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MARTA MANUEL LISBOA .S ADIAD.OS A LOUCURA NA HEROINA TORGUIANA ADAVER Fouco, sim, fouco porgue quis grandes Qual a Sorte a nao dal FrWNDO FESON ‘m 1928, Virginia Woolf fez duas conferéncias na Universidade de Cam- bridge, perante cujas alunas expés um conceito que veio a tomar-se ponto de partida para uma influente escola de critica femi temporanea: sla. con- empre que ouvimos falar de uma bruxa afogada, de uma mulher possessa do deménio, de uma feiticeira sibia em ervas ¢ mezinhas, até mesmo de um homem notével que teve mie, devemos suspeitar que nos encontramos na pista de uma romancista desperdicada. de uma poetisa suprimida, de uma Jane Austen emudecida € ingléria, de uma Emily Bronté vagueando de cabeca perdida pelas florestas ou errando as cegas pelas estradas, enlouquecida pela tortura a que 0 seu génio a con- denava.! Nesta comoventissima passagem, Virginia Woolf toca em varios pontos que, sessenta anos mais tarde, permanecem elementos centrais no combate feminista; entre cles incluem-se © tema da supressao histérica da voz feminina em geral ¢ literria em particular, a questao das esferas policiadas de activi- dade tradicionalmente franqueadas 2 mulher (esferas essas que tm inevitavel- mente excluido, com raras excepcbes, as actividades intelectuais ¢ criativas), ¢ a das sangdes impostas a dissidentes de uma ordem social rigidamente orga- nizada segundo critérios de sexo, A loucura, quer na sua funcao pragmi trolo € desacreditagiio de vozes dissidentes, quer como Gnica via de opcao para esses mesmos elementos desobedientes, é hoje em dia compreendida como uma definicao de existéncia psiquica participante na perpetuacao de sistemas sociopoliticos de tendéncia autoritéria. Em tais regimes, reconhecida ou disfar- ¢adamente autocriticos, a loucura desempenha por conseguinte funcdes essen- ciais 4 manutencio do status quo, abrangendo duas categorias distintas de in ica de formula utilizada para o con- 139 140 viduo: © louco ou louca -oficial. vigentes, segundo um critério de inconformismo social, politico ¢/ou ideolégico, € 0 louco ou louca genuinos, cujo estado pode ser uma reacco alternativa a um meio hostil, Gnica via possivel de existéncia dentro de um arranjo social de que ndo podem aceitar a ortodoxia, ou uma estratégia de rebelio contra este mesmo status quo. A loucura torna-se assim, em regimes autoritérios, um misto de trés elementos di infernal para isolamento de indesejiv isto é, como tal declarado pelas autoridades intos: leprosaria ideolégicar, isto é, repositério consequén zacao imposta aos inconformistas, ou ainda, € para estes, possivel via dc existéncia rebelde alternativa. Enquanto tal, tem vindo a ser compreendida como a etapa final de uma traject6ria de desacato e lesa-majestade 4 autori- dade ideolégica do patriarcado, metamorfoseando-se por um lado na imposi¢io de algemas ideolégicas a dissidentes contra a ordem social, e por outro, ¢ con- trariamente, em estratégia de protesto feminista ¢ de auto-exclusio feminina do edificio patriarcal alienatorio — desta forma adquirindo uma funcdo de desafio irreverente 20 monstro sagrado € de «desaprendizagem de uma submissio tradi cional-? as convengdes imperantes. Passando entéo a figura do dissidente ou da dissidemte e do louco ou louca, € a0 desafio que representam as estruturas estabelecidas de autoridade, podemos verificar que tais temas se desenvolvem insistente € quase inevitavel- mente na prosa narrativa de Miguel Torga. Assim, as figuras inesqueciveis de Vicente nos Bichos, de Mariana nos Novos Contos da Montanha*, a desobe- diéncia colectiva de toda uma comunidade em -Fronteira-, conjugam-se com as inevitével da marginali- selviticas sangdes sociais impostas a este mesmo inconformismo: a alienagio de Macalena (Bichos) — potencial Medeia e encarnacio do ditame biblico que diz que toda a mulher pariri na dor por castigo divino ao pecado original —, a dissolugao existencial de Clarice em -Areia Humana: (Pedras Lavradas)*, a extingio violenta e caricaturalmente purificadora do inesquecivel Julido, o le- proso (Noves Contos da Montanha) ¢ a autodestruicio erguida em protesto lan- cinante do filho sexualmente estropiado de -Segredo- (Pedras Lavradas). ‘A problematica da loucura sera aqui focada num conto incluso na colec- tinea dos Novos Contos da Montanha, -O Milagre, de cujo enredo se desprende uma figura de demente como produto exacerbado de consumada alienagio social e, simultaneamente, enquanto libelo contra essa mesma alienacio. A figura de Raquel enquadra-se gloriosamente no estatuto da marginali- zada, classificagio que se Ihe adequa mesmo antes do advento especifico da loucura. O seu proprio nome, bem como as correlatas insinuagdes a uma hi- potética diferenca de casta com as quais se inicia a narrativa, sugere um elo judaico que logo a da como forasteira no seio presumivelmente cristao da co- munidade. No contexto intertextual da narrativa torguiana 0 elemento judaico tende porém a aludir especificamente a uma alienagdo nio passiva mas activa, sob este aspecto, 0 exemple do notivel conto «O Alma-Grande-%, ¢ a temética da resisténcia de uma minoria judaica a inexorivel assimilagdo cris st@ncia essa que chega mesmo a abranger os rituais da morte ¢ a rejeicio a todo o custo da extrema-uncio. I, res A alienagio étnica (religiosa) de Raquel conjugar-se-4 com a sua posterior alienagdo psiquice, © que confere todo um novo conjunto de segundos senti- dos a certas virtuosidades semaaticas do autor. Assim, por exemplo, uma das primeiras sugestdes explicitas a uma potencial hereditariedade de loucura em Raquel faz-se através da referéncia a um antepassado pouco cat6lico da mio- leira- (p. 163). Neste contexto, © coloquialismo induz uma associacdo causal lite- ral, se bem que velada, entre a deméncia ¢ uma ancestral diferenga de casta — ou, mais polemicamemte, de religido —, apresentando-se assim os desvios da ortodoxia religiosa € psiquidtrica como simultineos ¢ anilogos desafios aquela supertranscendente encarnagio da comunitéria Lei do Pai que é a Lei do Deus-Padre, Neste contexto, também o hipotético suicidio de Raquel, perto da lomba da Moira Morta, pode ser compreendido como duplamente signifi cativo: mais uma particularizagdo da sua faceta de estrangeira, intrusa (agora moira) na ordem cristi vigente, e, ainda, de intrusa eventualmente morta. Con- tudo, 0 suicidio de Raquel — pecado mortal para a ortodoxia catélica — recusa aqui, como arguiremos, a conotagao de derrota e adquire em contrapartida as- pectos nao s6 de desafic a esse mesmo cédigo religioso como de possivel de néincia de um assassinio por parte do status quo, para 0 qual a sua alienaglo constitui um ultaje. Regressando por ora a questéo do estatuto alheade de Raquel, € no con texto matrimonial que a sua classifica¢io enquanto -outra-, enquanto marginali- iliar propicia ao desencadeamento da claustrofobia ¢ loucura femininas, a anilise feminista vé a instituicio do casamento como principal responsavel pelo processo de cir cunscrigao da liberdade feminina. £ no ambito do casamento que imagens femi- zada, mais claramente se manifesta. Dentro de uma esfera fa ninas convencionais sio delineacas (os arquétipos da esposa casta, da mie auto-sacrificada, do «anjo do lar, da companheira sexual permanente mas nunca impudicamente pronta); é também segundo os parimetros estabelecidos do ma- triménio enquanto f6rmula institucional que certas sangdes sociais, profissio- nais € comportamentais sio postas em vigor como instrumento das esferas limi- tativas franqueadas ao sexo feminino. A instituigao do casamento e a figura do marido, seu agente, sio assim compreendidas como participantes € represen- tantes da estrutura patriarcal, metonimias de um contexto social fundamental- mente mis6gino € opressor, elo essencial 4 coarctagéo da mulher 7. Este ponto de vista encontra eco na narrativa torguiana, a qual nos apresenta 0 exilio exis- tencial de Raquel como acentuado pelo casamento. Vemos assim que a mie de Pedro — no contexto narrative a voz da ortodoxia imperante — suplica ao 141 142 filho (uma espécie de principe da aldeia-, p. 160) que nao se Raquel «por causa da casta..., O estatuto simbélico de Pedro como principe herdeiro corre sérios riscos no caso de um casamento com Raquel, casamento que concederia a esta altima, habitante pouco influente das margens di 4 oportunidade de se infiltrar no proprio nticleo dos poderes estabe- com Mas, para além da diferenga de c: ainda outras esferas da ordem comunit ialmente mutilada em outros , © inconformismo de Raquel abrange ria. Para comecar, trata-se de uma pes- pectos (nunca seria companheira para Ihe jungir os bois ¢ rogar um carro de mato-, p. 159), ou seja, nio € a compa- nheira ideal para a promogio do estatuto social e material do marido. Além disso, Raquel infringe também os ideais de beleza feminina correspondentes, segundo o ditame plat6nico, a um correlativo interno de bel soa st Za espiritual; um dos paradigmas predilectos da psiquiatria tradicional — © estabelecimento de um elo entre o desequilibrio interno ¢ a filogenia externa — é pois aqui dado através dla imagistica que liga a falta de atractivos fisicos de Raquel as suas idiossincrasias. psicolégi ‘este sentido, vemos que a mie de Pedro sonda persistentemente © comportamento ¢ a fisionomia de Raquel, em busca de um correlative comportamental do mal interno; 4. olhava-a de soslaio de vex em quando, esgar, de qualquer manifestagio do mal que a mpre A espera dum gesto, dum habitava. (p. 163) A opiniao colectiva da comunidade acerea de Raquel, tal como: culada pela mae de Pedro, também se enquadra na tradi¢do deterministica dar- winiana que atribui a sua loucura 4 -carga hereditiria: (p. 160) e, como jf seria de esperar, de origem mat mae [de Raquel], embora nio fosse pro- priamente maluca, faltava-lhe uma aduela-, p. 163). De facto, os pressentimentos comunitirios de de 10 consubstanciados, manifestando Raquel, mesmo ji em solteira, prentincios de uma loucura adventicia que a traziam «sempre anti inear sire adoentada € sorumbitica: (p, 159). Tendo em conta que atris dissemos sobre © casamento como um dos alicerces da ordem social vigente, é interessante salientar também 0 facto de ser imediatamente aps Raquel ter manifestado certa relutancia em relagio ao matriménio que ecome a primeira referéncia aberta a sua provavel loucura (p. 160) Alids, neste conto, a associagio entre 0 ca: nina € explicita, ¢ conseguida m mento € a aniquilagio femi- de trocadilhos e uma vez através do us provérbios que, no contexto, ganham o estatuto de verdades literais. Assim, por exemplo, os pais de Raquel anseiam pelo seu casamento para -vé-la com dono- (p. 160), isto é, para literalmente a entregarem a autoridade incorporada na figura do marido. Do mesmo modo, o ditado inicialmente empregue a pro- pésito do inauspicioso enlace, -casamento ¢ montalha no céu se talhar (p. 160), vem mais tarde a revelar-se profético: como veremos, 0 casamento viri a tornar-se para Raquel — a intrusa, a forasteira, a judia, a moira morta, a -ou- tra-— uma mortalha talhada pela méquina punitiva da ortodoxia do. patriar- ca/marido/Deus-Padre. Do mesmo modo, a sua inicial relutincia ¢ io do matriménio através do suicidio definem-se como outros tantos sin: da sua rebelidio. A relutincia inicial de Raquel em casar vird a metamorfosear- -se em violéncia contra a figura do cénjuge (p. 164-165), assim se estabelecendo lagos intertextuais, por exemplo, com a paradigmatica louca de Jane Eyre’, cujo desvario se exprime também invariav io do marido. Apés 0 casamento, Raquel vé-se constrangida ao papel convencional de esposa, dona de casa ¢ anjo domést a liberdade, as suas retal Enclausurada numa funcao que Ihe terdi ‘des comecam passivamente pela recusa (me- tafrica ou inconsciente) da gravidez. No contexto matrimonial, a maternidade, tanto potencial como nas suas consequéncias a longo prazo, tem também sido frequentemente interpretada como simbolo de coarctagao da mulher na esfera policiada das actividades domésticas. A gravidez ¢ a maternidade apresentam- “se como terrenos minados, eminentemente perigosos para o sexo feminino, dando origem a metifora da maternidade monstruosa, a qual atingiu a apo- teose literiria no mito de Frankenstein °. Segundo essa mesma interpretacio, a rejeiglo inconsciente da maternidade por parte da mulher pode ter também uma dimensao de rebeldia contra certas convencdes socia que a0 mesmo tempo definem a paternidade, quer biolégica quer metafdrica, convencdes essas como o préprio fulcro de uma afirmacao. simbélica de virilidade, autoridade ¢ poderio masculinos, conferindo-Ihe foros de privilégio e necessidade ideolégica. Assim sendo, através da esterilidade, Raquel ataca 0 estatuto de Pedro ¢ a pré- pria infra-estrutura da supremacia masculis -Embora da vida, a Raquel ld ia dando conta do recado. Cozinhava, tratava dos vivos, chegava praticamente onde as mais chegavam. SO nio engravidava (p. 161) 10 fosse 2 mulher de armas de que o rapaz necessitava no comeco- A recusa da gravidez equivale portanto rejeicio da suposta raison d’étre da mulher, a recusa da funcio feminina por exceléncia, segundo a formula patriar- cal. O direito masculino 4 paternidade implica o dever feminino da materni- dade, ¢ a infraccio deste thimo como transgressio de natureza potencialmente subversiva € prejudicial ao status quo em vigor acarreta inevitavelmente seve- ras sancdes. A dissidente ¢ pois classificada como anormal, perturbada, mons- truosa, louca, actuando este perfil de degenerescéncia moral e psiquica como instrumento de fiscaliza¢io € minimizagao do perigo de insubordinagio que ela representa, 143 144 De acordo com esta premissa, a esterilidade de Raquel afigura-se a Pedro previsto (uma Raquel maninha ndo entrava no seu amor, p. 162) € potencialmente polémico, um obsticulo 4 preservagio do seu estatuto masculino social, ¢ até material: ‘Um rebanho de filhos, numa casa de lavoura, € uma riqueza com que 0 ho- mem conta no bragal da mulher. E 0 Pedro, cansado de esperar secretamente © em vdo 0 comego dessa colheita, no pode reprimir a vor do instinto desiludido. 4p. 161) Também para a colectividade a infecundidade de Raquel € perturbante, conotativa de um desafio as leis implicitas da existéncia comunitaria: Ea secura daquelas entranhas, que nas primeiros meses no admirou ninguém, 20 cabo de trés anos comecou a causar engulhos a0 povo [...)- (p. 161) A esterilidade, tal como diversas outras manifestagdes de -desarranjo- ginecolé- gico feminino (incluindo, segundo Showalter ", as alteracdes psicofisiolégicas da menstruacio e da menopausa), é de hd muito associada 4 loucura como uma das suas causas, derivando por exemplo o termo -histeria- da palavra grega que significa «Gtero vagabundo». Assim, através da associaglo com a loucura, a esterilidade fica conotada com um desvio uterino e comportamental, de inconformismo simultaneamente fisiolégico, comportamental € psiquico, tal como € vivenciado pela propria Raquel (p. 162). Mais uma vez, a voz da ortodoxia comunitiria articula esta -verdade aceite- por intermédio da boca da sogra: if caloulava (que cla nao podia ter filhosl... Via-se logo pelo andamento! Futurei sempre que dali nunca te viria nada de bom... E se ainda se for aguentando assim com algum juizo, tens muita sore... (p. 163) O elo ginecolégico e psiquidtrico € reforcado pela referencia a loucura de Raquel como sendo regulada pelas suas sluas: (p. 164), referencia Gbvia ao ciclo menstrual feminino, cuja nomenclatura popular € precisamente a -lua-!!. Da infecundidade como anomalia fisiologica ¢ desafio social até 4 loucura como confirmacio aos olhos da comunidade do estatuto marginal de Raquel vai ape- nas um passo, sendo a segunda a confirmagio do ultraje social inerente a primeira. Assim, a corrosio do seu estatuto marital nado se acelera substancial- mente quando, aparentemente, a infertilidade progride na direccao da sua pre- sumida expressio exacerbada, ou seja, a deméncia. Ambas elas suscitam no marido «uma atitude de desilusao ofendida, revoltada e agreste- (p. 162). A hostilidade € amplamente justificada no quadro ideolégico vigente, vistc que a loucura de Raquel ndo se coaduna de facto com as expectativas matrimo- niais de Pedro, privando-o da paternidade, da paz ca: sional ¢ da prosperidade, privilégios pressupostos na aqu A deméncia desta aparece pois como um ataque a todo o edificio do patriar- cado, desde o direito. matrimonial € paternal até a0 direito de propriedade. ira, do apoio profis- cdo de uma esposa -Em casa do Pedro nem havia paz, nem esperanga, nem nenhuma das alegrias a que tem direito o mais humilde lar deste mundo. As horas decorriam & espera de nove acesso, as sementeiras ¢ as colheitas andavam a merc® das luas da Raquel, Gio depress cordata como enfurecida.. (p. 164) Deste modo, a perturbacdo da mulher assume proporcdes ndo s6 ameacadoras dentro do contexto caseiro como verdadeiramente nemésicas, quase sobrenatu- rais: ela parece poder metaforicamente influir, entidade vingadora pseudo-infer- nal, na sequéncia dos ritmos agricolas ¢ dos ciclos naturais. O suposto manejo cientifico ou médico da deméncia de Raquel obedece as formulas convencionais da psiquiatria tradicional vitoriana, que procurava alcancar a domesticacdo da loucura através da imposicao de conformisme social e sexual. De acordo com as premissas de tal teoria, a terapia de Raquel acar- ica, primeiro -fechada no quarto: (p. 165) de que 0 Pedro «desandou a chave:(p. 164), € depois bem amarrada sobre 0 macho-(p. 165) (e pelo macho), no decurso de uma jornada simbélica que culminard nao na sua submissio mas numa outra versio do seu esmagamento. E, efectivamente, em determinado trecho do enredo a narrativa parece con- ceder temporariamente a vitéria ao discurso -terapéutico que consegue reduzir Raquel a uma imagem iconogrifica religiosa convencional, a figura da Virgem foragida, purificada (e curada) pelo manto de brancura da ortodoxia (razio, estabilidade) que aparentemente a conseguiu reassimilar. reta a constrigio fisi Partiram como chegaram, ¢! LJ num mar de brancura. (p. 167) arreata ¢ a mulher empoleirsda na azémola. Se, em conformidade com os ditames feministas, a forca motivadora da loucura de Raquel é a rebeldia contra a ordem imposta, a manifestagao verbal da sua condicio psiquica coaduna-se igualmente com tais premissas. Assim, 0 seu discurso vem a metamorfosear-se no verbo fragmentado lacaniano da mu- Iher alienada de uma linguagem que nao Ihe pertence 8, exteriorizando-se como um arrazoado incoerente «em que as Ligrimas ¢ as gargalhadas se entre- meavam numa volubilidade de folha de olmo: (p. 164). A natureza do discurso disperso ¢ desconexo de Raquel, 2 sua origem circunstancial enraizada num contexto social hostil, é clarificada através do epis6dio que antecede, antecipa e explica 0 seu suicidio, episédio que no-la mostra -a monologar tolices: num cendrio agreste, um ermo de causar calafrios- (p. 166). Aqui, j& dentro da geo 145 146 grafia simbdlica da sua mort NAO encontram outra resposta social castigador que a sua rebel testos sem destino € sem efeito, arreme: Raquel di «gritos d lem de medidos € pavorosc que icuo m eco de arrepiar- (p. 166), no Os gritos ignorados de Raquel, pro- sados de volta pelo eco para dentro do vario ideoldgico que Ihe recusa o diilogo, repercutem os gritos anteriores da -demente [..., varrida, fechada no quarto como uma reca num cortelho- (p. 165). A loucura de Raquel descobriri hipoteticamente a chave da evasio no s ido susci , €, Curiosamente, 0 sucesso desta estratégia requer a adopgio temporiria de um simulacro do discurso racional (masculino), através do qual ela con- vence o marido a desamarri-| em direc¢o 4 morte (p. 166-168), Quando Raquel parece ter recuperado tempo- fariamente 0 juizo, o scu discurso demente lenciado, abafado — © que a simbologia da queda de agua fragorosa (de certa forma st auténtica gémea comportamental da mulher, que, momentos antes da morte desta, € literalmente calada pelas -paredes almofadadas- de uma simbélica cela de manicémio, sob a supervisiio de um poder de controle quase la © tempo suficiente para Ihe permitir a fuga final ida) ilustra, como: ‘ino: As penedias, majestosas no seu manto de anminho, pareciam deusas tutelares. © proprio fragor da torrente, que espraiada até ali se despenhava subitamente num desfiladleiro apetado © a pique, morria abafado nas parcdes almofudadas da escarpa.- (p. 168) A autoridade divina da dissidentes ruidosas é reafirmad: -deusas tutelar que sancionam a destruicio das por Pedro. como sendo -a vontade de Deu: (p. 169), «como que a lavar as maos da desgraca- (p. 169), ancorado em justi- ficagdes de natureza supostamente inconte: de facto apenas ideoldgica ao -lavar de maos-, porém, actua simul rel ma yeamente no de desconstrugdo que situa Pedro (¢ logo a ordem social que cle representa ¢ de que € 6 principe herdeiro) no papel ingrato de um Péncio Pilatos comprometido, ¢ Raquel no de vitima sacrificada, martir, inocente, figura santificada e redentora, Cristo feminino crucificado, mi como Jesus, de algum modo imontal. Esta Gitima qualidade vitd a adquirir especial importin- cia no resto da narrativa. Mas, prosseguindo a andlise das estruturas de desconstrugio implicitas este conto, verificamos que a aparente afirmagao inicial do poderio monolitico vigente & também corroida pelo proprio contetido narrativo atrav ‘outra interven¢ao que ataca as premissas bisicas do enredo ¢ dissimuladamente as pOe em causa. Assim, © discurso pseudocientifico masculino autodefinido como racional, ¢ que condena Raquel ao estatuto de louc: vez a um processo de auto-invi amalgama de medi ss de uma . Sucumbe por sua idacdo que © revela como constituido por uma religiio, supersti aria, €, por conseguinte, 0 Jo ¢ feiti desvenda como sendo ele proprio intrinsecamente contraditério € irracional. Quando as -tegras do bom-senso e da farmicia- se revelam impotentes contra as sam de Raquel, Pedro vé-se obrigado a recorrer as -mezinhas sobrena- turais: da Ana Rosa, -que bem ou mal fazia de bruxa do lugar-, e que abstrusa- mente confundem a beatice piedosa (a reza de -uma oragio que ela lhe ens is dez voltas ao adro cla ermida de S, Jodo Baptista) com superstigoes como a crenga na natureza endemoninhada- de Raquel e nos -olhares now, banai destes ma- leficios, tais como espalhar -sal em todas as encruzilhadas que encontrasse- (p. 166 © 165). Se 0 efeito retroactive da doenca de Raquel é a desintegragio das premissas cientificas do discurso psiquitrico ¢ a demonstracio da sua igual propensio para a irracionalidade, as circunstincias da morte da protagonista actuam como catalisadores da dentincia disso mesmo. Assim, a partir do suici- invisiveis e rancorosos dos espfritos maus-, e em ticticas preve dio, © discurso de Pedro, agente da ordem colec ¢ enquanto ma- quina ideolégica. A morte de Raquel desencadeia o proceso de act © grito derradeiro que o denuncia (Satanis!., p. 169), ¢ a partir dai 0 discurso |, denunci: de Pedro sofre as mesmas vicissitudes que, anteriormente, 0 da mulher. Despido da respeitabilidade de -verdade- cientifica, transcendente ou divi também a sua voz vem a revelar-se como -um eco deformado-, devolvido sem resposta (p. 170). Assim, 0 proprio acto de destruicio da oposicao retira para- doxalmente ao discurso dominante 0 monopélio da razdo, ¢ € agora Pedro, € nio Raquel, quem encara © exilio na serra © petrificada-(p. 170). Sobre Pedro, como agente das forgas estabelecidas (chefe de familia, principe herdeiro), recai a responsabilidade da morte de Raquel, ¢ a hipétese dessa culpabilidade @ corroborada pelo climax simbélico do conto, a morte da vitela tresmalhada. A introdugio de um episédio de caricter fabular neste momento do enredo pode ser esclarecida através do recurso ao estruturalismo narratolégico exemplificado em primeira instincia pela formula actancial de Vladimir Propp ', que viu a fibula ou o conto de fadas como 0 ponto de par- tida para qualquer andlise, quer formalistica, quer interpretativa, da prosa de ficedo. O episédio da mone da vitela tesmalhada parece-nos assim adquirir uma fungio explicita de comentario, de pariifrase, de mecanismo explicativo — a funcao, afinal, do coro na tragédia Analisando este passo da narrativa, verificamos que ao afastar-se da «cena ica do crime: (crime porque assassinio metaférico de Raquel), Pedro depara com tum espectaculo descrito como -o rasto de uma nova violéncia-

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