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conhecimento dete eclewtl,reconande rons Heil a Tao DOO eIo2IO2WO- inane not deform des ore agees¢ oats ea Fo ( PR (CER (CECE CE SE ore ee eras a See > €<£<<<<<< 099999999 Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indigenas Linda Tuhiwai Smith Trad, Roberto G. Barbosa YOOO0« téricas e filoséficas da pesquisa ocidental. Expandindo a obra de Foucault, ‘Smith explora as intersecdes entre o imperialismo, © conhecimento e @ pesquisa, e apresenta uma histéria do saber desde o lluminismo até 0 pés- -colonialismo. A segunda parte do livro dedica-se a tratar de alguns dos problemas que atualmente séo debatidos pelas comunidades indigenas, os quals se referem as nossas prioridades e problemas. Pricridades que ainda tém sido. articuladas e elaboradas em um contexto de resisténcia a novas formas de colonizagio e que exigem a compreensso dos modos de formular pergun- tase de buscar respostas para as nossas prépries preocupagées. Em outras ppalavras. a pesauisa no é um exercicia académico inocente ou distante. ‘mas uma atividade que tem algo em jogo, subsidiada por um conjunto de condicdes politicas e socials, Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indigenas INNIS (SBN ora a5.4not3 in PESQUISA lI Este livro foi escrito por uma mulher Indigena da Nova Zelandia e se des- tina a0s outros povos indigenas do mundo, incluindo os caingangues, 0 guaranis, os terenas, os caiapés, 0s xavantes, os fanomamis, entre tantas outras nacSes indigenas exis- tentes no Brasil Valendo-se da dialética dendncia -antincio, a sociéloga maori Lin. da Tuhiway Smith revela-nos um mundo em que a pesquisa, condu 2ida sob 0 ponto de vista ocidental, std implicada na mais atroz forma de dominacao do homem pelo ho- ‘mem, isto é, na apropriacio violen- ta, promovida pelos colonizadores europeus, dos conhecimentos.in- digenas, dos seus corpos, de sua espiritualidade, da sua cultura, dos seus credos e dos seus territérios = em sintese, de suas vidas. “So- ‘mos os povos mais pesquisados do mundo”, afirma a ativista indigena Bobby Sykes. Nesta obra, a pesquisa e 0 imperia- lismo europeu, que resultaram na colonizacao e no genocidio de milha- res de indigenas por todo o mundo, Descolonizando metodologias pesquisa e povos indigenas UFPR #5 Reltor Ricardo Marcelo Fonseca Vice-Reltora Graciela Inés Bolzén de Muniz Pré-Reitor de Extensao ¢ Cultura Leandro Franklin Gorsdorf Diretor da Editora UFPR Rodrigo Tadeu Goncalves Vice-Diretor da Editora UFPR Hertz Wende! de Camargo. Conselho Editorial que Aprovon este Livro Claudio José Barvos de Carvalho Cristine Goncalves de Mendonca Edison Luiz Almeida Tizzet Emerson foucoski Everton Passos Jane Mendes Ferreira Marcia Santosde Menezes Marcus Levy albino Bencostla Descolonizando metodologia: pesquisa e povos indigenas Linda Tuhiwai Smith ‘Trad. Roberto G. Barbosa © Linda Tuhiwai Smith 1999, 2012, Decotoniing Methodologes: Research and ladigenons Peoples was frst published in 1989 by Zed Bools Lid, London, Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indigenas Coordenagio editorfal Rachel Cristina Pavima Revisio Francisco Roberto Szezach innacénicio Projeto grifico e etitoracio eletrénica Rachel Cristina avin copa Reinaldo Weber Série Pesquisa, n. 337 Decolav metadsapias posi poe nig Ul Tha Sonth ead Roberta obi = CEN EFA 28 28 Gagasain 30) Incl nos Wohegr ee ‘intern oclenzing methadone: recat a ndgens popes Indios Penguin 2. fol Regus, 3.2 Colemao Hit. shrine = en toglona ule ein encir tistaah B e ISBN 979-86-8480-152-6 ef 913 Direitos desta edigio reservados & Editora UEPR. Rua oa Negro, 286,2."andar ~ Centro Tel. (1) 3880-7489 0000-200 ~ Curitiba ~ Pavan — Brasil wamreditorasfpr be editoraauipror 2018 ‘AgRADECIMENTOS ako het, be i prmam, mbors pquena ele é precios E, gostaria de agradecer 3s seguintes pessoas, stetos ¢ organizagdes pelo apoio e auxiio por eles prestaios para @ producto deste livro: Graham Hingan- garoa Smith; Kuni Jenkins; Mergie Kubuikura Hohepa; Petricia Maring! Johnston: Leoni Pihamas Cheeryl Waerea-i-te-Rangi Smith; Roger Dale; Alison Jones: Start MacNaughton; Judith Simon; James Marshall; Betsan Martin; Key Morris-Mat- tews: Michel Peters; s alunos do Programa Here Wananga, da Unidade de Pes- quisa para a Educagio Maori, da Universidade de Auckland; os estudantes do Te Whace Wananga o Awanuiarangf; 0 Comité de Pesquisa da Universidade de Auckland} 05 colegas da Canad, da Australia, do Hava e dos Estados Unidos; & outros que me apoiaram e me encorajaram. Peto seu apoio técnico. ew particularmente gostaria de spradecer Brendis Liddiard Laurem, Eleanor Tedford ¢ Tommy Perena, Pela valiose feedbuck sobs 0 estilo de minha escrita, eu saradgo # Jeny MacKnight Peto seu constanie apoio, apradeco & minha whanau, pariculrente aos ‘meu pais, Hinini ¢ June Mead; és minhas ies, Aroha e Hinawr; 20 meu marido, Graham, ¢ 4 minba filha, Kapua; 4 minha eunhads, Chen! Waicea-Lterangic & mints outta mae, Paeas €a outros entes familtares, apenas por serem quem sto ‘AgRADECIMENTOS D0 TRADUTOR A races sos companies intlectais que contrnram para que este tabalho se tornasse realidade: 0 amigo e professor da Universidade do Texas, Flavio de Azevedo, por me apresentar esta obra «Etienne €. 8, Vaccareli,co- ordenadora académica de Setor Fitoral da UFPR, pela -evisio textual; e a0 dr. Francisco R$. lanocéncio, membro da Editora UFFR, pela revisio da tradugzo, : . ) , Suninio Uncougto 11 Coima 1 “mperialismo, histéria, eseritae teoris / 31 Cornao 2 ‘A pesquisa através dos olhos imperiais / 57 Curmno 3 Colenizando conhecimentos {75 Coiuo 4 ‘Aventuras de pesquisa em terras indigenas {95 Cerio 5 Notas de ld de balxe / 113, Coriruo 6 (© projeto dos pavos indigenas:definindo wma nova egenda / 127 Corinna 7 Articulando uma agenda de pesquisa indigena / 142 Cora 8 Vinte e cinco projetos indigenas / 165 Conimica 9 Responderido aus imperativos de ums agenda indigenss tum estude de case maori / 189 Coico 18 Ruma ao desenvolvimento de metodatogias indigenas: a pesquise keupapa cer: / 209 Conewste ‘Uma Jornada pessoal / 223, Nos 227 Inmpopugko D. perspectiva do calonizad, uma posicio a partir de qual eu escrevo.eescolho privilegiar,otereno “pesquisa” estéindissociavelmente ligado ao colonialismoe 20 imperialism europeu. A palavra" pesquisa”, emsi,€ provavelinente una das mais, sujas do munde yacabular indigena, Quando mencionada era diversos contextos, provoca siencio, evoca memérias ruins, desperta um sorriso de confhecimento & de descomfiance. Els é t20 poderosa que os povos indigenas até escrevern poemas seu respelto, A forma como a pesquisa cientficaesteve implicada nos piotes ex- cessos do colonialisme mantém-se como uma histdra lemlatade por muitos povss colonizados em tedo o mundo, E uma historia que ainda fere, no mais profundo sentido, a nossa humanidade. Apenas saber que alguém medi nossas “faculda des" pelo preenchimento dos ossos de nassos ancestrais com semente de milheto « equiparou a quantidade de sementtes assim contida com a nossa capacidade de pensar ofende nosso senso de quem ¢ do que somos: Incomoda-nos saber que 0s pesquisadores ¢ intelectuais do Ocidente podern presuntir que conhecem tudo o que ¢ possivel sobre nds, com base em um breve encontre com alguns individwos de nossa comunidad, Assusta-nos o fate de que o Ocidence possa desefar, extrair e reivindicar posse de nassos modes de conhecer, de nosse imagem, das coisas que crlamos e produzimos,e ao mesmo tempo rejeitar as pesscas que criaram e desen- wolveram tas ideas, sabretudo negendo- hes oportunidaces para serem crisdoras dde sua prépeia cultura e de sua propria nacao, Enfurece-nos que préticas vincular das ao timo séeulo, © a séculos anteriores a este, ainda sejam empregadas pare negar a legitirnidede das reivindicagSes des poves indigenas pelo dieito &existén- cia, & terra e aos territdvios, pelo direito de autodeterminago, pela sobrevivéncia de nossas Kinguas e formas de conecimente cultural, pees nossos recursos nata- raise pelos sistemas que adotamos para viver em nossos ambientes Essa memiria coletiva do imperialismo tem se perpetuado por melo de mecanismos utilizados para coletar,classificar e reapresentar de diversas for- Ucncao reo rr eps ogg 12 mas o conhecimento a respeite dos poves indigenas no Ocidente, e em seguida, através dos ollios dos ocidentais, voltaram-se também aos colonizados. Edward Said refere-se a esse processo como utn discurso ocidental a respeito do outro que é amparado por “instituicdes, vocabulario, pesquisas, imagens, doutrina ¢ até burocracias eestiles coloniiais"De oordo com Said, esse processo tem fan- cionado parcialmente en razio do intercambto constante entre o académico & a construcio imagética de idelas a respeita do Oriente, A producie académica, le angumenta, é apoiada por ume instituigdo empresartal que fax “declaracbes 4 seu respeito [do Oriente], autorizando opinides sobre ele, descrevendo-o, co- lontzando-o, [ensinando acerca dele] governandio-o”, Nesses ates, tanto 0 co- mhecimento académico formal quanto ¢ informal, imoginativo, assim como as consteugdes anedétices do Outro, so erteelagads entre sl @ com as stividades de pesquica. Este lio situa a pesquisa como um lugar revelador da lta entre in teressese mods de conhecimento do Ocidentee lnteresses e modas de resistor ‘la do Outro. Neste exemplo, 0 Outro tem-se constitufdo com um nome, um ros- to, una Wentidade particular, a saber: povos iidigenas. Ethara seja mais consusm (com excegie da pesquisa feminista) escrever a respeito da pesquisa no Ambito de um quadro de abordager especificamente disciplinar ou cientifica, é extre- tmarnente dificil discutir metodologia de pesquisa e povos indigenas de maneita simaltéren, sem que se faca uma andlise do imperiatismo, sem compreender as cconiplexas maneiras pelas quais @ busca de conhecimento esté profundamente Incrustada nas mtiltiplas catnades do imperislismo e das praticas coloniais. MMuitos pesquisedores, académicos ¢ colsboradores tendem a ver seus projetos de pesquisa como algo que presta um grande bem para a “humanida- de", ou gue serve a um objetivo emancipatério especifico para uma comunidade oprimide. No entanto, a crenga no ideal de que o objetivo primaio da pesquisa Gentifica ébeneficiaralaumanidade ¢ tanto um reflexe ideoldgico quanto resul- tado de win treine acadeémico, Tal fato se torna to subestimado que multos pes- quisadores simplesmente incorporam tas ideas ese pressupeiem seus represen tantes natarais ao trabalhar com outras comunidades. Povos indigenas de todo ‘6 mundo, poréin, tém outras bistérlas para contar, que ne apenas questionam anatureza desses tdeais e das priticas que eles tém gerado, mas também sezvem para proferir um relat alternative: a hisairia da pesquisa ocidental através dos olhos de colonizado, Essas contra-histérlas slo poderosas formas de resisténcia, Fepetidas « compartithadas em diversas comunidades indigenas. £ com certeza ruitos powos indigenas e suas comunidedes nao diferenciam pesquisas cient(- 12 Lite Seen ficas ou "“genutinas” de formas amaderas de coleta de in‘ormagao, abordagens Jornalisticas, produces cinematogeficas ou outras formas de “pegar” o cone. cimento indigena que sobreviveu ao longo dos séculos. 0 efeito das narretivas de viajantes, confoense apontado pelo fissofo francés Fousault, tem contribuide tanto para o conhecimento do Ocidente sobre si mesmo quanto para a aquisi- fo sistematica de dados cientificos, Segundo certas correntes do pensamento indigena, a coleta de informacées pelos cientistas foi to aleatsla, ad hee e pre+ judicial quanto 2 realizada por amadores. Sob essa perspectva, nto ha diferengs alguma entve a pesquisa “real” ou cientifica e qualquer ovtra realizada por vsi- tantes curioses ou aventureizos. ste livto reconbece a importancia da perspectiva indigena sobre a pes- ‘quisa e tenta explicar como e por gue tais pontos de vista se desenvolverat, onde as Uma obra escrita por alguém que cresceu entre comunidades indigen: histérias a respeito da pesquisa e particularmente acerca dos pesquisadores (os sujeitos que realizam as pesquisas) estao entrelacadas coma histérias (a respeito) Estas foram contos de alerta, em de todas as formas de colonizagio e inj que a narrativa de superficie no s¢ compara em imports aas exensplos sub- jacentes, nos quais as convencées culturais foram quebradas, os valores foram negedos, pequenas provas foram descartadas ¢ pessoas chaves foram igaoradas. 0 poder da pesquisa nao estava nas visitas realfzadas pelas pesquisedores a n0s- sas comunidades, nem em seu trabalho de carapo e nas questies descespestesas frequentemente formuladas por eles. 0-mator dos perigos, no entanto, residia nas politicas que foram introduridas gradativamente em cada aspecto de nossas vides, legitimadas pela pesquisa ¢ frequentemente fonentades por ideclogias be fato, muitos peequisadares no indigenas so ainda hastante respeitados & apreciados pelas comunidades com as quais tém convivido. Em um nivel guiado ‘stritamente pelo senso comum, falava-se da total inutilidade de tas pesquisas para nés do mundo indigena, o que contrastava com a absoluta utiidade que o- rnham pars aqueles que a manuseavam como um instrumento para o seu prio roveito. Tais pesquisas nos informavam de coisas que is jd sablamos, suge- iam outras que nfo iriam funcionar, econferiam carveite profissional a pessoas que ja tinham emprego. “és somas as pessoas mais pesquisadas no mando” & ‘um comentério que eu tenho owvido frequentemente nas mais distintas corau- nnidades ind{genas. A veracidade desse comentirio & sent importincta 0 que € necessirio considerar seriamente é 0 sentimento de pes2 « ceticisma aio pro- nunciado que essa mensagem carrega. Cece eoas Esse ceticismo deve ter sido suficientemente poderoso para suprimir qualquer autorrespeito da pessoa indjgena ao ser associada a um objeto de pes- quisa, Obviamente, esse nao foi o meu caso, o que leva A minha outra motiva- Ho para escrever a respeito dos poves indigenas e a pesquisa, Este & um livro que tenta fazer algo mais do que apenas desconstruir © conhecimento cienti- fico ocidental, recontando nossa prépria historia ou compartilhando histérias de horrar dos poves indigenas a respeito das pesquisas. Em um marco teérico descolonizador, a desconstrusao & parte de um projeto muito maior. Descons- truira historia, revelar textos subjacentes e dar voz a coisas que geralmente so conhecidas intuitivamente de fato nao ajuda as pessoas a melhorar suas atuais condigoes, Tais priticas fornecem palavras, possivelmente insights, que expli- cam certas experiéncias ~ mas elas nao livram ninguém da morte. E é com esse sentido de realidade que a segunda parte deste livo foi escrita. Enquanto comu- nidades indigenas tém medos legitimas com relaglo a perda de conhecimentos culturais ¢ intelectuais, e tém trabalhado para ganhar atengéo internacional e protecdo por meio de pactos que tratam ce tais assuntos, muitas delas continu- ama viver sob condides politicas e sociais que perpetuam niveis extremos de pobreza, doengas crénicas e escassas opertunidades educacionais.* Seus filhos ppodem ser retirados & forca de seus bragos, “adotados” ou colocadas em uma ‘nstituiglo social. O¢ adultos podem 2er ti vieiados em éleool quanto seus fills © sio em cola; eles podem viver relacionamentos destrutivos, que so formados € constituidos pelas condicdes de empobrecimento materiale estruturados por regimes polit smente opressivos. Enquan:0 vivem dessa maneira, eles sio cons- tantemente bombardeados por mensagens que afirmam sua falta de valor, sua preguica, sua dependéncia e sua deficiéncia das mais “altas" qualidades huma- hha. sso se aplica tanto as comunidades indigenas situadas em nagSes de primei- ro mundo quanto as que se localizam em patses em desenvolvimento, Dentro de realidades sociais como essas, questdes a respeito do imperialisma e dos efeitos da colonizagao podem ser vistas como meramente académicas, pois a sobrevi- véncia fisica é muito mais urgente, 0 preblema é que o esforgo constante de governs, estados, sociedade e instituicées para negar a constituicao histérica de tals condigdes tem levado simultaneamente negagdo de nossos apelos por humanidade, de nossa condigio de povos dotados de historia, enfim, de todo sentimento de esperanga. Concordar significa nos perdermos por inteiro e implicitamente consen- tirmos com tudo o que se tem dito sobre nds. Rsistr élimitarmo-nos as mar- Sth gens, recuperarmos 0 que fomos e refazermo-nos. 0 pasiado, nossas histérias locais e globais, o presente, nossas comunidades, culturas, linguas e préticas so- ciais~ todas essas coisas podem ser espacos de marginalizagdo, mas também se tornam espagos de resistencia e esperance, E é nesses espacos que um niimero cada vez maior de académicos e pes- quisadores indigenas comecam a tratar de questdes sociais no ambito de um quadro mais amplo de autodeterminaciio, descolonizagae ¢ justiga social. Essa crescente comunidade internacional de académicos e pesquisadores estuda de modo mais amplo as convengées, as abordagens metoddlégicas e de pesquisa indfgenas. Seus membros claramente se identificam como pesquisadores indige- nas, fundamentados academicamente por perspectivas de andlise de pesquisas criticas e feministas; baseiam-se em contextos,histérias, tas ¢ ideais especifi- camente indigenas. Além disso, muitas comunidades e organizacdes indigenas tém desenvolvido orientagdes e diretrizes éticas e politicas de controle das ati- vidades de pesquisa e dos seus resultados, com base na letura de documentos e em discussbes coletivas. ‘A segunda parte deste livro dedica-se a tratar de alguns dos problemas que atualmente sio debatidos pelas comunidades indigenss, os quais se referem as nossas prioridades e problemas, Prioridades que ainda :ém sido articuladas claboradas em um contexto de resisténcia a nevas forma: de colonizaglo e que cexigem uma compreensio dos modos de formular perguntas ¢ de buscar respos- tas para as nossas préprias preocupacdes. Em outras palavras, a pesquisa nao é tum exerciclo académico inocente ou distante, mas uma a:ividade que tem algo «em jogo, subsidiada por um conjunto de condigdes polities e socials, Se em certo sentido este livro é simplesmente mas uma contribuigdo a respeito das maneiras como os pesquisadores das ciéncias sciais em geral pen sam a respeito de metodologias ¢ abordagens de pesquisa - neste caso em parti- cular, entre pessoas e comunidades que mantém um alto desprezo pela pesquisa =, ele nao foi escrito com essa intengio, Pelo contrario, ete livro é enderecado amente aqueles pesquisadores que trabalham com, para e ao lado das ‘comunidades e que escolheram identificar a si préprios como indigenas, Um n- mero crescente desses cientistas se autodefinem como indfgenas, embora sua formagio tenha ocorrido dentro da academia ocidental e com metodologias disciplinares especificas. Muitos pesquisadores indigenas, contudo, tem lutado individualmente para lidar com as desconexées evidentes entre as exig@ncias de pesquisa, por um lado, eas realidades que encontram nas suas prdprias ¢ em Uso iis: ep epmindges outras comunidades indigenas com as quais compartilham relagdes de convi- véncias a0 longo da vida, por outro, Existe um niimero de questdes éticas, cul- turais, politicas e pessoais que podem apresentardificuldades especificas para pesquisadores indgenas que, em suas préprias comunidades, trabalham em par: te como inside ' € sio com frequéncia empregados para este fim, e em parte como outsiders”, em razdo de sua educagao ocidental ou porque podem atuar além das fronteiras de clis, tribes, difersncas linguisticas, idade e género, Ao ‘mesmo tempo, eles trabalham dentro dos seus projetos de pesquisa ou de suas instituigdes seguindo um paradigma particular ou modelo de pesquisa, ¢ por isso sao frequentemente marginalizados, por serem vistos como agentes de um zg7upo minoritério qualquer ou como representantes de um grupo de interesses val. Patricia Hill Collins descreve essa posigdo de pesquisa como “o sujeito de fora dentro da comunidade™ As vezes, quando em comunidade (em campo) ou quando sentados em uma reunido de pesquisa, eles podem sentir-se como den- tro-fora/fora-dentro, Com mais frequéncia, porém, pense que a pesquisa indige- nna nao ¢ tao simples nem tao complexa quanto parece! No entanto, a mensagem que eu posso passar aos estudantes que ensino e aos pesquisadores que formo é que a pesquisa indigena é uma atividade kumilde e humilhante, ‘As comunidades e as instituig0es que apoiam os pesquisadores indigenas lesperam que las cejam capazes de analisar histér € criticamente o papel da pesquisa no mundo indigena, Em geral, essa capacidade de anslise tem sido ad- ‘quirida organicamentee fora da academia. Apesar da extensa literatura arespei- toda vidae dos costumes dos poves indigeras, hd poucos textos criticos que ado- tam termos indigenas ou seus sinénimos locais quando se trata de metodologias dde pesquisa, Andlises criticas realizadas per pesquisadoras feministas, por teéri- 0s crtieas ou por estudiosos negros e afro-americanos tém-nos proporcionado ‘modos de falar a respeito do conhecimente e sua construgao social, bem como de metodologias e de politicas de pesquisa. Sobretudo, as palavras que se aplicam aos pesquisadores indgenas tém sido inseridas nos textos, o que nes ajuda a ler ‘nosso préprio mundo por meio de nossa prépria cosmovisao. Espero que o que aqui foi escrito abra espaco para futuros didlogos no interior de um quadro de referdncia que privilegie a presenca indigena, que adote "as palavras” (como co- © terme inser” referee sgl pesqusadr ce prtnc, inter u&proximo de uma o> sunliae dipeen DT) . =“ . Gir oss ver ler gu ao pegusadr eran comune qe portants, em ‘pouco ou nenhum vinculo com a coletividade incigena pesquisada. (N-T.) oe 16 Und Sot lonialismo, descolonizacao, autodeterminacao), e que reconhega a continuidade dde nossa existéncia. Por essa razdo, esta obra nao foi escrita como um livro téc- nico a respeito da pesquisa para sujeitos que usam a linguagem académica, mas ‘como um livro que situa a pesquisa em um contexte histérico, politico e cultural ‘muito mais amplo e entao examina sua natureza critica dertro dessa dindmica 0 termo “indigena” € problemético porque parece agrupar um grande rimero de populagdes muito distintas e cujas experiéncias sob o imperialismo tém sido significativamente diferentes. Outros termos coletivos também em uso so “primeiros povos” 1a", “aborigenes” ou “povos do quarto mundo". Palavras que aqui nao serdo adotadas, embora nfo se negue as poderosas visées de mundo implicitas em tais termos, tanto em nosso préprio quadro cultural quanto em outros. ‘Alguns grupos preferem ser caracterizados considerando nossos vinculos coma Mae Terra e relagdes de significacio profundamente espirituais. Um fend- meno recente que particularmente explica tal situagao é a fascinagdo ocidental pela Nova Era (New Age) ¢ sua enfase nos significados espirituais indigenas, 0 que disponibiliza mais uma vez nossos sistemas de crengas para serem garim- pados e explorados. Em alguns contextos como o da Austrilia e da América do Norte, a palavra indigena traduz uma maneira de incluir muitas e diversas comu- nidades, grupos linguisticos e nagSes, cade qual com sua prépria significagio, dentro de um tinico grupo. Em outros contextos,tais comona Nova Zelandia, os termos maori ou tangata whenua sao usados como termos universals com muito mais frequéncia que “indigena”, a0 mesmo tempo sdo adotados também termos de distintas origens tribais para diferencié-as entre st. Embora a palavra mao- 1i seja uma expressao indigena, ela tem sido identificada como um termo que encerra uma relacio colonial entre os maorise 0s pakeha, a populacao colonial no indigena. No entanto, antes da colonizacao jé existiam termos que muitas comunidades de todo 0 mundo até hoje usam para se referi asi préprias, Outras comunidades se tm feito conhecidas por meio de outros vocdbulos, nomes que inicialmente foram talver insultos usados pelo colonizader, porém, posterior- ‘mente se poitizaram como significados poderosos para aformacéo de uma iden- tidade contestadora, como a que ocorre por exemplo com aexpressio “Austria ‘negra’ adotada pelos ativistas aborigenes. Dentro dessas categorias criadas para descrever e caracterizar existem outros termos que descrevem diferentes niveis de relagdes e significagdes estabelecidas internamente e entre grupos distintos. ‘Alguns desses termos se referem a sistemas de classificagio usados dentro de eee mutes: psa e pines ‘um contexto colonial local, ¢ outros tratam de uma relacao anterior com grupos Cujos territérios agora se estendem por diferentes estado. A expresso “povos indigenas” é relativamente nova, Surgiu na déca- dda de 1970, durante as primeiras lutas do Movimento dos indios Americanos (AIM) e da trmandade dos fndios Canadenses. Trata-se de uma expresso que internacionaliza as experiéncias, a5 questées e as lutas de alguns povos do mundo colonizado.’0 “s” final em “povos indigenas” tem sido defendido com bastante vigor por ativistas, devido ao direito desses povos & autodetermina ‘fo. Ele é também usado como um modo de reconhecer que existem reais di- ferencas entre povos indigenas distintos.*Tal expresso tem permitido que as vozes das povos colonizados sejam expressas estrategicamente na arena in- ternacional, Ela tem funcionado como uma plataforma sobre a qual sé retinem comunidades e povos, transcendendo seus préprios contextos ¢ experiéncias sob acolonizacio, com 0 objetivo de aprender, compartilhar, planejar, organi- zar e lutarcoletivamente pela autodeterminacao em cenérios locais¢ globais. Desse modo, as populagées indigenas do mundo fazem parte de uma rede de povos, Elas compartilham suas experiéncias de pessoas subjugadas, que tive- ‘am suas terras e suas culturas saqueadas e foram sujeitas também & negacao de sua prépria soberania por parte de ume sociedade colonizadora que chegou a dominar # determinar a forma e a qualidade de suas vides, mesmo depois de ter se retirado formalmente. Como destacou Wilmer, “os povos indigenas representam 0 negécio nao terminado da descolonizaca A palavra “indigena” é utiizada também de maneira completamente ‘posta as definicées dos termos jd descritos, mas que so significados igualmen- te legitimos do vocébulo propriamente dito, Por exemplo, usam-na para descre- ver ou dar conta da singularidade da tradizdo colonial, seja esta literdria e/ou feminista. Tal expressdo também tem sido poiticamente cooptada pelos descen- tes de colonos que reclamam uma identidade “indigena” por terem acupado ese estabelecido em terras indigenas no decurso de varias geracdes, ou simplesmen- te por haverem nascido em taislocais. No entanto, tendem a nio participar dos ferns de povos indigenas, nem estabelecer aliangas para apoiar as demandas de autodeterminagao das populagSes cujos ancestrais em algun momento ocupa- ram a terra que eles “domesticaram” e na qual se assentaram, Tampouco lutam ativamente como sociedade pela sobrevivéncia das linguas, dos saberes ¢ das culturas indigenas. Seu idioma e cultura natais estao em outro lugar; sua leat- 1 ena Sth dade cultural esté em alguma outra parte. Sua forga, seu privilégio, sua historia, estio todos investidos em sua heranca de colonizadores. Parte do projeto deste livre é “repesquisat” (researciing back), na mes- rma tradigdo de “reescrever” (wrinting back) ou “recontar” (raking back), que caracteriza grande parte da literatura pés-colonial ou anticolonial." Esse pro- jeto tem exigido uma analise do colonialismo, “conhecer como 0 colontzador ‘conhece”, recuperar a nossa identidade e retomar a luta pela nossa autodeter~ rminacao ou soberanis. ; Pesquisa é um dos modos pelos quas 0 édigo subjacente ao imperialism «© 20 colonialismo sdo ambos regulamentados e percebids. A regulamentacao é realizada por meio das regra formais de cada disciplina académicae paradigma cientifico, epelasintituigdes que 0s apoiam (inclusive o Estado). Tal condicto 6 percebida na miriade de representacies e construcdes ideok 1s pesquisas ¢ em obras “populares” e nos principios que ajudam a selecionar ce recontextualizar as construcées apresentadas pela midia, pela histéria oficial peo curicule escola Ashi Nandy sstenta que as estruturas do colonialsmno contém regras pelas quais os encontros coloniais ocorrem e sio “gerenciados 05 diferentes modes pelos quais esses encontros coloniais ecorrem e so admi- nistrados dao conta das diversas formas em que se materializam as regras € 05, cédigos subjacentes que modelam, em sentido amplo, o que é ou nao possivel. Em um sentido estrito, a pesquisa tem sido 0 encontro entre © Ocidente e 0 Ou- tro, Muito mais é conhecido de tum lado desses encontros que do outro lado. Este livro busca reportar, em certa medida, 05 pontos de vista e as formas em que se articulam a perspectiva do lado do Outro. A primeira perte da obra explora tépicos que giram em torno do tema do imperialismo, da pesquisa e do conhe- clmento.Eles podem ser lidas em certo nivel como uma na-rativa a respeito da hhistoria'da pesquisa e dos povos indigenas, mas fard multo mais sentido lé-los ‘como uma série de ensaios a respeito de um tema comum, que se entrecruzam ese sobrepoem. ‘Um dos problemas analisados tem relagdo com @ maneira como a pes- {quisa foi insttucionalizada nas colénias, ndo apenas por neio das disciplinas académicas, mas também por meio de sociedades cientificas ¢ académicas e por redes de pesquisadores. A implantacdo de insttuigdes de pesquisa, incluindo universidades, a partir dos centros imperiais europeus permitiu que interesses cientificos locais fossem organizados e integrados no sistema colonial. Muitos ean mes: pou pains dos primeiros pesquisadores locais néo foram formalmente “treinados” e mui- tas vezes eram apenas aventureiros e pesquisadores amadores. 0 significado das narrativas dos viajantes e aventureiros ¢ o modo como eles representaram 0 Outro perante uma plateta geral na volta & Europa fixou ideias no meio social e cultural. Imagens do chefe “canibal”, do indio “vermelho", do médico “bruxo” ou da cabesa “tatuada” ou “encolhida”, Histérias que falavam da selvageria ¢ dd primitivismo geraram ainda mais interesse, ¢ portanto novas oportunidades para novamente representar o Outro, As histérias que os viajantes relalavam eram geralmente as experiéncias as observagées do homiem branco, crjas interagdes com as “sociedades” ou “povos” indigenas foram construfdas em torno de suas préprias concep¢Bes de género e sexualidade a partir de seu meio cultural. Observacées a respeito das ‘mulheres indigenas, por exemplo, com tase nas concepcSes do papel da mulher nna sociedade europeia, fundadas nas nodes ocidentais de cultura, regio, raca ce classe. Tratados e negécios poderiam ser resolvidos com os homens indigenas. As mulheres indigenas eram excluidas desses encontros "sérios’. Como Memmi destacou em seu “retrato mistico do coionizado” “o uso de termos zoolégicos (aninalescos) para descrever poves primitives foi uma forma de desumaniza- ao". Essas imagens tornaram-se quase permanentes, e profundamente arrai- sgadas no modo como « mulher indigens é considerada ou vista. “Com que fre- quéncia nés lemos no jornal a respeito da morte ou assassinato de um homem nativo, e no mesmo jornal sobre a vitimizagZo de uma indigena (female Native), como se fssemos uma espécie de vida arimal sub-humana?” pergunta uma mu- ‘her nativa canadense, Lee Maracle. “Uma égua (female horse), uma india, uma fémea nativa, embora todas as outras ressoas sejam chamadas simplesmente de homem ou mulher”.* Do outro lado do Pacifico, Patricia Johnston Leoni Pihama, ambas escritoras maoris, citam a descrigo que Joseph Banks fez das Jovens maoris: “eram arredias como potrancas indomadas”. De mesmo modo, mulheres aborigenes da Australia relataram histérias de como foram cagadas, violentadas e em seguida assassinadas como animals 0s relatos dos viajantes tiveram grande alcance. Foram disseminados pela imprensa popular, nos piilpitos, em folhetos de viagem preparados para (05 imigrantes e por meio de exposigies arais. Apelavam ao voyeur, 20 soldado, ‘40 romancista, ao missiondrio, a0 “paladivo", ao aventureiro, ao empreendedor, 40 funciondrio piblico do império e ao intelectual iluminista, Tais relatos tam- bbém apelavam aos desmoralizados, aos pabres e a todos aqueles cujas vidas no 2 Lalit sn cofereciam possibilidades em suas préprias sociedades imperiais, e que por isso optaram por migrar como colonos. Outros, também privados de poder, foram cembarcados is col6nias para que estas se convertessem em suas prisdes. Afinal, todos eram herdeiros do imperialismo e haviam aprendido perfeitamente os dis- cursos de raga e género, as regras do poder, a politica do colonialismo. Eles se converteram em colonizadores. ‘A segunda parte do livro examina distintas metodclogias e abordagens que foram desenvolvidas com 0 propésito de assegurar que as pesquisas realiza~ das com as povos indigenas possam ser miais respeitosas, cas, compreensivas tteis. Os capitulos da segunda parte no devem ser lidos como um manual de “como fazer", mas como uma série de relatos e pautas que dio conta de uma am- pla gama de problemas relacionados & pesquisa. 0 feminismo ea adogao de abor- dagens mais criticas tém exercido uma grande influéncia nas ciéncias sociais. ‘Na academia e em certas disciplinas se tém aberto importantes espagos para falar de maneira mais criativa a respeito da pesquisa com grupos e comunidades ‘espectfcas: as mulheres, os oprimidos economicamente, ¢s minorias étnicas € 0s povos indigenas. Essas diseuss6es tém sido fomentadas tanto por grupos poll- ticos externos & academia quanto por meio da vinculagéo com os problemas que sturgem a partir de pesquisas com pessoas reais, vivas, que respiram e pensam. ‘Comunidades ¢ ativistas tém desafiado abertamente as coletividades de pes sadores com relagdo a préticas e atitudesracistas, a predisposigdes etnocéntricas ‘¢a praticas investigativas exploradoras, as quais server como um sonoro alerta aadvertir que as pesquisas com as comunidades indgenas ndo podem continuar sendo realizadas como se os pontos de vista dessas comunidades nfo contassem ‘ou como se suas vidas ndo tivessem importéncia, No contexto indigena contemporéneo existem importantes temas de ‘pesquisa que ainda sao bastante debatidos. Eles podem ser resumidos mais ade- quadamente por perguntas criticas que geralmente so proferidas pelas comu- nnidades ¢ ativistas indigenas de diversas formas: Que pesquisa é essa? A quem ele serve? A quais interesses ela serve? Quem vai se beneficiar dela? Quem ela- borou suas questées ea partir de qual referencial? Quemré executé-la? Quem id escrevé-la? Como seus resultados sero divulgados?® Enbora haja inimeros pesquisadores que lidam com estas questdes com honestidade, existem muitos outros que ndo, que utilizam tais quest8es com cinismo, como se estivessem ape- nas cumprindo um rito burocratico politicamente correte, 0 que pede surpre- ender muitas pessoas é que respostas que parecem ser “corretas” e desejéveis Asolo ec: equa po ins podem ainda assim ser consideradas incorretas. Tais quest6es sao apenas parte de um amplo conjunto de julgamentos com base em critérios para os quais 0 Pesquisador nao pode estar preparado, tais como: Seu espirito esté livre? Ele tem um bom coraciio? Que outra bagagem elesestio carregando? Sao itis para nés? Eles podem consertar o nosso gerador? Eles podem realmente fazer algo? 0s problemas enfrentados pelos pesquisadores indigenas que buscam tra- bahar em seus préprios contextos tém natureza um pouco diferente, Se eles pertentcem a uma comunidade, sdo frequentemente avaliados a partir de crité- rios dessa comunidade - sua origem familiar, status, politica, idade, género e re- ligido -, tanto quanto pela percepsiio que se tenha de suas habilidadese técnicas. (O que causa certa frustracao a alguns deles é que, mesmo quando suas préprias comunidades tém acesso a um pesquisado indigena, elas ainda preferem ou op- tam por substitul-lo por um nao indigena, 44 varias razées que explicam tal fato; ppor exemplo, algumas delas estdo relacioradas percepeao (mais) enraizada de que os pesquisadores indigenas nunca se-ao suficientemente competentes, ou que eles poderiam divulgar aspectos confdenciais de sua propria comunidade, ‘ou ainda que o pesquisador poderia ter algum plano nao revelado ou oculto. Por Imotivos bastante legitimos, os pesquisadores indigenas podem nio ser as pes- soas mais indicadas para certas pesquisas ou podem ser rejeitados porque no gozam de credibilidade suficiente. ponte central & que, por estarem dentro da comunidade, esses pesquisadores operam circunscritos a um mimero de dinfimi- cas especificas que requerem deles a necesséria sensibilidade, destreza, maturi- dade, experiéncia e sabedoria para ultrapassar esses obstaculos. Os professores ¢ supervisores néo indigenas, de modo gersl, no esto preparados para auxiliar pesquisadores indigenas nessas éreas, além do que, ha poucos professores indi- genas, o que leva muitos estudantes a “aprenderem fazendo”, Eles geralmente sofrem e falham nesse processo, Eu tenho ouvido de pesquisadores indigenas que os estudantes so muitas vezes mal preparados ou "queimados”. A segunda parte deste livro fornece algumas alternativas para se discutirtais questées. Ao escrever um livro que enfoca a 2esquisa, inseri uma série de experi ‘ncias e reflexdes a respeito tanto de temas indigenas quando da investigacio acesso as matérias-primas e trans- ferir eficientemente mercadorias do ponte de origem ao centro imperial, elas também se prestaram a outras fungées. 'Nio foram apertas 0s povos indigenas os subjugados a servigo da grande ‘empresa imperial; os europeus também foram submetidos a0 seu controle. Os postos coloniais também eram cenérios culturais que salvaguardavam ou repre- sentavam uma imagem do que significava 9 Ocidente ou a “eivilizacao”. As co- lénias nao eram exatamente réplicas do centro imperial nos aspectos cultural, econdmico ou politico. Os europeus residentes nas colénias no eram cultural- mente homogéneos, 0 que causava luis identtdrias nas comunidades woloniza- das. A riqueza e as dferencas de classes eriaram poderosos interesses entre os colonos, que vieram @ dominar a sua politica. 0 colonialismo foi em parte uma imagem do imperialismo, uma realizagao perticular da imaginacio imperial. Foi também, em certa medida, uma prefiguracio do que a na¢ao iria se tornar no fu- ‘tro, Nessa figuragdo reside a imagem do Outro, as sutis nuances e os contrastes ‘marcantes por meto dos quais eram perceb das e tratadas as comunidades indi- senas, o que tornou a histéria do colonialismo parte de uma grande narrativa e, ainda assim, também parte de uma experigncia muito local e especifica. Uma constante reelaboracao de nossa compreensdo do impacto do impe- rialismo e do colontalismo é um importante aspecto da politica cultural indigena ue serve como base para um discurso ertico, Entre taiseriticas hd duas cor- rentes principais. Uma vem da nocio de autenticidade, de uma época anterior a colonizacio, em que éramos povos indigenas intocedos, Tinhamos a absoluta autoridade sobre nossas vidas, nasciamos ¢ viviamos em um universo que era inteiramente construido por nés. Nao pedimos, ndo necessitavamos, nem que- lamos ser “descobertos” pela Europa. 4 segunda corrente discursiva (da lin- 36 ei Sih guagem) critica indigena exige que analisemos como fomes colonizados, para sabermos 0 que esse processo significou em termos de nosso passado recente ‘eo que significa para nosso presente e futuro, No entanto, as duas correntes se inter-relacionam. 0 que é particularmente significativo nos discursos indigenas é que as solucdes propostas se combinam em um tempo anterior ~ 0 tempo de colonizagao, e um tempo anterior a esse -0 tempo pré-colonizardo, A descoloniza- ‘fo envolve ambos os conijuntos de idetas. “Apesar do que jé foi exposto, ha desafios relativos & wnaneira pela qual os povos indigenas pensam e falam a respeito do imperialistro, Quando a palavra ‘globalizagao substitui a palavra imperialismo ou quando o prefixo "pés" se an- tepée a colonial, é ndo estamos falando simplesmente de elaboracSes histéricas que, todavia, perduram em nossas consciéncias. A globalizacio e as concepdes de uma nova ordem mundial representam desafios distintas para os povos indi- genas. Entretanto, estar & margem do mundo tem acarretado consequéncias fu- nestas, e permanecer incorporados ao mercado mundial leva a diferentes impli- cagdes, que por sua ver requerem a elaboracdo de novas formas de resistencia, Contudo, as discussées pés-coloniais t8m gerado também certa resistén- ia indigena, néo tanto pela forma como o centro cultural literdrio se recontex- tualizou a partir dos espagos coloniais anteriormente considerados marginais, ‘mas, sim, pela ideia de que o calonialismo tivesse findado, de que este asst estava conclufdo. Iso foi mais adequadamente expresso pelo ativista aborigene Bobbi Sykes, que questionou em uma conferéncia a respeito do pés-colomialis- ‘mo: “O qué? Que pés-colonialismo? Por acaso jé acabou?”. Também ha entre os ‘académicos indigenas a suspeita velada de que a moda do pés-colonialismo te- tha se convertido em uma estratégia para se reescrever e reautorizar os privilé- ‘Bos dos académicos ni indigenas, dado que o campo de discurso “pés-colonial” tem sido definido de diversas maneiras que, todavia, permitem excluir 0s povos indigenas, nossos saberes e nossas atuais preocupacdes. [As pesauisas realizadas em meio as condicdes da modernidade tardia e do fim do perfodo colonial continuam implacdvels e trazem consigo uma nova onda de exploracio, descobrimentos,usos ¢ apropriagSes.Os pesquisadores entram nas ‘Comunidades armados com boas intengSes em seus bolsos dianteiros e com paten- tes tos bolsos de trs, trazem medicamentos ds populagdes e extraem seu sangue ppara andlise genética. Sem se importarem com quo abottndvel tenha sido seu comportamento, quo insensivels e ofensivas tenham side suas a¢des pessoais, seus atos e intengdes, alegando sempre o “bem da humanicade”. Pesquisas desse Deccan eas pque sings tipo sobre os povas indigenas se justificam pelo fim, nao pelos meios, sobretudo s€ 05 povos indigenas em questo podem ser definidos como ignorantes ou sub- desenvolvidos(selvagens). Outros investigadores recolhem ervas ¢ remédios tra- dicionais ¢ os levam para serem analisados em laboratérios ao redor do mundo, ‘Outros, ainda, recompilam os elementos ou bens imaterials: as crencas, as ideias a respeite de curas, acerca do universo, acerca das relagbes e formas de organizagao, as priticas erituais que paralelamente acompanham essas crencas, como sau- nas, técticas de massayem, cinticos, suspensio de cristais e uso de certas cores. ‘Acacada global por novos conhecimentos, novos materiais,novas curas, apoiadas or acordos internacionais como o GATT traz novas ameacas para as comunidades indigenas. Os temas atuais na agenda de mui‘as reuniées indigenas io a ética nas pesquisas, os meios pelos quais as comunidades indigenas podem se proteger € também seus saberes ea urgente necessidade de compreender no sé a legislacao nacional, mas também os acordos internacionais. A respeito do humano Acapacidaceimaginativa entre eles no €desenvolvida, ‘emboraaimaginagio dele cre asas quando se trata de sacraditarem superstigesabsurdas. (4.5. thompeon, 1850) ‘Uma das supostas caracterfsticas dos povos primitivos era de que nés nao conseguiriamos usar nossas mentes e intelectos, Nao podiamos inventar coisas, no podiamos criarinstituigdes nem histéria, nfo podiamos imaginar, ndo podi- amos produzir nada de valor, nfo sabfamos usar a terra, nem outros recursos do ‘mundo natural, ndo praticavamos as artes da “civilizagao”. Por falta de tis vir- tudes nés nes desqualificamos, ndo apenas da civilizagdo, mas de nossa propria humanidade. Em outras palavras, nés nao éramos completamente humanos al- ‘guns de nds ndo eram nem mesmo considerados parcialmente humanos. Ideias a respeito do que é humano em associagao com o poder de definir pessoas como ‘humans ou nao tinham sido inseridas no discurso imperial e colonial anterior «0 perfodo do imperialismo aqui mencionad>.” 0 imperialismo proporcionou os ‘meios pelos quais conceitos acerca do que se considera humano poderiam ser sistematicamente aplicados como formas de classificacao, por exemplo, median- te hierarquias de raca e tipologias de diferentes sociedades, A “ciéncia”,aliada 2 Lael sin ao poder imperial, permitiu que esses sistemas de classificagdo estruturassem relagGes entre 0s poderes imperiais e as comunidades indigenas. Said afirmou que 0 “oriental” foi em parte uma criagio do Ocidente, com base em uma combinagao de imagens constituidas por trabalhos académicos e de ficedo. Fanon, anteriormente, salientou que o colonizado foi trazido & existéncia pelo colonizador e que ambos, colonizadar ecolonizado, sto zonstrugdes mituas do colonialismo, Nas palavras de Fanon, “nés conhecemos um a0 outro muito bem®, No século XIX, 0s poderes europeus jétinhamn estabelecido regimes po- Iiticos ¢ formas de relagSes sociais que governiavam as interacées socials com ‘0s povos indigenas colonizados. Essas relagdes eram de genero, hierarquicas ¢ apoiadas por regras ora explicitas, ora implicitas. Uma mansira de dar forma as regras implicitas ou ocultas implicava recorrer ao principio de “humanidade” Considerar 0$ povos indigenas como nao sendo completamente humanos, ou traté-os explicitamente como nfo humanos, permitiu o dstanciamento e jus- tificou vérias formas de exterm{nio e domesticagao. Alguns povos indigenas (os “nao humanos”) eram cagados e mortos como animais; outros (os “parcialmente ‘humanos”) eram arrebanhados e colocados em reservas como criaturas que de- -viam ser amansadas, marcadas e postas para trabalhar. ‘Aluta para afirmar e reclamar nossa humaniidade ter sido um fio condu- tor doe discursoe anticoloniais 2 respeite da colenizacio e da opressio, Essa lta por humanidade geralmente tem sido inserida em um discurso mais amplo do hhumanismo: a reivindicagdo dos “direitos” humanos, a nocfo de um sujeito hu- ‘mano universal eas relagées entre ser humano e ser capaz de criar histéria, co- mhecimento e sociedade. 0 enfoque na afirmacao da humanidade deve ser visto dentro da andlise anticolonial do imperialismo e do que se consideravam como seus imperatives desumanizantes, os quais foram estruturados nos ambitos da linguagem, da economia, das relagdes sociais e da vida cultural das sociedades coloniais. A partir do século XIX, os processos de desumanizagao eram frequen- temente escondidos por tris das justificativas do imperialismo e do colonialismo disfarcadas pela ideologia do humanismo e do liberalismo,e pela afirmacao das demandas morais relacionadas com o conceito de “homem" civilizado, As justi- ficativas morais nao necessariamente impediram a continaa cacada 20s abori- ‘genes nos primérdios do século XIX, e tampouco 0 abuso histérica de diferentes povos indigenas, que persiste até 05 dias de hoje [No entanto, tém surgido novos problemas dentro dos esforcos em detfe- sada humanidade, considerando o declinio das ideologias relacionadas & nossa eosin mugs pia pings 29 suposta falta de humanidade. Os argumentos de Fanon ¢ de muitos escritores depois dele tém sido criticados por outorgarem um caréter essencialista & nos- + “natureza", por darem por assentadas as categorias bindrias do pensamen- to ocidental, por aceitarem os argumentos que apoiam o relativismo cultural, ppor reclamarem uma autenticidade que é demasiado romantica e idealista e por simplesmente se comprometerem com uma inversio da relagio colonizador/ colonizado que nao contempla a complexicade das relagdes de poder. Os povos colonizados tém sido obrigados a definir 0 que significa ser humano, jé que hé uma profunda compreensio do que significa ser considerado nao inteiramente hhumano, ser selvagem As dificuldades de tais processos, no entanto, tm esta- do profundamente relacionadas a construgSes a respeito das relagGes coloniais ‘em torno do binémio colonizador/colonizado. Essas duas categorias nio sio ‘uma mera oposicao, mas consistem em diversas relagSes, algumas mais clara- mente opostas que outras. Desentranhar um conjunto de relagées requer com frequéncia desconectar e desarmar as diferentes partes que constituem outras relagées. 0 binémio colonizador/colonizado nao leva em conta, por exemplo, 0 desenvolvimento de diferentes niveis dent-o de cada grupo e através dos dois ‘grupos, Milles de povos indigenas foram violentamente desalojados de suas terras a0 longo de varias geracaes ¢ escravizados, As terras para as quais eles foram levados eram territérios que jé tinham sido tomados de outros grupos 4e povos indigenas. A escravidao tanto quanto um sistema do imperilismo foi « expropriaco de territérios de outros povos. Alguns povos indigenas foram transportados a postos remotos, para supri- necessidades de mao de obra. Essa transferéncia cumpri os mesmos propésitos préticos que o translado e adap- tacdo de plantas e animais de interesse econémico. Por essa razio, em alguns lugares existem grandes populacdes de grupos nao indfgenas, que no obstante ‘tm sido também vitimas do colonialismo, mas que em vez de se identificarem ‘com os colonizados que habitam os locais para os quais eles foram transferidos, © fazem com o poder imperial, com o qual mantém relagSes ¢ para com o qual albergam sentimentos de fidelidade. Dito de maneira simples, os povos indi- genas foram transportados como mercadotias de um lado a outro do império. ‘Também houve relacdes sexuais entre colonizadores e colonizados, que levaram 4 formagao'de comunidades mestigas, que eram chamadas em inglés de "casta média" ou “raca média”, e outros termos que os estigmatizavam e que lhes nega- vam a possibilidade de pertencer quer & sociedade colonizadora, quer & indige- 1a, 0s filhos, produtos das relacSes sexuais “nistas", eram s vezes considerados 48 a St meio civilizados, outras vezes, porém, eram considerados piores que civilizaces. ‘hs leis eram frequentemente usadas pare regular tanto as categorias as quals as, ‘pessoas tinham o direito de pertencer quanto os tipos de relacdes que alguém de ‘uma categoria podia manter com uma pessoa de outra. Desde a Segunda Guerra Mundial, as guerras de independéncia e as lutas pela descolonizacio de uma parte das antigas colénias europeias tém demons- trado que a tentativa de se libertar pode envolver enorme violéncia:fisica, so- cial, econdmica cultural e psicolégica. A luta pela lberdade tem sido vista por ‘escritores como Fanon como um processo necessério ¢inevitavelmente violento entre “duas forcas que, por sua natureza mesma, opdem-ie entre si" Fanon, ‘ainda argumenta que a “descolonizacSo que estabelece a mudanga da ordem do ‘mundo é, obviamente, um programa de completa desordem’ Isso introduz ov- 10 implicito no imperialism, que é a ordem. 0 principio to importante pri da ordem fornece a conexio subjacente entre coisas, tais como: a natureza da relacio social imperial as atividades da ciéncia ocidental;«estabelecimento do comércio; a apropriagio da soberania;o estabelecimento da lei. Nenhuma gran- de conspiracao teve de ocorrer para que tivessem lugar os desenvolvimentos atividades simultaneos que aconteceram sob 0 imperialsmo, uma vez. que a atividade imperial ft dirigida por principios subjacentes fundamentalmente si- ‘ilares. Nandy se refere a esses principios como 0 “cédigo” ou a “gramética” do imperialismo.” A ideia de cédigo sugere que hé uma profunda estrutura que regula legitima as préticas imperiais. 0 fato de que as sociedades indigenas estiveram organizadas de acordo com seus préprios sistemas foi categoricamente descartedo por meio do que ‘Albert Memmi chamou de uma série de estratégias de negacio: nfo eram com- pletamente humanos, tampouco eram suficientemente civilizados para ter siste- mas organizados, nao tinham sistema de escritae, além disso, nem suas linguas, nem suas formas de pensamento, eram adequadas.” Fanon e outros escritores ais recentes, como Nandy, tém afirmado que o imperiaismo e 0 colonialismo trouxeram absoluta desordem aos povos colonizados, desconectando-os de suas hhist6rias, de suas paisagens, de suas linguas, de suas relagBes socials, e de suas formas de pensar, de sentir e de interagir com © mundo, Foi um processo de fragmentacto sistemética que ainda pode ser vista na dissecagao que se fer do ‘mundo indigena, cujas pecas foram estruturadas em disciplinas especializadas: (05 ossos, as mimias ¢ os crinios tiveram por destino os museus; a arte fol para 0s colecionadores privados; as linguas, destinadas aos linguists; 0s “costumes”, Dest means psuse posing 6 40s antropélogos; as crencas ¢ os comportzmentos, aos psicdlogos. Para desco- brir em que medida esse processo foi fragmentado, basta ir a um museu, a uma biblioteca ou a uma livraria e perguntar onde estdo localizados os povos indige- nas. No entanto, a fragmentacio nao é um fenémeno do pés-modernismo, como ‘muitos parecem afirmar. Para 08 povos indigenas, a fragmentacdo tem sido a consequéncia do imperialism. Aescrita, a histériae a teoria ‘Um aspecto chave da luta pela autodeterminagao tem incluido ques- tes relacionadas com nossa histéria como povos indigenas e a critica das formas como nés - 0 Outro - temos sido rearesentados ou excluidos de varios relatos. Cada tema tem sido abordado peles povos indigenas com a intencao de reescrever ¢ retificar a nossa posigao na histéria, Nés, 0s povos in nas, queremos contar a nossa prépria hist6ria, escrever as nossas préprias vers6es, & nossa maneira, para os nossos gréprios fins, Nao se trata simples- ‘mente de compor um relato oral ou uma genealogia do processo de nomear hhossos territérios ¢ os eventos que desataram a violéncla sobre estes, mas de dar vazio a uma poderosa necessidade de dar testemunho e de restaurar ‘9 espitite, para assim ressuscitar um mundo fragmentado ¢ moribundo. © sentido da histéria transmitido por esses enfoques nao é 0 mesmo dado pela histéria como disciplina; portanto, natural que nos relatos elas se entre- choquem, colidam umas com as outras. A escrita ou o letramento, em um sentido muito tradicional do termo, tem sido usado para determinar as rupturas entre o passado e o presente, o inf- io da histéria e 0 desenvolvimento da teoria." A escrita é considerada a marca dde uma civilizacao superior, e é com base nesse conceito que outras sociedades tém sido julgadas como incapazes de pensar critica ¢ objetivamente, ou como distanciadas das ideias e das emoges. A escrita é parte da teoria e é parte da historia, A escrita, a histriae a teoria se unem para formar terrenos-chave nos quais a pesquisa ocidental sobre o mundo indigena se constituiu, No entanto, como vimos no inicio deste capitulo, a partir de outra perspectiva, a idela de escrever e patticularmente de escrever teo 6 intimidadora para muitos es- tudantes ind(genas. Estando imersas na academia ocidental, as vozes indigenas tém sido esmagadoramente silenciadas; iso porque tal academia toma a teo- ria como instncia completamente ocidental, na qual foram elaboradas todas 42 una ast ‘as regras pelas quais o mundo indigena tem sido teorizado. Muitos povos in- digenas no acreditam ser possivel a prética, e muito menes a arte e a ciéncia de teorizar a respeito de nossa existéncia e de nossas realidades. 0 chamado de Frantz Fanon para que os intelectuais e os artistas indigenas criem uma nova literatura, para que trabalhem em pro! da construcio de uma cultura nacional depois da libertagdo, ainda se mantém como wm desafio. Embora esse chamado tenha sido respondido por escritores defiogdo, muitos académicosindigenas que trabalham nas cincias sociais ¢ em outras dreas lutam para escrever, teorizar € pesquisar como académicos indigenas. Ahistéria é importante para os povos indigenas? [sta parece ser uma pergunta trivial, porque a resposta que muitos pavos colonizados poderiam dar, creio eu, que “sim, a histrfa ¢ importante”. Porém, eu duvido que suas respostas sejam baseadas na nogio de histéria adotada pela academia ocidental. Crticas pés-estruturalistas da histéria, que se embasam for- ‘temente no pensamento pés-estrutural francés, tém se concentrado nas caracte- risticas e compreensdes de histéria como um projeto iluminista ou modernista. ‘suas criticas recaem simultaneamente sobre os conceitos de histéria liberal e ‘marxista. Foministas tém afirmado, de modo similar (mas nao necessariamente de uma posi¢do pés-estruturalista) que a histéria é a estéria de uma forma espe- cifica de dominacdo, sobretudo patriarcal, que se trata literalmente “da histéria do homem” (his story) Embora reconhegam as abordagens criticas da teoria pés-estruturalista € dos estudos culturais, para os povos indigenas esses argamentos nio consti- tuem uma novidade. Existem iniimeras histérias orals que relatam a experincia do que significa e do que se sente ao estar presente quando a prépria histéria é apagada diante de seus olhos, descartada como algo irrelevante, ignorada ou simplesmente percebida como devaneios lundticos de velhos borrachos. A nega- fo das perspectivas indigenas sobre a histéria atendeu a uma necessidade im- periosa da ideologia colonial durante o seu proceso impositive. Tal negacdo se éntende em parte porque tais perspectivas eram consideradas evidentemente *primitivas”e “incorretas"; contudo, mais fundamental ainda, porque elas desa- fiavam eresistiam & missio colonizadora. (0s povos indigenias também tém elaborado a sua prépria critica a respeito da maneira como a histérla tem sido contada sob a perspectiva do colonizador. esol mente: pei eps nges ‘Ao mesmo tempo, entretanto, os grupos indigenas afirmam que a histéria ¢ im- portante para entender o presente e que, sortanto, reivindicé-la é um aspecto erftco e essenctal no processo de descolorizagao. A critica a historia ocidental sustenta que esta & um projeto modernists que se tem desenvolvido paralela- mente &s crencas imperiais a respeito do Outro. A histéria se constréi em torno de um conjunto interconectado de ideias, que resumirei brevemente aqui. Ba- seio-me em uma série de debates realizados por pessoas indigenas e por escrito- res como Robert Young, J. Abu-Lughod, Keith Jenkins eC. Steadman.* 1.A ideia de que a histéria é um discurso totalizante © conceito de totalidade assume a possibilidade e o desejo de ser capaz de incluir absolutamente todo © conhecimento produzido em um todo coe- rene, Para que isso ocorresse, fol necessério desenvolver sistemas de classi- fleacdo, tegras préticas e métodos que permitissem que somente certos co- tnhecimentos tivessem sido selecionados ¢ incluidos para, em seguida, serem contatos como histéria, 2.A ideia de que hd wma histéria universal Embora estejarelacionade com a nogae de totalidade, o conceito de “unl- versal” pressupde a existéncia de caractenistcas e valores fundamentais, que todas as sociedades e sujeitos compartilham. 0 interesse histérico tem se con- centrado no desenvolvimento dessas caracteristicas universais, 5.4 ideia de que a histéria é uma grande crenologia Aiistérfa é considerada como uma stcessio de fatos que se desenvolve no tempo. E que demarca o progresso do esforgo humano através do tempo. A crono- logia é importante como método, porque permite que os eventos sejam localizados ‘em um ponto correto no tempo. 0 momente preciso em que os eventos ocorrem também 0s torna "reais" ou verfdicos. Para iniciar a cronologia, deve-se estabe- Jecer um momento de “descoberta”. A cronologia também é importante para se tentar olharo passado e explicar como e por ue certas coisas aconteceram, 4.A ideia de que a histéria é equivalente ao desenvolvimento ‘Arnogio de progresso esté implicita naniogio de desenvolvimento, 0 primei- +o pressupde que as sociedades avangam seguindo etapas de desenvolvimento, do ‘mesmo modo que uma crianga cresce até tornar-seadulto. fase mais antiga do de- 4 ne Sin senvolvimento humano é considerada primitiva, simples ¢ emacional. A medida que as sociedades se desenvolvem, elas se tornam menos primitivas, mais civlizadas, ‘mals racionaise suas estruturas sociais tornam-se mais complexas e burocriticas. 5, Aideia de que a histéria tem a ver com a autorrealizagio do ser humano Segundo esta perspectiva, os humanos tém 0 potencial de aleancar uma etapa do seu desenvolvimento em que podem chegat 20 controle total de suas fa- culdades. H4 uma ordem no desenvolvimento humano, que transcarre em etapas, qual vai desde a satisfago de necessidades basicas, passando ao desenvolvimento ‘emocional, intelectual e moral. Assim como o individuo se desenvolve em etapas, por meio do cumprimento de determinadas necessidades, dodesenvolvimento das ‘emoc6es, do aprimoramento do intelecto e da moralidade, Assim como os indi- -viduos movem-se através desses estigios, do mesmo modo se move asociedade. 6 Aideiade que os relatos dahistria podem ser contados em wna narrativa coerente sta idela sugere ser possivel compilar todos 0s fatos de uma forma orde- ‘nada/organizada que nos conte a verdade ou nos dé uma boa ideia do que real- ‘mente aconteceu no passado, Teoricamente, isso significa que os historiadores podem escrever uma histéria verdadeira do mundo. 7. Aideia de que a histéria como disciplina é nocente Esta ideia diz que os “fatos” falam por si mesmos, ¢ que o historiador simplesmente os pesquisa eos junta. Uma vez que todas osfatos so compilados, eles narram a sua prépria histéria, sem qualquer necessidade de uma explicacao ou interpretacdo tedrica de um historiador. Essa ideia também carrega o sentido de que a histdria & pura como disciplina, ito &, que ela nfoesté relacionada com coutras diseiplinas 8.2 ideia de que ahistéria éconstruida em torno de categorias bindrias {sta ideia esté vinculada ao método histérico-cronolégico. Para a his- téria comecar, deve existir um periodo de inicio e algam critério para de- terminar quando algo comega. Em termos da histéria, isso geralmente esté vineulado a0 conceito de “descoberta”, ao desenvolvimento da educagio ou de organizagses sociais especificas. Tudo que vier antes desse periodo é con- siderado pré-hist6rico, pertencende ao dominio dos mitos e tradigées, “fora” do campo da disciphina ‘eoendo meni: psuse pointes 9. A ideia de que a histéria é patriarcal Esta historia esté ligada as nocGes de autoatualizaga0 e desenvolvimento, {i que as mulheres eram consideradas incapazes de alcancar niveis superiores de desenvolvimento, Além disso, nao eram mportantes para o desenvolvimento das sociedades porque no estavam presertes nas burocracias ou hierarquias nas quais as mudangas na vida social e politica eram determinadas. Outras ideias chaves Existem outros conceitos importantes que se relacionam com essas ideias. ‘Aalfabetizacao fot usada como critério para avaliar 0 progresso eo desenvolvi- mento de uma sociedade a partir de um estigio em que presumivelmente sua histéria tenha comecado. Mesmo lugares como China, India ¢ Japao, q'e mui- to embora fossem sociedades altamente letradas antes de serem “descobertas” pelo Ocidente, eram enquadradas em outras categorias que, néo obstante, igual- ‘mente as definiam como nao civilizadas. Sva alfabetizacao, em outras palavras, no servia para registrar a existncia de um conhecimento legitimo. © filésofo alemiio Hegel € geralmente reconhecide como © “pai funda~ dor” da histéria no sentido aqui destacado. Isto se aplica tanto a visdes mar- xistas quanto liberals.” Hegel concebeu 0 sujeito humano completo como al- guém capaz de “criar a (sua) propria histéria”. Entretanto, Hegel ndo inventou simplesmente as regras da histéria. Como Robert Young afirmou, “a maquinaria hegeliana em sua totalidade simplesmente estabeleceu a operacio de um sis- tema que jé existia, que jé funcionava na vida cotidiana™. Também é evidente ‘que muitas dessas ideias se basefam em um senso de alteridade. Sao visdes que fomentam uma compatagio com “algo ou alguém” que existe do lado defor, tal como 0 oriental, o “Negro”, o “Judeu”, 0 “Indiano”, 0 “Aborigene”. Visées a res- peito do Outro jé existiam ha séculos na Europa, mas durante o luminismo tais concepdes tornaram-se formalizadas através da ciéncia, da filosofia ¢ do im- perialismo, em um explicito sistema de classificacao e “regimes de verdade”. A racialzagdo dos eres humanos e da ordem social gerou comparagées construidas ‘entre “nés", 0 Ocidente, e “eles”, o Outro. A histéria foi a narrativa das pessoas que foram reconhecidas como completamente humanas. Os Outros que nao foram reconhecidos como humanos (isto &, capazes de autoatualizagao) eram pré-his- trices. Esta nogdo esté relacionada também ao constructo senhor-escravo de 6 ites Hegel, que tem sido aplicado como uma categoria psicolégica (por Freud) e como tum sistema de ordenamento social, ‘Um novo e importante conjunto de ideias incorporadas a visio moderna de histdria estdrelacionado as origens (causas)¢& naturezada mudanca social. projeto iluminista envolveu novas concepgies de sociedade e de individuo com ‘base em preceitos racionalistas,individualistas e capitalists, Existia uma crenga {geral de que nao apenas os individuos seriam capazes de se reconstruir, mas também sociedade. 0 Estado modemno industrial tornou-s¢ 0 ponto de contras- teentre o pré-moderno eo moderno. Ahistéria, nessa perspectiva,inicia-se com a emergéncia do individuo racional e de uma sociedade industrializada moderna, No entanto, existe algo mais que essa ideia, em termos de como a histéria veio 4 ser conceituada como método, A conexio do estado industrial é significativa porque salienta o que era reconhecido como sendo digno da histéria. As pessoas «grupos que “fizeram" histéria foram os que desenvolveram a sustentagio do Estado ~ os economistas, cientistas, burocratas ¢ filésofos. Que todos eles fossem homens de uma certa classe social e raca era “natural”, porque eles foram (na- turalmente) considerados completamente racionais, seres humans capazes de autoatualizagao, e sobretudo de criar a mudanca social, que & a histéria. © dia a dia das pessoas “simples” e das mulheres no se tornou uma preocupacao da histdria sendo muito recentemente, Histérias contestadas Para os povos indigenas a critica da histéria ndo é desconhecida, embora la seja reivindicada pelas teorias pés-modernas. A ideia de histérias contesta- das e de miltiplos discursos de varias comunidades a resneito do passado est estreitamente relacionada com a politica da vida indigena cotidiana e contem- porinea. Essa ideia comp0e uma parte essencial da estrutura das comunidades ‘que valorizam formas orais de se conhecer. Relatos contestadores esto preser- vvados em genealogias, em paisagens, nos tecidos e nos entalhes, inclusive nos rnomes pessoais que muitos carregam. Tais historias foram arquivadas de acordo ‘com seus sistemas de saberes. Desde entdo, muitos desses sistemas tém sido re- ‘lassificados como tradigies orais, mais do que como histétias. Sob 0 colonialismo, os povos indigenas tém lutado contra a perspectiva ocidental da histéria, muito embora sejam ciimplices desta mesma visio, Com frequéncia temos permitido que outros contem nossas “histérias", 0 que nos Deshande adi: sae psinigas 7 transforma em estrangeiros quando os ouvimos reconté-las. 0 sistema escolar std diretamente relacionado com esse processo. As primeiras escolas redefi- hiram o mundo e a posi¢do que nele ocupam os povos indigenas, por meio do curriculo ¢ de sua subjacente teoria do conhecimento. Por serem descenden- tes diretos do pai do céu e da terra, os cristios definiram alguns de nds como selvagens de primeira ordem, merecedoresde salvacdo para se tornarem filhos de Deus. Embora sejamos parte do impétio, os mapas-mindi reforgam nosso lugar na periferia do mundo. Esse processo inclufa termos de aprender no- vos nomes para as nossas préprias terras, Outros siinbolos de nossa lealdade a0 império, como a bandeira, também eram parte integrante do curriculo.” [Nossa orientacio no mundo jé estava senco redefinida & medida que éramos excluidos sistematicamente da escrita da histéria de nossas préprias terras. 1ss0 por si s6 no teria fumcionado caso nao sucedesse a redefinicdo material de nosso mundo, que de fato estava ocorrendo simultaneamente por meio de medidas como renomear e “dominar” nossas terras,aliend-Ias efragmenté-las por meio da legislacao, além de impingir o desalojamento forcado das pessoas que viviam nessas terras e as consequénciss sociais resultantes de altas taxas de mortalidade e de enfermidade {As tentativas indigenas de reivindicarterras, idioma, conhecimento e so- berania tein geralmente envolvido versdes contrapostas do passado por parte de colonizadores e colonizados, Essas reiviadicagdes tém ocorrido nas cortes, diante de vérias comiss6es, em tribunais e inquéritos oficiats, nos meios de co- ‘municagao, no parlamento e também nas salas de audignciase nos programas de ‘opinio transmitidos pelo radio. Nessas situacSes, as contra-histérias no exis- temo mesmo marco cultural em que, por exemplo, as histérias de clas ou tribos tas quais so debatidas na comunidade indigena. A reivindicacao por terras néo envolve somente lutas a respeito de “fatos”e “verdades”, mas se trata também das regras que regem essas Iutas, as quais nunca sao claras (ninguém mais do que niés, da comunidade indgena, para saber que elas sio usadas contra nés) endo somos nés os drbitrosfinais do que realmente conta como verdadeiro. ‘No contexto dessas questdes, pergunto: “A histéria e sua construgdo mo- derma ¢ ou nao importante para os povos indigenas?”. Para aquelas pessoas que atualmente estdo engajados nas pesquisas valtadas & retvindicacdo de terras in-

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