
• Tem de haver causalidade física, é preciso comprovar que o
comportamento levou àquele resultado, mas isto não basta. Como a
lei não é clara quanto ao resto, a doutrina tem trabalhado isto:

▪ Teoria da causalidade adequada – É a teoria mais utilizada, é a que está


consagrada no Direito Penal. Está a ser tida como insuficiente, não está a cair
em desuso, mas precisa de “companhia”.
o Para nós apurarmos se há nexo de causalidade, temos de
responder afirmativamente a duas perguntas:
▪ Há causalidade física? A ação provocou o resultado?
Se não, não há nexo de causalidade. Se sim:
▪ É normal, segundo as regras da experiência comum,
que aquela ação produza aquele resultado? Se a
resposta for não, não há causalidade, porque não há
causalidade adequada.
• Ex: A deu um estalo a B, que caiu e morreu.
Há causalidade física? Sim. Mas há
causalidade adequada – é normal, segundo
as regras da experiência comum que uma
estalada provoque a morte de outro? Não.
Então chegamos à conclusão que não há
causalidade, porque não há causalidade
adequada.
• Teoria do escopo da norma – é usada no Direito Civil, mas
pacificamente tem-se dito que ela por si não resolve. Pode ajudar,
mas não resolve o problema, porque não diz se o facto provocou ou
não o resultado.
Artigo 483.º/1 – violação ilícita de qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Segundo esta teoria, o agente só pode responder por danos
que estejam compreendidos na norma violada.
o Diz-nos que as normas visam proteger determinados bens.
Então, se o dano corresponder à violação de um desses bens,
pode haver causalidade.
o Esta teoria vem delimitar os resultados que podem ser
juridicamente relevantes/atendíveis, dizendo que a norma
violada (onde fundamentamos o juízo de ilicitude) visava
proteger certos bens. Diz-nos que:
▪ Se o bem que foi ofendido está compreendido nestes
bens, então pode haver responsabilidade civil.
▪ Se o bem não estiver compreendido no escopo da
norma, então não pode haver responsabilidade civil.
o Esta teoria não nos resolve o problema da causalidade
adequada, só nos vem dizer quais são os danos atendíveis (os
danos que a norma pretendeu evitar), mas não nos diz nem
fundamenta se o resultado provém da ação.
o Apesar de ser tida como uma teoria aplicável aquando da
análise do nexo de causalidade, na realidade, não responde a
esta questão. Diz-nos que podem haver danos que são
relevantes, porque estão compreendidos no escopo da
norma, mas os que não estão seriam irrelevantes. Não
estamos a falar do mesmo.

• Teoria da conexão do risco – a Doutrina tem vindo a defender que a


teoria da causalidade adequada, consagrada no Direito Penal, deveria
ser temperada pela teoria da conexão do risco. No Direito Civil, tem
começado a haver vozes neste sentido.

o Só faz sentido dizer que há nexo da causalidade quando o


comportamento da pessoa criou/aumentou o risco de lesão.
o Se a ação não criou/aumentou o risco de lesão/dano ou até
diminuiu, não pode haver nexo de causalidade.
o Quando a teoria da causalidade adequada leva a resultados
injustos, faz-se apelo à teoria da conexão do risco, para que
conduza a uma solução mais justa.
▪ Ex: António está prestes a ser atropelado, e Maria
empurra-o para trás, para que saia da estrada e não
seja. António, com a queda, vai partir o braço.
Segundo a teoria da causalidade adequada, haveria
causalidade física e podemos dizer que as regras da
experiência dizem que seria possível partir o braço
graças a um empurrão. Mas, Maria deveria ser
culpada? Recorrendo à teoria da conexão do risco, a
resposta seria que não, pois a ação de Maria não
criou/aumentou o risco de lesão de António, no caso
até o diminuiu, portanto, não pode haver nexo de
causalidade.

o Culpa – A culpa é um juízo normativo de censura. Fazemos um juízo de valor, pois


estamos a valorar o comportamento daquela pessoa.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Imputabilidade – para que uma pessoa seja alvo deste juízo de valor, é
preciso que seja imputável. Por isso, a imputabilidade é o primeiro requisito
para haver este juízo de valor.
• A imputabilidade é capacidade do agente conseguir avaliar a ilicitude
do seu ato e determinar o seu comportamento de acordo com essa
avaliação. Afeta quer a cognoscibilidade (capacidades de
conhecimento), quer as capacidades volitivas de querer (saber se a
pessoa compreende o alcance do seu ato e saber se consegue agir em
função dessa compreensão).
o Ex #1: O Código Civil presume a inimputabilidadede dos
menores de 7 anos, entendendo-se que uma criança até aos
7 anos não consegue entender o alcance dos seus atos.
▪ Quando o problema é a idade, muitas vezes, há uma
falta de cognoscibilidade e as pessoas (idades mais
tenras e pessoas idosas) muitas vezes não
conseguem perceber o alcance do seu ato.
o Ex #2: Muitas vezes, o problema pode estar na vontade.
Como por exemplo a cleptomania – a pessoa com esta
patologia sabe perfeitamente que furtar é errado e sabe que
o está a fazer e conhece o seu ato, ou seja, não há um
problema de conhecimento. O problema está no domínio da
vontade, porque esta é uma compulsão e a pessoa não
consegue controlar a vontade e determinar o seu
comportamento de acordo com o seu juízo de valor.

▪ 1. Capacidade de conseguir avaliar o ato + 2. Capacidade de agir em função


dessa determinação (ou seja, capacidade de controlar a vontade e/ou agir de
acordo com o certo)

▪ Imputação subjetiva – É um juízo no concreto, saber se posso ou não


psicologicamente, subjetivamente, imputar aquele comportamento àquela
pessoa e saber até que ponto posso dizer que havia conhecimento e vontade
por parte daquela pessoa relativamente ao facto. Imputação psicológica do
facto ao agente.

Saber se a pessoa efetivamente conheceu e efetivamente quis. É necessário


fazer uma imputação do tipo psicológico à pessoa – “o comportamento foi
tido por aquela pessoa e ela queria ter aquele comportamento.”

• Dolo e negligência
o Dolo – Há conhecimento e vontade de um facto (conhecer e
querer o desvalor jurídico de um facto).
(Para quem aceita um conceito finalista de ação, ao falarmos
de imputação subjetiva, a imputação subjetiva que está em
causa quando se fala de dolo é conhecer e querer o desvalor
do facto.)

Podemos graduar o dolo, mediante a sua intensidade:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Dolo direto (forma mais grave de dolo) – Significa
que o agente conhece e quer o facto. A razão de agir
é aquela representada.
• Ex: António dispara um tiro contra Bento e
quer, de facto, matar Bento.
▪ Dolo indireto/necessário – O agente sabe que o seu
comportamento necessariamente vai levar à
verificação do facto e aceita. Age com uma outra
intenção mas sabe que a sua conduta
necessariamente provoca o facto e aceita-o. Ou seja,
sabe que uma consequência obrigatória do seu
comportamento é o facto danoso; a pessoa quer algo
que não é isso, mas a obtenção desse objetivo
implica esse facto danoso e a pessoa aceita-o.
• Ex: António é proprietário de um prédio e
está com falta de dinheiro. Resolve incendiar
o seu prédio para pedir à seguradora que
pague os prejuízos. Sabe que está uma
pessoa acamada lá dentro que
necessariamente vai morrer. O dolo direto é
incendiar o prédio (é a sua vontade). O dolo
indireto/necessário é a morte da pessoa
acamada, pois não é esse facto que leva a
pessoa a agir, mas é um facto que a pessoa
aceita para atingir o seu objetivo.
▪ Dolo eventual – O agente sabe que uma
consequência possível do seu comportamento é a
prática do facto danoso e conforma-se com isso.
Assume o risco dessa consequência vir a realizar-se
— “Isto pode acontecer, mas não faz mal”.
• Ex: António é proprietário de um prédio e
está com falta de dinheiro. Resolve incendiar
o seu prédio para pedir à seguradora que
pague os prejuízos. Sabe que é possível estar
lá alguém, mas não sabe que está, mas pensa
que não quer saber e assume o risco.

A indemnização vai ser calculada a partir do artigo 562.º e ss. CC.


Primeiro, dá-se prioridade à reconstituição natural e caso não se consiga, a
indemnização é fixada em dinheiro.

Problema em relação ao dolo:


A Teoria Geral do Direito Civil tem um objeto muito grande, sendo uma parcela do Direito Civil.
O Direito Penal tem um único objeto — responsabilidade penal. A responsabilidade, para o Direito
Civil, é apenas uma das preocupações, por isso, está muito menos desenvolvida do que a do Direito
Penal.

O Direito Penal, que assume a ação como um conceito finalista (o que permite identificar a ação é o
fim do comportamento), diz-nos que no conceito de ação temos duas dimensões:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Dimensão objetiva — o comportamento (ex: disparou, incendiou, etc)
• Dimensão subjetiva — o fim do comportamento (o que é que a pessoa queria? Ex: matar,
defraudar a companhia de seguros, etc)
o Este fim é o que o agente conhece e quer.
o O Direito Penal vem dizer que o dolo enquanto conhecimento e vontade do facto não
é relevante para a culpa, mas sim para o facto, sendo a sua dimensão subjetiva. É o
que nos permite distinguir entre ações (se é uma ação de matar, porque o agente
representa e quer a morte; se é uma ação de agredir fisicamente, porque o agente
representa e quer a agressão física).
o O Direito Penal veio mudar o lugar do dolo. Tradicionalmente, o Direito Penal
estudava o dolo a propósito da culpa (com a ideia de imputação subjetiva), mas a
partir do momento em que se aceitou o conceito finalista de ação, isso implicou que
o dolo tal como era visto (conhecer e querer o facto), passou a integrar o conceito da
ação e não o da culpa.
o O dolo enquanto conhecer o facto e querer o facto é o elemento subjetivo do facto.
MAS, para haver culpa, não basta conhecer e querer o facto. É preciso conhecer o
desvalor do facto e querer o desvalor do facto.
▪ No fundo, o que está aqui em causa é que existem dois tipos de dolo, com
relevâncias diferentes, pelo que têm efeitos diferentes:
• Dolo do facto (relevante para o conceito de ação) — Elemento
subjetivo do conceito de ação que basta com conhecer e querer o
facto. Sem valoração jurídica.
• Dolo de culpa — Elemento necessário para que haja imputação
subjetiva para que possa haver o juízo de censura que é a culpa
(conhecer e querer o desvalor do facto – conhecer e aceitar a ilicitude
do ato [faz com que o grau de reprovação/censura aumente])

Para quem aceita um conceito finalista de ação, ao falarmos de


imputação subjetiva, a imputação subjetiva que está em causa
quando se fala de dolo é conhecer e querer o desvalor do facto.

Há outra forma de imputar subjetivamente:

➔ Negligência (mera culpa) – violação de deveres de cuidado. O agente já não quer o facto ilícito
e danoso, mas ao agir viola deveres de cuidado.
o Aferir se a lei impõe algum dever específico de cuidado.
o Se não, utilizamos o critério do homem médio. Como é que um homem médio agiria
naquelas circunstâncias? Comparar com o comportamento do nosso agente.
Comportou-se acima do homem médio, igual ou abaixo? Só há negligência se o agente
se comportou abaixo do homem médio.

o Negligência consciente – O agente sabe que está a violar deveres de cuidado, mas
acredita que o facto não vai acontecer (é uma consequência possível, mas não vai
acontecer — é um otimista. Não aceita o risco da verificação do facto).
▪ Ex: conduzir em excesso de velocidade.

o Negligência inconsciente – O agente viola o dever de cuidado, mas não se apercebe


disso. Como não há conhecimento, consequentemente, também não há vontade. Não
sabe, mas deveria saber (negligência culposa).

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Ex: durante um jogo de futebol, com bancadas em frente uma à outra, um dos
adeptos, muito contente, decidiu lançar um foguete durante um golo, tendo
atingindo um adepto da outra bancada, matando-o. À época era permitido
largar foguetes durante o jogo.
Houve negligência pois estava numa bancada cheia de gente, onde havia
trepidação, encontros, significando que ele não conseguia controlar a
trajetória do foguete e em vez de o foguete ter ido para cima, foi para a frente.
O agente não se apercebeu disto, mas devia ter percebido.

➔ Critério do dever de cuidado – o que um homem médio, colocado na situação do agente,


perceberia e anteciparia.

o Juízo normativo de censura – aferir no caso concreto se era ou não exigível ao


agente, agir conforme ao Direito.
▪ Se houver imputabilidade e imputação subjetiva podemos dar o terceiro
passo – a culpa é um juízo normativo de censura onde avaliamos até que
ponto aquela pessoa podia e devia ter agido de forma conforme ao direito
(isto é, se o comportamento lhe era exigível).
▪ Chegamos a um de dois resultados, através do requisito de exigibilidade:
• É exigível? Sim, aquela pessoa devia e podia ter agido de forma
conforme ao Direito. —> Há culpa.
• É exigível? Não, o Direito assume que dadas as circunstâncias não era
exigível àquela pessoa comportamento diferente, nem podia ter
agido de forma conforme ao Direito. Há causa de exculpação e não
há juízo normativo de censura. —> Não há culpa.

o Causas de exculpação
▪ Para aferir se o comportamento é exigível, há que procurar saber se há causas
de exculpação.
▪ Se o comportamento for errado, mas houver uma causa de justificação e de
exculpação do juízo de censura, não há culpa.
• Estado de necessidade exculpante:
o Ex: dois náufragos, uma só tábua. Se um tirar a tábua ao
outro, para sobreviver – há facto, há ilicitude (o direito de
necessidade só permite sacrificar um interesse inferior e
neste caso os dois interesses valem o mesmo pois é vida vs.
Vida), há dano (a pessoa acaba por morrer), há nexo de
causalidade. Haverá culpa? Há dolo. Mas não haverá juízo de
censura – do ponto de vista jurídico não podemos exigir a
ninguém que sacrifique a sua vida face à vida de outrem. Se
não há culpa, não há responsabilidade.

Há três modalidades incorporadas na responsabilidade civil subjetiva por ato ilícito e culposo, pelo
que a diferença entre as três está na ilicitude:

• Responsabilidade Civil Extraobrigacional (artigo 483.º e ss. CC) — a ilicitude consiste na


violação de deveres genéricos de respeito.
o Olhando para o artigo 483.º/1 CC, o que este nos diz é “aquele que, com dolo ou
mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos
danos resultantes da violação.”
▪ Quando se entende que a ilicitude é a violação de um dever (situação
passiva), nesses casos, o que caracterizaria o artigo 483.º CC era a ilicitude
corresponder à violação de um dever genérico.
▪ Quando se entende que a ilicitude corresponde à violação de uma situação
ativa, a ilicitude prevista pela responsabilidade extraobrigacional consistiria
na violação de direitos absolutos (1.ª modalidade) ou de proteções indiretas
(2.ª modalidade).
• Proteção indireta — Existe sempre que a lei impõe um dever genérico
de ação, i.e., impõe-se à generalidade das pessoas uma conduta, com
o fim de tutelar um interesse privado. Quando isso acontece, não há
a concessão de um direito subjetivo, mas a imposição de um dever
genérico de ação e se o fim desse dever for tutelar interesses
privados, nesse caso, há uma proteção indireta.

o Razão histórica: O artigo 483.º é inspirado no BGB alemão, que estabelece os casos
em que pode haver responsabilidade extraobrigacional, tendo como objetivo de
restringir os casos da responsabilidade (ao fazer uma lista dos casos que são
abrangidos por esta responsabilidade – “não é sempre que há a violação de um direito
ou de um dever que há responsabilidade extraobrigacional; é só nestes casos”.
▪ O nosso Código Civil resolveu limitar este modelo, estabelecendo duas
cláusulas (duas modalidades de ilicitude), dizendo que quando uma situação
incide sobre uma destas modalidades, há responsabilidade ou poderá haver
e quando não incide, não há responsabilidade — limita a aplicação desta
responsabilidade.
o Estas modalidades são só duas – limitando-se neste sentido – mas são muito amplas,
pelo que às vezes se fala em duas pequenas cláusulas gerais.

➔ O artigo 483.º/1 estabelece duas modalidades de ilicitude, diferentes consoantes as duas


visões – quem entende que a ilicitude é a violação de uma situação ativa encara estas
modalidades de uma determinada perspetiva e o mesmo para quem entende que a ilicitude
é a violação de uma situação passiva.
Assim:

Exemplo para facilitar a compreensão da distinção entre encarar a


ilicitude enquanto violação de uma situação ativa ou passiva:

— A emprestou 100€ a B.

Podemos olhar para este caso de duas perspetivas:

• Ponto de vista ativo — A tem um direito de crédito a receber 100€


por parte de B. B, ao não devolver o dinheiro, está a violar o direito
de A.
• Ponto de vista passivo — B tem um dever de pagar 100€. B, ao não
devolver o dinheiro, está a violar o seu dever de respeito do direito
de A.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
➔ Ilicitude enquanto violação de uma situação ativa, encarando a ilicitude como a violação de
um direito de outrem, i.e., olha-se para a ilicitude da perspetiva do sujeito ativo.
(A linguagem do artigo 483.º CC não combina com os demais artigos que tratam da
responsabilidade civil, pois coloca o acento tónico na ilicitude como violação de uma situação
ativa, enquanto os outros colocam na situação passiva).

o 1.ª modalidade de ilicitude prevista no artigo 483.º CC


▪ Violação de direitos absolutos — os direitos absolutos seriam tutelados pela
responsabilidade extraobrigacional e os direitos relativos seriam tutelados pelas
responsabilidades obrigacional ou pré-contratual.

o 2.ª modalidade de ilicitude prevista no artigo 483.º CC

▪ Violação de proteções indiretas (dever genérico de conduta com vista a tutelar


interesses de particulares). Situação na titularidade da pessoa cujo interesse vai
ser protegido.
▪ Quem olha para a ilicitude como a violação de uma situação ativa; atenta-se à
situação ativa como algo que decorre das disposições legais destinadas a proteger
interesses alheios (proteção indireta é a situação ativa que resulta da imposição
de um dever genérico de conduta com vista a tutelar interesses dos particulares).
▪ As proteções indiretas resultam numa situação ativa — posição de vantagem do
sujeito ativo [sujeito cujos interesses são tutelados] perante o Direito objetivo.
• O legislador, quando quer proteger os interesses de uma determinada
pessoa, pode fazê-lo, concedendo-lhe um direito — direito subjetivo.
• Mas pode fazê-lo de forma indireta — não atribuir um direito a essa
pessoa, mas impondo aos outros um dever de agir de certa maneira, com
vista a tutelar os interesses do particular/sujeito ativo.

➔ Ilicitude enquanto violação de uma situação passiva – olha-se para a ilicitude como violação
de um dever e não como violação de um direito.
o Exemplo: A dispara um tiro contra B e B morre. Isto seria um caso de responsabilidade
extraobrigacional.
▪ É facilmente evidente que a ilicitude é a violação de um direito — direito à
vida de B (violado de forma grave porque foi extinto).
• Esta visão é superficial, porque dando um passo à frente,
apercebemo-nos que A não poderia disparar contra B.
• E porque é que não o podia fazer?
o Porque temos o dever de respeitar os direitos dos outros.
▪ Quando A dispara e mata, está a atingir o direito à vida de B, mas só chega a
tanto, porque previamente não cumpriu o seu dever genérico de respeitar o
direito à vida de B. A conduta que era proibida era matar e ele primeiramente
violou o dever. A ilicitude está no dever, porque ao cumprir o dever, o direito
não é violado.

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▪ A lesão do bem, vida do B, é um resultado. Mas a ilicitude está na ação de
matar — violação de um dever.

o 1.ª modalidade de ilicitude prevista no artigo 483.º CC


▪ Violação de um dever genérico de respeito.
• Ponto de vista: Só conseguimos violar o direito, se antes tivermos
violado o dever. Se não violarmos o dever, não há o resultado, que é
a violação do direito.

o 2.ª modalidade de ilicitude prevista no artigo 483.º CC


▪ Violação de um dever genérico de conduta de atuação imposto para a tutela
dos interesses de particulares. Está na esfera jurídica das pessoas que têm
uma obrigação (sujeitos passivos) para com a outra (sujeito ativo).

Diferentes perspetivas face à proteção indireta:


• Visão ativa — A proteção indireta é a situação da titularidade da pessoa cujo interesse vai ser
protegido (os sujeitos ativos são os que beneficiam desta situação, os que têm o direito).
• Visão passiva — O dever genérico de atuação com vista à proteção dos interesses dos
particulares está na esfera jurídica dos direitos passivos (têm de fazer algo).

Assim, sempre que se está perante um caso destes e não há relação prévia entre o lesado e o lesante,
o que vamos aplicar é a responsabilidade extraobrigacional.

(A doutrina vem dizer que pode haver uma 3.ª modalidade de ilicitude, não prevista diretamente no
artigo 483.º, sendo o ABUSO DO DIREITO.)

• Tem sido salientado que a responsabilidade extraobrigacional consiste na violação de dever


genérico, mas em situações que não há relação prévia entre lesado e lesante.

• Artigo 487.º CC — O regime geral de aferição da culpa (juízo de censura) para a


responsabilidade extraobrigacional é o de impor ao lesado o ónus da prova (cabe ao lesado
provar que o lesante teve culpa). Há exceções, em que se estabelece presunções de culpa,
mas essa não é a regra.

➔ Responsabilidade Civil Obrigacional (artigos 798.º e 799.º CC) —em termos de ilicitude,
considera-se que há a violação de deveres específicos (dirigidos a uma ou a um grupo
determinado de pessoas). Ex: dever de crédito.
o Situação ativa — violação de direitos relativos
o Situação passiva — neste caso, em termos gramaticais, os artigos 798.º e 799.º (ao
contrário do artigo 483.º CC) deixam claro que o que está em causa é a violação de
deveres específicos.

• Há uma relação prévia entre lesado e lesante. A relação prévia é o contrato celebrado.

• No que diz respeito ao regime da culpa, o artigo 799.º vem estabelecer uma presunção de
culpa — há uma inversão do ónus da prova. O legislador presume que há culpa do devedor,
cabendo-lhe a ele afastar essa presunção.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Ex: A emprestou 100 a B. B tem a obrigação de devolver 100 a A. B não devolve
(violação de dever específico, que à partida, será ilícita, a menos que haja uma causa
de justificação). O legislador vai presumir a culpa de B, pelo que se tinha de devolver
100 e não devolveu, à partida, é censurável. B pode afastar essa presunção e
demonstrar que não havia culpa por alguma razão.
o Para o lesado, o regime da Responsabilidade Civil Obrigacional é muito melhor,
porque não tem que provar a culpa do lesante — a própria lei presume a existência
de culpa.

➔ Responsabilidade Civil Pré-contratual (artigo 227.º CC) — em termos de ilicitude, o que está
em causa é a violação de deveres específicos (dirigidos às pessoas que estão a contratar), pelo
que estes deveres têm uma origem específica — são deveres oriundos da boa fé [estes
deveres surgem em razão da boa fé e não de uma relação prévia entre lesado e lesante, como
na responsabilidade obrigacional].
o Não há uma relação prévia entre lesado e lesante.
o Em relação à culpa, o que se discute é se a presunção de culpa do artigo 799.º CC
pode ou não ser aplicada à responsabilidade pré-contratual.

Responsabilidade civil objetiva pelo risco

• Artigo 483.º/2 + artigos 500.º e ss. do CC


o Artigo 483.º/2 CC diz que só existe obrigação de indemnizar independentemente de
culpa nos casos especificados na lei.
o Artigos 500.º e seguintes — tratam da responsabilidade pelo risco.

• Controlo do risco — é o fundamento desta responsabilidade (em que não se exige nem
ilicitude, nem culpa). Estão em causa casos em que alguém pratica uma atividade permitida
por lei, que é em si mesmo perigosa ou em que alguém tem o controlo de uma fonte de perigo
(também permitida por lei).
o Exemplo: automóvel – é permitido possuir e conduzir automóveis. Mas o automóvel
é perigoso, pode falhar (danos mecânicos) e provocar danos nas outras pessoas e nos
outros bens. O legislador vem dizer que quem tem o automóvel, retirando benefícios
dessa fonte de perigo, deve arcar com os custos inerentes à concretização desse
perigo (ou seja, arcar com as consequências sempre que essa fonte de perigo se
converte num dano).

As fontes de perigo são permitidas, mas se o perigo se vier a concretizar num dano, então quem
beneficia ou controla a fonte de perigo deve arcar com essa despesa.

A letra do artigo 483.º/2 CC que nos diz que só existe obrigação de indemnizar independentemente
de culpa nos casos especificados na lei levanta certas questões:

• Questiona-se o sentido útil deste artigo — a sua letra significa que a responsabilidade objetiva
é uma responsabilidade excecional ou é um caso em que vigora a tipicidade e só há
responsabilidade objetiva nos casos tipificados na lei?

Duas visões:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Caráter excecional da responsabilidade pelo risco — estabelece que é possível aplicar
analogicamente as normas que prevêem a responsabilidade pelo risco a casos análogos.
O artigo 11.º do Código Civil estabelece que “as normas excecionais não comportam aplicação
analógica”, no entanto, grande parte da doutrina diz que a lei não proíbe isto, mas sim a
conversão da norma excecional em regra. Não podemos encarar a exceção como regra,
desvirtuando o caráter excecional da regra, mas podemos aplicar esta exceção a situações
onde a razão de decidir é a mesma (imposição do princípio da igualdade).
Grande parte da doutrina aceita que podemos aplicar as normas da responsabilidade pelo
risco analogicamente a situações que não estejam previstas. Isto é importante na atualidade,
onde há um grande avanço tecnológico e a tecnologia, normalmente, traz grandes vantagens
e conforto, mas é uma fonte de perigo, porque pode ter avarias e se avariar pode causar um
dano.
A questão é – será que eu posso aplicar as normas sobre responsabilidade pelo risco às novas
tecnologias que vão surgindo?

• Tipicidade da responsabilidade pelo risco — só há responsabilidade civil nos casos previstos


na lei. Fora desses casos, nunca poderíamos ter responsabilidade pelo risco.

• Pressupostos — facto, dano, nexo de causalidade.


o Facto — aqui, o conceito de facto é muito amplo. Pode ser um comportamento
humano (ou o comportamento de uma pessoa coletiva), como pode ser só um estado
de proprietário (estado em que a pessoa detém uma fonte de perigo).
o Dano — supressão de uma vantagem juridicamente existente.
o Nexo de causalidade
▪ Se o que estiver em causa for um comportamento, o nexo de causalidade é
semelhante ao da responsabilidade subjetiva (vou ver se aquele
comportamento provocou aquele dano e se é normal aquele comportamento
provocar aquele dano).
▪ Se for um estado, o que tenho que ver é se o dano é ou não uma
concretização do perigo daquela fonte — se aquele dano é um dos danos
possíveis para aquela fonte de perigo (se aquela fonte de perigo compreende
aquele dano como possível ou se lhe é alheio).

Responsabilidade civil objetiva por ato lícito

A responsabilidade objetiva por ato lícito também está compreendida na norma do 483.º/2, pois
também é uma responsabilidade que não depende da culpa.

• Artigos 483.º/2, 81.º/2, 339.º/2, 1102.º, 1129.º e ss., 1170.º, 1172.º, 1129.º e ss., 1322.º/1,
1349.º/3, 1367.º, 1554.º, 1559.º, 1560.º/3, 1561.º, do CC
o Artigo 81.º/2 — revogação da autolimitação de direitos de personalidade.
o Artigo 339.º/2 — obrigação de indemnizar em caso de estado de necessidade.
o Artigo 1102.º — O senhorio tem de pagar ao inquilino um montante equivalente a um
ano de renda no caso de denunciar o contrato de arrendamento, para sua habitação.
o Artigo 1129.º e ss — artigos relacionados com o comodato (contrato gratuito pelo
qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva
dela, com a obrigação de a restituir) e indemnizações por eventuais danos.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Artigo 1170.º/1 — o mandato é revogável por qualquer das partes...
o Artigo 1172.º — ... mas quem revogar deve indemnizar a outra parte do prejuízo que
sofrer.
o Artigo 1322.º/1 —obrigação de indemnizar no caso de danos causados por perseguir
e capturar enxames de abelhas em prédio alheio.
o Artigo 1349.º/3 — obrigação de indemnizar o proprietário de prédio alheio por
passagem forçada momentânea.
o Artigo 1367.º — obrigação de indemnizar o prejuízo que a apanha de frutos em
propriedade alheia possa causar.
o Artigo 1554.º —indemnização correspondente ao prejuízo sofrido pela constituição
da servidão de passagem.
o Artigo 1559.º — indemnização do prejuízo causado pelas servidões legais de presa.
o Artigo 1560.º/3 — indemnização por servidão legal de presa para o aproveitamento
de águas públicas.
o Artigo 1561.º —indemnização por prejuízo causados por obras por servidão legal de
aqueduto.

O que é que justifica a indemnização por ato lícito, tendo em conta que o ato em si é permitido?

• Proporcionalidade e razoabilidade
o Proporcionalidade – é o princípio que nos vem explicar porque é que a atuação é
lícita. A licitude deriva da superioridade do bem tutelado face ao bem sacrificado.
Trata-se de sacrificar um bem menor, face ao bem maior. A conduta é permitida
porque vou tutelar um bem mais importante do que o outro.
▪ Ex: porque é que se pode revogar a autolimitação dos direitos da
personalidade. É lícito porque entre o direito de personalidade (limitado) e
entre a tutela da confiança da contraparte, o legislador vem dizer que O bem
superior é o bem da personalidade e, por isso, para o proteger, vamos revogar
esta autolimitação.
▪ A mesma coisa acontece no artigo 339.º — só pode haver direito de
necessidade se o bem tutelado for superior ao bem sacrificado.
• Sacrificar um bem menor, face ao bem maior.

o Razoabilidade – vem fundamentar a obrigação de indemnizar.


▪ Diz-se que as condutas são permitidas. Mas será razoável impor ao lesado o
suporte do dano? A resposta é não. O titular do bem superior pode sacrificar
o bem inferior, mas também deve arcar com os danos provocados por esse
sacrifício.
• Ex: percebe-se, por estar em causa um direito de personalidade, que
a revogação da autolimitação do direito de personalidade seja lícita,
mas será razoável impor à contraparte o suporte dos danos? Não, faz
mais sentido impor a quem revogou.
• Ex #2: Quanto ao estado de necessidade, percebe-se que possa ter
que se sacrificar um bem inferior para tutelar um bem superior. Mas
será razoável impor ao titular do bem inferior o suporte do dano,
sendo este causado por outrem e o beneficiado foi um terceiro? A
resposta é não.

Também aqui se questiona se pode ou não haver aplicação analógica das normas sobre
responsabilidade por ato lícito. Mais uma vez, tudo passa pela interpretação do artigo 483.º/2 CC;

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
dependendo se se admitir que este estabeleceu o princípio da tipicidade ou apenas o caráter
excecional das normas sobre responsabilidade por ato lícito:

• Tipicidade? (Tipo = modelo rígido) Onde está previsto o modelo, podemos aplicar este
modelo, se não há previsão deste modelo, não o podemos aplicar. Neste caso, nunca pode
haver aplicação analógica. A tipicidade exclui a analogia.
• Se, pelo contrário, entendermos que o artigo 483.º/2 estabelece a excecionalidade destas
normas, isto não significa rigidez — “isto não é a regra; isto é permitido em situações que não
a regra, a regra é a oposta”. Não é impossível aplicar normas excecionais analogicamente, o
que é impossível é converter a exceção em regra, mas nada impede aplicar analogicamente a
exceção a outros casos que sejam igualmente excecionais.
o No caso da excecionalidade, há uma norma cujo o conteúdo é o inverso da regra, mas
é permitida a aplicação analógica, desde que em casos igualmente excecionais. A
proibição da analogia é a proibição de converter a exceção em regra (não se pode
aplicar a exceção a torto e a direito; apenas se pode aplicar nos casos que são
igualmente excecionais).

• Pressupostos:
o Facto — A atuação que é permitida.
o Dano — Em si mesmo é permitido, só não é razoável ser sacrificado por quem o sente.
Permite-se sacrificar o bem alheio.
o Nexo de causalidade —Relação entre o ato lícito e o bem alheio sacrificado.

1.1.8. Princípio da Boa Fé

Princípio da boa fé

Este é um princípio popular, mas não se aplica em todos os casos.

A ideia de boa fé foi criada pelos Romanos e manteve-se até hoje como uma ideia de criar flexibilidade
no sistema. A boa fé foi/é usada para adaptar o sistema às novas realidades — cria flexibilidade,
permite que a situação seja mais justa no caso concreto.

A boa fé tem duas dimensões (ambas são usadas pelo nosso legislador):

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Dimensão subjetiva — vamos ou não proteger alguém da solução que, à partida, seria
aplicada porque está de boa fé (sendo que nunca haveria proteção dessa pessoa se não fosse
a boa fé)? Dúvida: basta a ignorância ou é preciso uma ignorância não culposa?

o Atende ao estado do sujeito. O estado tem a ver com os conhecimentos da pessoa (o


que sabe e não sabe).
o Olhamos para a boa fé em sentido subjetivo quando perguntamos “devemos ou não
tutelar esta pessoa” e a resposta vai depender de ela estar ou não de boa fé. Se estiver
de boa fé, merece tutela.
o Mas quem é que está de boa fé? O que é que isto significa juridicamente?
o Temos de olhar para o que a pessoa conhece ou desconhece. Normalmente, quando
alguém está de boa fé, está num estado de ignorância — desconhece que está a lesar
outrem ou desconhece determinado facto.
o A dúvida é: este sentido subjetivo deve ser interpretado de um ponto de vista
psicológico ou de um ponto de vista ético?
o Surgem duas versões, pelo que em ambas há uma ignorância sobre a realidade. E,
devido a essa ignorância, a pessoa agiu de uma determinada maneira.
▪ Boa fé subjetiva psicológica — Para a boa fé psicológica, basta para dizermos
que uma pessoa está de boa fé que o sujeito ignore/desconheça.
• É um conceito muito mais permissivo.
▪ Boa fé subjetiva ética — Para a boa fé ética, não basta um estado de
ignorância. É preciso que essa ignorância seja não culposa.
• Só merece tutela a pessoa que ignora sem culpa — a pessoa que foi
diligente e tentou saber, mas não conseguiu porque não se
conseguia saber. Quem ignora porque foi preguiçoso – porque não
tentou saber – não merece tutela.
• É um conceito muito mais exigente.

Qual deles vigora no nosso ordenamento?

Há 3 categorias de preceitos que tratam da boa fé:

1. Há uma definição de boa fé subjetiva ética.


o Ninguém contesta que estas normas devem ser tuteladas com este sentido. Só se
tutelará o sujeito que ignore sem culpa.
▪ Artigo 281.º

2. Não há definição legal (“se estiver de boa fé” — não se diz o que é boa fé)
o Deve aplicar-se o conceito de boa fé subjetiva ética e não o conceito de boa fé
subjetiva psicológica.
o Porquê? Do ponto de vista material, a boa fé psicológica pode ter duas consequências
tidas como profundamente injustas:
▪ 1.ª – Vamos tutelar o preguiçoso (que por natureza é ignorante) e, assim, vai
ter ainda menos vontade de saber.
▪ 2.ª – Vamos sacrificar o diligente (a pessoa que trabalha para se informar e
saber as coisas e não estar na ignorância e ao fazer isto está a perder a tutela),
enquanto premiamos o preguiçoso.
o Assim, tem-se entendido que é preferível optar pela boa fé subjetiva em sentido ético
do que em sentido psicológico.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Razão técnica: As normas estabelecem comandos de dever-ser — a boa fé subjetiva
ética traz esta ideia de dever-ser (o dever-ser é procurar a informação).
▪ A boa fé psicológica não traz dever-ser nenhum. Só diz: “esta pessoa sabe ou
não sabe? Não sabe, coitadinha, vamos tutelar. Sabe? Não tem tutela.”

3. Há definição e a definição, pelo menos na aparência, sugere uma definição de boa fé


psicológica (em termos gramaticais)
o É um grupo pequeno.
o O que está em causa são as normas que dão uma definição de boa fé em que não se
fala do caráter não culposo.
▪ Artigo 243.º/2 – dá uma definição de boa fé:
• “A boa fé consiste na ignorância da simulação (vício que aconteceu e
que a pessoa não sabe) ao tempo em que foram constituídos os
respectivos direitos.”
• Olhando para este artigo, aparentemente, do ponto de vista
gramatical, parece que basta a ignorância.
• Este artigo foi redigido com a intenção de estabelecer uma redação
diferente do artigo 291.º/3, pelo que devemos compará-lo com esse
artigo.
▪ Artigo 291.º/3 – “É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no
momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou
anulável.”
• Este preceito vinca a ideia de “sem culpa” — aponta para uma boa fé
em sentido ético.
▪ O artigo 243.º/2 parece satisfazer-se com uma boa fé subjetiva em sentido
psicológico. No entanto, olhando para o artigo 243.º/3 CC, podemos ficar com
uma ideia contrária.
• “Considera-se sempre de má fé o terceiro que adquiriu o direito
posteriormente ao registo da acção de simulação, quando a este haja
lugar.”
• Existe a simulação – é um vício, uma doença do ato, gerando a sua
nulidade.
• O artigo 243.º/2 diz-nos que vamos tutelar as pessoas que ignoravam
tal doença, essa simulação.
• O artigo 243.º/3 diz-nos que “está de má fé quem celebra o negócio
depois do registo da ação de declaração de nulidade do negócio
viciado por simulação”.
o A pergunta que se coloca é: porque é que está de má fé
alguém que adquire o direito depois do registo? Porque é que
é relevante este momento temporal? (Antes do registo,
estaria de boa fé. Depois do registo, já estaria de má fé — isto
tendo em conta que depois do registo a pessoa pode
continuar ignorante, mas até então é tutelado e depois já
não).
o O registo é uma forma de dar publicidade – é algo que é
público. Todas as pessoas podem ir às conservatórias
consultar o que está lá. Isto significa que, por causa desta
publicidade, há acesso ao conhecimento. Quem quer
conhecer se há ou não uma ação de simulação ou algum
problema com aquele bem, indo ao registo, ficaria a saber.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Ou seja, o diligente procuraria saber e iria ao registo
e se celebrasse o negócio, é porque correria o risco.
▪ Por outro lado, o negligente não iria consultar o
registo e não saberia e a lei vem-nos dizer que esse
negligente não é titulado.
• Ou seja, do artigo 243.º/3 resulta a ideia de que, a partir do registo, a
ignorância é sempre culposa e o legislador vem dizer que a partir do
registo há má fé e não boa fé.
• Apesar do 243.º/2 sugerir boa fé psicológica, só se consegue
compreender o n.º3 perante um conceito de boa fé subjetiva ética,
porque deixa de ser relevante se o terceiro sabia ou não e passa a ser
relevante se o terceiro deveria ou não conhecer.
• Apesar de minoritário, algumas vozes vêm dizendo que o conceito de
boa fé aqui estabelecido não é psicológico, mas sim ético (em função
do 243.º/3 CC).

• Dimensão objetiva da Boa Fé — Significa que este princípio estabelece regras de conduta
(formas como as pessoas devem agir – o que podem ou não fazer).
o O legislador utiliza esta boa fé em sentido objetivo em várias situações,
nomeadamente na responsabilidade pré-contratual, na alteração das circunstâncias,
na integração do negócio jurídico, na execução dos contratos e no abuso do direito.
▪ Artigo 227.º — responsabilidade pré-contratual
▪ Artigo 334.º — abuso do direito.

Boa Fé vs. Tutela da Confiança

A tutela da confiança é a ideia de proteger quem confia.

Este problema existe porque existem duas conceções teóricas diferentes.


Estas diferenças parecem altamente abstratas, mas têm consequências práticas de regime (levam a
que se resolvam os casos concretos de forma diferente).

A verdadeira questão: Qual é a relação que existe entre boa fé e a tutela da confiança?

Há duas respostas:

o A tutela da confiança é um de dois sub-princípios (princípio concretizador) da boa


fé [Menezes Cordeiro — esta visão tem grande repercussão na jurisprudência].

Sub-princípios da boa fé:

▪ Tutela da confiança — sempre que estamos a tutelar a confiança, estaríamos


a aplicar o princípio da boa fé.
▪ Primazia da materialidade subjacente — ideia de que o Direito só tutela
situações que sejam materialmente conformes os seus valores.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o São dois princípios diferentes e um não está integrado no outro. O princípio da boa
fé é diferente do princípio da tutela da confiança.

➔ O princípio da boa fé estabelece regras de conduta (diz só como a pessoa deve agir).
➔ O princípio da tutela da confiança protege a confiança alheia.

Para qualquer das posições (quer se entenda que a tutela da confiança é um sub-princípio da boa fé,
quer se aceite a autonomia do princípio da tutela da confiança), vem-se dizer que, para haver tutela
da confiança, é preciso que estejam preenchidos certos pressupostos.

Pressupostos da tutela da confiança:

• Situação de confiança — perspetiva do sujeito quanto a determinada realidade.

1. Para quem entenda que a tutela da confiança é um sub-princípio da boa fé, entende a
situação da confiança como sinónimo de boa fé subjetiva ética (ignorância não culposa de
uma determinada realidade. A pessoa não sabe e não sabe sem culpa certa realidade. Ex: a
pessoa não sabe que está a lesar outrem).
o Esta visão vem dizer-nos que estabelece-se uma situação de confiança quando um
sujeito desconhece uma determinada realidade, mas não sabe e não tem culpa por
não a saber.

2. Quem reconhece autonomia ao princípio da tutela da confiança vem-nos dizer que a


situação de confiança é sinónimo apenas de desconhecimento (em pouco rigor: sinónimo
de boa fé subjetiva psicológica).
o Esta visão diz-nos que se estabelece uma situação de confiança quando um sujeito
desconhece uma determinada realidade.
▪ Porquê? Por causa do segundo pressuposto. Vem dizer que se tivéssemos o
conceito de boa fé subjetiva ética em relação à situação de confiança,
estaríamos a esvaziar o segundo pressuposto – a justificação da confiança.

• Justificação da confiança — Temos de aferir a existência de fundamento objetivo para a


situação de confiança criada.
o Como vemos isto?
o Temos de apurar se: Um homem médio, colocado na situação real do confiante, teria
igualmente confiado?
▪ Se a resposta for sim, há justificação para a confiança.
▪ Se a resposta for não, não há justificação para a confiança. A pessoa pode ser
“tola”, i.e., acreditar em todos só porque sim, mesmo que não haja
justificação para isso. Se não há justificação para confiar, não há justificação
para tutelar.

• Investimento da confiança — Em rigor, significa “porque confiou, o agente age de


determinada maneira”. A justificação para ele ter tomado certo comportamento, i.e., o que
determinou a opção de agir de certa maneira foi a confiança.
o O agente investe a confiança que criou num determinado comportamento, pois
acreditava em algo que não correspondia à realidade.
o Foi a confiança que determinou a opção de comportamento do agente.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Imputação da confiança — Significa que temos de descobrir quem criou a confiança. Se
alguém criou a confiança, esse alguém deve responder pela frustração da confiança.
o É imputar os custos da frustração da confiança a quem a criou.
o Quem criou legítimas expectativas, deve arcar com o custo da sua frustração.

Tem-se entendido que nem sempre é necessário que os 4 se verifiquem, podem ser só 3 (móveis), se
um deles for tão intenso que torna tão irrelevante a existência de um 4.º
Em geral são cumulativos, mas há a possibilidade da intensidade de um ser tal que neutraliza a
necessidade de existência de um quarto.

Todo este enquadramento genérico conceptual é aplicado a uma figura fundamental:


responsabilidade pré-contratual.

Boa fé objetiva: responsabilidade civil pré-contratual

A responsabilidade pré-contratual é a concretização de dois princípios — o princípio da


responsabilidade e o princípio da boa fé.

• Artigo 227.º CC — prevê a responsabilidade civil pré-contratual


o Epígrafe — “Culpa na formação dos contratos”: tradução do latim da expressão culpa
in contrahendo.
• Origem
o Rudolf von Ihering tem um texto chamado culpa in contrahendo, que vem defender
algo tido como uma revolução — veio defender a possibilidade de haver a obrigação
de indemnizar a parte de um contrato que sofreu danos pela celebração de um
contrato nulo.
▪ Ex: A e B celebra um contrato. O contrato é nulo porque tem, por exemplo,
um vício de forma. Se o negócio é nulo, não produz efeitos.
o Ihering vem dizer que o negócio nulo não produz efeitos, mas não deixa de ser um
facto, porque existiu e pode ser um fundamento para indemnizar a parte que sofreu
prejuízos.
o Esta ideia foi um sucesso e, a partir daí, a jurisprudência foi desenvolvendo (e a
doutrina vai atrás), dizendo que isto está certíssimo, mas não é só aqui, pelo que pode
haver responsabilidade por danos causados na fase pré-contratual. Desde o início das
contratações até à data da celebração do contrato (inclusive) pode haver
responsabilidade pré-contratual.
▪ Uma parte pode responder pelos danos que a outra sofreu.
▪ Mas porquê? Se não há contrato, porque é que há aqui um dever?
▪ A ilicitude é a violação de um dever — artigo 227.º CC.
• Na responsabilidade obrigacional, celebra-se um contrato e quando
não se cumpre, há responsabilidade. O contrato deu origem às
obrigações, e se não forem cumpridas, responde-se pelo
incumprimento.
▪ Como aqui não há contrato, vai-se buscar o princípio da boa fé, estabelecendo
que na fase pré-negocial (início das negociações até à conclusão dos negócios,
inclusive), a boa fé impõe deveres de atuação – as partes têm de atuar de boa
fé. Isso significa que tem de haver um comportamento que respeite os
padrões impostos pela boa fé.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ A boa fé é fonte de deveres específicos.
▪ Assim, surgiu a ideia da culpa in contrahendo.
• Esta figura surgiu com a ideia de que, durante a contratação, as partes
(pessoas que participam na negociação) estão sujeitas a deveres
impostos pela boa fé. Se violarem esses deveres e daí resultar um
dano, pode haver responsabilidade pré-contratual.

• Natureza jurídica — A ideia de que atualmente é dominante é a de que a responsabilidade


pré-contratual é uma terceira via (responsabilidade extraobrigacional + responsabilidade
obrigacional + responsabilidade pré-contratual).

o 1ª visão:

No passado (e em desuso, mas há quem ainda veja desta forma), a responsabilidade


pré-contratual era vista como uma modalidade da responsabilidade
extraobrigacional.
Razões:
▪ Não havia uma relação prévia entre lesado e lesante (as pessoas ainda não
celebraram um contrato — semelhança à responsabilidade extraobrigacional.
▪ No que diz respeito ao Direito Português, o artigo 227.º/2 CC, a propósito da
prescrição da responsabilidade pré-contratual, remete para o artigo 498.º CC
– norma prevista na parte relativa à responsabilidade extraobrigacional.

o Isto foi criticado por uma 2ª visão:


▪ A responsabilidade pré-contratual seria um caso de responsabilidade
obrigacional, por causa da ilicitude.
▪ O que está em causa na responsabilidade pré-contratual é a violação dos
deveres decorrentes da boa fé, sendo estes deveres específicos.
▪ Como a responsabilidade extraobrigacional exige, para que haja ilicitude, a
violação de deveres genéricos e não de deveres específicos.
▪ Por causa disto, porque o dever violado era específico defendeu-se a
natureza obrigacional na responsabilidade pré-contratual.

• Teoria da 3.ª via — posição que atualmente é maioritária. Esta posição é cada vez mais
utilizada, até pelos próprios tribunais.

o Vem dizer que a responsabilidade pré-contratual tem autonomia. É uma figura


própria, pelo que não se subsume nas outras. É uma categoria diferente.
o Não é responsabilidade extraobrigacional porque os deveres são específicos e não
genéricos.
o Não é responsabilidade obrigacional porque não há uma relação prévia entre lesado
em lesante.
o Não sendo uma, nem outra, isso significa que é algo diferente.

• Pressupostos
o Facto — há aqui uma especialidade – delimitação temporal:
▪ Só são relevantes para esta especialidade os factos que ocorram entre a data
do início da negociação até à data da celebração do negócio (inclusive) — têm
obrigatoriamente que ocorrer entre período.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Pode ser ativo/positivo (ação) ou passivo/negativo (omissão).

o Ilicitude — para haver ilicitude, tem de haver a violação de 1 dos 3 deveres específicos
impostos pela boa fé.

Quais são os deveres específicos impostos pela boa fé?

Entende-se que a boa fé, na fase pré contratual, dá origem a 3 deveres:

• Dever de segurança/proteção — Na fase de negociações, as partes devem adotar


comportamentos que não ponham em causa a parte contrária, que não lhe causem danos.
Deve haver um dever de proteção.
o Ex: A vai a um supermercado, o piso está molhado, escorrega e cai, parte uma perna.
Que responsabilidade é que há aqui? Responsabilidade pré-contratual. Havia um
dever específico de proteção — a pessoa que tem um supermercado aberto, está
aberta ao negócio, quem entra lá é um potencial cliente e, portanto, tem de estar
protegido.

• Dever de informação — as partes, na fase pré-contratual, têm de dar toda a informação ao


outro, que seja indispensável, para que o outro forme uma vontade livre e esclarecida. Para
além disso, tem de esclarecer todas as dúvidas que surjam quanto ao negócio. É preciso estar
disponível para prestar as explicações que lhe sejam pedidas.

• Dever de lealdade — tem de se ser íntegro, honesto e respeitar o próximo.

Na aferição da ilicitude, a forma como o fazemos é diferente consoante entendamos que a tutela da
confiança é ou não um sub-princípio da boa fé.
Assim, voltamos ao problema: Qual a relação entre a tutela da confiança e da boa fé?

➔ Para quem entende que a tutela da confiança é um sub-princípio da boa fé, quando chega à
responsabilidade pré contratual lê o artigo 227.º como um artigo que tutela a confiança. E,
por isso, quando vai aferir a ilicitude, para efeitos de responsabilidade civil pré-contratual,
para além da violação de um destes três deveres, exige o preenchimento dos pressupostos da
tutela da confiança.
o Ou seja, ao entendermos que a tutela da confiança é uma concretização do princípio
da boa fé, na aferição da ilicitude, é preciso demonstrar 2 coisas, na aferição da
ilicitude:
o A violação de um dever específico da boa fé (segurança, informação e
lealdade).
o O preenchimento dos pressupostos da confiança.

➔ Quando entendemos que a tutela da confiança tem autonomia em relação à boa fé, então,
o artigo 227.º é apenas um artigo que tutela a boa fé e não a confiança e, portanto a ilicitude
basta-se com a violação de um dos deveres específicos decorrentes da boa fé – segurança,
informação e lealdade.

o Dano — O dano pode ocorrer a qualquer momento — não há limite temporal para o
dano. Pode ocorrer na fase de negociações ou depois do negócio se ter celebrado.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Nexo de causalidade

o Culpa — É um juízo de censura, tudo o que estudámos está certo.


O único problema que temos aqui é o regime do ónus da prova: a quem compete
provar a culpa do lesante?

A resposta depende da perspetiva quanto à natureza jurídica da responsabilidade pré-


contratual:

▪ 1.ª visão — Se defendermos que a responsabilidade pré-contratual é um caso


de responsabilidade extraobrigacional — temos de aplicar o regime do ónus
da prova aí estabelecido (compete ao lesado provar a responsabilidade do
lesante).
▪ 2.ª visão — Para quem defende que a responsabilidade pré-contratual é um
caso de responsabilidade obrigacional — podemos aplicar a presunção de
culpa prevista no artigo 799.º (ideia de que a lei presume a culpa do lesante,
até prova em contrário).
▪ Terceira via — Quem defende a terceira via, diz que a solução dos problemas
concretos tem de ser feita caso a caso e em função da analogia (quer com o
regime da responsabilidade extraobrigacional, quer com o regime da
responsabilidade obrigacional — dependendo das situações)
• No que diz respeito à culpa, o que a 3.ª via tem defendido é:
o Como a responsabilidade pré-contratual se traduz na
violação de deveres específicos, então o regime de provas da
culpa deve ser igual ao regime previsto para a
responsabilidade obrigacional.
▪ Ou seja, defendem a aplicação analógica da
presunção prevista no artigo 799.º CC.

• Cálculo da indemnização: ICN (Interesse Contratual Negativo) ou ICP (Interesse Contratual


Positivo)?
o Interesse Contratual Negativo — A indemnização é calculada de forma a colocar o
lesado na situação em que estaria se não tivesse negociado ou se não tivesse
celebrado o negócio.
▪ A regra é o interesse contratual negativo — dano da confiança — como o
negócio não foi celebrado ou foi celebrado e é inválido, não há justificação
para calcular a indemnização de acordo com o interesse contratual positivo.

o Interesse Contratual Positivo — A indemnização é calculada de forma a colocar o


lesado na situação em que estaria se o negócio tivesse sido celebrado validamente e
pontualmente cumprido.
▪ No entanto, a nossa jurisprudência tem admitido um caso em que se calcula
a indemnização segundo o interesse contratual positivo:
• Caso em que houve uma negociação complexa e tudo ficou assente
ao pormenor e só faltava formalizar e uma das partes diz que não
quer celebrar o contrato.
• Nesse caso, a nossa jurisprudência tem vindo a aceitar que a
indemnização deve ser pelo interesse contratual positivo e não pelo
interesse contratual negativo.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Rutura injustificada de negociações

Fala-se de casos em que houve negociações entre um A e um B e as negociações se prolongaram


durante algum tempo e, por se terem prolongado (fator temporal), pelo teor das negociações e por,
assim, indiciarem que o negócio ia ser celebrado, acreditava-se que ia verdadeiramente haver
celebração do negócio. E de repente, uma das partes, (após este processo negocial que indicia que o
negócio se vai celebrar), sem razão justificativa imputável à outra parte, decide não celebrar o negócio.
Isto acarreta danos para a parte que vê a sua confiança frustrada, que já tinha adotado um
comportamento, pois tinha em vista a celebração do contrato.

Devemos tutelar a confiança desta parte que confiou e que teve as suas expectativas frustradas?
Podemos indemnizar o confiante pelos danos que sofreu com esta rutura? Sim.

Mas qual é o fundamento para esta obrigação de indemnizar? Qual é a responsabilidade civil que vai
fundamentar a indemnização?

• Responsabilidade pré-contratual? (Prática de um ato ilícito — Artigo 227.º CC)


o A teoria que entende que a tutela da confiança é um sub-princípio da boa fé, resolve-
o desta forma, dizendo que havia uma responsabilidade pré-contratual e, portanto,
ao haver a violação da confiança alheia, o ato é ilícito (violação de um dever de
lealdade).

ou

• Responsabilidade por ato ilícito? (Responsabilidade objetiva, porque recusar celebrar um


contrato é lícito, graças à liberdade contratual negativa)
o A teoria que defende que a tutela da confiança é um princípio autónomo, apresenta
dois casos, onde se irá aplicar ou o regime regra, ou o regime residual:

o Regime regra — Estamos perante uma responsabilidade por ato lícito, graças ao
princípio da autonomia privada —> liberdade contratual negativa (decidir que não se
celebra o negócio).
▪ Se a pessoa é titular da liberdade contratual negativa, não podemos
considerar ilícito o ato em que ela diz que não vai celebrar o negócio.
• (À partida não há dever de celebrar o negócio, por isso, não celebrar
o negócio tem de ser um ato lícito – traduz o exercício da liberdade
contratual negativa.)
▪ A maior parte dos casos de rutura das negociações tem na base um exercício
de um ato lícito.
▪ Contudo, há fundamento para indemnizar os atos sofridos pelo confiante –
sendo isto exigido pelo princípio da tutela da confiança.
▪ No entanto, Não é razoável que quem suporte o custo desta liberdade seja o
confiante. Declarar e decidir que não se celebra é lícito, mas quem o faz vai
ter de suportar o custo do exercício dessa liberdade — indemnizando os
danos sofridos pelo confiante.
• (Ou seja, há uma indemnização que tem por base um ato lícito.)

o Regime residual (para casos mais graves) — Contudo, admite-se que pode haver
responsabilidade por ato ilícito, quando a parte se tinha autovinculado a celebrar o
negócio.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Nestes casos, esta teoria abre duas hipóteses, levantando uma questão:
• 1. Pode ser resolvido com base na responsabilidade pré-contratual
(o pressuposto da ilicitude nesta visão basta-se com a violação de um
dever da boa fé);
o Nesses casos limites, aos quais se aplicará o regime residual,
não se aferem os 4 pressupostos da tutela da confiança, pois
a ilicitude basta-se com a violação de um dever específico da
boa fé (neste caso, o dever da lealdade).
o Na responsabilidade pré-contratual a regra geral é o cálculo
da indemnização pelo interesse contratual negativo.
Contudo, a nossa jurisprudência tem admitido que nos casos
em que as negociações foram extensas e só faltava mesmo
assinar o contrato, a indemnização poderia ser calculada pelo
interesse contratual positivo.
• 2. Contudo, será que, em rigor, quando há esta autovinculação, em
vez de responsabilidade pré-contratual, não estaremos já perante
uma responsabilidade contratual? (— Há uma declaração de vontade
a dizer que se vai celebrar o negócio.)
o Na responsabilidade contratual, a indemnização é calculada
pelo interesse contratual positivo.
▪ Nestas situações em que as negociações já foram tão longe e que as partes
dizem claramente que vão celebrar o negócio, recusar celebrar o negócio é
um ato ilícito.
• Exemplo de autovinculação à celebração do negócio (permite quase
um juízo de certeza): quando a pessoa se compromete a celebrar o
negócio, marcando uma data, etc.

2. Facto jurídico:

2.1. Modalidades

Facto jurídico

— O facto é um evento a que o Direito associa um efeito jurídico.

Que tipos que eventos são estes? Há duas grandes categorias de factos, diferenciando-se entre si pelo
papel desempenhado pela vontade:

1. Facto jurídico em sentido estrito


o O evento ocorre independentemente da vontade. Não é fruto da vontade.
▪ Quando a origem é a natureza, normalmente é independente da vontade
• Ex: inundação, terramoto, ciclone, pandemia, etc.

o O facto em questão pode ser fruto da vontade, mas naquele caso, a existência da
vontade seria irrelevante para o Direito, não influenciando os seus efeitos.
▪ Ex: o suicídio é uma morte proveniente de um ato de vontade. A vontade da
qual resulta o suicídio suscita duas situações:
• É relevante para a atribuição de seguros de vida. Como o facto da
morte resulta de um ato voluntário, os herdeiros não recebem um
seguro de vida.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• É irrelevante para efeitos sucessórios no património do morto, sendo
irrelevante a causa da morte e se houve vontade ou não — nesses
casos, temos sempre um facto em sentido estrito.

2. Ato jurídico em sentido amplo — É um evento que tem origem (é produto) na vontade.

Importa distinguir:

a. Ato jurídico em sentido estrito (liberdade de celebração) — a vontade limita-se a


dizer “faço ou não faço”, “pratico ou não pratico o ato”, mas os efeitos são
estabelecidos pela lei.
i. Exemplo: Casamento — em termos pessoais, só podemos dizer “caso ou não
caso”, pois os efeitos são estabelecidos pela lei.
ii. Exemplo #2: o suicídio é um ato jurídico para efeitos de atribuição de seguro
de vida.

b. Negócio jurídico (liberdade de estipulação) — Caracteriza-se por haver liberdade de


celebração e liberdade de estipulação. A pessoa pode dizer “celebro ou não celebro o
negócio” e “defino quais são os efeitos do negócio”.

2.2. Prescrição e caducidade

Facto jurídico do decurso do tempo:


O decurso do tempo pode, só por si, produzir dois efeitos – a prescrição e a caducidade.

• Prescrição — Prevista nos artigos 298.º e ss. do CC:


o Fundamento: segurança jurídica — ideia de que não faz sentido estar a exercer um
direito, quando já volveu x tempo (prazo ordinário de prescrição: 20 anos).
▪ Ex: A emprestou 100€ a B. Não faz sentido continuar a tutelar A passado 20
anos deste ter podido exercer o seu direito e não o fez. A ideia de segurança
jurídica também entra aqui no sentido em que B pode ter cumprido e pode
ter pago a dívida, mas não tem como o comprovar passado 20 anos. Fora
desse prazo, não é razoável.

o Decurso do tempo —> Exceção material peremptória forte


▪ O que acontece é que a lei estabelece um prazo (pode ser o prazo ordinário
ou um prazo especial) e o efeito do decurso do tempo é o nascimento, na
esfera jurídica do devedor, uma situação ativa chamada exceção material
peremptória forte.
• Exceção material peremptória forte — Isto significa que o decurso
do tempo faz nascer na esfera jurídica do devedor a possibilidade de
recusar licitamente o cumprimento.
• A lei, através desta exceção, faz nascer uma exceção na esfera jurídica
do devedor que lhe permite dizer que não cumpre.
• É somente este o efeito da prescrição — não se extingue nada (o
dever continua lá). Em vez disso, nasce uma exceção que permite ao
tutelar recusar praticar um certo ato, que, sem esta exceção, seria
ilícito.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Opções:
▪ 1. Renúncia ao exercício da exceção material peremptória forte — o devedor
quer cumprir as suas dúvidas, mesmo sendo titular da exceção.
• A obrigação civil mantém-se e continua tudo igual a antes de haver
prescrição. Assim, continua a ver obrigação civil.

▪ 2. Não exercício da exceção material peremptória forte — o devedor não


exerce porque não sabia ser titular da exceção ou por qualquer outra razão.
Não renunciou, mas também não exerceu.
• Não renunciou, mas não exerce – continua obrigado civilmente a
pagar. (A obrigação civil continua civil).
• O credor pode propor uma ação em Tribunal a exigir que ele pague e
se ele não invocar a prescrição, é obrigado a pagar e o Tribunal é
obrigado a condenar ao pagamento.

▪ 3. Exercício da exceção material peremptória forte:


• A pessoa invoca a prescrição (exerce a exceção) e a obrigação civil
que existia até àquele momento, transforma-se em obrigação
natural.
o Com a invocação da exceção, verifica-se um efeito
modificativo.
Tanto a obrigação civil como a obrigação natural são
obrigações jurídicas — em ambas há o dever de cumprir.
Diferença:
▪ A obrigação civil goza de coercibilidade.
o A obrigação natural surge quando se invoca a exceção e deixa
de haver coercibilidade.
▪ Continua haver direito de pagar 100 e dever de
receber 100, mas deixa de haver tutela judicial (o
Tribunal não pode condenar o devedor ao
pagamento).

o Legitimidade da prescrição – quem pode invocar a prescrição, beneficiando da


exceção material peremptória forte?
▪ O titular da exceção — o devedor;
▪ Terceiros com legítimo interesse na sua invocação (credores do devedor).
• Os credores do devedor têm interesse em que ele não pague a
obrigação, pois ao não pagar, continua a ter aquele dinheiro no seu
património e, por isso, há mais para os seus credores.
• Apesar de não serem titulares desta exceção, a lei reconhece-lhes
legitimidade para a exercerem.

o Prazo de prescrição ordinário: 20 anos.


▪ Na ausência de uma norma que estabeleça um prazo diferente, o prazo é
sempre 20 anos — regra geral.
▪ A lei podem impor prazos especiais: exemplo – artigo 310.º CC (5 anos)
▪ O prazo começa a ser contado a partir do momento em que o direito possa
começar a ser exercido. O prazo de contagem pode ser corrido ou não: a lei
prevê causas de interrupção e de suspensão do prazo.

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▪ Interrupção do prazo — mal se verifica a causa, paramos de contar o prazo e
só retomamos a contagem quando finda a causa de interrupção e a contagem
do prazo volta ao início (voltam-se a contar 20 anos).
▪ Suspensão do prazo — quando se verifica a causa da suspensão, paramos de
contar, mas quando finda a causa de suspensão, a contagem do prazo retoma
exatamente no momento em que parou de contar.

o Prescrição presuntiva:
▪ Presunção do cumprimento — artigos 312.º e ss. CC (casos)
▪ A prescrição tem por efeito a constituição da exceção e o exercício da exceção
tem por efeito a modificação do direito e do dever. A prescrição presuntiva é
diferente – está em causa um prazo temporal curto (entre 6 meses a 2 anos)
e passado esse prazo não nasce uma exceção, mas o efeito do decurso do
prazo é a prescrição do cumprimento (presumimos que o devedor cumpriu)
e esta presunção só pode ser afastada de uma única maneira – a confissão do
devedor.
▪ São casos que tratam de despesas tão corriqueiras que não é exigível que a
pessoa guarde o comprovativo do pagamento durante tanto tempo.
▪ Como não é possível provar o cumprimento, o que se diz é que passado esse
prazo, presume-se que houve cumprimento. O devedor pode ilidir a
presunção, confessando. Se não o fizer, há cumprimento.
▪ Exemplos:
• Hotéis – Há 2 anos A foi de férias para um hotel e passado 2 anos não
tem como provar.
• Bolos da cantina – passado 1 ano, não há como provar.

• Caducidade
o Sentido amplo — Extinção de uma situação jurídica devido à produção de um facto
jurídico em sentido estrito [evento que ocorre independentemente da vontade].
Sempre que o efeito associado ao facto jurídico for a extinção de uma situação
jurídica, diz-se que essa situação caduca por efeito do facto. Na base da caducidade
estaria a produção de um facto jurídico em sentido estrito, que seria:
▪ Tempo;
▪ Impossibilidade superveniente da prestação;
• Exemplo: A ficou de fazer retrato de B. Antes de o executar, morre. A
prestação deixa de ser devida — o dever cessa por caducidade por
morte do devedor.
• Se a impossibilidade superveniente tiver caráter objetivo é a coisa
que desaparece.
o Ex: A vai vender um quadro a B e na data de entrega, a coisa
deixa de existir (queima-se, etc). A obrigação de entregar a
coisa cessa, porque ela extinguiu-se.
▪ Ilegitimidade superveniente.
• A pessoa no momento da celebração tinha legitimidade e poder para
o celebrar (podia constituir a situação jurídica) e por alguma razão
perdeu esse poder após a celebração.
• A legitimidade era a capacidade da pessoa poder praticar o ato.
“Superveniente” significa que ocorre depois da prática do ato — no
momento da prática do ato (o momento que deu origem à
constituição da situação jurídica), aquela pessoa tinha poder para

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praticar o ato. Depois da prática do ato, por alguma razão, aquela
pessoa perde a legitimidade — deixa de poder praticar o ato (a lei
retira-lhe a possibilidade de constituir a situação jurídica).

o Caducidade em sentido estrito (mais rigoroso):


▪ Extinção de uma situação jurídica derivada do decurso do tempo — apenas
uma causa de extinção é tida em conta: o decurso do tempo. Depois de x
tempo, produz-se a caducidade.

Prescrição vs. Caducidade

Na base da prescrição está o decurso do tempo e na base da caducidade em sentido estrito também
o está. Ou seja, a semelhança é que o decurso do tempo produz efeitos jurídicos para ambas.

A dúvida é: qual é a diferença e quando é que aplico uma ou outra?

No artigo 298.º/2 CC diz-se que “Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva
ser exercido dentro de certo prazo [o problema do decurso do tempo], são aplicáveis as regras da
caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.”
Isto significa que em caso de dúvida, a figura que se aplica é a da caducidade. A regra é a caducidade
e para ser prescrição, tal tem que vir estabelecido.

Prescrição Caducidade
Previsão geral dos artigos 300.º e ss. CC Necessidade de previsões especiais — está prevista
em normas especiais. A propósito de cada matéria,
estabelece-se um prazo que se diz de caducidade
ou não se diz nada, mas quando nada se diz,
também é de caducidade.
Origem legal — Apenas pode haver prescrição — Matéria indisponível: origem legal (prazos de
quando a lei o determina. caducidade estabelecidos pela lei).
É um regime imperativo; não podemos criar nem — Matéria disponível: origem convencional (prazos
alterar a prescrição. de caducidade de origem negocial, i.e.,
estabelecidos por acordo entre as partes — só se
pode fazer, se a matéria for disponível [se as partes
puderem dispor sobre aquele bem — matéria
contemplada pela autonomia privada; se as partes
podem negociar sobre aquela matéria]; se for
indisponível, não é permitido a criação de um prazo
de caducidade, por via negocial.
Suspensão e interrupção dos prazos — A contagem Prazos corridos — A lei não prevê suspensões ou
do prazo de prescrição pode ser alvo de suspensão interrupções (caducidade de origem legal).
ou interrupção. No entanto, se estiver em causa uma caducidade de
origem convencional, as partes que criaram um
regime de caducidade para aquele contrato podem
estabelecer prazos de suspensão ou interrupção do
prazo.
Efeito do decurso do prazo — Facto modificativo Efeito do decurso do prazo — Facto extintivo
não automático: de acordo com o regime regra, o automático: O decurso do prazo tem por efeito a
efeito do decurso do tempo é a constituição na extinção e a regra é que este efeito é automático e
esfera jurídica do devedor da exceção material basta decorrer o prazo para imediatamente a
peremptória forte que lhe permite recusar situação se extinguir.

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licitamente o cumprimento. Se o devedor exercer Na caducidade também há o decurso do prazo, mas
essa exceção, o efeito do exercício da exceção é a o tempo provoca a extinção.
modificação do dever — a alteração da sua
natureza (deixa de ser uma obrigação de natureza
civil e passa a ser de índole natural).
O prazo decorre e nada se extingue, pelo contrário,
constitui-se algo novo — exceção material
peremptória forte — se for exercida, temos um
efeito MODIFICATIVO do dever (altera-se a
natureza do dever — passa a ser natural); mas tal
não é automático porque se não se exercer, tudo
permanece igual.
Prazo ordinário 20 anos (às vezes a lei estabelece Prazos em geral mais curtos — não há prazos de 20
prazos menores, mas em regra, são prazos longos) anos.

2.3. Ineficácia

Facto jurídico — Desvalor

Desvalor = Valor de sentido negativo.


Há factos que o legislador considera que são maus e, por isso, não podem produzir efeito ou os seus
efeitos são contidos.

Ineficácia em sentido amplo: o facto tem certas características, o que leva o Direito a associar-lhe um
desvalor. Trata-se de ineficácia porque sempre que há um facto “problemático”, o legislador vai afetar
os efeitos que esse facto visava produzir. O desvalor associado àquele facto, faz com que esse não
produza todos os efeitos pretendidos.

Esta ineficácia pode comportar diferentes configurações:

o Inexistência jurídica? — O Direito não reconhece a existência do ato e por isso, não
produz nenhum efeito.
▪ Não sabemos se existe, ou se é ineficácia.
▪ É muito discutível que esta figura exista.
• O legislador só fala de inexistência quanto ao casamento civil —
Artigo 1627.º: É valido o casamento civil relativamente ao qual não se
verifique alguma causa de inexistência jurídica ou de anulabilidade.
• Artigo 1625.º sobre casamento católico fala em nulidade e não de
inexistência.
o A lei distinguiu entre casamentos católicos e casamentos
civis, no que toca à validade do casamento.
o Para os casamentos católicos, a expressão utilizada para
denominar o desvalor que viola uma regra foi a nulidade.
o Para os casamentos civis, o que se encontra sobre regras de
validade é a possibilidade do casamento ser inexistente ou
anulado.
• Artigo 1628.º — A lei vem dizer quando o casamento é inexistente.

▪ Dúvida: afinal, a inexistência existe?

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Olhando para o artigo 1627.º e 1628.º que fala de inexistência, parece
que sim, à conta do elemento literal.
• No entanto, olhando para o artigo 1625.º e comparando estes três
artigos, comparando casamentos católicos, com casamentos civis, o
que grande parte da doutrina diz é que o legislador utilizou
expressões diferentes para distinguir os casamentos e não porque o
desvalor fosse em si diferente. A justificação está no facto dos
casamentos em si serem diferentes, pelo que o legislador reservou a
expressão “nulidade” para o casamento católico, utilizando para o
casamento civil a expressão “anulabilidade” e “inexistência”.
• Ou seja, grande parte da doutrina vem dizer que pesa embora se fale
de inexistência jurídica quanto ao casamento civil, na realidade, trata-
se de nulidade, pois o legislador utilizou diferentes expressões apenas
para distinguir o casamento civil do casamento católico.

▪ Na inexistência, o ato não existe — o Direito não o reconhece na sua prática.


Isto constitui diferenças práticas:
• Em termos de legitimidade, qualquer pessoa tem direito a invocar o
vício que está na base do desvalor da inexistência (enquanto na
nulidade, só os interessados o podem fazer).
• O ato nulo em si não produz efeitos, mas, em muitas situações a
conjugação do ato nulo com o princípio da boa fé permite a produção
de efeitos.
o Exemplo: A boa fé em sentido subjetivo visa tutelar sujeitos
de boa fé, tutelando a parte que estava de boa fé, celebrando
um ato nulo. O princípio da boa fé permite tutelar terceiros
de boa fé relativamente a atos inválidos, nulo ou anuláveis —
mas não permite tutelar terceiros de boa fé relativamente à
prática de atos inexistentes.
o Defender a existência desta figura significa não tutelar
terceiros de boa fé.
o Então, fará sentido dizer que neste caso do casamento civil,
há inexistência jurídica? E com isso recusar logo a priori
tutelar terceiros de boa fé?

o Invalidade — O ato padece de um vício genético — o ato tem um defeito na sua


génese, cujo desvalor associado é a invalidade. Esse desvalor pode assumir 3 formas,
mas na base de todas está uma patologia genética:

▪ Nulidade — O ato existe e o Direito reconhece que o ato existe e foi praticado,
mas por ser nulo, não produz nenhum efeito.
• Artigo 286.º CC
• Em termos de legitimidade, só os interessados é que têm direito a
invocar o vício que esta na base do desvalor.
• Em certas situações, a conjugação do ato nulo com o princípio da boa
fé, permite a produção de efeitos.
• Só os interessados é que têm legitimidade para invocar a nulidade.

▪ Anulabilidade —
• Artigo 287.º

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Invalidades mistas — É um figurino que mistura regras de nulidade e de
anulabilidade. O legislador estabeleceu um regime especifico de invalidade,
havendo características que denunciam a presença de nulidade e outros que
apontam para a anulabilidade.
• São regimes específicos previstos pelo legislador, mas que congregam
em si regras próprias da nulidade ou da anulabilidade. Por isso, temos
de aplicar o regime conforme o que for mais parecido (nulidade ou
anulabilidade).

Nulidade (artigo 286.º CC) Anulabilidade (artigo 287.º CC)


Previsão Previsão
Desvalor regra no Direito Civil Carece de previsão legal específica

Na dúvida é nulidade. Se a lei nada diz, é nulidade. Só há anulabilidade quando o legislador estabelece
que o desvalor para o ato viciado é a anulabilidade.
Está prevista para todos os casos.
Eficácia Eficácia
O negócio nulo não produz nem nunca produzirá Produz efeitos até ser invocada
efeitos
O negócio anulável produz todos os seus efeitos, mas
esses efeitos não são definitivos, pelo que podem ser
(Às vezes, o negócio + boa fé produzem efeitos, mas destruídos retroativamente.
o negócio em si não produz efeitos) Ex: A vende a coisa x a B. O negócio é anulável. Todos
os efeitos da compra e venda produziram-se. O
direito de propriedade sai da esfera jurídica de A e
Ex: A vende a B a coisa x. O negócio é nulo. O direito entra na esfera jurídica de B. A tem o dever de
de propriedade nunca saiu da esfera jurídica de A. A entregar a coisa a B. B tem o dever de pagar o preço
continua a ser proprietário. A não tem o dever de da coisa a A.
entregar a coisa e B não tem o dever de pagar o Contudo, estes efeitos podem ser destruídos
preço. retroativamente, caso haja anulação do negócio.
Legitimidade Legitimidade

1. Todos os interessados Pessoa em cujo interesse a lei estabelece a


Ter interesse significa ser titular de uma situação anulabilidade (pois, em causa não está um juízo de
jurídica que sofrerá de algum tipo de alteração (boa valor propriamente sobre o ato – o que interessa não
ou má [sofrendo ou beneficiando da declaração de é se é doente ou não – mas o que é relevante são as
nulidade] – em termos jurídicos ou em termos circunstâncias/condições em que o ato foi
práticos) caso a nulidade seja decretada. Ou seja, o praticando, justificando um juízo de desconfiança
facto da nulidade ser decretada vai produzir efeitos que uma das partes não tenha podido acautelar
numa situação jurídica na titularidade de alguém. devidamente os seus interesses. Assim, tutela-se a
Só sendo titular de uma situação jurídica que vai parte cujos interesses, por razões objetivas, poderão
sofrer ou beneficiar com a declaração de nulidade é não ter sido devidamente acautelados. Assim, só tem
que podemos ser considerados interessados e ter legitimidade para pedir a anulação do ato, a pessoa
legitimidade para invocar a nulidade. em cujo interesse a anulabilidade foi protegida – a lei
2. Conhecimento oficioso quis proteger, pois face às circunstâncias, pode não
O Tribunal tem um dever de ofício — ao se deparar ter acautelado devidamente os seus interesses)
com um ato nulo, tem o dever de o declarar, mesmo Concede-se um direito potestativo — o direito de
que não lhe tenha sido pedido unilateralmente anular o negócio.

Explicação:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
O negócio nulo é um negócio doente (doença
geneticamente grave — viola uma regra imperativa,
é impossível, falta-lhe um elemento, etc).
O negócio anulável tem uma doença, mas não é uma
doença em si próprio. A doença em questão é um
juízo de desconfiança. Dadas as circunstancias em
que o negócio foi praticado, o legislador
justificadamente desconfia se os interesses de uma
das partes foram devidamente acautelados.
Exemplo: incapacidade dos menores — os negócios
celebrados por um menor, para os quais eles não
tenham capacidade é anulável, não sendo necessário
que o negócio esteja doente geneticamente ou que
seja mau, mas o negócio será anulável pois o
legislador desconfia daquele negócio, em razão da
tenra idade e imaturidade própria dos menores,
desconfiando se o menor conseguiu acautelar
devidamente os seus interesses.
O negócio existe e produz efeitos, mas como pode
não ser um bom negócio para o menor, concede-se
ao menor o direito de anular o negócio.
A titularidade do direito é do menor, mas o menor
não tem capacidade para invocar, porque é incapaz.
Tem de se suprir essa incapacidade, que é exercida
pelo representante legal. Se não tiver sido anulado
durante a menoridade, pode ser anulado pelo menor
quando for maior (dentro do prazo de 1 ano).
— O mesmo acontece quando o negócio é celebrado
em erro e esse erro é relevante — quando é
perfeitamente possível que, não estando em erro,
não se tivesse celebrado o negócio. Assim, tutela-se
os interesses desta pessoa, conferindo ao errante o
poder de anular o negócio.
— Coação moral (alguém nos ameaça, dizendo que
se não fizermos x, sofremos o mal y)
Em medo, a pessoa ameaçada cede. Num caso
destes, o negócio pode não ser bom para a pessoa e
esta pode anulá-lo.
Prazo de invocação Prazo de invocação
— O negócio foi cumprido:
A nulidade pode ser invocada a todo o tempo. O exercício do direito de anulação tem o prazo de 1
O direito de pedir declaração de nulidade nunca ano a contar da cessação do vício se o negócio já foi
caduca. cumprido
(Vício da menoridade — prazo de um ano a contar da
cessação da menoridade [após ser maior]
Vício do erro — prazo de um ano a contar da
cessação da ignorância [a partir do momento em que
a pessoa sabe que está em erro, teria 1 ano para
anular o negócio]

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Vício da coação moral — o vício da coação cessa
quando a pessoa deixe de ter medo daquela ameaça,
tendo um ano para atuar.

— O negócio ainda não foi cumprido:


O exercício do direito de anulação pode ser feito a
todo o tempo enquanto o negócio não estiver
cumprido.
Efeito do decurso do tempo Efeitos do decurso do tempo

A nulidade é insanável: A anulabilidade é sanável:

Pode ser invocada a todo o tempo; o vício prevalece Como a lógica do negócio anulável é proteger a parte
e o desvalor perdura. O negócio é doente e, por isso, cujo interesse pode não ter sido acautelado e isso
nasce nulo e continua nulo até morrer. causa instabilidade, pois, durante um determinado
período, nunca se sabe se vai ser exercido ou não o
direito de anulação. Assim, o legislador diz que é
justo que se permita anular, mas é igualmente justo
que se limite no tempo o prazo durante o qual pode
anular.
Se a pessoa anular dentro desse prazo, anulou e os
efeitos são destruídos retroativamente.
Se a pessoa não anular dentro desse prazo, o direito
potestativo caduca. (O decurso do prazo tem por
efeito a caducidade do efeito de anular e os efeitos
precários tornam-se definitivos, pois já não podem
ser anulados — sanação)

Sanação através da confirmação:

A anulabilidade assenta num juízo de desconfiança


(saber se uma das partes pôde acautelar os seus
interesses), não havendo qualquer tipo de juízo
sobre o ato em si (o ato pode beneficiar a parte “mais
fraca”).
Contudo, como o que está em causa é saber se o
negócio é bom ou mau para a parte “mais fraca”, o
titular do direito de anulação pode confirmar o
negócio. Uma vez cessado o vício, pode dizer que
quer o negócio e, com isso, sana o negócio.
Retroatividade Retroatividade

Muitas vezes, na prática, pese embora o negócio seja Qualquer efeito que tenha sido produzido é
nulo, as partes agem como se o negócio fosse válido, destruído retroativamente até à data de celebração
daí ser essencial esta regra da retroatividade, que do ato.
nos obriga a destruir tudo o que as partes foram
criando desde a data de celebração do ato, mesmo
que este ato, juridicamente, não tenha produzido
efeitos.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Ineficácia em sentido estrito — Não há nenhum vício genético. O ato em si mesmo é
são e poderia produzir efeitos, mas não os vai produzir, pois a produção de efeitos
para aquele ato está condicionada à verificação de uma determinada circunstância
externa ao ato. Só com essa circunstância externa é que o ato produz efeitos. Se faltar
a circunstância externa, o ato não produz efeitos, ainda que não haja patologia do ato.

[Não há um desvalor de um ato propriamente, pois o ato em si não é doente, mas


falta-lhe uma circunstância externa da qual depende a produção de efeitos. Não basta
o ato para que haja uma total produção de efeitos, é preciso que haja uma tal
circunstância externa, para lhe permitir produzir os seus efeitos.]

Essa não produção de efeitos por parte do ato (quando lhe falta a circunstância
externa) pode manifestar-se de duas maneiras — inoponibilidade ou imputabilidade.

▪ Inoponibilidade: Não é possível opor os atos ou os efeitos do ato.


• Inoponibilidade absoluta: A falta da tal circunstância externa impede
que o ato seja invocado contra qualquer pessoa.
O ato não produz efeitos quanto a ninguém.
o Exemplo: casamento — enquanto o casamento não for
registado, não produz efeitos nem em relação a terceiros,
nem em relação às partes. O casamento pode não ter
patologia nenhuma, mas a produção dos efeitos está
dependente de uma circunstância externa (o registo). Uma
vez registado, produz efeitos contra todos.

• Inoponibilidade relativa: O ato vai produzir efeitos entre as partes,


mas não produz efeitos quanto a terceiros. Não é oponível quanto a
terceiros.
É relativa porque há uma dimensão dos efeitos que são produzidos
(entre as partes), mas os restantes efeitos não são produzidos, não
sendo oponível contra terceiros.

o Exemplo: representação sem poderes (alguém age em nome


de outrem, mas não tem poder para tal). O negócio em si
pode produzir efeitos entre as partes, mas não vai produzir
efeitos contra terceiros, por exemplo, não vai ser oponível ao
representado (a pessoa em cujo nome o negócio foi
celebrado, mas que não concedeu poderes de
representação).

▪ Impugnabilidade (Artigos 610.º e ss. CC): É possível contestar/por em causa


os efeitos do ato. É uma forma de tutelar interesses legítimos de alguém,
sempre que esses interesses legítimos possam ser postos em causa por um
determinado ato.
• O ato em si não é doente, mas o legislador quer vir impedir a
repercussão que este ato pode ter em interesses legítimos de outras
pessoas. Essas pessoas, cujos interesses legítimos podem ser postos
em causa, podem impugnar.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Esta figura está prevista nos artigos 610.º e seguintes do Código Civil,
a propósito da impugnação pauliana (ação judicial que permite aos
credores atacar judicialmente certos atos [contratos de compra e
venda, doações, etc], válidos ou inválidos, se celebrados pelos
devedores em seu prejuízo]).
• Assim, esta figura está pensada para os casos em que há um credor e
um devedor e o devedor celebra o negócio com outra pessoa, sem
patologia, mas esse negócio põe em causa os legítimos interesses do
primeiro credor. Em certas circunstâncias, é possível que este credor
impugne o negócio celebrado pelo seu devedor de forma a permitir
que o património do devedor não seja afetado, de forma a tutelar os
interesses do credor, cuja garantia geral reside no património do
devedor.
o Nestes casos, A é credor de B. Para o A, é importante que B
tenha um património que possa ser executado caso B não
cumpra o seu dever. Supondo que B quer dar o seu
património a C, isso afeta os interesses de A, cujo devedor vai
deixar de ter património para executar, desaparecendo essa
sua garantia.
o Esse ato não é inválido, mas os seus efeitos podem ser
impedidos através da impugnação pauliana.

• Nesses casos, está-se a impedir a produção de efeitos de um ato, que


em si era válido, para prezar os interesses legítimos de quem é
afetado por tal ato.

o Irregularidade? — Os atos não são inválidos, mas violam alguma regra prevista para
aquele ato. Os atos violam uma regra prevista para um determinado ato, mas o
legislador estabelece que pese embora essa violação, o ato é válido. Os seus efeitos
são condicionados — o ato vai produzir muitos dos seus efeitos, mas não vai produzir
todos.
▪ Ninguém contesta a existência da irregularidade, apenas se contesta a sua
qualificação jurídica. A dúvida é se a irregularidade se qualifica como
ineficácia, há quem diga que sim e há quem diga que não, dependendo da
forma como olham para os efeitos do ato:
• Quem coloca o acento tónico no facto do ato produzir vários dos seus
efeitos, diz que isto não é uma forma de ineficácia, pois continuam a
ser produzidos grande parte dos atos.
• Quem coloca o acento tónico no facto do ato não produzir alguns
efeitos, diz que isto é uma forma de ineficácia, pois alguns efeitos não
estão a ser produzidos.
▪ Exemplo: Casamento de menores. A partir dos 16 anos, há capacidade de
gozo para casar, mas enquanto se é menor, não se tem capacidade de
exercício para casar, sendo necessária a autorização do representante legal.
E se houver um casamento celebrado por menores em que não houve
autorização do representante? O legislador considera isto válido e parte dos
efeitos vão-se produzir, mas não se vão produzir todos os efeitos que se
produziriam se houvesse o respeito por todas as regras para a celebração do
ato. É um caso de irregularidade. A violação da norma compromete parte dos
efeitos, mas não a totalidade dos efeitos (que se produziriam, caso tivesse
havido autorização).

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• O casamento regular de um menor gera emancipação plena.
• O casamento irregular de um menor (irregularidade: violação da
norma que impõe uma autorização por parte dos representantes
legais) gera emancipação restrita.

3. Objeto:

3.1. Enumeração
OBJETO (MEDIATO)

Esta palavra pode ser usada com um duplo sentido:


• Objeto imediato — objeto enquanto conteúdo do negócio (realidade — exemplo: contrato
de compra e venda. Objeto: coisa)
• Objeto mediato — Objeto enquanto realidade a que esse conteúdo diz respeito (poderes e
deveres pensados pelo negócio)

Agora vamos falar do objeto mediato, ou seja a realidade a que a situação jurídica se refere.

• OBJETO MEDIATO —> Coisas, prestações, animais, bens de personalidade, poderes (direito
potestativo — objeto: direito de anular), etc.
• Os deveres/poderes contidos numa situação podem referir-se a diferentes realidades.
• 1.ª realidade — Coisas:
o Noção legal — artigo 202.º/1 CC — “Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objeto de
relações jurídicas.”
o Pontos negativos deste capítulo do Código Civil:
▪ Definição legal — Não é bom ter uma definição porque não é ao legislador
que cabe definir, mas sim à doutrina.
▪ A definição é má — Quando se diz que a coisa é tudo aquilo que pode ser
objeto de relações jurídicas, está-se a referir a muito mais do que ao que é
uma coisa.
Ao identificar coisa com um objeto (há muitas mais modalidades de objeto),
ou não se está a distinguir coisas dos bens de personalidade, prestações,
animais, etc, ou está-se a excluir tudo o que não seja uma coisa de um objeto,
o que está errado.
• Exemplo: A contrata B para pintar a sua casa. A tem direito a que B vá
pintar a sua casa. O objeto do direito de A é a prestação — pintura da
casa por parte de B.
o Essa é a definição de uma prestação e não de um objeto.
o A coisa é apenas uma modalidade de objeto.
▪ 2.º motivo do porquê de ser uma má definição: Nem sempre há relações
quando há situações jurídicas.
• Exemplo: Ter um telemóvel — situação jurídica (propriedade que tem
o telemóvel como objeto) — mas não há uma relação jurídica. Ao
dizer isto estamos a restringir a noção de coisa às situações relativas
(onde existe uma relação e um vínculo). O normal é a coisa ser objeto
de um direito real. Os direitos reais em si não são uma relação
jurídica, mas sim uma situação jurídica (ou seja, há um objeto e não
se está em relação com ninguém).

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Proposta alternativa de definição de coisa pela doutrina — A coisa é uma realidade
autónoma, que, não sendo pessoa jurídica, é dotada de utilidade e suscetível de
dominação exclusiva pelo homem.
▪ Autonomia — saber até que ponto a coisa é juridicamente delimitada.
Pode sê-lo, porque há uma delimitação física (ex: telemóvel — tem
independência física), mas nos outros casos não há independência física, mas
sim continuidade física não obstante a uma realidade autónoma (ex: terreno
— do ponto de vista físico, o terreno é contínuo e não há fronteiras físicas,
apenas há uma delimitação jurídica, porque juridicamente há o terreno A, o
terreno B, etc, pelo que cada porção é tratada como coisa/realidade
autónoma à luz do direito [o direito reconhece existência própria]).
▪ Não é pessoa jurídica (não tem personalidade jurídica) — a coisa é um objeto
e não um sujeito.
▪ É dotada de utilidade e suscetível de dominação possível do homem — é
possível haver apropriação, porque se não for possível haver apropriação, não
pode haver um direito e se não pode haver um direito, deixa de ser objeto de
uma situação jurídica.

3.2. Coisa

o Classificações das coisas — O legislador elaborou um catálogo de coisas.


As classificações das coisas têm fins didáticos (para entendermos o que são coisas e
o que não são coisas), por isso, ao dar grandes categorias, é fácil de entender o
conceito. Muitas vezes, o legislador associa coisas a determinados regimes
específicos, consoante o tipo de coisas.
Há classificações que estão previstas diretamente nos artigos 203.º e seguintes,
contudo, ao longo do Código Civil, encontram-se artigos que sugerem a existência de
outras classificações para além destas.

As classificações das coisas são cumuláveis — podemos aplicar várias classificações a


uma mesma coisa.

▪ 1. Coisas materiais e coisas imateriais


• Coisas materiais — Gozam de delimitação física. Existe fisicamente
uma coisa. (Exemplo: telemóvel)
• Coisas imateriais — Não têm dimensão física. (Exemplo: ideias, gás..)

▪ 2. Coisas corpóreas e coisas incorpóreas


• Coisa corpórea — Pode ser apreendida pelos sentidos (tato, olfato,
visão, audição, paladar). [Exemplo: gás — apreendido pelo olfato)
• Coisa incorpórea — Só pode ser apreendida pelo intelecto. (Exemplo:
ideias...)
• Relevância da distinção: as coisas incorpóreas têm uma legislação
especial própria — Código da Propriedade Intelectual.

▪ 3. Coisas dentro do comércio e coisas fora do comércio


• Coisas dentro do comércio — suscetível de apropriação individual e
privada.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o O Código Civil trata do regime das coisas dentro do comércio
e não de fora do comércio.
• Coisas fora do comércio — Não é suscetível de apropriação individual
e privada. (Bens de domínio público [definidos pela CRP], bens
comuns [exemplo: baldios] e coisas insuscetíveis de apropriação
privada [desde logo até por designação legal — ex: não podemos
comprar monumentos])

▪ 4. Coisas imóveis e coisas móveis (artigos 204.º e 205.º CC)


• Coisas imóveis — prédios rústicos e urbanos; águas; árvores,
arbustos, frutos naturais enquanto ligados ao solo; direitos inerentes
a esses imóveis; partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos.
[Não há solo para além dos prédios rústicos (terrenos) e urbanos
(edifícios).]
o O móvel é entendido por exclusão de partes — o que não for
imóvel, é um móvel.
o Dúvida #1: Esta lista é ou não taxativa? Há mais imóveis para
além destes ou são só estes?
▪ Vários autores (O.A. e Menezes Cordeiro) dizem que
é uma lista meramente exemplificativa. Há vários
imóveis que não estão aqui:
• Estradas, monumentos, minas...
▪ Carvalho Fernandes considera que esta lista é
taxativa e vem dizer que esta crítica não é
procedente, pois esses monumentos e estradas são
bens fora do comércio. Como não estão dentro do
comércio e o Código Civil só se aplica aos bens que
estão dentro do comércio, esta classificação não se
aplica.
Quanto às minas, diz que essas podem estar dentro
do comércio, mas também diz que as minas são
partes integrantes dos prédios e, por isso, está
compreendida pelo artigo 204.º/1, alínea e) CC. Essa
alínea apresenta uma categoria geral, dentro da qual
se integram as minas.
▪ Contudo, reconhece uma lacuna e diz que há uma
realidade claramente imóvel, que é difícil encontrar
previsão nesta lista — frações autónomas dos
prédios (andares e diferentes apartamentos). Essas
frações não são um prédio urbano propriamente dito
(porque o prédio urbano é o todo ou o terreno), mas
sim uma parcela com autonomia.
▪ Portanto, o Professor Carvalho Fernandes considera
que esta lista é taxativa, mas reconhece esta lacuna.

o Dúvida #2: A lista é boa?


▪ Não, a lista é má, porque mistura tudo.
▪ É preciso estabelecer uma fronteira entre as alíneas
a) e b) e as restantes.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ As alíneas a) e b) são boas, falam de imóveis por
natureza. São aqueles imóveis que, por natureza, não
se podem mexer. (Prédios rústicos e urbanos e águas
estão presos ao solo [quanto às águas, o líquido
mexe, mas a fonte da água permanece ali] —
ninguém contesta que se classifiquem como imóveis,
é pacífico).
▪ O problema está nas alíneas seguintes: alíneas c) d)
e e):
▪ A alínea c) é um exemplo da alínea e) — a alínea e)
estabelece a categoria geral e a alínea c) dá um
exemplo dessa categoria. Não era preciso a alínea c)
porque a alínea e) já abarcava a alínea c).
▪ A alínea d) é péssima porque está a considerar como
coisa imóvel um direito. Um direito não é uma coisa,
mas sim uma situação jurídica. Considerar um direito
como coisa imóvel é um erro crasso.
▪ Na alínea c) e na alínea e) [tendo em conta que a
alínea c) é uma concretização da alínea e)] o que está
em causa são imóveis por relação [relação com o
imóvel].
• Na alínea a) e b) o que está em causa são
imóveis por natureza.
▪ A alínea e) vem dizer que são imóveis as partes
integrantes dos prédios rústicos e urbanos (definição
de parte integrante — artigo 204.º/3 CC — “é parte
integrante toda a coisa móvel ligada materialmente
ao prédio com caráter de permanência.”)
• A doutrina distingue entre partes integrantes
e partes componentes.
• Semelhança: existe uma ligação física e
permanente com o imóvel.
• Diferença: Na parte integrante, se
destacarmos essa coisa, ela ganha
autonomia e não compromete o imóvel. Há
uma ligação física e permanente, mas não é
um elemento constitutivo.
Exemplo: painel de azulejo das casas —
enquanto está preso à parede é uma parte
integrante. Ao retirar o painel, não se
compromete a existência da casa.

Na parte componente, se destacarmos essa


coisa, comprometemos a existência e/ou a
perfeição do imóvel.
É um elemento estrutural e constitutivo.
Exemplo: telhado — parte estrutural e
constitutiva.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
As partes integrantes e componentes, por
causa desta ligação física e permanente com
o imóvel, são classificadas também elas
como imóveis e isso está correto.

• Alínea c) está incluída na alínea e) e é


redundante — A árvore, os arbustos etc são
partes integrantes (podem ser destacados) .
São tidos como imóveis enquanto estiverem
presos ao solo.
Quando tiramos a árvore ou os arbustos do
solo, deixamos de ter coisas imóveis e
passamos a ter coisas móveis.

A árvore pode ser objeto de negócios jurídicos em duas configurações:


• Árvore como objeto de negócio, presa ao solo.
o Ex: A quer ter macieiras, mas não tem nenhum terreno para as ter. A sua única
alternativa é comprar as macieiras no terreno de alguém. Não pode comprar o
terreno e as macieiras, apenas as macieiras. Em direito, isto constitui um direito de
superfície — a propriedade do solo é de uma pessoa e as árvores são de outra — há
o poder de gozar, fruir e dispor sobre o que está implantado (árvores), mas não sobre
o solo.
o A constituição de um direito de superfície envolve escritura pública. Se A quiser
comprar as árvores ligadas ao solo, para permanecerem ligadas ao solo, tem que fazer
uma escritura pública.

• Árvore como objeto de negócio, com a ideia de a retirar do solo.


o Semelhanças com o caso anterior: em ambos os casos, as macieiras estão presas ao
terreno e o contrato de constituição de superfície é celebrado com as árvores presas
ao solo.
o Diferenças: neste caso, as árvores estavam presas ao solo, mas o objetivo era destacá-
las, para A as levar para a sua terra.
o Aqui, distingue-se entre coisas presentes e coisas futuras.
▪ Na data de celebração do negocio, as arvores eram uma coisa imóvel, pois
estavam presas ao solo. Mas este contrato não é sobre uma coisa presente,
pois não se está a celebrar um contrato com as árvores presas ao solo, mas
sim desligadas do solo — coisa móvel futura.
▪ Na data em que se celebra o contrato, as árvores são imóveis. Mas no futuro,
as coisas existirão como móveis.
▪ Neste caso, o objeto da compra e venda é um móvel futuro — ainda não
existe, mas vai existir, quando as árvores forem retiradas do solo.
o A lei, relativamente aos móveis, não exige escritura pública — há liberdade de forma.
▪ Este negócio pode ser feito oralmente.

Momento em que se transmite a propriedade:


➔ Quando se celebra um negócio de compra e venda, quando é que se transmite a propriedade?

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• De acordo com o artigo 408.º CC, a mera celebração do negócio de compra e venda tem por
efeito imediato e automático a transmissão do direito de propriedade (no regime português).
o Exemplo: A vende um telemóvel a B. Mal se celebra o contrato, o direito de
propriedade sai da esfera jurídica de A e entra na de B.
• Quando se está a falar de partes integrantes e de móveis futuros, a situação não é assim. A
propriedade só se vai transmitir no momento em que a parte integrante é destacada. No
momento em que, neste caso, as árvores são retiradas do solo. A transmissão da propriedade
continua a ser automática, mas não é imediata, pelo que só ocorrerá quando houver a
separação da parte integrante do solo.
o Exemplo: Hoje, A celebra um contrato de compra e venda das árvores, para as
destacar do solo, sendo que as ia buscar daqui a 5 dias. A só se tornaria proprietário
das árvores daqui a 5 dias (quando fossem separadas). Isto é relevante pois se
acontecesse alguma coisa às árvores entre estes 5 dias (como um incêndio), aplica-se
o princípio da imputação do dano ao vendedor, pois ainda não se transmitiu o direito
de propriedade. Se o dano ocorrer entre a data da celebração do negócio e a data da
celebração, quem suporta o dano é o vendedor.

• Relevância da distinção entre coisas móveis e imóveis:


o Forma — Os negócios sobre imóveis requerem intervenção
de notário – escritura pública ou documento particular
autenticado. Nos negócios sobre móveis, a regra é liberdade
de forma. Se há liberdade de forma, o negócio será sempre
formalmente válido. Enquanto quando a forma do negócio é
particularmente exigente, a possibilidade de haver vícios de
forma é grande e a possibilidade é haver nulidade.

o Registo — Os imóveis estão sujeitos a registo – temos de os


registar na Conservatória do Registo Predial. Há publicidade
feita pela conservatória no registo. A regra é que os móveis
não estão sujeitos a registo – quando o estão (em 3 casos —
automóveis, aeronaves e navios), os registos são especiais e
não gerais.

o Tipos negociais — O legislador, por vezes, estabelece tipos


negociais diferentes consoante esteja em causa um móvel ou
um imóvel.
Exemplo – locação:
▪ Arrendam-se imóveis.
▪ Alugam-se móveis.

o Direitos específicos sobre imóveis — Há direitos gerais


(propriedade), mas há direitos que têm por objeto apenas
imóveis – direito de habitação, de servidão, de superfície, o
direito real de habitação periódica.

o Legitimidade — Em certas situações, permite-se que uma


pessoa pratique um ato relativamente a um móvel que não
se permite que pratique relativamente a um imóvel.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Exemplo: casal casado com regime de comunhão de bens —
ser for um imóvel, a regra é que para se vender, têm que ser
os dois a vender. Enquanto, para o móvel, muitas vezes, o
legislador permite que seja apenas um deles a vender. Assim,
a diferença de objeto constitui diferentes tipos de
legitimidade.

▪ 5. Coisas registáveis e coisas não registáveis


• Coisas registáveis — suscetíveis de ser registadas.
o Todos os imóveis têm que ser registados no registo predial.
o Há três móveis que são registáveis — automóveis, aeronaves
e navios.
▪ Em tudo o resto, é aplicável o regime dos móveis. A
única semelhança é que estes móveis têm que ser
registados.

• Coisas não registáveis — não são suscetíveis de serem registadas.

o Relevância da distinção:
▪ Diferentes tipos de direitos (há direitos para bens
registáveis e direitos para bens não registáveis).
• Hipoteca — direito para bem registável.
▪ Também é relevante para efeitos de tutela de
terceiros de boa fé.
• Artigo 291.º — Regime regra que estabelece
as condições em que podemos tutelar
terceiros de boa fé, que tenham celebrado
um negócio inválido.
• Em certos casos, apesar de se celebrar um
negócio invalido, é possível tutelar terceiros
de boa fé, conjugando esse negócio com o
princípio da boa fé. As regras da boa fé que
tutelam terceiros de boa fé exigem, em
regra, que o bem em causa seja registável. Só
pode haver tutela para imóveis e para
móveis registáveis, mas não há tutela para
móveis não registáveis.

o A única semelhança que móvel registável tem com o imóvel


é o registo. Em tudo o resto, aplica-se o regime dos móveis.
▪ Exemplo: forma para a celebração de compra e
venda de um automóvel (coisa registável)?
• Liberdade de forma (artigo 219.º CC).

▪ 6. Coisas fungíveis e coisas infungíveis — artigo 207.º CC


• Coisa fungível — Vale por aquilo que tem de genérico.
o Isto é sinal que pode ser substituída por outra coisa do
mesmo género.
o Em princípio, é possível haver reconstituição natural.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Exemplo: A compra um kg de laranjas, pratos brancos, etc –
em geral, o bem é fungível por natureza.

• Coisa infungível — Vale por aquilo que tem de específico.


o Não é substituível. Em princípio, há indemnização (pois
normalmente, não é possível reparar a coisa
impecavelmente).
o Exemplo: relógio oferecido a A pelo seu avô — podem haver
muitos relógios iguais, mas não são aquele, sendo então
infungível.

• Relevância da distinção:
o Tipos negociais — Estabelecem-se contratos diferentes:
▪ Exemplo #1: A empresta 100€ ao B.
• O dinheiro é fungível (a menos que seja de
coleção) — contrato de mútuo (artigo 1143.º
CC).

▪ Exemplo #2: A empresta a sua casa de férias ao B.


• A casa de férias é infungível, porque não é
substituível — contrato de comodato (artigo
1129.º CC).

o Obrigações genéricas — Existe quando se compra


determinado bem justamente por causa do seu género, mas
a identidade (especificação) da coisa é irrelevante.
Quando algo é comprado por aquilo que vale de genérico,
podemos estar perante uma obrigação genérica, com um
regime próprio.
Exemplo: A vai comprar 1kg de laranjas a uma mercearia —
como há muitas laranjas, esse kg é identificado pelo seu
género, não sendo específicas quais as laranjas que se quer
para se constituir 1kg.
Quando queremos uma certa quantidade de um bem pelo
género, criam-se problemas — quem é que vai escolher as
laranjas? O que é que acontece se não houver 1kg de
laranjas? Nesta situação, o legislador estabelece obrigações
genéricas, que se aplicam a coisas fungíveis.

É preciso questionar: O que é que faz querer a coisa? É algo


que é genérico e tanto faz querer uma coisa como outra? Ou
é uma natureza específica que só se encontra numa coisa e
não na outra? Quando há uma ligação emocional a uma
determinada coisa, essa coisa deixa de ser fungível.

▪ 7. Coisas consumíveis e coisas não consumíveis — artigos 208.º e 1451.º CC


(regime específico para o usufruto de coisas consumíveis)

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Coisas consumíveis — A sua utilização normal implica a sua
destruição ou a sua alienação.
o O uso normal implicar a alienação da coisa, muitas vezes,
depende do titular do direito sobre a coisa. Enquanto, o uso
normal implicar a destruição da coisa, na maior parte das
vezes, provém da natureza da coisa.
o Exemplo: comprar uma maçã – o uso normal que se dá a uma
maçã é para a comer – comer é destruir a maçã.
o Exemplo #2: um stand compra carros para os vender — isto
implica a sua alienação, por isso é uma coisa consumível.

• Coisas não consumíveis — A sua utilização não implica a sua


destruição ou a sua alienação.
o Exemplo: comprar um carro – o uso normal é guiá-lo. Este uso
não implica a sua destruição.

• Relevância da distinção:
o Justifica a criação de um regime específico de usufruto —
um usufrutuário pode gozar e fruir da coisa, mas não pode
dispor e quando o usufruto acaba, tem de devolver a coisa ao
proprietário. Se a coisa for consumível, esta vai ser destruída
ou alienada — não pode haver usufruto sobre coisas
consumíveis.

▪ 8. Coisas deterioráveis e coisas não deterioráveis — artigos 94.º/4, 674.º/1,


1452.º e 1889.º/1 alínea a) (é uma classificação utilizada e aplicada pelo
legislador em regimes diferentes, mas que não anuncia e define)
• Coisas deterioráveis — A coisa vai perdendo qualidades por 3
situações: quando é usada, quando não é usada ou pelo decurso do
tempo.
o Exemplo: automóveis.
• Coisas não deterioráveis — A coisa não vai perdendo qualidades
quando é usada, quando não é usada ou pelo decurso do tempo.
o Exemplo: jóias — medalhão de família com um diamante.

• Relevância: certos atos são permitidos quando as coisas são


deterioráveis. Não se permite a prática desses atos se o bem não for
deteriorável.
o Exemplo: menor proprietário de um pomar cheio de fruta —
os pais podem vender a fruta? Sim, porque se não venderem
a fruta, esta pode estragar-se. É muito pior para o menor ter
a fruta estragada do que vender e receber o dinheiro da
venda. Por ser deteriorável, os pais podem viver a fruta do
pomar.
o Exemplo: menor é proprietário de uma jóia de família — em
regra, os pais não podem vender a coisa, porque não é
deteriorável e não há justificação para a venda.

▪ 9. Coisas divisíveis e coisas indivisíveis — artigo 209.º CC

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Coisas divisíveis — É possível fracionar a coisa, sem a sua perda de
valor, utilidade ou perda de natureza.
• Coisa indivisível — A indivisibilidade significa que uma coisa não pode
ser dividida/fracionada sobre a pena de perder valor, utilidade ou
alterar a sua natureza.

• 3 tipos de indivisibilidade:
o Natural — Artigo 209.º
▪ Olhamos para a coisa em si e vemos se é possível
fracioná-la sem comprometer o seu valor, a sua
utilidade ou a sua natureza.

o Legal — A lei proíbe a divisão. Naturalmente (segundo as leis


da natureza), era possível dividir a coisa, mas o Direito não o
permite.
▪ Exemplo: artigo 1376.º (unidade de cultura —
proibição da divisão de terrenos rústicos se da
divisão resultar numa área inferior à área de cultura,
para evitar diminuir as hipóteses de exploração
agrícola. Ao dividir o terreno, não se pode utilizar
todo o tipo de máquinas agrícolas, não se podem
cultivar certas coisas, etc. Não se pode dividir um
terreno se da divisão resultar uma área inferior à
unidade de cultura, pois essa área torna o terreno
não rentável do ponto de vista económico.)

o Negocial — Artigo 1412.º (questão da compropriedade —


quando se tem vários proprietários de alguma coisa e
durante x tempo, não se pode dividir tal coisa)
▪ A lei não o impõe, a natureza das coisas não o
impede, mas as partes, por alguma razão, acordam
uma indivisibilidade.
▪ Não podemos negociar com alguém uma
indivisibilidade ad aeternum — o prazo máximo é o
de 5 anos. Esta indivisibilidade negocial está sujeita a
limites temporais. Passado 5 anos, a indivisibilidade
pode ser renovada.

• Relevância: contitularidade de direitos


o Um direito (que tem por objeto uma coisa) pertence
simultaneamente a vários sujeitos.
o A forma normal de cessar uma situação destas é a divisão das
coisas.
o Portanto, a distinção é muito relevante para fazer cessar
fenómenos de contitularidade de direitos.

▪ 10. Coisas presentes e coisas (absolutamente ou relativamente) futuras —


artigos 211.º, 880.º e 408.º2

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Coisa presente — existe e está na titularidade do declarante no
momento em que emite a declaração (quem vai alienar a sua
propriedade é titular do direito sobre a coisa).
o Exemplo: venda de árvore enquanto imóvel, pelo que esta
continuará no solo.

• Coisas futuras:
o Absolutamente futuras — No momento da declaração, a
coisa não existe enquanto tal.
▪ Exemplo: Negócio de compra e venda de uma árvore
que irá ser vendida após se destacar do solo — No
momento da declaração, a árvore que está presa ao
solo é uma parte integrante (imóvel), mas não é uma
coisa, porque não tem autonomia. Tem a
possibilidade de se tornar uma coisa, por isso diz-se
ser uma coisa absolutamente futura.
o Relativamente futuras — A coisa existe no mundo físico, mas
ainda não está na titularidade do declarante.
▪ Exemplo: A compromete-se a vender a B o bem de C,
onde o declarante é honesto e admite ainda não ser
titular do bem de C, mas compromete-se a vender —
assim, está a comprometer-se a adquirir o bem, para
dessa forma transmitir a propriedade ao adquirente.
▪ Nestes casos, pratica-se uma coisa válida, pois está-
se a vender uma coisa alheia, dizendo que é alheia.
Enquanto, para ser inválido, é preciso vender uma
coisa alheia, dizendo que é própria.

o Ambas as coisas futuras suscitam problemas de transmissão


de direitos reais — a transmissão faz-se por efeito do
contrato, mas só se dá na data em que a coisa futura se torna
presente e passa a estar na titularidade do comprador.

➔ Classificações das coisas quanto às relações entre si

As coisas, muitas vezes, estão ligadas, quer isto seja fisicamente ou juridicamente.

o Artigo 206.º CC
▪ Coisas simples — São as coisas que não agregam em si elementos
autonomizáveis, nem do ponto de vista físico, nem do ponto de vista jurídico.
Ninguém contesta a existência de coisas simples.
Exemplo: maçã – está em relação com outras coisas (árvores), mas a coisa em
si mesma não assenta numa relação.

▪ Coisas compostas ou universalidade de facto — Não estamos a falar do


mesmo. E esta definição é incompleta, havendo realidades que não são
explicadas por ela.

• Proposta da doutrina para esta classificação:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Coisas simples — A doutrina propõe manter a classificação das coisas simples, pois,
há coisas que não agregam em si, nem do ponto de vista físico, nem do ponto de vista
jurídico, coisas autonomizáveis.

o Coisas complexas — A doutrina vem dizer que as coisas complexas agregam em si, do
ponto de vista físico ou jurídico, elementos autonomizáveis. São coisas formadas,
fisicamente ou juridicamente, por mais coisas, sendo tratadas como unidade.

▪ Coisa composta — Quando a agregação é física.


• Exemplo: quando compramos um carro, compramos o carro com os
pneus, com o motor, etc, pelo que se está a comprar o todo e não
apenas algumas peças. Há uma agregação física entre os elementos
que compõem o carro, podendo esses ser autonomizados e vendidos
à parte, mas a agregação física que existe entre eles criam uma
unidade nova, pelo que o Direito trata aquela unidade justamente
como tal. Um carro tem motor, pneus, etc — há uma coisa formada
pela agregação física de outras coisas.

▪ Coisa coletiva — Quando a agregação é jurídica.


• Do ponto de vista empírico, podia parecer que há duas coisas
(realidades fisicamente autónomas), mas o Direito trata-as como
unidade.
o Exemplo: par de sapatos — do ponto de vista físico, os dois
sapatos estão completamente separados, mas são tratados
como unidade, como uma só coisa.

• Quando temos uma agregação jurídica, temos 2 possibilidades:


o Coisa coletiva em sentido estrito — É tida como unidade e
tratada como unidade.
▪ Exemplo: televisão e o seu respetivo comando.

o Universalidade de facto — Admite duplo tratamento — o


Direito tanto admite que o objeto seja o conjunto, ou os
elementos individualmente considerados.
A universalidade de facto tanto é tratada como unidade
(pode ser o todo tido como objeto, ou seja, como única coisa,
um conjunto), como é tratada em relação a cada elemento.
▪ Exemplo: Biblioteca — A compra a biblioteca de B.
Nestes casos, compra-se a biblioteca como unidade.
No entanto, se A comprar apenas alguns livros da
biblioteca de B, está a ter como objeto os elementos
individualmente considerados.

o Parte componente e parte integrante

Têm uma conexão física com caráter de permanência com a coisa e que perde
autonomia justamente por causa dessa ligação física com caráter de permanência,
mas têm a possibilidade em si de ser uma coisa autónoma, bastando haver uma
separação.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Só se se quebrar essa conexão física com caráter de permanência é que se podem
tornar coisas.

o Artigos 210.º a 216.º CC


▪ Coisa principal — Existe por si só, não precisa de mais nenhuma para
existir/funcionar. A sua existência não está dependente de outra coisa.

▪ Coisa acessória em sentido amplo — A existência da coisa acessória depende


da existência da coisa principal. A função da coisa é ajudar outra coisa ou
provém de outra coisa.
• Coisa acessória em sentido estrito — O artigo 210.º parece tratar a
coisa acessória em sentido estrito e a pertença como sinónimos,
contudo, a doutrina vem dizer que isso traria consequências práticas
nefastas e, por isso, tem-se entendido que se deve fazer uma
interpretação restritiva do artigo 210.º e deve separar-se
conceptualmente a coisa acessória em sentido estrito da pertença,
pois não faz sentido sujeitar essas duas realidades ao mesmo
tratamento.

O artigo 210.º/2 vem dizer que os negócios jurídicos que têm por
objeto a coisa principal não abrangem, salvo declaração em contrário,
as coisas acessórias. Tem-se entendido que quando se fala de coisas
acessórias aqui é em sentido estrito.

Numa coisa acessória em sentido estrito, há dois requisitos


negativos:
1. Não há uma ligação física com caráter de permanência à coisa
principal, pois isso seria uma parte integrante ou uma parte
componente.
2. Não há uma agregação física ou jurídica, sob pena de ser uma
coisa coletiva.

Quanto aos requisitos positivos (o que tem de haver):


1. Afetação económica/jurídica/estética à coisa principal — a coisa
acessória em sentido estrito está afeta, seja por razões estéticas,
jurídicas ou económicas à coisa principal, mas a coisa acessória
tem valor em si mesma, podendo ser destacada e ser objeto de
negócio em si mesma, sem comprometer a coisa principal. Ajuda
a coisa principal, mas a ligação não é tal que comprometa o
funcionamento da coisa principal.

o Exemplo: na venda de um terreno, que previamente tinha


alfaias, há uma afetação económica da alfaia ao terreno (pois
ajuda a acrescentar valor ao terreno e ajuda à sua
exploração), contudo, pode ser destacada e vendida
separadamente, sem afetar o terreno.

• Pertença — Em termos negativos, é igual à coisa acessória em sentido


estrito (não pode haver uma ligação física com caráter de
permanência à coisa principal e a pertença não é um elemento da

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
coisa principal nem do ponto de vista físico, nem do ponto de vista
jurídico — é tratada com autonomia.)
• Pluralidade vinculada entre si juridicamente.
o Não são parte integrante, nem componente — Não há ligação
física com caráter de permanência.
o Não são elemento constitutivo da coisa principal — Não se
trata a coisa como uma só, juridicamente. Não são uma coisa
complexa.

Do ponto de vista positivo, também há uma afetação


económica/estética/jurídica à coisa principal.

As diferenças estabelecem-se no facto de que se afetarmos a


pertença da coisa principal, estamos a comprometer o bom
funcionamento da coisa principal.

A pertença tem uma ligação muito mais forte. A pertença é feita em


função da coisa principal e a coisa principal precisa da pertença para
que ela funcione devidamente. Assim, tem-se entendido que o
regime da pertença não pode ser igual ao regime da coisa acessória
em sentido estrito.

Consequentemente, sempre que se procede à alienação da coisa


principal, essa alienação engloba a pertença.

Em termos positivos, há uma afetação económica, estética e jurídica


à coisa principal. Não há ligação física com caráter de permanência.
Contudo, se afetarmos a pertença da coisa principal, estamos a
comprometer a existência/funcionamento/utilidade da coisa
principal.
O regime da pertença não pode ser igual ao regime da coisa acessória
em sentido estrito. Sempre que se procede à alienação da coisa
principal, essa alienação envolve a pertença.
Exemplo: comando da televisão — coisa autónoma que tem uma
ligação funcional estreita à televisão. Se uma pessoa comprar a
televisão, fatalmente que também tem direito ao comando da
televisão.
Ao se retirar o comando, está-se a comprometer gravemente o
funcionamento da televisão.

• Frutos (naturais/civis; percebidos/por perceber) — Produzido pela


coisa principal com caráter periódico.
o 2 tipos de frutos:
▪ Frutos naturais — Produção natural. São produzidos
fisicamente pela coisa principal. Exemplo: a macieira
produz as maçãs.
▪ Frutos civis — Produção jurídica. Ex: renda — se eu
for proprietário de um imóvel e o arrendar,

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periodicamente esse imóvel vai gerar um fruto — a
renda.
o 2 situações dos frutos:
▪ Frutos percebidos — Já houve separação. Já foram
recolhidos/recebidos.
• Exemplo: se apanhar a maçã/receber a
renda, o fruto já é percebido.
▪ Frutos por perceber — Ainda não foi
colhido/separado/recebido. Ainda está ligado à coisa
principal.

• Produtos — Também é algo produzido pela coisa principal, mas não


é produzido periodicamente.
o Exemplo: um terreno pode ter minérios, mas eles não vão
voltar a ser produzidos. Não se trata de uma produção
periódica.

• Benfeitorias (necessárias, úteis ou voluptuárias) — As benfeitorias


são as despesas que se fazem com a conservação ou com a melhoria
da coisa. As benfeitorias podem não ser coisas. Podem implicar
coisas, mas também podem não o fazer.
o Benfeitorias necessárias — São despesas necessárias, pois
têm o propósito de reabilitar/conservar a coisa.
o Benfeitorias úteis — Não vêm reabilitar/conversar a coisa,
mas acrescem valor económico à coisa.
o Benfeitorias voluptuárias — Trazem prazer ao titular da
coisa, mas não eram necessárias nem lhes acresce valor. São
feitas para o interesse do titular da coisa. Ex: mudar a cor da
casa, quando não está a precisar de pinturas para a sua
conservação.

4. Sujeitos - Noções Gerais:

4.1. Personalidade jurídica


CONCEITOS FUNDAMENTAIS

➔ Personalidade jurídica — artigos 66.º e 160.º do CC


• Suscetibilidade de ser titular de direitos ou estar adstrito a obrigações. É uma qualidade
de poder ser titular de direitos e estar adstrito a obrigações — é a qualidade de ser
considerado pessoa (centro de imputação de situações jurídicas) para o Direito.

4.2. Capacidade jurídica

Os próximos são conceitos paralelos que têm de ser tratados em simultâneo. Temos de avaliar qual a
capacidade dos sujeitos têm personalidade jurídica (e averiguar qual o grau de capacidade de gozo e
de capacidade de exercício de cada sujeito).

o Capacidade de gozo: medida de direitos (situações ativas)/obrigações (situações


passivas) a que uma pessoa é suscetível. Analisa-se a quantidade da titularidade de

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
direitos/adstrições. Quantos direitos, quantas obrigações posso ser titular ou posso
estar adstrito?
▪ Genérica — Dizemos que alguém é dotado de uma capacidade de gozo
genérica quando pode ser titular da generalidade dos direitos ou estar
adstrito à generalidade dos deveres.
• As pessoas singulares gozam de uma capacidade de gozo genérica.
▪ Específica — Alguém só pode ser titular de certos direitos/adstrito a certas
obrigações.
• É o que acontece com as pessoas coletivas; só podem ser titulares dos
direitos/adstritas às obrigações necessários à prossecução do seu fim.

Se quisermos falar da situação jurídica em concreto, averiguamos se há


capacidade de gozo particular ou não. No caso, os sujeitos podem ter
capacidade de gozo genérica, mas não ter capacidade de gozo particular
naquela situação em concreto. E os sujeitos podem ser dotados de
capacidade de gozo específica e poder ter uma capacidade de gozo particular
para aquela situação em específico.
▪ Capacidade de gozo particular — O foco da minha atenção não é o sujeito,
mas sim a situação jurídica em concreto. Questiona-se: “Relativamente
àquela situação, aquele sujeito pode ser titular de um direito ou estar adstrita
a certa vinculação?” Se a resposta for sim, há capacidade de gozo particular.
Vê-se se o sujeito pode ser titular daquela situação.
• Exemplo: A, de 15 anos, pode casar? Não. Não há capacidade de gozo
particular.
• Exemplo #2: A, de 15 anos, pode comprar um telemóvel? Sim. Há
capacidade de gozo particular.

o Capacidade de exercício: Medida de direitos e vinculações que uma pessoa pode


exercer, a nível pessoal e livremente. É ver se as pessoas podem exercer os seus
direitos/obrigações sem precisar de mais ninguém.
▪ Genérica — Os sujeitos podem, por si só, pessoal e livremente, exercer a
generalidade dos seus direitos/obrigações, sem precisar de mais ninguém.
• É o que acontece com a maior parte dos adultos.
▪ Específica — Só podem exercer/cumprir certos direitos certas vinculações, de
forma pessoal e livremente, sem precisar de mais ninguém. Não podem
exercer a generalidade de direitos/obrigações sozinhos.
• É o que acontece com os menores.

▪ Particular — Olhamos para a situação jurídica. Questionamos: “Esta pessoa,


pode exercer/cumprir, por si só, pessoal e livremente, este direito/obrigação
nesta situação?” Se a resposta for sim, há capacidade de exercício particular.
É saber se aquela pessoa pode exercer aquele direito/obrigação naquela
situação jurídica em concreto.

1. Incapacidade de gozo: Medida de direitos e vinculações a que uma pessoa não é


suscetível (não pode ser titular/estar adstrita).
▪ Genérica — A pessoa, na generalidade, não pode ser titular da generalidade das
situações jurídicas — titular dos direitos, ou estar adstrita às vinculações.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o Isto não existe para as pessoas singulares. Discute-se se se aplica às
pessoas coletivas.
▪ Específica — A pessoa não pode ser titular de certos direitos (mas não da
generalidade) ou estar adstrita a certas vinculações (mas não da generalidade).
Isto não existe para as pessoas singulares. Discute-se se se aplica às pessoas
coletivas.
o É o caso dos menores.

▪ Particular — A pessoa não pode ser titular daquele direito ou daquela obrigação
em específico.

2. Incapacidade de exercício: Medida de direitos e vinculações que uma pessoa não pode
exercer/cumprir, por si só, pessoal e livremente.
▪ Genérica — O sujeito não pode exercer/cumprir a grande generalidade dos
direitos/obrigações, por si só, pessoal e livremente.
o É o que acontece com os menores.
▪ Específica — Apenas alguns direitos/obrigações não podem ser
exercidos/cumpridos pelo sujeito, por si só, pessoal e livremente.
o Caso do maior acompanhado (mais de 18 anos, mas que sofre de alguma
patologia, por exemplo demência, que pode por isso ter uma
incapacidade de exercício específica).

▪ Particular — A pessoa não pode exercer/cumprir aquele direito/obrigação em


específico, por si só, pessoal e livremente.

Formas de suprimento da incapacidade de exercício:

• Representação — Caracteriza-se por haver uma substituição de vontades. Na situação, há um


representando e um representante. A vontade do representante substitui a vontade do
representado.
• Assistência: Não há substituição de vontades. A vontade do terceiro que vai ajudar o incapaz
não se substitui à do incapaz, mas há uma conjugação de vontades. O direito para ser exercido
ou a obrigação para ser cumprida, é necessário que quer o incapaz, quer o assistente,
cheguem a acordo. O incapaz pode exercer o direito, mas não o pode fazer livremente –
precisa da anuência do seu assistente. Pode dar-se em 3 momentos diferentes (e pode ser
tácita, em algumas situações – no caso, em casos informais).
o Autorização (antes do ato) — Quando é necessária uma anuência prévia ao ato. O
incapaz pode praticar o ato, mas para que esse ato seja válido, precisa que o seu
assistente diga que sim (autorize).
o Comparticipação (durante o ato) — A lei exige que o ato seja praticado em conjunto,
quer pelo incapaz, quer pelo assistente. O incapaz não pode praticar o ato sozinho.
o Aprovação ou ratificação (após o ato) — A anuência do assistente dá-se depois do
ato praticado. O incapaz pratica o ato, mas esse ato não vai produzir efeitos enquanto
o assistente não concorde.

(A incapacidade de gozo não é passível de ser suprida).

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Meios de suprimento da incapacidade de exercício: situações jurídicas atribuídas ao terceiro que vai
suprir a incapacidade do incapaz. É preciso que o assistente seja dotado de um estatuto para estar
nessa posição.
• Responsabilidades parentais (meio principal) — No passado, dava pelo nome de poder
paternal. Agora chama-se “responsabilidades parentais” para salientar a carga passiva da
situação (de responsabilidade, pois a atuação dos pais tem de visar atender aos interesses
legítimos dos filhos e o termo “poder” salientava uma ideia ativa; uma ideia que os pais
podiam fazer o que quisessem) e a igualdade entre pai e mãe.
• Tutela (meio subsidiário) — As responsabilidades parentais e a tutela não existem ao mesmo
tempo. Só vamos à tutela na impossibilidade de haver responsabilidade parental.

• Administração de bens (meio complementar) — Nem sempre existe, mas quando existe,
existe simultaneamente ou com as responsabilidades parentais, ou com a tutela. É uma figura
complementar, porque se junta para complementar a tutela ou as responsabilidades
parentais.

4.3. Legitimidade

➔ Legitimidade (posição específica de alguém perante uma situação, que lhe vai permitir
praticar o ato) vs. Titularidade (nexo que liga o sujeito à respetiva situação, nomeadamente,
ao direito; é um nexo de pertença):

• Estas figuras costumam andar de mãos dadas, mas há casos em que há uma e não há
outra. Há casos em que há legitimidade, mas não há titularidade. E há casos em que há
titularidade, mas não há legitimidade (exemplo: contitularidade; há titularidade, mas não
têm legitimidade total para atuar sozinhos).
• Legitimidade direta — Há legitimidade que provém de titularidade. Andam de mãos
dadas.
• Legitimidade indireta — Confere-se legitimidade a alguém que não é o titular.

➔ Ilegitimidade — Vício, patologia, doença do ato. A ilegitimidade gera, em regra geral, a


nulidade do ato.

4.4. Esfera jurídica

➔ Esfera jurídica: conjunto das situações na titularidade da pessoa num determinado momento.
É uma fotografia de todas as situações (todos os direitos que somos titulares/obrigações a
que estamos adstritos) num determinado momento. A esfera jurídica está sempre a ser
alterada.
• Hemisfério não patrimonial — As situações não são suscetíveis de avaliação pecuniária.
o Exemplo: direito à vida, direito de propriedade intelectual quanto à ideia
propriamente dita; direito à imagem enquanto bem de personalidade sem mais.
• Hemisfério patrimonial — As situações são suscetíveis de avaliação pecuniária.
o Exemplo: direito de propriedade; direito de propriedade intelectual quanto ao
valor da ideia; direito à imagem enquanto objeto suscetível de ser avaliado em
dinheiro.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
2ª PARTE: DIREITO DAS PESSOAS

5. PESSOAS SINGULARES

5.1. Começo da personalidade jurídica


5.2. Nascituros

PESSOAS SINGULARES
Início e Termo de Personalidade Jurídica

Existem dois tipos de pessoas no nosso ordenamento:


— Pessoas singulares
— Pessoas coletivas

➔ A personalidade jurídica de uma pessoa singular inicia-se com a conceção ou com o


nascimento completo e com vida?

A nossa jurisprudência resolveu questionar o regime vigente – hoje em dia tem-se dúvidas sobre o
que vigora e não apenas quanto ao que devia vigorar.

NASCITURO ≠ CONCETURO

• Conceito de nascituro:
o Nascituro em sentido amplo – engloba o conceturo e o nascituro em sentido estrito.
o Nascituro em sentido estrito – pessoa que já foi concebida, mas que ainda não
nasceu.
▪ O problema da personalidade jurídica coloca-se face aos nascituros em
sentido estrito (período que vai desde o início da gravidez e o nascimento
completo e com vida).
• Conceito de conceturo — Pessoa que ainda não foi concebida, mas que se espera virem a ser
concebidos. Não há dúvida que não tenham personalidade jurídica.
o Exemplo: “os netos que virei a ter”.

Artigo 66.º do Código Civil


Começo da personalidade
1. A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.
a. Por isso, não havia dúvidas que só se adquiria a personalidade depois de se ter
nascido vivo e depois de se ter cortado o cordão umbilical (completo).
2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.
a. Daqui parte a ideia de que a lei confere direitos ao nascituro. O conceito de
nascituro que aqui está é em sentido amplo (abrange o conceturo).

Quais são estes direitos reconhecidos ao nascituro por lei?


Código Civil:
a) Artigo 952.º CC — é possível fazer-se doações a nascituros e a conceturos.
b) Artigo 1885.º CC — é possível haver perfilhação de um nascituro em sentido estrito.
c) Artigo 1878.º — os representantes legais podem ter de administrar um património de um
nascituro em sentido estrito.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
d) Artigos 2033.º e 2240.º — é possível haver sucessão de nascituros e sucessão testamentária
de nascituros e conceturos (posso fazer um testamento, deixando parte da herança aos meus
futuros netos).

As alíneas a) e d) não são grande ajuda para o nosso problema, porque estabelecem o mesmo regime
para nascituros e para conceturos e assim não nos permitem tirar uma conclusão quanto à
personalidade jurídica do nascituro, pois, se estes artigos fundamentassem a personalidade jurídica
do nascituro, também o fariam para o conceturo (o que é um absurdo).
As alíneas b) e c) vêm dar a entender que o nascituro em sentido estrito já existe e pode ter um
representante e um património — argumentos a favor para haver personalidade jurídica do nascituro
em sentido estrito.

Este problema tem duas dimensões:


• 1ª dimensão — Faz ou não sentido reconhecer personalidade jurídica ao nascituro?
o Atualmente, cada vez mais se vem responder que sim.
▪ A CRP, no seu artigo 24.º, diz que “a vida humana é inviolável” e não distingue
fases da vida humana; apenas trata a vida.
▪ Não faz sentido o legislador vir distinguir fases de vida humana
quando a CRP não o faz.
▪ Está demonstrado cientificamente que a vida humana começa com a
conceção — se já há vida, também deve haver dignidade.
▪ Qual é o fundamento material para tratar de forma diferente a vida intra-
uterina da vida extra-uterina?
▪ O Código é de 1966; na altura, os meios técnicos não eram
semelhantes aos atuais e demonstrar que havia nascituro e quando
foi concebido era difícil.
o Assim, é muito possível que o legislador tenha querido
mesmo o que expressou no artigo 66.º, pois até ao
nascimento completo e com vida havia uma grande
insegurança. Até haver um bebé, era difícil provar que havia
pessoa.
▪ Atualmente, demonstrar a vida intra-uterina é fácil. Assim, questiona-
se se faz sentido tratar de forma diferente a vida intra-uterina da vida
extra-uterina.
o Haverá liberdade de conformação por parte do legislador? O
legislador tem liberdade de decidir, para efeitos jurídicos, em
que momento começa a vida e em que momento é que há
personalidade jurídica ou há aqui uma decisão vinculada?
▪ Cada vez mais há a ideia de que basta haver vida,
para que o legislador esteja vinculado a declarar que
há personalidade jurídica.
o Problema: artigo 66.º CC — este artigo vigora ou é inconstitucional?
▪ Hoje em dia, há tentativas de interpretar o artigo 66.º de forma diferente,
para permitir defender que a personalidade jurídica se inicia com a conceção.

• 2ª dimensão — É esse o regime previsto no artigo 66.º? Como é que se deve interpretar este
artigo?

Interpretações possíveis do artigo 66.º do CC:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
a) Visão tradicional — a personalidade jurídica só se adquiria com o nascimento completo e com
vida.

b) Graus de personalidade — É a ideia de converter o conceito de personalidade num conceito


quantitativo. O conceito é qualitativo (é uma qualidade que se tem – ou posso ser titular de
direitos e estar adstrito a deveres ou não posso). A ideia de que há graus de personalidade –
mínima, média, máxima – atribui ao nascituro um grau de personalidade mínimo. O artigo
66.º trataria da personalidade plena – a aquisição da personalidade plena estaria dependente
do nascimento completo e com vida, mas a aquisição de personalidade mínima nasceria com
a conceção.
o É uma ideia perigosa, pois isto significa que haveriam pessoas de grau 1, grau 2, grau
3 – isto pode ser feito com a vida extra-uterina, sendo perigoso para pessoas que
sofrem de patologias mentais graves, para pessoas dependentes, etc.
o Num regime como o português, não se pode dizer que há graus de personalidade – a
personalidade é igual para todos.

c) Redução teleológica do artigo 66.º/2 CC — Esta interpretação foge a esta crítica quantitativa
da personalidade. Vem dizer que temos de distinguir direitos patrimoniais de direitos não
patrimoniais e que o artigo 66.º/2 em rigor só falaria de direitos patrimoniais. Ou seja, com a
conceção haveria a aquisição de personalidade jurídica para a titularidade de direitos
pessoais, mas a aquisição de personalidade jurídica para a titularidade de direitos patrimoniais
estaria dependente do nascimento completo e com vida.

d) Indistinção conceptual entre personalidade e capacidade jurídica — Esta visão (usada no


acórdão do STJ de 2014, que veio marcar uma mudança na jurisprudência) vem sustentar que
há uma falha na redação do artigo 66.º CC. Até ao Código de Seabra (anterior ao atual), o
legislador não distinguia entre personalidade jurídica e capacidade jurídica. Entretanto, veio-
se a descobrir que esta distinção entre a qualidade (personalidade) e a quantidade
(capacidade) era aconselhável. O legislador, quando redigiu as normas, como não estava
muito familiarizado com estes conceitos, enganou-se, escrevendo personalidade, quando na
realidade queria falar de capacidade.
Para estes autores, o artigo 66.º, em rigor, não fala de personalidade, mas sim de capacidade.
O que estaria dependente do nascimento completo e com vida era a aquisição da capacidade.
A personalidade dar-se-ia com a conceção.

o Dentro desta visão, temos duas sub-hipóteses – pretendem distinguir qual o efeito
do nascimento:
▪ Condição suspensiva — Com a conceção nasce a pessoa jurídica, mas não há
capacidade jurídica; essa capacidade só se adquire com o nascimento
completo e com vida. Não há efeitos até ao nascimento – estão suspensos.
▪ Condição resolutiva — Com a conceção, adquire-se a personalidade jurídica
e a capacidade, mas a capacidade pode ser extinta retroativamente, se não
houver nascimento completo e com vida – a capacidade resolve-se/destrói-
se.

o Crítica: Olhando para o Código Civil, observamos que em momento algum o legislador
trocou as palavras e esta teoria aparece como um estratagema para defender um lado
do problema e não como interpretação do artigo em si.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
e) Interpretação conforme à Constituição — O artigo 24.º CRP não distingue fases da vida e não
distingue entre vida intra-uterina e vida extra-uterina. O artigo 66.º tem de ser interpretado
face à CRP, que é posterior ao Código Civil e se a CRP tutela a vida intra-uterina, o Código Civil
tem de seguir essa visão e o artigo 66.º tem de ser lido como “a personalidade começa com a
conceção”.

f) Teoria do ónus da prova — O artigo 66.º em rigor não fala de personalidade jurídica
verdadeiramente (não diz quando se adquire), trata apenas do ónus da prova. Segundo esta
visão, a personalidade jurídica dá-se com a conceção, mas entre a conceção e o nascimento,
cabe àquele que invoca a personalidade jurídica do nascituro provar que há nascituro. Depois
do nascimento completo e com vida já não é preciso provar porque a própria lei diz que há
personalidade jurídica.
O artigo 66.º é visto como uma norma que prova que há personalidade após o nascimento.
Até essa fase caberia àquele que invoca demonstrar a existência da personalidade/da vida.

g) Personalidade resolúvel — Com a conceção, adquire-se a personalidade. A personalidade


jurídica é uma qualidade inerente ao ser humano – o ser humano forma-se com a conceção e
aí há personalidade. Esta personalidade pode ser extinta retroativamente, se não houver
nascimento completo e com vida. Se houver, ela consolida-se; se não houver, tudo se passa
como se não tivesse existido – é resolúvel.

5.3. Termo da personalidade jurídica

Termo da personalidade jurídica

Artigo 68.º do Código Civil


Termo da personalidade

1. A personalidade cessa com a morte (cerebral).


a. Dá-se a morte quando o tronco cerebral deixa de funcionar.
2. Quando certo efeito jurídico depender da sobrevivência de uma a outra pessoa, presume-se,
em caso de dúvida, que uma e outra faleceram ao mesmo tempo.
a. Princípio da COMORIÊNCIA
i. Exemplo: Vão duas pessoas num automóvel e uma é herdeira da outra; há um
acidente e morrem as duas, pelo que não se consegue determinar quem
morreu primeiro. Se o pai tiver morrido primeiro, a herança chegou a entrar
para o filho e é preciso descobrir quem são os herdeiros do filho. Se morreu
o filho primeiro, a herança do filho foi para o pai e é preciso descobrir quem
são os herdeiros do pai.
ii. Nestes casos, em que não se consegue determinar qual deles morreu
primeiro e quem serão os herdeiros, a lei presume que morreram ao mesmo
tempo – isto significa que nenhum deles herdou um do outro.
3. Tem-se por falecida a pessoa cujo cadáver não foi encontrado ou reconhecido, quando o
desaparecimento se tiver dado em circunstâncias que não permitam duvidar da morte dela.
a. Nestes casos, a morte tem de ser declarada por um juiz.

Morte declarada ≠ morte presumida

Morte declarada:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Regra: A morte tem de ser declarada. É necessária uma declaração de óbito; em regra, tem
de ser passada por um profissional de saúde (normalmente, um médico) que atesta que, de
facto, aquela pessoa está morta.
• Em certas situações, isto não é possível, desde logo, porque não há corpo.
o Exemplo: acidente de aviação – o avião fica completamente destruído e não há
corpos.
o O artigo 68.º/3 CC estabelece que quando se dá um acidente cujas circunstancias não
permitam duvidar da morte da pessoa e o cadáver não foi encontrado, a declaração
tem de ser passada por um juiz. O Tribunal tem de declarar que, naquelas
circunstâncias, a pessoa certamente morreu, para que se desencadeiem os efeitos da
morte.

• Morte presumida: o que está em causa é o desaparecimento de alguém, sem qualquer tipo
de contacto, durante x tempo (que varia entre 5 a 10 anos, consoante as idades).
o Também o Tribunal que vem presumir a morte.
o Esta morte presumida é relevante para efeitos patrimoniais – assim, pode abrir-se o
processo sucessório, para os bens não ficarem congelados indefinidamente.
o Não se diz que a pessoa morreu; presume-se que a pessoa morreu e aplica-se o regime
como se ela tivesse morrido.

5.4. Incapacidades:

5.4.1. Noção.

5.4.2. Causas.

5.4.3. Efeitos.

5.5. Menoridade

MENORIDADE

• Capacidade de gozo genérica — O menor pode ser titular da generalidade dos direitos ou
estar adstrito à generalidade dos deveres.

• Incapacidade de gozo específica — Alguns direitos/deveres não pode ser titular/estar


adstrito.
o Não pode votar, não pode tirar a carta de condução, não pode fazer um testamento,
etc.
o Casamento:
▪ Menor inferior a 16 anos – capacidade específica de gozo.
▪ A partir dos 16 anos – já goza de capacidade de gozo para casar.

o A incapacidade de gozo não é suprível — os direitos/deveres de que o menor não


pode ser titular/estar adstrito, não pode. Tem de esperar pelos 18 anos.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Incapacidade de exercício genérica — a regra é que o menor não pode exercer a generalidade
dos direitos/cumprir as suas obrigações por si só, pessoal e livremente.

Como os direitos/deveres não ficam congelados, até à maioridade, é preciso encontrar formas
de suprir esta incapacidade de exercício.

o Formas de suprimento:

▪ Regra: representação legal — é a forma normal de suprir a incapacidade de


exercício do menor. É através da substituição de vontades. O menor será o
representado (incapaz) e haverá um representante que vai exercer o direito
ou cumprir a obrigação do menor, sempre em seu nome e interesse.

▪ Casos específicos: assistência.

▪ Exemplo #1: Casamento — até aos 16 anos, o menor padece de


incapacidade de gozo. Depois dos 16 anos, pode casar, mas haverá
incapacidade de exercício. A forma de suprimento não é a
representação, pois isso implicava que quem celebrasse o contrato
de casamento fosse o representante. Assim, em relação ao
casamento, a forma de suprimento reconhecida por lei é a assistência
por via da autorização. O menor tem de ser autorizado pelo
representante (neste caso, pelo assistente). A falta de autorização
deve ser suprida pelo conservador do Registo Civil – o casamento
tornar-se-á irregular.
▪ Exemplo #2: Contrato de trabalho — o nosso Código de Trabalho
estabelece um regime para contratos de trabalho celebrados com
menores. Se estivermos a falar com um menor com um mínimo de 16
anos, que já completou a escolaridade obrigatória (pouco provável)
ou que se encontre a estudar; o menor pode, por si só, celebrar o
contrato de trabalho – não precisa da autorização dos
representantes. Os representantes podem opor-se.
Se estivermos a falar de um menor com menos de 16 anos, ou um
menor com um mínimo de 16 anos, que não esteja a estudar, é
preciso a autorização do representante para celebrar o contrato de
trabalho – mais um caso de assistência por via da autorização.

o Meios de suprimento:
▪ Responsabilidades parentais (meio principal) — É o que se tenta aplicar em
primeiro lugar. A regra é que as responsabilidades parentais cabem a ambos
os progenitores e qualquer um deles pode agir, sem necessidade do outro,
exceto quando a lei imponha a atuação de ambos ou quando o ato seja muito
importante, pois aí também têm que agir ambos.

▪ Tutela (meio subsidiário) — Pressupõe a existência de um tutor (o tribunal


designa um tutor, normalmente da família) e pressupõe a existência de um
Conselho de Família (composto pelo Ministério Público e por dois vogais,
normalmente também da família). O regime do tutor é decalcado das
responsabilidades parentais; o que podem ou devem fazer é mais ou menos
o mesmo. Vai-se buscar a tutela quando não é possível haver
responsabilidades parentais:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Os pais já morreram.
▪ Os pais são incógnitos.
▪ Há uma incapacidade de facto prolongada – os pais estão incapazes
há mais de 6 meses. (Ex: coma depois de um acidente de viação)
▪ Os pais foram inibidos das responsabilidades parentais.

▪ Administração de bens (meio complementar) — Normalmente, o menor não


tem um administrador de bens, mas pode ter. A administração de bens
acresce ou às responsabilidades parentais, ou à tutela (daí ser um meio
complementar). Compete a esta figura administrar o património do menor.

o Atos do menor viciados por incapacidade de exercício: O que acontece quando o


menor pratica um ato, não tendo capacidade para o fazer?
▪ Vício — Incapacidade de exercício.
▪ Desvalor do ato: anulabilidade (artigo 125.º CC – regime especial de
anulabilidade).
▪ Juízos de confiança do legislador — ideia de que a pessoa que
celebrou o contrato, por causa das circunstancias (ser menor), não
tem maturidade e experiência necessária e não deve ter sabido
acautelar os seus interesses. Assim, permite-se que o menor destrua
este ato.
▪ Titularidade do direito de anulação — cabe ao menor.
▪ Legitimidade — O direito de anulação cabe ao menor. Mas quem é que o
poderá exercer?
▪ Durante a menoridade — o direito de anulação compete ao
representante legal (pais, tutor ou administrador de bens, se disser
respeito ao património). O representante pode exercer ou pode
confirmar.
▪ Depois da menoridade — É exercido pelo recém-maior.
▪ Se o menor morrer e o direito ainda não tiver caducado — o direito
será herdado pelos herdeiros, pelo que lhes irá caber a titularidade e
a legitimidade para exercer o direito.

▪ Prazo:

▪ Se o ato não foi cumprido — Não há prazos até o ato ser cumprido.

▪ Se o ato já foi cumprido:


o Se o que está em causa é o exercício do direito por parte do
representante, o prazo é de um ano a contar do
conhecimento do vício – a partir da data em que o
representante legal tem conhecimento da prática desse ato,
tem 1 ano para pedir a anulação do ato.
▪ Assim que o maior tiver 18 anos, os pais já não
podem pedir a anulação do ato, pois os poderes de
representação cessam (mesmo que ainda estejam
dentro do período de um ano).
o O recém-maior pode anular o ato no prazo de 1 ano a contar
da data da sua maioridade. Mas só se:

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ O ato não pode ter sido anulado previamente pelo
seu representante legal (o direito ainda existe na
esfera jurídica do recém-maior);
▪ Se o ato não tiver sido previamente confirmado pelo
representante legal – se o representante legal anulou
ou confirmou, o direito de anulação do menor
extingue-se.
o Os herdeiros podem anular o ato no prazo de 1 ano a contar
da morte do menor.

▪ Confirmação — Quando há um direito de anulação, também há o direito de


emitir uma declaração a confirmar a vontade do ato.
▪ O poder de confirmar compete ao menor, mas os representantes
legais também o podem exercer, mas SÓ SE pudessem praticar o ato.
▪ Há alguns atos que os representantes legais podem praticar
livremente e, nesse caso, podem confirmar livremente.
▪ Contudo, há outros atos que precisam de prévia autorização do
Ministério Público – atos que envolvam a alienação dos bens do
menor.
▪ Artigos 1888.º e seguintes — RESPONSABILIDADES PARENTAIS
RELATIVAMENTE AOS BENS DO MENOR: tratam dos atos que os pais
podem fazer livremente ou se precisam de autorização do Ministério
Público (tanto para realizar, como para confirmar o ato).

o Dolo do menor:
▪ Âmbito de aplicação do artigo 126.º CC — “Não tem o direito de invocar a
anulabilidade o menor que para praticar o acto tenha usado de dolo com o
fim de se fazer passar por maior ou emancipado.”
▪ Está em causa o chamado dolo artimanha – quando o menor finge ter
capacidade de exercício genérica (ser adulto), para enganar a contraparte, de
modo a celebrar um ato.
▪ Pressupostos para que se aplique o regime do dolo do menor:
▪ O menor tem que se fazer passar por maior ou emancipado.
▪ A contraparte tem de acreditar que o menor era maior ou
emancipado.
▪ Um homem médio, colocado na situação da contraparte do menor,
também precisava de ter acreditado que o menor seria maior ou
emancipado – não basta uma crença subjetiva da contraparte.
▪ Quando o dolo é bem feito, a consequência é que o menor não vai poder
anular o ato, por muito que o ato tenha um vício (incapacidade de exercício
do menor).
▪ Este é um dos casos da figura do tu quoque – a lei estabelece um regime
especial para uma figura de abuso do direito; o direito de anulação é
conferido ao menor, em geral, porque se entende que é a parte mais fraca (a
sua tenra idade e imaturidade precisam de ser protegidas). Se estamos
perante um menor que faz de propósito para enganar o próximo e bem, deixa
de haver razão para lhe permitir anular o ato; a justificação para a concessão
do direito de anulação deixa de existir.
▪ Será que os representantes legais e os herdeiros (no caso do menor morrer)
não poderão anular?

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• Os representantes legais, em regra, têm legitimidade para praticar o ato
de anulação, mas não têm titularidade do direito de anulação. O
representante exerce os direitos do representado; se o representado não
tem o direito de anular, então, o representante também não poderá
anular, pois não há nenhum direito a ser exercido.
• O direito de anulação é um direito que está na titularidade do menor; se,
por causa do dolo, ele não tem o direito de anular, se ele morrer, esse
direito não integra a sua herança. Se não integra a sua herança, o herdeiro
não vai poder herdar e, consequentemente, não vai poder anular.
• Apesar da letra da lei, no artigo 126.º CC falar apenas do menor, o que se
deve retirar deste artigo é que, em caso de dolo de menor, o ato é
anulável, mas não pode ser anulado, nem pelo menor, nem pelos
representantes legais, nem pelo herdeiro.

• Capacidade de exercício específica — O menor goza de capacidade de exercício específica,


visto que é muito limitada. O que não cai no âmbito da capacidade de exercício específica, faz
parte da sua incapacidade de exercício genérica.
o Direitos pessoais — Há capacidade específica de exercício quanto aos direitos
pessoais e à maior parte dos direitos de personalidade.
o Artigo 127.º do Código Civil — estabelece 3 situações-tipo em que o menor tem
capacidade de exercício:
a. Os atos/negócios relativos à administração ou disposição de bens que o maior
de 16 anos haja adquirido por seu trabalho.
1. Menor com 16 anos, que estuda — celebra o contrato de trabalho por si
só pessoal e livremente.
2. Menor com 16 anos, que não estuda — precisa de autorização do
representante legal.
3. Menor com menos de 16 anos — precisa de autorização do representante
legal.

▪ Admitindo que estamos perante um caso em que não há patologia


nenhuma (ou seja, que o menor teve autorização ou capacidade de
exercício para celebrar o contrato de trabalho), todo o produto do
trabalho do menor (salário, etc) vai poder ser administrado e disposto
por este.

b. Os negócios jurídicos próprios da vida corrente do menor que, estando ao


alcance da sua capacidade natural, só impliquem despesas, ou disposições de
bens, de pequena importância;

Esta capacidade específica de exercício só se verifica se estivermos perante estes


3 requisitos cumulativos:

1. Tem de estar em causa um negócio que faça parte da normalidade da


vida do menor (ex: ir comprar um bolo à pastelaria).

2. Ao alcance da sua capacidade natural — a lei não pode fazer uma lista
dos atos que o menor pode celebrar; a nota da capacidade natural é
propositada, pois não se podem tratar da mesma forma um recém-

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nascido e um menor de 17 anos; à medida que o menor vai ganhando
idade, vai tendo mais consciência e mais maturidade, pelo que vai
conseguir avaliar mais atos (se são bons ou maus e se deve ou não
praticar), ao longo dos anos.
▪ Isto é feito, de modo a que a transição para a fase adulta seja mais
gradual (olha-se para a idade e para a capacidade do menor).

3. Impliquem a despesa ou disposição de bens de pequena importância —


este critério é visto de forma objetiva e não subjetiva.
À luz do princípio da igualdade, tem de se aferir este requisito de um
ponto de vista objetivo, pois, se fosse segundo uma perspetiva subjetiva,
o menor rico teria uma capacidade específica de exercício muito maior do
que o menor pobre, pois, para ele, uma pequena importância seria
muitíssimo superior à de uma pessoa não-rica.

c. Os negócios jurídicos relativos à profissão, arte ou ofício que o menor tenha sido
autorizado a exercer, ou os praticados no exercício dessa profissão, arte ou
ofício.

Esta alínea comporta duas dimensões (podem ser alternativas ou cumulativas):


1. Se associado àquela profissão, houver a necessidade de praticar certos
negócios, então o menor terá capacidade para praticar esses negócios
que são instrumentais para a profissão.
▪ O menor está a exercer uma profissão, uma arte ou um ofício e
para o exercício dessa profissão é necessário realizar um negócio
jurídico instrumental – é algo que não é necessário para exercer
a profissão, mas é um requisito acessório (exemplo: abrir uma
conta no banco para receber o salário por parte da entidade
patronal; contrato de seguro, etc).

2. Muitas vezes, o próprio trabalho que o menor está a exercer implica a


prática de atos/negócios jurídicos.
▪ Exemplo: muitos menores que trabalham em part-time à frente
do balcão (na caixa do supermercado, em lojas de roupas, etc),
pelo que têm como função praticar atos de compra e venda.

• Cessação da incapacidade de exercício derivada da menoridade:


o Maioridade — O dia de aniversário dos 18 anos da pessoa é o seu último dia da
menoridade. Aplicam-se as regras dos prazos e os prazos só começam a contar a partir
do dia seguinte.
▪ João faz 18 anos no dia de hoje. Terá o João, hoje, capacidade genérica de
exercício? Não. A sua capacidade genérica de exercício só começará amanhã.
▪ Do ponto de vista da capacidade de exercício, João ainda tem uma
incapacidade genérica de exercício no dia do seu aniversário. Se João fizer
alguma coisa como se tivesse capacidade genérica de exercício, esse ato está
viciado por incapacidade de exercício e gera anulabilidade.

o Emancipação (artigo 132.º CC) — A emancipação significa que alguém é menor, mas
vai ter um estatuto de maior ou semelhante a tal. É uma forma de não cessar a

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menoridade (pois a idade continua a ser inferior a 18), mas de cessar a incapacidade
genérica de exercício.
▪ Em Portugal, só há uma maneira – o casamento de menores com 16 ou 17
anos – têm capacidade de gozo para casar, mas não têm capacidade de
exercício; neste caso, a forma de suprimento é a assistência e não a
representação.
▪ É necessário que os pais ou o tutor autorizem o casamento, ou que
haja um suprimento da falta de autorização por parte do conservador
do Registo Civil.
▪ Emancipação plena (artigo 133.º CC) — Houve assistência (os pais/tutor
autorizaram o casamento ou houve um suprimento da falta de autorização
por parte do conservador) – o casamento é regular.
▪ O menor adquire capacidade genérica de exercício.
▪ Emancipação restrita — Não houve assistência, nem suprimento por parte do
conservador – o casamento é irregular. O menor continua casado, mas os
efeitos deste casamento resultam na emancipação restrita – há uma limitação
à capacidade de exercício adquirida pelo menor.
▪ Artigo 1649.º CC — o menor continua a ter uma incapacidade
genérica de exercício quanto à administração de bens que leve para
o casal ou que posteriormente lhe advenham por título gratuito até à
maioridade. Continua a ser considerado menor no que diz respeito as
atos de administração.
▪ Terá o menor capacidade para dispor desses bens?
o Atos de administração ≠ atos de disposição
o O nosso património é composto por elementos que podem
desempenhar funções diferentes no património – há
elementos que entram pretendendo estabilidade (não têm
de permanecer permanentemente, mas prevê-se que fiquem
durante muito tempo. Exemplo: quando adquirimos uma
casa, o direito de propriedade entra no nosso património,
considerando-se que vai ficar durante algum tempo) e há
elementos instáveis, que entram, esperando-se que saiam
logo de seguida (exemplo: compramos maçãs; esse direito de
propriedade entra no nosso património e sai logo de
seguida).
o Ato de administração — aquele que implica o uso, a fruição,
a conservação ou o melhoramento de um elemento estável
ou a alienação ou o consumo a título oneroso de um
elemento instável.
▪ Pintar as paredes do meu apartamento, comer as
maçãs que comprei, vender os frutos do meu pomar
– atos de administração.
o Atos de disposição — alienação de elementos estáveis ou a
alienação anormal de elementos instáveis (a titulo gratuito –
quando oferecemos algo).
▪ Vender uma casa – atos de disposição
▪ Vender um elemento instável faz com que ele saia e
entra o preço (ato de administração). Quando se
oferece um elemento instável, esse valor sai e não
entra nada em retorno; é um ato verdadeiramente
de alienação – assim está-se a dispor

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
verdadeiramente do património e não se está
puramente a administrá-lo.
▪ Então, poderá o menor praticar atos de disposição?
o 1.º argumento: não pode — Apesar de a lei apenas dizer atos
de administração, engloba também os atos de disposição; os
atos de disposição são muito mais onerosos que os atos de
administração; então, por maioria de razão – se a lei proíbe o
menos, tem de proibir o mais.
o 2.º argumento: pode — Esta norma é uma norma
sancionatória. O efeito normal do casamento regular leva a
emancipação plena; quando há irregularidade por falta de
assistência, vai-se punir civelmente e limitar os efeitos deste
casamento. As normas sancionatória estão sujeitas ao
princípio da legalidade; só existem as sanções previstas na lei
– não podemos aplicar sanções por analogia e não podemos
criar sanções. Se a lei só fala em atos de administração, se
aplicar aos atos de disposição, estou a violar o princípio da
legalidade.
▪ O princípio da legalidade nesta dimensão
sancionatória vem dizer que não há crime nem há
pena se não houver lei prévia.

Artigo 1649.º/2 CC — os bens subtraídos à Administração do menor (os bens que o menor levou para
o casamento ou que adquiriu a titulo gratuito depois do casamento) não respondem nem antes nem
depois da dissolução do casamento por dívidas contraídas por um ou ambos os cônjuges durante esse
período —> SEPARAÇÃO IMPERFEITA – dívidas anteriores ao casamento: os credores podem ir aos
bens separados e aos bens que o menor venha a adquirir; dívidas posteriores ao casamento: os
credores não podem ir satisfazer o seu crédito aos bens que os menores tinha anteriormente ao
casamento.

➔ MAIOR ACOMPANHADO

Maior acompanhado – Fato à medida (artigo 138.º e ss. CC)


Aplica-se a maiores que, de acordo com o padrão de normalidade, deviam ser aptos a reger a sua vida
e o seu património, mas por alguma razão, não têm capacidade.
Normalmente, aplica-se no fim da vida, para pessoas que têm demência, como Alzheimer’s, a pessoas
que têm patologia grave do foro psiquiátrico ou pessoas que têm um certo tipo de deficiências

Até 2018, havia um esquema dual rígido:


• Casos mais graves — aplicava-se a figura da interdição: incapacidade genérica de exercício.
• Casos menos graves — aplicava-se a inabilitação: incapacidade específica de exercício.

Atualmente, faz-se um fato à medida. Por isso, o regime é vago e só se percebe verdadeiramente o
alcance desta figura daqui a uns anos, quando começar a ser mais aplicada.

A medida aplicada chama-se acompanhamento.


Fundamentos:
• Razões de saúde — a lei é vaga, mas maior parte das vezes, o que está em causa são patologias
do foro psiquiátrico.

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• Deficiência — no fundo, é um resquício do que estava previsto no regime anterior para a
interdição ou inabilitação, que eram os casos de surdez, mudez ou cegueira verdadeiramente
incapacitante.
• Desvios comportamentais — está pensado para situações como toxicodependência,
alcoolismo, prodigalidade (ser pródigo é demonstrar não ser capaz de gerir património –
gastar mais do que se têm, muitas vezes associado ao vício do jogo).

➔ Estas patologias/desvios têm de ter tal intensidade que resultem numa impossibilidade de
exercer os seus direitos ou cumprir os seus deveres de forma plena, pessoal e livremente.

Em qualquer um destes casos, é independente que a patologia seja originária ou não.

Procedimento:
1.º Passo: Requerimento ao Tribunal – abrir o processo (as restrições à capacidade de gozo/exercício
são restrições a direitos fundamentais, desde logo à liberdade, por isso, o Tribunal tem a função de
assegurar que as restrições só são aplicadas quando estritamente necessárias e na medida do que é
necessário)
• O próprio – alguém quando está com noção dessas dificuldades (exemplo: alguém que sofre
de uma dependência ou deficiência incapacitante pode perceber e pedir ajuda);
• O cônjuge, o unido de facto ou parente sucessível + autorização do visado (maior) ou, não
sendo possível, com o respetivo suprimento da autorização, por parte do Ministério Público;
• Ministério Público.

2.º Passo: Interrogatório judicial (possibilidade de perícia) — é obrigatório que o juiz interrogue a
pessoa que pode vir estar sujeita à medida de acompanhamento, para poder ver aos certos as suas
reais capacidades. Muitas vezes, os casos não são óbvios e quando o juiz não se sente à vontade para
aferir quando há estas patologias/desvios, pode pedir uma perícia – avaliação das reais capacidades
da pessoa (psiquiatra para as anomalias psíquicas ou neurologista para as demências).

3.º Passo: Sentença — pode ser recusar ou aplicar a medida de acompanhamento.

4.º Passo: Registo do acompanhamento na Conservatória do Registo Civil — para que haja
publicidade da medida, para efeitos da tutela da própria pessoa.

Se a medida foi decretada, a lógica é a capacidade genérica de gozo para tudo. No entanto, a lei
permite que, na sentença, o juiz estabeleça algumas incapacidades específicas de gozo (fato à
medida).

Algumas incapacidades específicas de gozo que não têm que existir, mas podem existir:
• Incapacidade para casar;
• Incapacidade para testar;
• Incapacidade para perfilhar;
• Incapacidade para ser tutor;
• Incapacidade para exercer responsabilidades parentais.

A lógica deste regime é o mínimo de intervenção possível; só há intervenção quando os deveres de


assistência e cooperação da família não chegam para resolver o problema.

A maior parte das vezes, os problemas do maior acompanhado estão na incapacidade de exercício,
pois é aí que o fato é completamente feito à medida.

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Não se consegue dizer a priori se há uma incapacidade específica de exercício ou uma incapacidade
genérica de exercício.

Âmbito da incapacidade de exercício:


• Incapacidade específica de exercício – é a lógica, pelo que é esta incapacidade específica a
pretendida pelo nosso regime jurídico.
o O âmbito desta incapacidade específica de exercício é determinado pela sentença.
ou
• Incapacidade genérica de exercício – se a patologia/fundamento para a medida do
acompanhamento daquela pessoa é tão grave e tão abrangente que a incapacidade específica
não resolve o problema, passamos para a incapacidade genérica de exercício.

A incapacidade específica tem prevalência, mas o seu âmbito é determinado pela sentença.

Formas de suprimento: Todo este regime é flexível e, por isso, o julgador pode criar um mix e aplicar
uma forma para uma área e outra forma para uma outra área.
• Assistência — Como a lógica é preservar ao máximo a autonomia deste maior que vai ser
acompanhado, o nosso regime prefere a aplicação de um regime de assistência, ou seja, de
acompanhamento, em que o ato é praticado em conjunto entre o maior e o acompanhante
ou é praticado pelo maior, mas sujeito à autorização prévia do acompanhante.
• Representação (pode haver cumulativamente, ou em alternativa): Em casos mais graves,
quando o fundamento para a decretação do acompanhamento, a assistência não chega, pois
a pessoa não consegue fazer com ajuda nem sozinha, mas com autorização e precisa que o
façam por ela.
o Representação Específica – O legislador prefere a representação específica à
genérica. Para certas áreas da vida daquele maior (o mais delimitadas possível) há
representação, mas no resto, não haverá (ou não há nada, ou há assistência).
o Representação Genérica – Só no limite é que vamos para a representação genérica.
Para todas as áreas da vida do maior, há representação (é o figurino mais pesado de
todos).

No caso concreto, é essencial consultar a sentença.

Meios de suprimento: A lei oferece três exemplos possíveis, mas aceita que o juiz tenha a criatividade
para estabelecer algo diferente, desde que seja adequado e suficiente.
• Responsabilidades parentais
• Tutela
• Administração de bens
• Intervenções de outro tipo — Total flexibilidade.

Acompanhante (artigo 143.º CC):


• Regra: A escolha do acompanhante é feita pelo acompanhado ou pelo representante legal (no
caso de um menor de 17 anos, com graves perturbações, que nunca vai conseguir ganhar mais
capacidades do que as que tem e não se vai tornar mais autónomo, os representantes legais
podem pedir para que seja decretada a medida de acompanhamento para que assim que se
torne maior passe logo para o regime do maior acompanhado e nunca tenha capacidade
plena) e designado pelo Tribunal.
o Na falta de escolha, o Tribunal designa:
▪ Cônjuge
▪ Unido de facto

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▪ Qualquer dos pais
▪ Pessoa designada pelos pais ou tutor
▪ Filhos maiores
▪ Avós
▪ Pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado está integrado
▪ Mandatário a quem o acompanhado havia conferido poderes de
representação
▪ Pessoa idónea – alguém que ofereça garantias de credibilidade.

Atos praticados pelo acompanhado feridos de incapacidade:


• Incapacidade de gozo
o Desvalor regra associado: nulidade.
▪ Um ato do maior acompanhado, sem acompanhante, em violação do
estabelecido na sentença (significando que há incapacidade de gozo), o ato
será nulo.
• Incapacidade de exercício
o Desvalor regra associado à incapacidade de exercício: anulabilidade.
▪ A lei distingue três momentos temporais:
▪ 1) Atos posteriores ao registo do acompanhamento.
o Desvalor: anulabilidade.
o Legitimidade para anular: acompanhante (prazo de 1 ano a
contar da data do conhecimento do ato) ou acompanhado,
uma vez levantada a incapacidade (prazo de 1 ano a contar
da data do levantamento da medida do acompanhamento).
▪ 2) Atos posteriores ao anúncio da propositada do propositura da
ação e anteriores ao registo do acompanhamento.
o Consideram-se estes atos anuláveis, mas só se se verificarem
simultaneamente dois requisitos:
▪ 1. A medida de acompanhamento tem de vir a ser
efetivamente decretada e tem de abranger aquele
ato. (No fim do processo, tem de haver uma sentença
que decrete o acompanhamento e aquele ato tem de
estar inserido num dos âmbitos das incapacidades do
acompanhado).
▪ 2. O ato tem de causar efetivo prejuízo, i.e., seja
lesivo para o acompanhado.
• Direito de anulação: acompanhado
• Legitimidade: acompanhante durante o
acompanhamento ou acompanhado após a
cessação do acompanhamento.
• Prazo: acompanhante – 1 ano a contar do
conhecimento da prática do ato, porém, este
prazo nunca começa a correr antes da data
do registo. Se o acompanhante conhecer o
ato antes da data do registo, o prazo do ano
só começa a contar a partir da data do
registo. Nunca o acompanhante tem
legitimidade para pedir a anulação do ato,
uma vez cessado o acompanhamento
(cessam os poderes de
representação/assistência).

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▪ 3) Atos anteriores ao anúncio da propositura da ação (atos que se
passem antes do processo se iniciar).
o A única maneira de tutelar, se for tutelável é através da
incapacidade acidental (artigo 257.º CC); se houver
incapacidade acidental e se os requisitos tiverem
preenchidos o ato será anulável e o acompanhante poderá
anular ou o acompanhado uma vez cessada a incapacidade.
Cessação do acompanhamento:
• Cessa quando o Tribunal levantar o acompanhamento. O tribunal pode ser instado pelo
próprio acompanhado, pelo acompanhante ou por qualquer uma das pessoas que tenha
legitimidade par pedir a aplicação da medida do acompanhamento para levantar o mesmo.
o Isto verifica-se em casos onde já não há necessidade para o acompanhamento
(exemplo: alcoolismo, vício no jogo). Tem que ser pedido e o tribunal avalia. Ou
concorda e levanta o acompanhamento, pelo que estaremos perante um maior; ou
pode também concordar parcialmente (reconhecer que há melhorias, mas não
suficientes para levantar o acompanhamento), mas pode alterar o facto e torná-lo
mais leve, ao estabelecer um regime diferente.
• O Tribunal tem o dever de ofício de periodicamente, pelo menos de 5 em 5 anos, avaliar se
ainda há justificação para esta medida de acompanhamento e se este precisa de ser alterado.
Se ainda houver justificação para o acompanhamento, o Tribunal deve avaliar se esse regime
precisa de ser alterado para mais ou para menos.

➔ INCAPACIDADE ACIDENTAL: Regime geral aplicável a qualquer maior (não é um regime


específico aplicável aos maiores acompanhados, pode ser aplicado a qualquer maior).
Podemos estar perante um maior normal (sem nenhuma patologia/medida de
acompanhamento), um maior acompanhado, um menor ou menor emancipado nas áreas em
que tem capacidade de exercício, pelo que pode haver um problema mas que não é a
menoridade ou a incapacidade de exercício, porque tal não se verifica ali.

• Artigo 257.º CC: Pressupostos:


o Quando houver incapacidade acidental.
▪ Isto significa que, num dado momento, independentemente de porquê, uma
pessoa não consegue avaliar o seu ato ou não consegue formal livremente a
sua vontade/não consegue determinar o seu comportamento. (Ex: perante
estado de embriaguez - alguém celebra negócios jurídicos tolos – porque o
conteúdo é mau ou porque não o faria normalmente.)
▪ Os negócios pressupõem que hajam declarações de vontade e que tais
declarações tenham sido feitas com uma vontade livre e esclarecida –
pressupõe informação e liberdade. Se, por alguma razão, não consigo ter essa
informação ou não consigo ter liberdade para decidir, tenho um vício/uma
patologia. A existência dessa patologia não é suficiente para determinar a
anulabilidade.
▪ Todo o regime dos vícios dos negócios jurídicos que se dão na formação,
obrigam a um equilíbrio entre dois princípios: autonomia privada (que diria
que os vícios são sempre relevantes – a pessoa não pode estar vinculada a
uma coisa que não quereria normalmente; só quis porque estava em
incapacidade acidental) e a tutela da confiança (que diria que o negócio tem
que ser mantido, pois tem que se tutelar a contraparte).

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
• O nosso legislador resolveu isto criando requisitos de relevância.
Logo, para além do vício (incapacidade acidental) é preciso que se
verifique um certo requisito de relevância.

Requisito de relevância: conhecimento ou cognoscibilidade da incapacidade do declaraste por parte


do declaratário.
• Ou o declaratário conhecia a incapacidade (o declarante estava completamente embriagado
e era visível), ou, era cognoscível (um homem médio, colocado na situação do declaratário
real teria percebido a existência da incapacidade).
• Para que haja incapacidade acidental é preciso que, na altura em que o ato é praticado, o
declarante não fosse capaz de conhecer a realidade ou formar livremente a sua vontade.
• Para o ato ser anulável, tem de haver conhecimento ou cognoscibilidade da incapacidade.
o Se o requisito de relevância não estiver preenchido, a incapacidade é irrelevante à luz
do Direito.

Consequência: anulabilidade.
Havendo incapacidade acidental relevante e portanto geradora de anulabilidade, nasce na esfera
jurídica do incapaz o direito de anular.
Quem pode exercer este direito: O incapaz quando cessa a incapacidade.
(Mas, se estivermos a falar de alguém que tem uma patologia persistente [maior acompanhado] e que
praticou um ato antes do anúncio da propositura da ação, nesse caso, depois de ser decretado o
acompanhamento, o acompanhante poderá exercer o direito de anulação durante o período do
acompanhamento. Se o incapaz morrer e o direito de anulação ainda existir, tal será herdado pelos
respetivos herdeiros.)
Prazo: 1 ano a contar da cessação do vício.

➔ PESSOAS COLETIVAS: O conceito de pessoa coletiva alcança-se por exclusão de partes - temos
um regime dual (só temos 2 sujeitos): é pessoa coletiva todo o ente a que o direito reconhece
personalidade jurídica e não seja pessoa singular.

Elementos:
• Elementos internos:
o Substrato (ato constitutivo): Realidade sobre a qual se vai erguer a pessoa coletiva. É
preciso sempre uma realidade que serve de base à atribuição de personalidade
jurídica. Em Portugal temos 2 realidades possíveis — pessoas e patrimónios.
▪ Substrato pessoal: Há pessoas coletivas que são constituídas pelo
agrupamento de pessoas (várias pessoas singulares ou coletivas). Juntam-se
pessoas e dessa junção nasce a pessoa coletiva.
▪ Substrato patrimonial: Atribui-se personalidade jurídica a um património
criado.
• A identificação de substrato é aquilo que vai constar do ato
constitutivo da pessoa coletiva (criação do seu substrato – grupo de
pessoas ou património).
o Organização formal (estatuto): A pessoa coletiva necessita de órgãos (centros de
imputação de poderes funcionais) para funcionar, ter uma vontade, para poder
exteriorizar a sua vontade e agir no comércio jurídico.
▪ Ao conjunto dos poderes funcionais atribuídos a um órgão chama-se
competência (a competência do órgão é o conjunto dos poderes funcionais
que lhe são atribuídos).

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
▪ Temos orgãos singulares (composto por um titular) e colegiais (compostos
por vários titulares – várias pessoas singulares).
▪ Temos também órgãos consultivos (preparam/estudam as decisões, podem
emitir opiniões, mas não vinculam) e ativos (aquele que forma a vontade da
pessoa coletiva e age).
Podemos ter duas dimensões de órgãos ativos:
• Órgãos ativos internos: forma a vontade/delibera e diz que a pessoa
coletiva quer x.
• Órgãos ativos externos: exteriorização da vontade da pessoa coletiva
para a realidade – a sua atuação no comércio jurídico, a celebração
de negócios, etc.
o Reconhecimento: Reconhecer que há ali uma pessoa dotada de personalidade
jurídica. O Direito, através do reconhecimento, vem dizer que tal substrato com tal
organização tem personalidade jurídica.
▪ Normativos vs. individual:
• Normativo — O reconhecimento normativo provém da lei – se a
previsão da norma estiver preenchida, a estatuição da norma é a
atribuição de personalidade jurídica.
• Individual — O reconhecimento individual provém de um órgão/ato
administrativo - é preciso submeter um pedido a um determinado
órgão administrativo, para que seja concedida/reconhecida a
personalidade jurídica. O pedido é seguido de análise e caso a
resposta seja afirmativa, reconhece-se personalidade coletiva à
pessoa colectiva. É um reconhecimento individual porque é feito caso
a caso.
▪ Explícito vs. Implícito:
• Explícito — O reconhecimento resulta direitamente ou da norma ou
do ato administrativo.
• Implícito — O reconhecimento resulta indiretamente da norma ou do
ato administrativo.

• Elementos externos:
o Fim: É o interesse prosseguido pela pessoa coletiva. O que é que ela quer? Para que
é que ela serve? Foi criada para quê? Ex: Ganhar lucro
o Objeto: Atividade da pessoa coletiva. Ex: Atividade de construção civil

Classificação de pessoas coletivas (classificações doutrinais):

a) Pessoas coletivas de fim egoísta e de fim altruísta:


o As pessoas coletivas de fim egoísta visam satisfazer os interesses dos seus membros.
o As pessoas coletivas de fim altruísta visam satisfazer interesses de terceiros.
b) Pessoas coletivas de fim económico (lucrativo ou não lucrativo) ou de fim ideal:
o A pessoa coletiva de fim económico existe quando o interesse prosseguido pela
pessoa coletiva é suscetível de avaliação pecuniária.
▪ Dentro da pessoa coletiva de fim económico, podemos distinguir o fim
lucrativo do fim não lucrativo. Em ambos, o interesse prosseguido é suscetível
de avaliação pecuniária.
▪ Pessoa coletiva de fim económico lucrativo — Quer obter um saldo positivo
com a sua atividade – quer ter lucro (ganhar mais do que gasta).
▪ Pessoa coletiva de fim económico não lucrativo – Não são construídas para
ter um saldo positivo e ganhar mais do que aquilo que gastam.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
o A pessoa coletiva de fim ideal existe quando o interesse não é suscetível de avaliação
pecuniária.
▪ Exemplo: Pessoas coletivas com fins culturais, artísticos, educacionais e de
solidariedade social.
c) Pessoas coletivas de tipo associativo/cooperativo ou de fim fundacional: A diferença está no
substrato.
o Fim associativo/cooperativo — o seu substrato é pessoal (conjunto de pessoas);
o Fim fundacional — o seu substrato é patrimonial.
d) Pessoas coletivas de vontade imanente ou de vontade transcendente:
o Pessoas coletivas de vontade imanente quando a vontade da pessoa coletiva é criada
pelos seus próprios membros.
o Pessoas coletivas de vontade transcendente quando a vontade da pessoa coletiva é
limitada e dirigida pela vontade de alguém que não integra a pessoa coletiva.

Tipos legais:
1. Associações em sentido amplo — pessoa coletiva cujo substrato é composto por um conjunto
de pessoas.
1.1 Associações em sentido estrito — ou têm um fim económico não lucrativo ou têm
um fim ideal (o interesse não é suscetível de avaliação pecuniária).
1.2 Sociedades — têm um fim económico lucrativo (querem ter lucro; é essa a sua
função):
a. Sociedades comerciais: Dedicam-se à prática de atos de comércio e são criadas à luz do
Código das Sociedades Comercias. Este Código prevê 4 tipos de sociedades: sociedade
anónima, sociedade por quotas, sociedade em comandita e sociedade em nome coletivo.
b. Sociedades civis sob forma comercial: Sociedades cujo objeto não é a prática de atos de
comércio, mas que foram criadas de acordo com o regime previsto pelo Código das
Sociedades Comerciais.
c. Sociedades civis: É discutível que elas existam. Não é pacífico que estas sociedades previstas
no artigo 980.º CC e ss. sejam pessoas coletivas.

2. Fundações: (Têm como substrato um património — pessoas coletivas constituídas sobre um


património).
Para além da diferença do substrato, há outra grande diferença entre associações (em sentido
amplo) e fundações — o papel da vontade.
Nas associações em sentido amplo estamos perante pessoa coletiva de vontade imanente (a
vontade da pessoa coletiva é determinada pelos seus próprios membros/associados).
Nas fundações temos uma pessoa coletiva de vontade transcendente —> Na instituição a
vontade é dirigida pelo instituidor da fundação — a pessoa que afetou o património à criação,
mas está de fora. Ao criar o património disse para que servia o património e, por isso, limitou
a vontade da pessoa coletiva e aquele património tem de ser utilizado para aquilo e só para
aquilo.

Dúvida: Há sociedades civis com personalidade jurídica?

A maioria da doutrina diz que sim, mas não é pacífico. Olhando para o Código Civil, na parte geral, no
capítulo II fala-se de pessoas coletivas e, ao folhear esses artigos, apercebemo-nos que só se fala de
associações e de fundações. As sociedades civis propriamente ditas só são faladas nos artigos 980.º e
seguintes.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
O regime das associações e das fundações aparece na parte dedicada às pessoas coletivas (artigos
157.º e seguintes), enquanto o regime das sociedades civis aparece na parte dedicada aos contratos.
Essa matéria aparece tratada enquanto modalidade dos contratos.
A razão da dúvida também tem a ver com o reconhecimento – o reconhecimento é um elemento
intrínseco da pessoa coletiva e é através do reconhecimento que, regra geral, se adquire a
personalidade jurídica (exceção muito ampla: sociedades comerciais e sociedades sob forma
comercial).

Os artigos 157.º e seguintes têm uma norma sobre o reconhecimento das associações em sentido
estrito e sobre o reconhecimento das fundações. Não existe no Código Civil, pelo menos,
explicitamente, nenhuma norma sobre o reconhecimento das sociedades civis e é aí que está o
problema.
A inexistência de uma norma que trate do reconhecimento das sociedades civis – é por isso que muitos
autores vêm dizer que estas não têm personalidade jurídica. Assim, através da sociedade civil cria-se
um património coletivo – ao qual se aplica um regime de contitularidade.
Há outros autores que vêm dizer que, em certos casos, a sociedade civil pode ter personalidade
jurídica e noutros não, pelo que nos casos em que não tem, temos um património coletivo e as regras
aplicadas são as da contitularidade.

Porque é que a maioria da doutrina defende a possibilidade das sociedades civis terem personalidade
jurídica em certos casos?
• Terminologia — Olhando para o regime previsto para as sociedades, percebemos que a forma
como ele está redigido sugere que a sociedade é uma pessoa diferente dos sócios. Os artigos
980.º e seguintes falam dos direitos, das obrigações da sociedade, dos direitos/obrigações do
sócio em face da sociedade, etc.
A linguagem/construção frásica sugere que a sociedade é uma entidade diferente dos sócios.
É uma pessoa.

• Regime de separação patrimonial imperfeita previsto para a sociedade civil — Ideia de que,
com a sociedade civil é criado um património social e, em relação aos credores da sociedade,
esses podem executar o património social ou o património dos sócios, mas os credores dos
sócios não podem executar o património da sociedade. Essa separação patrimonial imperfeita
é semelhante à que existe nas sociedades em nome coletivo, que são pessoas jurídicas porque
o Código das Sociedades Comerciais reconhece personalidade jurídica. Vem-se dizer: se as
sociedades em nome coletivo podem ser pessoas coletivas, porque é que as sociedades civis
não podem ser?

• Organização: A organização que está prevista para as sociedades civis nos artigos 980.º e ss.
é decalcada da organização das sociedades em nome coletivo. Mais uma vez a dúvida é: se as
sociedades em nome coletivo podem ser pessoas coletivas, porque é que as sociedades civis
não podem ser?

• Artigo 1007.º CC: Trata do caso em que, por alguma razão, fica só um sócio. O que este artigo
prevê é a subsistência da sociedade durante o prazo de 6 meses até esta poder voltar a ter
pluralidade de sócios – o simples facto de admitir a subsistência da sociedade quando só existe
uma pessoa, parece sugerir que a sociedade é uma realidade diferente daquela pessoa. Se
não fosse algo diverso, não faria sentido dizer que a pessoa subsistia.

• Artigo 2033.º/2 CC: Reconhece capacidade sucessória às sociedades civis - significa que estas
podem vir a herdar algo/suceder no direito do de cuius. A pergunta é: O ser herdeiro

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pressupõe que sejam pessoas coletivas. Se as sociedades civis não são uma pessoa coletiva,
como é que podem ser herdeiras?

Tudo junto isto sugere que a sociedade civil pode ser uma pessoa coletiva.
O problema continua a ser a ausência de uma norma que estabeleça ou discipline o reconhecimento
de personalidade jurídica às sociedades civis.

Sugestão da Doutrina:
Artigo 157.º CC
Campo de aplicação
As disposições do presente capítulo são aplicáveis às associações que não tenham por fim o lucro
económico dos associados, às fundações de interesse social, e ainda às sociedades, quando a analogia
das situações o justifique.

O Artigo 157.º CC permite que os artigos seguintes sejam aplicados analogicamente às sociedades
civis.

Artigo 158.º
Aquisição da personalidade
1 - As associações constituídas por escritura pública ou por outro meio legalmente admitido, que
contenham as especificações referidas no n.º 1 do artigo 167.º, gozam de personalidade jurídica.

O artigo imediatamente seguinte – artigo 158.º/1 CC é um caso de reconhecimento normativo


explícito – basta a associação ser criada por escritura pública e que nessa escritura estejam os
elementos que o artigo 167.º obriga e automaticamente a associação adquire personalidade coletiva.
A questão que se coloca é: Não será possível aplicar analogicamente o 158.º/1 ao abrigo do
pressuposto no artigo 157.º às sociedades civis, se a sociedade civil for celebrada por escritura pública
e dessa escritura pública constarem os elementos do artigo 167.º? A resposta maioritária da doutrina
tem sido que sim.

Todavia se a sociedade civil não for constituída por escritura pública ou se a escritura pública não tiver
os elementos exigidos pelo 167.º, só tenho um caso de contitularidade e não tenho uma pessoa
coletiva.

Constituição das pessoas coletivas - regime geral:

1.º Organização do substrato:


• Formação da pessoa coletiva — ato constitutivo, onde se identifica o seu substrato e,
consequentemente, forma-se a pessoa coletiva.
• Organização da pessoa coletiva — estatutos criam a orgânica da pessoa coletiva – identificam
os órgãos e as respetivas competências da pessoa coletiva.

2.º Reconhecimento: A regra para a generalidade das pessoas coletivas é que a aquisição da
personalidade jurídica se dá na data do reconhecimento.
(Exceções à regra geral: sociedades comerciais, sociedades civis sob forma comercial ou sociedades
de advogados em que a aquisição da personalidade jurídica não se dá com o reconhecimento, mas dá-
se com o registo.)
• Reconhecimento normativo — Provém da aplicação da estatuição de uma norma.
• Reconhecimento individual — Provém de um ato de um órgão administrativo.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
3.º Registo enunciativo no Registo Nacional de Pessoas Coletivas (RNPC)
Como a regra é que a aquisição da personalidade jurídica se dá com o reconhecimento, o registo, em
regra, será enunciativo – serve apenas para publicitar.
(Nos casos excecionais, como as sociedades comerciais, sociedades civis sob forma comercial ou
sociedades de advogados, o registo é constitutivo, porque é aí que se adquire a personalidade
jurídica).

Constituição das associações em sentido estrito:

1.º Ato constitutivo e estatutos da associação


• Estes têm que estar previstos numa escritura pública (identificar os associados e estabelecer
a orgânica [artigo 167.º])
• Em 2007, com uma coisa que na altura se chamava o simplex, foi criado um regime que se
chama “constituição de associações na hora”. Isto significa que há outra possibilidade de criar
associações – a ideia é permitir que se crie uma associação no próprio dia. O Estado fornece
um formulário que podemos preencher. Para criar uma pessoa coletiva, é preciso que haja
uma designação ou uma firma (se for uma sociedade comercial) – é preciso averiguar se é
possível ter aquele nome, porque não se pode repetir nomes, há exclusividade. O Estado, de
antemão, criou muitos nomes possíveis para as associações e tem uma lista com nomes que
já estão aprovados e, ao querer constituir uma associação, depois de preencher o formulário,
vou à lista dos nomes, escolho um e submeto o formulário e a escolha do nome nesse dia e,
supostamente, nesse próprio dia, chega a decisão e se for aprovada, já temos o ato
constitutivo e os estatutos da associação.

2.º Reconhecimento normativo explícito - artigo 158.º/1 CC


• Basta ter a escritura pública com os elementos do artigo 167.º ou ter a constituição na hora
para, automaticamente, por efeitos do artigo 158.º/1 adquirir-se personalidade jurídica e, a
partir daquele momento, existe uma associação.

3.º Registo enunciativo no Registo Nacional das Pessoas Coletivas – dar a saber que nasceu esta nova
associação, somente para efeitos de publicidade.

Constituição de sociedades civis: Aplicar por analogia o regime das associações previsto nos artigos
157.º e 158.º/1.

1.º Ato constitutivo e estatutos (elementos do artigo 167.º CC)


É preciso utilizar o regime tradicional da constituição da associação (aplicação analógica), não
podendo haver a constituição na hora, pois o legislador não criou um formulário para tal.

O recurso à escritura pública pode ter 2 fundamentos cumulativos:


1. Aquisição de personalidade jurídica – sem escritura pública (sem o ato constitutivo e
estatutos constarem da escritura pública) nunca haverá aquisição de personalidade
jurídica.
2. Requisito de validade formal do próprio contrato de sociedade, pois a lei estabelece
que a forma para o contrato de sociedade é a escritura pública quando, pelo menos
um dos sócios, entra para o património social com um imóvel.
Nestes casos, se não houver escritura pública, não se adquire personalidade jurídica. No entanto,
quando a escritura pública também é imposta pelas normas que regulam a forma do contrato de
sociedade (artigos 980.º e seguintes), então, a não utilização da escritura pública determina a nulidade
do ato – vício de forma.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
No entanto, o próprio legislador, no regime dos contratos de sociedade, vem tentar salvar este
contrato e, portanto, vem dar 2 hipóteses de salvação a estes casos em que a lei impõe que o contrato
seja celebrado por escritura pública para que seja formalmente válido.
1.ª hipótese de salvação — conversão: tentar alterar a natureza (ler com outros olhos) da
contribuição do sócio que justificava a imposição de escritura pública.
Exemplo: 3 sócios celebram um negócio em que o que justificava a imposição de escritura pública era
um dos sócios, C, entrar para o património social com um imóvel. Os outros sócios, A e B, contribuem
com dinheiro e C contribui com o direito de propriedade sobre o imóvel. Assim, para tentar salvar este
negócio através da conversão, A e B continuam a contribuir com dinheiro, mas C, em vez de contribuir
com o direito de propriedade sobre o imóvel (para tal, é preciso escritura pública), vai contribuir com
um direito pessoal de gozo sobre o imóvel – permite que utilizem o imóvel. A propriedade continua a
ser dele, mas ele está a permitir que a sociedade venha a usar o imóvel. Como o direito pessoal de
gozo já não exige escritura pública, é possível salvar o negócio.
2.ª hipótese de salvação — redução: não sendo viável a conversão, tenta-se aplicar a redução e excluir
a participação que justificava a imposição de escritura pública.
No caso, vamos constituir uma sociedade formalmente válida entre A e B mas excluir o C porque a
razão de exigência da escritura pública estava na contribuição do C – o direito de propriedade sobre
o imóvel.

2.º Reconhecimento normativo implícito (é implícito porque é um reconhecimento indireto, uma vez
que é feito através de analogia) — aplica-se analogicamente o artigo 158.º/1, por força do previsto no
artigo 157.º, pelo que o reconhecimento é implícito.
Fonte do reconhecimento normativo implícito – analogia.

3.º Registo enunciativo no Registo Nacional das Pessoas Coletivas — Para efeitos de publicidade.

Constituição de fundações:
Neste caso, o substrato é patrimonial e está-se a atribuir personalidade jurídica a um património.

1.º Ato de dotação ou instituição da fundação — Este ato pode ser feito por 2 maneiras:
• Ato intervivos: a pessoa que vai instituir a fundação fá-lo em vida – feita por escritura pública.
• Ato mortis causa: a fundação é criada depois da morte da pessoa – feita por testamento.

Para além deste ato constitutivo, a fundação também precisa de um estatuto. Aqui, temos regimes
diferentes. O instituidor não precisa de fazer os estatutos (como os sócios/associados), pode optar
por os fazer.

Quando o instituidor faz os estatutos:


• Instituição intervivos – os estatutos têm de constar de escritura pública.
• Instituição mortis causa – os estatutos têm de constar de testamento.

Quando não é o instituidor a fazer os estatutos temos que distinguir a instituição intervivos da mortis
causa.
• Instituição intervivos – se o instituidor não tiver feito os estatutos, tais devem ser feitos pela
entidade a quem compete o reconhecimento da fundação.
• Instituição mortis causa – se o instituidor não tiver feito os estatutos, tais devem ser
elaborados, em primeira linha, pelos executores do testamento; só no caso de eles não
fazerem é que caberá à entidade com competência para reconhecer a fundação.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
2.º Reconhecimento individual explícito — O reconhecimento, nas fundações, é feito por ato
individual de avaliação daquele projeto de fundação.
Atualmente, a competência para avaliar cabe ao Primeiro Ministro que delegou na presidência do
Conselho de Ministros. Depois de criado o património, é preciso remeter um pedido à presidência do
Conselho de Ministros para reconhecer a fundação e vai avaliar.
Se o desfecho for sim: temos um ato administrativo que reconhece personalidade jurídica à fundação
x (reconhecimento individual e explícito). A personalidade jurídica da fundação adquire-se nesta altura
— com o ato administrativo que reconhece a existência daquela fundação dá-se um reconhecimento
individual explícito que confere personalidade jurídica à fundação.

3.º Registo enunciativo no Registo Nacional das Pessoas Coletivas — efeitos de publicidade.

Recusa do reconhecimento de uma fundação: O que é que deve ser avaliado e qual é a consequência
do pedido ser indeferido? (Se o pedido for deferido, adquire-se personalidade jurídica)

A entidade competente pode recusar o reconhecimento da fundação em duas situações:


• Falta de interesse social relevante: A Fundação é uma pessoa coletiva altruísta e serve para
servir o próximo, pelo que se não houver interesse social relevante (o fim não é
suficientemente digno) deve haver recusa de reconhecimento.
• Insuficiência definitiva do património: A Fundação é criada sobre um património, que está
afetado a um fim e se este património for insuficiente para à prossecução do fim, a fundação
não pode ser reconhecida, porque não há meios económicos necessários para a prossecução
do fim.

Na hipótese do reconhecimento ser negado, a lei só trata de uma das causas. O artigo 188.º/5 CC fala
dos efeitos da recusa de reconhecimento com fundamento na insuficiência definitiva do património.
Artigo 188.º/5 CC — “Negado o reconhecimento por insuficiência do património, fica a instituição sem
efeito, se o instituidor for vivo; mas, se já houver falecido, serão os bens entregues a uma associação
ou fundação de fins análogos, que a entidade competente designar, salvo disposição do instituidor em
contrário.”

Se o fundamento para a recusa do reconhecimento for a insuficiência do património, temos de


distinguir se estamos perante uma instituição intervivos ou uma instituição mortis causa.
Se a instituição for inter vivos, a instituição fica sem efeito e os bens são devolvidos ao instituidor. Se
a instituição for mortis causa, o regime regra (que pode ser afastado por indicação prévia do
instituidor) será que aqueles bens são afetos a uma associação ou fundação com fim semelhante ao
fim pretendido pelo instituidor.

Quanto ao segundo fundamento de recusa:


A lei não diz qual é o efeito da recusa baseada na falta de interesse social relevante.
Solução proposta pela doutrina: Vigora em Portugal um princípio de favor negotii – ideia de tentar
salvar os negócios ao máximo. Se estivermos perante um negócio que não vai produzir efeitos, o ideal
é encontrar uma maneira de o salvar.
Se houver uma recusa de reconhecimento porque o fundamento é a falta de interesse social, isso
significa que há uma impossibilidade jurídica de criar a fundação e há uma nulidade. Uma das formas
de salvar negócios nulos é através da figura da conversão. Na conversão, tenta-se ler o negócio com

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outros olhos, de maneira a continuar a ir ao encontro do interesse da parte(s), mas sem que haja
fundamento para a invalidade do mesmo.
Neste caso, é preciso olhar para aquela instituição e ver se não é possível criar uma instituição com
um fim prático parecido com o pretendido pelo instituidor, mas que seja socialmente relevante. Se
for possível identificá-lo, essa será conversível e vamos ter uma fundação com esse fim admissões.
Se não for possível converter e se a instituição for inter vivos, os bens são devolvidos ao instituidor;
se a instituição for mortis-causa, os bens serão entregues aos herdeiros.

Capacidade de gozo das pessoas coletivas – prevista no artigo 160.º CC:

Artigo 160.º
Capacidade
1. A capacidade das pessoas colectivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou
convenientes à prossecução dos seus fins. (Delimitação positiva)
2. Exceptuam-se os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade
singular. (Delimitação negativa)

• Delimitação positiva: Princípio da especialidade?


o Discute-se se a capacidade de gozo das pessoas coletivas é uma capacidade de gozo
genérica ou específica. A redação do artigo 160.º demonstra que o seu teor é muito
diferente daquilo que encontramos para as pessoas singulares. Diz-se que só podem
ser em dois tipos de situações – as necessárias ou convenientes para a prossecução
do seu fim, enquanto as pessoas singulares podem ser titulares da generalidade das
situações. Isto aponta, desde logo, para uma capacidade específica – ideia do princípio
da especialidade – só as situações necessárias ou convenientes à prossecução do fim
podem estar na titularidade da pessoa coletiva. A pessoa coletiva não tem capacidade
de gozo do que não for necessário ou conveniente e, por isso, não pode ser titular
dessa situação.
o No entanto, o âmbito da capacidade das pessoas coletivas é tão amplo que alguns
autores dizem que o melhor é dizer que há capacidade genérica – não são só os atos
necessários, mas também os atos convenientes.
o Contudo, a maior parte da doutrina entende que hora uma capacidade de gozo
específica, não negando a sua vastidão. A verdade é que a perspetiva legal é diferente
e não é “pode ser titular de tudo”, mas sim “pode ser titular de algumas coisas” (que
podem ser muitas, mas continuam a ser específicas).
o A Professora Elsa concorda que faz sentido afirmar que a capacidade é específica
porque há certas situações de que a pessoa coletiva não pode ser titular, há certos
atos que a pessoa coletiva não vai poder praticar ou vai ser muito condicionada a fazê-
lo, enquanto qualquer pessoa dotada de uma capacidade genética poderia ser titular
daquelas situações e praticar aqueles atos sem condicionantes (pese embora a
abrangência desta capacidade).

Assim, levantam-se 2 problemas:


1.º Problema — Terá uma sociedade capacidade para proceder a uma doação?
Olhando ao disposto no artigo 160.º, uma doação não é necessária para a obtenção de lucro nem é
conveniente (pelo contrário – a doação leva a prejuízo, pois não há retorno). Nesse aspecto, uma
doação não se enquadraria num ato necessário ou conveniente para a obtenção de lucro.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Será, então, que uma sociedade não pode fazer uma doação? A resposta é: pode.
Pese embora o princípio da especialidade, uma sociedade pode efetuar doações. Não pode é
converter a sua atividade principal em doações (a sua atividade principal não pode ser doações, pois
isso comprometeria o fim lucrativo inerente às sociedades).

Quais são os fundamentos para admitir que as sociedades podem proceder a doações de forma
residual?
1. O Código das Sociedades Comerciais admite as doações – não são incompatíveis com a ideia de
sociedade e de obtenção de lucro.
2. O Estatuto dos Benefícios Fiscais concede benefícios às pessoas coletivas por mecenato – apoio que
as pessoas coletivas possam dar a atividades de cariz social, cultural, etc – portanto, o simples facto
de dar um benefício fiscal à pessoa coletiva que procede a este tipo de apoio financeiro demonstra
que este tipo de apoio existe e é permitido.
3. Para além disto, em Portugal vigora o princípio da solidariedade (ajuda ao próximo) e não faz
sentido excluir as pessoas coletivas do âmbito deste princípio e dizer que estas não devem ajudar o
próximo. Pelo contrário, muitas vezes, a capacidade económica de uma pessoa coletiva é bastante
superior à capacidade económica de uma pessoa singular, pelo que, em prol da sociedade e da
solidariedade, faz mas sentido a pessoa coletiva colaborar do que a própria pessoa singular – pode
marcar mais a diferença.

LIMITAÇÕES ÀS DOAÇÕES:
• O destinatário nunca pode ser um sócio. A ideia é favorecer terceiros e não nós próprios.
• As doações também não podem comprometer a existência de lucro (pode afetar o montante,
mas não se pode fazer uma doação de modo a comprometer a existência de lucro, de todo).

2.º Problema — Poderá uma associação ou fundação de fim ideal/altruísta praticar atos lucrativos?
(Exemplo: organizar um espetáculo em que cobram entradas, organizar campeonatos em que cobram
entradas, vender algum tipo de lembranças, etc — a ideia destes atos é trazer lucro)

Mais uma vez, a resposta é positiva. Podem, mas não a título principal. Como a sua principal atividade
não é lucrativa, não podem passar a ter uma atividade lucrativa – não têm capacidade de gozo para
tal. Podem, contudo, praticar atos que são lucrativos em si mesmo considerados, desde que sejam
instrumentais para a prossecução dos seus fins.
Mesmo as atividades mais altruístas pressupõem a existência de fundos e de bens materiais e,
portanto, é preciso financiamento que pode vir de doações, patrocínios, etc, mas como tal pode não
ser suficiente, é possível que a própria pessoa coletiva precise de angariar os seus fundos para poder
canalizar para a sua atividade não lucrativa.

Só podem realizar atos lucrativos se esse lucro for canalizado para o exercício da sua atividade.

• Delimitação negativa — questiona-se se há dois tipos de delimitações negativas.


o Direitos e vinculações inseparáveis da personalidade singular.
▪ Exemplo: capacidade de casar, integridade física, etc)
o Direitos e vinculações vedados por lei
▪ Questiona-se se não é razão político-legislativa. Às vezes, a lei veda a
titularidade de certos direitos ou a adstrição a certas vinculações às pessoas
coletivas.
▪ Exemplo: direito de uso e de habitação — apenas pessoas singulares podem
ser titulares destes direitos.
▪ Das duas uma – ou a proibição legal assenta em razões da própria natureza
da situação jurídica (ou seja, é uma situação jurídica que não é compatível

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
com a natureza da pessoa coletiva), mas aí caímos na primeira delimitação
(positiva) e estamos a falar de direitos e vinculações inseparáveis da
personalidade singular e, portanto, não era necessário haver proibição legal,
pois tal resultaria da própria natureza da situação.
▪ Ou então (o que faz sentido), é uma política-legislativa – por alguma razão
(que não a natureza de certos direitos), o legislador entendeu que se deve
vedar a titularidade de certos direitos às pessoas coletivas. É preciso descobrir
se há esta limitação caso a caso. Se houver, aplicamos. Caso contrário aplica-
se o regime geral da capacidade de gozo das pessoas coletivas.
▪ Ou seja, falamos de direitos e vinculações que, por natureza, podiam estar na
titularidade de uma pessoa coletiva, mas que por razões puramente legais
não estão.

➔ PESSOAS RUDIMENTARES
(Expressão criada na década de 70)
Problema subjacente a esta noção: será que a personalidade jurídica é um conceito quantitativo?

Quando falámos dos conceitos fundamentais, a personalidade jurídica foi apresentada como um
conceito qualitativo – é uma qualidade que se tem; a qualidade de ser suscetível a ser titular de um
direito ou de estar adstrito a obrigações. Essa é, claramente, a posição maioritária.
No entanto, às vezes questiona-se se será sempre assim e se não é possível haver uma dimensão
quantitativa, pelo que haveriam graus de personalidade; personalidade de grau pleno para as pessoas
singulares e coletivas e personalidade de grau menor para as tais pessoas rudimentares.

O problema coloca-se (principalmente) devido a 2 artigos:

Artigo 11.º do Código do Processo Civil


Conceito e medida da personalidade judiciária
1- A personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte (poder ser autor ou réu numa
ação judicial).
2 - Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária.

Artigo 12.º do Código do Processo Civil


Extensão da personalidade judiciária
Têm ainda personalidade judiciária:
a) A herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado;
b) As associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais;
c) As sociedades civis;
d) As sociedades comerciais, até à data do registo (a aquisição de personalidade jurídica nas
sociedades comerciais dá-se com o registo, pelo que até à data do registo não há personalidade
jurídica) definitivo do contrato pelo qual se constituem, nos termos do artigo 5.º do Código das
Sociedades Comerciais;
e) O condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no
âmbito dos poderes do administrador;
f) Os navios, nos casos previstos em legislação especial.

Estamos a falar de entidades que, à partida, não têm personalidade jurídica, mas que, no entanto, têm
personalidade judiciária e, portanto, podem propor ações e podem ser intentadas ações contra elas,
assim como podem praticar todos os atos processuais no decurso das ações.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Artigo 2.º do CIRC
(Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas/Coletivo)
Sujeitos passivos
1 — São sujeitos passivos do IRC:

a) TODAS AS PESSOAS COLETIVAS (...)


b) As entidades desprovidas de personalidade jurídica, com sede ou direcção efectiva em território
português, cujos rendimentos não sejam tributáveis em imposto sobre o rendimento das pessoas
singulares (IRS) ou em IRC directamente na titularidade de pessoas singulares ou colectivas;
c) As entidades, com ou sem personalidade jurídica, que não tenham sede nem direcção efectiva em
território português e cujos rendimentos nele obtidos não estejam sujeitos a IRS.
2 — Consideram-se incluídas na alínea b) do n.º 1, designadamente, as heranças jacentes, as pessoas
colectivas em relação às quais seja declarada a invalidade, as associações e sociedades civis sem
personalidade jurídica e as sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, anteriormente ao
registo definitivo.

Retiramos destes artigos que, no âmbito do processo civil, entidades que não teriam personalidade
jurídica podem ser partes num processo. Ou, no âmbito do Código do Imposto sobre o Rendimento
Coletivo que entidades que não tem personalidade jurídica podem estar obrigadas a pagar impostos.

O que é que retiramos daqui?


Em relação ao primeiro exemplo (artigos 11.º e 12.º do Código do Processo Civil), retiramos que
aquelas entidades sem personalidade jurídica podem ser titulares de um direito de ação e podem
praticar todos os atos inerentes ao processo.
Em relação ao segundo exemplo (artigo 2.º do CIRC) retiramos que essas entidades sem personalidade
jurídica podem estar adstritas a uma obrigação de pagar impostos.

Ou seja, retiramos que estas entidades podem ser titulares de direitos (nem que seja direito de ação),
ou adstritas a vinculações (nem que seja a obrigação de imposto) – serão pessoas coletivas? Serão
pessoas jurídicas? Como explicar estes artigos?

I. Inexistência de personalidade jurídica/ tratamento global do coletivo;


II. Existência de personalidade jurídica:
a. Conceção pluralista;
b. Conceção monista:
i. Personalidade jurídica parcial;
ii. Personalidade jurídica plena + capacidade de gozo parcial/substituição.

• 1.ª visão (fação, hoje em dia, claramente menor): Afirma que há inexistência de
personalidade jurídica apesar de ser verdade que haja uma atribuição de personalidade
judiciária e possibilidade de ter um direito de ação e uma potencial obrigação tributária.
o Esta visão defende que o que temos é um tratamento global do coletivo — na maior
parte das vezes estamos a falar de patrimónios sem sujeito (ou com um sujeito
indefinido), pelo que para facilitar, trata-se de tudo ao mesmo tempo, permitindo que
vão a juízo e que o fisco cobre imposto.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
Esta visão, no entanto, não é muito seguida, porque, de facto, o que a lei diz é que estas entidades
têm direito de ação/obrigação de pagar impostos, por isso, a maior parte da doutrina segue um dos
caminhos que é a existência de personalidade jurídica.

• 2.ª visão (maioritária): Existência de personalidade jurídica.


o a) Conceção pluralista: esta conceção vem defender a existência de uma pluralidade
de conceitos de personalidade jurídica.
▪ Haveria o conceito do Código Civil — suscetibilidade de ser titular de direitos
e estar adstrito a obrigações.
▪ Conceito do Código de Processo Civil — possibilidade de ser parte em juízo.
▪ Conceito do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas —
possibilidade de ser sujeito à obrigação de imposto.
▪ Crítica: A parte do Código Civil que trata das pessoas singulares aplica-se a
todos – é Direito Comum – e o conceito é tão amplo que, no fundo, ao dizer
que as pessoas têm personalidade judiciária (podem ser titulares do direito
de ação) ou que podem ser sujeitos à obrigação de imposto, estamos a
admitir que há suscetibilidade de ser titular do direito de ação/estar adstrito
à obrigação de imposto. Ou seja, olhando para o Código Civil, não há como
escapar da ideia que o artigo 11.º e 12.º do CPC e o artigo 2.º do CIRC
fatalmente estão a atribuir a titularidade de um direito e uma adstrição a uma
vinculação às entidades visadas e, portanto, segundo a definição do CC
estamos a admitir que são pessoas jurídicas, pois têm personalidade jurídica.
o b) Conceção monista (maioritária, sobretudo para quem estuda Direito Substantivo):
Vem dizer que o simples facto de poder ser titular de direito de ação ou estar adstrito
à obrigação de pagar imposto determina que há personalidade jurídica, pelo que estas
pessoas rudimentares têm personalidade jurídica.
▪ Como vamos dizer que as pessoas rudimentares são pessoas jurídicas que só
podem ser titulares de um direito (de ação) ou estar adstritas a uma obrigação
(pagar impostos) e não o resto; isso é algo muito limitado. Não é um conjunto
de direitos, nem de obrigações – apenas 1 direito e 1 obrigação. Assim:
• Há quem veja nisto uma ideia de que os artigos 12.º do CPC e 2.º do
CIRC permitem demonstrar a existência de um conceito quantitativo
de personalidade jurídica e, nesse caso, haveria uma personalidade
jurídica parcial (haveria personalidade jurídica de grau menor para
esse direito/obrigação, mas não para o resto, pelo que só existiria
uma pessoa para isso).
• Outra possibilidade de explicar (a Professora Elsa considera-a melhor,
quer do ponto técnico, quer do ponto de vista dos valores): Esta visão
diz que a personalidade jurídica é plena. A limitação existe na
capacidade de gozo. A personalidade jurídica basta-se com a
suscetibilidade de ser titular de um direito ou de estar adstrito a uma
obrigação – neste caso, há personalidade jurídica. Não há graus, ou
há, ou não há.
o A especialidade das pessoas rudimentares está na sua
capacidade de gozo. A medida de direitos de que podem ser
titulares/vinculações a que podem ser adstritas é
extremamente reduzida – só podem ser titulares do direito
de ação e estar adstritas à obrigação de pagar imposto e mais
nada. Tenho uma capacidade de gozo parcial/limitada.
o Se aceitarmos graus de personalidade (algo que não parece
ser compatível com o regime português), isso é um perigo

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa
quando transposto para as pessoas singulares e não há nada
que impeça que o possamos fazer, pois as capacidades físicas
e intelectuais das pessoas singulares são diferentes. Há o
perigo que a certa altura, quando falado de um recém-
nascido ou de uma pessoa com demência, se defenda que se
diminua a personalidade jurídica, porque essa pessoa, em
rigor, não tem capacidades para ser titular de certos direitos
e estar adstrita a certas vinculações. Há um perigo de
começarmos a distinguir graus de personalidade dentro das
próprias pessoas singulares – algo que o nosso ordenamento
jurídico não tem.
▪ Só se encontram esses graus na capacidade.

Porque é que a lei estabelece isto?


A lei atribui este direito de ação e esta obrigação de pagar impostos a estas entidades pela dificuldade
prática de saber quem é o titular e propor uma ação que envolva aquelas situações jurídicas ou cobrar
impostos quando não sabemos quem é o titular (ainda é indefinido).
Estamos perante um fenómeno de substituição processual (no caso do artigo 12.º do CPC) — o
legislador veio atribuir àquelas entidades um direito de ação para discutir uma questão material, mas
o sujeito da questão material é uma pessoa singular ou coletiva e os efeitos vão-se produzir nessa
pessoa singular ou coletiva, mas no momento da ação não sabemos quem é o titular e, assim, permite-
se esta personalidade judiciária para que a ação vá decorrendo, mas mal seja definida a titularidade
do património autónomo/herança jacente, etc, os efeitos todos vão-se repercutir nos verdadeiros
titulares.
O mesmo acontece com o fenómeno de substituição tributária (no caso do artigo 2.º do CIRC) —
temos patrimónios que produzem rendimentos e não sabemos quem são os titulares dos patrimónios,
mas os rendimentos têm que ser tributados, então substituímos e cobramos logo ao património
(porque assim o fisco consegue a prestação de imposto) e, depois, os efeitos vão ser imputados aos
titulares dos patrimónios que entretanto sejam definidos ou surjam.
Cria-se este ente — pessoas rudimentares — com uma capacidade de gozo mínima, para viabilizar o
exercício de certas situações, temporariamente, enquanto se espera que a titularidade do direito ou
a adstrição à vinculação esteja definida.

Sebenta de Teoria Geral do Direito Civil I (2021) — Margarida Araújo Freitas de Sousa

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