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Logo no inicio do entéo curso Ginasial, eu co- -mecei a me interessar muito pela Histéria, mas como era “duro” decorar centenas de datas... e, por isso, a grande maioria dos alunos detestava essa matérial Esse meu interesse tornou-se uma paixao no curso Gentifico, quando um jovem e excelente professor Jogo na primeira aula disse que a Histéria que ele ‘ria nos ensinar no se baseava em datas, porque © fatos histéricos se repetem intimeras vezes, em- bora com diferentes causas ¢ efeitos; todas as suas ‘ssles tinham simplesmente trés t6picos: “Causas”, “0 Fato” e “Consequéncias” e, com isso, ele fez a “turma’ toda apreciar ou pelo menos néo detestar sua mattéria, Dez anos depois, em 1965, quando cursava ‘© segundo ano da Faculdade de Odontologia da Universidade de $40 Paulo (FOUSP), também me apaixonei pela Microbiologia, de forma muito espe- cial pelas poucas aulas ministradas pelo cirurgiao dentista Prof. Dr. Benedito Joao de Azevedo Piochi sobre Microbiologia Oral, uma nova especialidade da Microbiologia que estava nascendo naqueles anos, como analisarei na sequéncia deste capitulo. Até hoje leio muito e acompanho documentérios. sobre a Hist6ria, que considero uma das ciéncias mes porque nos ensina as experiéncias boas e ruins da humanidade, Por gostar tanto de Hist6ria Geral e de Microbiologia Oral é que neste capftulo vou con- eT Breve Historico pA Microsiovocia ORAL tar, de forma répida, 0 que pesquisei e depois viven- ciei sobre a histéria desta ciéncia & qual tenho me dedicado desde o meu tempo de Monitor Académico na FOUSP, onde o nosso saudoso Catedratico Prof. Dr. Reynaldo Schwindt Furlanetto, apesar de ter for- macao médica e de ter vindo do Instituto Butantan, conde desenvolvia suas pesquisas, incentivou princi- palmente ao seu Primeiro Assistente, o Prof. Piochi,, a enveredar pelo caminho dessa nova Disciplina. Os Primoroios Uma grande parte das ciéncias que a huma- nidade ainda emprega e aperfeicoa é milenar, de forma que suas origens se perderam no tempo. Mas como dependeu de uma inovacdo tecnolégica para dar seus primeiros pasos, a Microbiologia é uma ciéncia relativamente nova porque, embora ainda n&o como Ciéncia, somente surgiu timidamente a partir da descoberta do microsc6pio, que permi- tiu ao homem enxergar coisas muito menores do que um grdo de areia, uma pulga ou 0 ponto final desta frase. Apesar de nao ser um cientista na acepcao atu- al do termo, 0 comerciante e funcionério publico holandés Antonij van Leeuwenhoek (Fig. 5.1 A), nascido em Delft, em 24/10/1632, e falecido na mesma cidade, em 26/8/1723, foi um verdadeiro 9 'm Baove Histénico 04 Microsio.osia One pesquisador. O seu primeiro nome nos chegou de diversas maneiras: Anton, Antoni, Antonie e Antony. Existem relatos de que na verdade ele foi batizado ‘como Thonius Philips, mas sempre assinou como ij, que coresponde ao Antony no Inglés mo- demo. Quando tinha aproximadamente 50 anos, inicialmente para examinar a qualidade dos tecidos ‘que vendia em sua loja e depois por curiosidade e diletantismo, com muita paciéncia aprendeu autodi- daticamente a arte de transformar pedacos de vidro em pequenas lentes biconvexas que permitiam 200 a 300 aumentos. Colocando uma dessas lentes em um aparelho rudimentar (Fig. 5.1B), confeccionou mais de 500 microscépios, dos quais menos de dez “sobrevivem” até hoje. Esses instrumentos necessi- tavam de boa iluminacao externa, de grande pro- ximidade com o olho e de uma enorme paciéncia para ajustar suas pecas. | y Fig. 5.11 — Antanj van Leeuwenhosk (A) @ um de seus m- ‘crascépios (6), (Fonte: wunv.ucmp, berkeley. edu/history eeu wenhosk. hel) Com esses aparelhos rudimentares, avidamente passou a examinar, in natura, muitos materiais que se encontravam & sua disposigéo, como a 4gua de chuva deixada em repouso durante varios dias, nagte, infusdes de pimenta, fezes, gotas de sangue, esperma... van Leeuwenhoek nao foi o primeiro a confeccionar um microscépio, pois desde o inicio dos anos de 1660 jé havia artefatos artesanais rtis- ticos que possibilitavam o exame de fibras e peque- nos vermes. Mas certamente foi o primeiro a ver coisas muito menores do que as nunca antes vistas por um ser humano: hemécias, espermatozoides e, 8 em muitos desses materiais, um nGmero assombro- so de bactérias as quais denominou animalcula, que em Portugues significa “animaizinhos”. O interes- sante é que um aumento maximo de 300 vezes nao permite a visualizacdo de bactérias medidas hoje em micrometros, mas ele deve ter usado um “tru que” ou “pulo de gato” para ampliar esse aumento: = talver iluminacéo obliqua -, levando esse segredo para o ttimulo. Pelo pouco que existe escrito de sua hist6ria, inicialmente van Leeuwenhoek nao mos- trava essa descoberta para muitas pessoas, muito provavelmente por temer ser considerado um malu- co visionario. No entanto, um de seus concidadaos, ‘0 eminente cientista Regnier van der Graaf, concei- tuado principalmente pela descricao dos foliculos ovarianos que durante muito tempo receberam seu sobrenome, soube dessa descoberta e se interessou ‘em conhecé-la, Por intermediacao desse cientista, van Leeuwenhoek passou a redigir mais de 300 car- tas comunicando suas observacées, inclusive com desenhos muito precisos desses animalcula, & Royal Society of London, a maior entidade cientffica da €poca. Em 1680 foi admitido como membro dessa Sociedade (ele que nao era “cientista”!). A viltima foi ditada em 23/8/1723, trés dias antes de sua morte, a0s 91 anos de idade. No total, 375 de suas cola- boracées foram publicadas na revista Philosophycal Transactions dessa entidade e 27 nos Memoirs da Academia de Ciéncias de Paris (imaginem se fosse um “cientista”!). Assim, sua fama atravessou fron- iras, ao ponto de ter recebido em sua casa, em Delft, a visita dos monarcas da Inglaterra, da Riissia e da Priissia, Pela descoberta das bactérias, van Leeuwenhoek recebeu, séculos apés, 0 epiteto de “O Pai da Microbiologia’. ‘No campo que mais nos interessa, o curioso ho- Jandés se interessou muito pela observacéo de mate- riais colhidos de sua boca. Na 39° carta (17/9/1683), quando tinha 51 anos de idade, van Leeuwenhoek descreveu e desenhou os diferentes morfotipos bac- terianos por ele visualizados no raspado de seus prOprios dentes: um pequeno bacilo provavelmente fusiforme, um vibriao com sua movimentacéo carac- teristica, dois cocos, diferentes formas e tamanhos de bacilos iméveis e um espiroqueta (Fig. 5.2). imples que 0 caracterizava e no idioma que conhecia, van Leeuwenhoek fez a seguinte narrativa: “E meu habito matinal es- fregar os meus dentes com sal e, entéo, enxaguar a minha boca com gua e frequentemente, apés as seieicSes, limpar meus dentes posteriores com um palito, assim como esfregé-los vigorosamente com =m tecido; por isso os meus dentes posteriores ¢ ‘es anteriores, como acontece apenas com poucos Somens da minha idade, e a minha gengiva (nao Smporta a dureza do sal que eu as esfrego) nunca sengram. Todavia, meus dentes nao sao tao limpos deste modo, mas o que gruda ou cresce entre al- guns de meus dentes anteriores e caninos (sempre Gee eu 0s examino com um espelho de aumento) & =m pequiena matéria esbranquicada, espessa como s= fosse manteiga, Examinando isso concluf (embo- == no verificasse nada de movimento nela) que la @inda existem animaizinhos vivos. Todo este povo que vive nos Pafses Baixos nao é tanto quanto os ‘snimais vivos que carrego na minha prépria boca s2dos esses dias”, Fig. 5.2 —IMorfotios bacterienas desenhadas por van Laeu- swethoek » partir da andiise micrescépica de material coleta- G2 93 raspagem de seus proprios dentes. De cima para balxo 55:50 representados um pequeno bacio (talvez um fusiforme erue apresenta extremidades afiladas), um vibriéo com sua sovmentacéo caracteristica, dois cocos (provavelmente es- eptoc0c0s, que 880 0s cocas mais ubiques e frequentas na Secs humana), um espiroqueta (8 dreita dos cocas) e dferen- => formas e tamanhas de bacilos iméveis (Acervo de diaposi- ses da Disoiplina de Microbiologia Oral do ICBUSP). Examinando 0 material de um dente cariado fez esta observacéo: “Retirei este material das ca- vidades das raizes, misturei-o com Agua limpida de chuva e coloquei-o frente ao vidro de aumento a Breve Histémico oA Microsicuoei Ona. fim de verificar se ai existiam muitas criaturas vivas, como as que eu jé havia descoberto em tal mate tial. Mas apesar do ntimero destes animaicula ser to extraordinariamente grande (embora sejam to pequenos que seria necessério reunir mil milh6es de- les para igualé-los ao volume de um grdo de areia e varios milhares deles estivessem se movimentando numa quantidade de égua que no era maior do que um grao de areia), seu ntimero parecia ainda maior do que realmente era: isto porque os animaliculos, movendo-se ativamente na agua, punham em movi- mento inimeras particulas pequenas que nao tinham vida, de forma que muitas pessoas facilmente toma- riam essas particulas por criaturas vivas também”. Outro interessante e pitoresco relato: “Recebi al- gumas mulheres em minha casa que quiseram olhar as pequenas enguias existentes no vinagre, mas al- gumas delas mostraram tanta repugnancia com a cena que juraram jamais usar vinagre novamente. Entretanto, o que aconteceria se alguém lhes disses- se que no material depositado sobre os dentes, na boca de un homem, existem mais animais vivos do que os homens de todo o Reino?”. O persistente holandés também viu animalcula na cavidade profunda da cérie radicular: “A coroa desse dente estava quase toda cariada, enquanto as raizes. estavam ocas e as cavidades nelas estavam dilatadas com material amolecido no interior. Retirei esse ma- tetial das cavidades das raizes e misturei-o com agua limpida de chuva e observei-o na lente de aumento de modo a observar muitos organismos vivos nela como eu havia anteriormente descoberto; confesso ‘que o material me pareceu vivo”. Se o titulo de “Pai da Microbiologia Oral” perten- ce com mérito ao cientista Willougby Dayton Miler, ‘como analisaremos no prosseguimento deste histori co, no caberia airibuir a Antony van Leeuwenhoek 0 de “O Avé da Microbiologia Oral”? Masapésvan Leeuwenhoek, demoroumuito tem- po (mais de dois séculos!) para que a Microbiologia Oral comecasse a surgir com base em experimen- tos mais elaborados do ponto de vista cientifico, © que na verdade s6 ocorreu a partir dos estudos de Willougby Dayton Miller, cognominado “O Pai da icrobiologia Oral”. Um pouco antes de Miller, alguns estudiosos (Erdl, 1843; Ficinius, 1847; Leber e Rottenstein, 1867) simplesmente relataram, por exame micros- cépico, a presenca de microrganismos filamentosos 4M Breve Histonico 0a Micpaeio.osi Ona em raspados de dentes e de lesées de cétie. Mas em- bora Leber e Rottenstein tenham defendido a ideia da participagéo de “um acido” nao determinado, eles néo correlacionaram esses filamentosos (“lep. totrix") com a sua produgao. Em 1881, Underwood € Milles descreveram o encontro de cocos esféricos € ovalados e de bacilos em canaliculos de dentina cariada; conforme sua “teoria séptica”, os micror- ganismos degradariam a matéria organica do den- te, produzindo Acidos que removeriam os “6xidos de célcio”. Nos primérdios da Microbiologia, as ob- servag6es eram realizadas “a fresco”, simplesmente com 0 uso do microseépio. Duas grandes evolugées foram 0 método de coloracao das células bacteria. nas idealizado por Hans Christian Gram em 1884 €.a introducao dos meios sdlidos, no laboratério de Robert Koch, idealizados por uma assistente que fa- 2ia gelatina em sua casa usando Agar, que passaram a permitir 0 isolamento das bactérias existentes no material de estudo. O preparo cientifico e cultural de Willougby Dayton Miller (1/8/1853 — 29/7/1907) foi eclético e vertiginoso, mesmo porque naquela época os cursos tinham pequena duracao, Em 1875 ele se tornou Bacharel em Artes pela Universidade de Michigan. Em seguida viajou para Edinburgh, Escécia, onde fez cursos de Quimica (que veio a contribuir para suas observacées posteriores aplicadas a carie den. tal), Filosofia Natural e Matematica Aplicada, e para Berlim, a fim de aperfeicoar seus conhecimentos na tentativa de tornar-se um_ engenheiro de mineragao. Mas em 1877 teve que interromper esses estucos por estar muito doente. Seus planos profissionais volta- ram-se entao para a nossa profissao. Apés doutorar. seem Odontologia pela Universidade da Pensilvania em 1879, Miller procurou aprimorar seus conheci. mentos em um centro mais avancado em pesquisa, a Universidade de Bertim. La permaneceu no perio. do de 1880 a 1906, onde foi aluno de Robert Koch, © descobridor dos agentes etioléaicos do carbtinculo (1876), da tuberculose (1882) e do célera (1883) Assim, com Koch (1843-1910), que ao lado de Louis Pasteur (1822-1895) eram os mais eminentes bacte. riologistas da época, Miller teve a oportunidade de conhecer a teoria microbiana das doencas. Miller mostrou grande interesse em pesquisar a etiologia da carie dental e da doenca periodontal e, contando com os recursos do laboratério de seu mestre, isolou € descreveu varias bactérias presentes na boca hu- ‘mana. Seus estudos iniciaisculminaram com a publi cacao, em 1889 na Alemanha e em 1890 nos EUA, do livto “Os Microrganismos da Boca Humana’, 6 primeito a abordar a Microbiologia Oral, que dava seu primeiro passo para ser uma especialidade na Microbiologia, A principal contribuicao de Miller foi demons- trar experimentalmente que na boca existem mi- crorganismos que fermentam carboidratos contidos em alimentos e acumulados sobre os dentes, pro- duzindo acidos organicos que causam a desmine- ralizacao do esmalte dental e da dentina. Usando tomassol, demonstrou que a dentina cariada é acida em funcao do acido Iéctico formado pelas bacté- vias, Examinando cortes histolégicos, descreveu que a catie dental comeca com a descoloracao e des. trulgdo da “cuticula” do esmalte, causada por um aglomerado de microrganismos predominantemente filamentosos (que a escola germanica da época con. siderava “fungos"). Demonstrou que a degradagéo da mattiz orgnica da dentina é um processo secun- dario causado por microrganismos proteoliticos que invadem os canaliculos dentinérios apés sua desmi- neralizacéo. Encontrou microrganismos filamento- sos na zona superficial da lesao de cétie, pequenos ¢ longos bacilos na camada intermediaria e “micro. c0cos” na regio profunda. Insttuiu, assim, a “teo- ria quimico-parasitéria da eti iologia da cérie dental”, cujos principios bésicos ainda séo vigentes, ‘Também descreveu, em 1894, diferentes mor- fotipos bacterianos no contetido de polpas dentais necrosadas Miller também pesquisou as bactérias presentes na bolsa periodontal, chamando a atenco para a alta frequéncia de treponemas semelhantes ao cat- sador da sflis. A esse respeito escreveu em seu livro: “Apiorreia alveolar ndo é causada por uma bactéria especifica (come o bacilo da tuberculose) e sim por Vérias bactérias, exatamente como nos processos supurativos em que nao apenas uma, mas varias espécies so encontradas”, Mas admitindo varios microrganismos como causadores da carie dental e da periodontite, Miller contraditou a “teoria da especificidade microbiana das doencas’, elaborada Por seu mestre Koch. E nao deixou de ter razéo, principalmente em relacao & periodontite crénica, ois hoje sabemos que 0 biofilme associado a essa doenga abriga varias espécies patogenicas. Embora equivocado, o primeito conceito de “especificidade microbiana” na doenca periodontal parece ter sido emitido em 1915, quando Bass e Johns opuseram- se & opiniao de Miller ao sugerirem que a doenca periodontal teria como causa um microrganismo es- pecifico, Entoameba gingivalis (um protozoario de acordo com 0 conhecimento attual), e que uma vaci- na contra ele poderia evitar a doenca, Em 1891, Miller publicou 0 artigo “A boca huma- ‘na como um foco de infeccao", no Dental Cosmos -a revista odontolégica mais creditada na época - mos- trando argumentos de que a microbiota bucal funcio- na como um foco a partir do qual a infeccao pode se disseminar para outras partes do nosso organismo, A capacidade de Miller pode ser medida pelo fato de, apesar de ter vindo de um pais norteameri- ano, foi escolhido para professor de Dentistica da Universidade de Berlim e dentista da familia real Em 1907 recebeu um convite para se tornar 0 se- undo reitor da Universidade de Michigan, em Ann Arbor, EUA. Retornou da Alemanha com sua fa- milia em julho, mas novamente uma grave doenca interferiu de forma dréstica em sua vida: acometi- do por uma apendicite que gangrenou, no dia 28 desse més partiu do nosso mundo em corpo, mas jamais no legado que deixou para a Odontologia € para a Microbiologia Oral que o tem como o pai cientifico. Por esse motivo, apesar das centenas de nomes de cientistas brilhantes citados em todos os capitulos deste livro, fago questao que de apenas os retra- tos de Antoni van Leeuwenhoek (Fig. 5.1 A) e de Willougby Dayton Miller (Fig. 5.3) sejam vistos pelos meus leitores. Fig. 5.3 — Foto'de Wilougby Dayton Miler em 1884 (Fonte, sme. unimich. edu /denthb /about/other/WD Mile). Breve Histésico oa Microsio.oeis ORAL a Mesmo nao tendo sido beneficiado pelos melho- res recursos da pesquisa bacteriolégica a época s6 encontrados em poucos paises da Europa, o den- tista Greene Vardiman Black (Jacksonville, Illinois, USA), contemporéneo de Miller e conhecedor de suas pesquisas, publicou em 1883 e em 1886 dois livros em que apregoou que a cérie é produzida por microrganismos e que o “fungo” da cérie (hoje sa- bemos ser um estreptococo) elabora uma “gelatina” produtora de Acido léctico. S6 the faltou dar o nome de biofilme cariogénico, como hoje é denominada essa estrutura microbianal... Nos tiltimos anos do século XIX, Plaut (1894) e Vincent (1896) estudaram morfologicamente a mi crobiota associada & gengivite ulcerativa necrosante ou GUN, relatando a alta frequéncia de treponemas = jé constatada por Miller na bolsa periodontal ~ e de bacilos fusiformes. Essa foi a origem da deno- minacao “associacao fusoespiralar” que prevaleceu vigente até o inicio da década de 1980, Nés que temos o privilégio de vivermos numa €poca em que as informacées sao transmitidas ime- diatamente pelos meios de comunicacéo, principal- mente pela internet, temos que ter a complacéncia de entender que naquela época a divulgacéo de conhecimentos era extremamente dificil e por isso muito lenta. Mesmo assim, apés a publicagéo dos achados de Miller, no demorou muito para que, em 1900, Sieberth relacionasse os estreptococos isola- dos de dentina cariada com a etiologia da doenca. Em 1903, Goadby escreveu que a “microflora” bu- cal é complexa, segundo ele constituida por trés gru- pos de microrganismos: os produtores de Acido, os proteolticos e os formadores de pigmento; por outro lado, relatou a alta frequéncia de estreplococos na profundidade da dentina cariada. Em 1905, Gordon descreveu que os estreptococos séo as bactérias pre~ dominantes na boca humana, um falo confirmado por Klieger e Gies em 1915, Uma observacéo mar- cante relativa etiologia da cérie dental remonta a 1924, quando Clark descreveu, em tecido cariado, tum estreptococo que era “diferente” dos outros co- nhecidos @ época, um “mutante” que apresenta cé- lulas ovaladas, a0 qual denominou Sireptococeus mutans. Mas como outros pesquisadores ndo con- seguiram reproduzir esse achado, o relato de Clark infelizmente foi menosprezado durante mais de qua- tro décadas... Como resultado desse “esquecimento”, 0s lacto- bacilos passaram, durante décadas, a assumir uma 1m 1 Breve Histénico 0a Micnosiowei Ona osigéio mais destacada como agente etiolégico da cétie dental. Essa hipétese parece ter se originado de Goadby (1903), que descreveu que os estrepto- coc0s e os lactobacilos so as bactérias bucais mais acidogénicas, mas os lactobacilos so os mais aci- dofilos, uma observacao confirmada por Kleiger e Gies (1915). Howe e Flatch (1917) foram os primei- ros a sugerir o envolvimento dos lactobacilos na descalcificagao do esmalte dental. Em 1922, dois grupos de pesquisadores (Rodriguez e Mc Intosh; James e Lazarus-Barlow) relataram a reproducéo de destruicées semelhantes as que ocorrem em dentes humanos previamente esterilizados e conservados em cultivos de lactobacilos, fazendo aumentar o in- teresse pela importancia dessas bactérias na catio- genicidade. O resultado natural foi que até pouco mais da metade do século XX, o interesse de um grande nt- ‘mero de pesquisadores se voltou quase que exclusi- vamente para os lactobacilos, tanto assim que a ava- liagdo do risco de cérie dental era executada somen- te pela contagem de lactobacilos na saliva. Contudo, © conjunto dos resultados dessas investigagées mos- trou-se nao muito conclusivo. Um indicio importan- te de um maior desempenho de estreptococos na cérie dental humana veio do trabalho de Stalfors (1950), que analisou o material coletado da super- ficie dental; os esfregacos corados pelo método de Gram revelaram que essa superficie era colonizada por 97% de cocos Gram-positivos e Gram-negativos € os cultivos mostraram que os estreptococos cons- tituiam aproximadamente 70% da microbiota e, os lactobacilos, menos de 0,001%. A Granpe EvotucAo Iniciamos este capitulo mostrando que a partir de Miller, mesmo contando com os parcos recur- 80s metodolégicos da época, alguns nossos colegas, mesmo nao sendo mictobiologistas, se esforcaram ‘muito para esclarecer as causas de doencas bucais, principalmente da cétie dental e da doenca perio- dontal, mas sem resultados conclusivos. A falta de respostas concretas para esclarecer a etiologia dessas doencas que afligem muitas pes- soas fez com que, nas décadas de 1950 e 1960, grandes centros de pesquisa fossem criados ini- cialmente no National Institute of Dental Research -NIDR, integrante do National Institutes of Health We (instituigao governamental dos EUA voltada para a area de satide, com sede em Bethesda, Maryland) ‘ou em renomadas universidades desse pais e da Suécia, com destaque para o Forsyth Dental Center (ligado & Universidade de Harvard, Boston) e as Universidades de Lund, Malm6, Gatteborg e Umea, Certamente apoiados por polpudas verbas necessé- rias para sustentar as pesquisas, esses laboratérios Passaram a reunir os melhores cientistas e as mais recentes tecnologias. A maioria dos trabalhos pas- sou, entao, a ser executada por equipes de pesqui- sa. A partir daf ocorreu uma verdadeira “exploséo” da Microbiologia Oral, que passou a ser reconhet da como uma das especialidades da ciéncia-mée, a Microbiologia Geral. Nas tiltimas décadas, 0 Japso e muitos outros paises aliaram-se decisivamente a esses programas. Nos capitulos seguintes, oleitor encontraré as con- clus6es mais relevantes dessas pesquisas, que tam- bbém se estenderam para as infeccées do sistema en- dodéntico, para o controle de infecedes cruzadas em Odontologia e, nas tltimas décadas, para uma nova especialidade da Odontologia, a Implantodontia, Por ‘esse motivo, neste capitulo serao citados apenas al- uns trabalhos iniciais nessas reas que se tornaram relevantes por terem trazido novos conhecimentos até hoje admitidos como verdadeiros. Assim, seremos 0 mais breve possivel no comentario sobre as principais executadas na “fase urea” dessa especialidade que, espero, ainda dure muito tempo... O conhecimento que hoje temos da etiologia da cérie dental, da doenca periodontal e da infecc&o pulpar iniciou-se, na verdade, quando o NIDR im- plantou a técnica dos animais isentos de germes, nascidos e mantidos na auséncia demonstravel de microrganismos. A primeira grande constatacéo da extensa equipe desse laboratério foi que roedores isentos de germes, apesar do alto consumo de dieta cariogénica durante muito tempo, néo desenvolvem lesdes de cérie dental (Orland et al., 1954). Pouco tempo apés foi demonstrado que na auséncia de bactérias também nao se forma a bolsa periodontal endo se desenvolve pulpite apés a exposigao pulpar experimental. Quando os animais isentos de germes sao infectados deliberadamente com uma espécie microbiana, eles se tornam gnotobiotas. O raciacinio logico é 0 seguinte: se a espécie entao introduzida € capaz de reproduzir a doenga que ocorre natural- mente em animais convencionais, ela tem condigdes de ser apontada como seu agente etiolégico. Procurando descobrir quais eram as bactérias capazes de reproduzir experimentalmente as le- s6es de cdrie que ocorriam espontaneamente em dentes de ratos e hamsters convencionais, pesqui- sadores do NIDR pacientemente inocularam sus- pensdes de todas as espécies bacterianas isoladas dessas caries na boca de animais assépticos das mesmas espécies e alimentados com dieta rica em sacarose. De acordo com Orland (1955), a bacté- ria cariogénica era um “enterococo”, que na épo- ca eta considerado uma espécie de estreptococo, Contratiando essa observacao, Fitzgerald, Keyes e colaboradores relataram, em 1960, que a tinica bactéria que causava céries rampantes semelhan- tes as observadas nos animais convencionais era m “novo” tipo de estreptococo. Esse “estrepto- coco cariogénico” era diferente dos conhecidos na época porque é fortemente acidogénico e homo- lictico, capaz de formar grandes actimulos sobre os dentes gracas a elaboracao de polissacarideos extracelulares. No mesmo ano, Keyes publicou um trabalho mostrando que essa bactéria é transmiti- dade animal para animal. No mesmo laborat6rio, Zinner et al. (1965) observaram pela primeira vez que 0 estreptococo isolado de dentes humanos cariados reproduz a doenga quando inoculado na boca de ratos e hamsters assépticos, uma cons- tataco rapidamente confirmada na Suécia por Krasse (1966). Esses resultados conduziram ao conhecimento de que a carie dental é uma doen- a infecciosa endégena, transmissivel e trifatorial Fitzgerald e Keyes, 1965). Estava, entdo, “desco- berto” Streptococcus mutans, na verdade “redes- coberto”, pois j4 havia sido descrito pelo injusti- sado Clark em 1924! Em 1966, Fitzgerald e cola- boradores relataram que Lactobacillus acidophilus também é cariogénico para ratos gnotobiotas. Na mesma época, o NIDR lancou a linha de pesquisa sobre a doenca periodontal experimen- ‘sal em ratos e em hamsters gnotobiotas. Em uma série de trabalhos (Howell Jr, 1963; Howell Jr e Jordan, 1963; Jordan e Keyes, 1964; Keyes e Jordan, 1964; Jordan, Fitzgerald e Stanley, 1965; Howell Jr et al, 1965) foi demonstrado que nes- ses roedores a gengivite e principalmente a bolsa periodontal e a perda éssea, caracteristicas da pe- siodontite, ocorrem um tempo apés a inoculacéo bucal de um bacilo filamentoso (Odontomyces siscosus, depois Actinomyces viscosus) isolado de Breve Histénico o4 Microsio.osia On. i Em outro laboratério pioneiro da Microbiologia Oral, o Forsyth Dental Center, Gibbons et al. (1966) e Sharawy e Socransky (1967) observaram que al- guns estreptococos produtores de polissacarideos extracelulares e que haviam sido isolados da placa dental de roedores e de humanos, além de causarem cétie dental, também desencadeiam perda éssea al- veolar em roedores gnotobiotas. Nesses animais, a auséncia de defesa imunitéria e de microrganismos competidores pode explicar a destruicéo periodon- tal causada por Actinomyces spp e Sireptococcus spp, que hoje sabemos nao serem periodontopats- genos, com a provavel excecao de S. intermedius. Além disso, na época nao se dispunha de técnicas tefinadas de cultivo anaerdbio; mesmo assim, em 1960 e 1963, MacDonald, Gibbons e Socransky relataram que a inoculagdo de suspens6es mistas de bactérias da placa dental, contendo obrigato- tiamente Bacteroides melaninogenicus (atualmente Porphyromonas gingivalis e Prevotella spp), um ana- erébio produtor de colagenase, ocasiona a formacao de abscessos subcutneos em cobaias. Outra tecnologia que se tornou um fator im- portante no avanco da Microbiologia Oral foi a croscopia eletrénica, que permitiu um exame mais acurado da composicao da placa bacteriana e da sequéncia de sua evolucao. Utilizando esse recur- 50, Socransky et al, (1963) demonstraram que essa biomassa é formada exclusivamente por grande nii- mero de bactérias aderentes ao dente e aglutinadas por exopolissacarfdeos. A microscopia eletrénica também permitiu a Listgarten e Socransky (1964) © primeito relato da invasao de espiroquetas nos tecidos gengivais afetados pela gengivite ulcerativa necrosante ou GUN. Oreconhecimento da importancia da placa den- tal, atualmente denominada biofilme dental, levou muitos pesquisadores a estudarem os mecanismos de aderéncia das bactérias bucais & superficie den- tal, aparentemente a partir dos estudos de Jordan e Keyes (1966) e de Mc Cable, Keyes e Howell Jr (1966) sobre a formacao de placa in vitro, Essa linha basica de pesquisa, continuada em sequida por es- tudiosos como Gibbons, ainda é altamente produli- vva nos tempos atuais ¢ tem esclarecido importantes aspectos relacionados principalmente com a implan- taco e desenvolvimento do biofilme dental. Os primeiros centros de exceléncia no ensino € na investigagao cientifica em Microbiologia Oral passaram a formar grande ntimero de novos pesqui- 13 1 Breve Histéaico a Microsiowoeis ORAL sadores (inclusive de outros paises) que continuaram a trabalhar nesses laboratérios ou formaram novas equipes em suas universidades, convertendo-se em grandes mestres de novas geracées. Assim foram sendo criados novos e posteriormente conceituados centros de pesquisa notadamente nos EUA, Europa e Japao, 0 que acarretou uma “explosao” de traba- Ihos produzidos nao s6 por mictobiologistas, mas também por especialistas nas diversas Areas clinicas da Odontologia. Desta forma, a partir da década de 1970 surgiu uma grande safra de conceituados pesquisadores cujos nomes nao serao mencionados neste capitulo para evitar o risco imperdoavel de omiitir alguns, mas todos certamente constam das referéncias dos capitulos que se seguem. Varios de- les transitam em areas clinicas, mas dirigiram suas pesquisas para a Microbiologia Oral. Pelo seu longo tempo em atividade, um destaque meritério deve ser dado a Sigmund Socransky, que se formou em Odontologia em 1957 na Universidade de Toronto, egrou-se ao Laboratério de Microbiologia do Forsyth Dental Center em 1958 e lecionou Microbiologia e Periodontia na Universidade de Harvard de 1961 até sua aposentadoria em 2006, mantendo uma equipe que produziu relevantes tra- balhos na area da Microbiologia Periodontal e que continua a manter essa linha de pesquisa, atualmen- te sob a tesponsabilidade de Anne Haffajee. Como ocorre até os dias atuais, foram extrema- mente relevantes os trabalhos clinicos apoiados por equipes de microbiologistas orais. Dentre os pio- neiros merece destaque o publicado em 1965 por L8e, Theilade e Jensen, que estudaram a evolucao da gengivite experimental em voluntarios huma- nos. Nesse trabalho, o “campeao” do nimero de citagdes até a atualidade, foi constatado que a in- flamagao gengival é clinicamente detectavel sete a dez dias apés 0 cessar da higienizacao dental e 0 consequente actimulo de placa bacteriana sobre os dentes, coincidindo com o grande aumento do nd- mero de bactérias Gram-negativas, notadamente 03 treponemas e outros morfotipos méveis anaerdbios. Como contraprova, a tetomada da higienizagao no 21° dia ocasionou rapido declinio do ntimero dessas bactérias e desaparecimento da gengivite, demons- trando a telagao direta entre a doenca e a quantida- de de placa bacteriana. A década de 1960 marcou o reconhecimento das bactérias da placa como as responsaveis pela carie dental e pelas doencas periodontais o surgi- 4 mento da “hipétese da placa inespecifica” segundo a qual essas doencas dependeriam simplesmente da quantidade e da localizacao da placa bacteriana so- bre os dentes. A partir da década de 1970 houve grande aper- feicoamento das técnicas de cultivo em anaerobiose (principalmente o desenvolvimento da cémara de anaerobiose) e da conservacao da viabilidade das bactérias em meios de transporte adequados, des- de a coleta de material clinico até sua semeadura em meios de cultivo mais adequados e seletivos. somatério dessas inovacées possibilitou ao micro- biologista o isolamento e a identificacao de “novas” espécies anaerébias que passaram a ser consistente- mente associadas com varias doengas bucais. 0 desenvolvimento de novos meios de cultivo, principalmente dos seletivos, e de testes bioquimi- cos mais adequados para a identificacdo bacteriana também permitiu um melhor conhecimento das es- pécies que compdem a microbiota bucal, com én- fase para as que predominam nas placas associa- das com as lesdes cariosas e periodontais. Houve, entéo, um grande progresso na caracterizacao das bactétias cariogénicas, principalmente dos estrep- tococos do grupo mutans. Por outro lado, o soma- t6rio dessas técnicas, particularmente do cultivo de bactérias anaerébias, permitiu reconhecer melhor as espécies bacterianas cujos ntimeros aumentam, consideravelmente na placa associada com a doen- ca periodontal. Esses novos conhecimentos permi- tram, em 1976, a formulacao da “teoria das placas dentais especificas”. Essa teoria esta mais de acordo com a teotia da especificidade microbiana langada por Koch (que néo previa as doengas causadas por infecgées polimicrobianas), e como continua vigente até a atualidade, prefiro denominé-la de “conceito de placas dentais especificas". Derrubando a teo- tia da inespecifidade da placa, esse conceito veio a mostrar que existem diferentes tipos de placa den- tal: a compativel com a integridade do dente e dos tecidos periodontais que é constitufda por bactérias “benfeitoras” as quais dificultam a instalacdo das patogénicas, a placa cariogénica na qual predomi- ‘nam bactérias fortemente acidogénicas e acidaricas eas placas periodontopatogénicas nas quais predo- minam espécies proteoliticas responsdveis por do- encas to diferentes como a gengivite inflamatéria ea periodontite crénica. Naquele tempo ainda néo se cogitava que houvesse a doenca hoje conhecida como periodontite agressiva. O primeiro estudo que comecou a elucidar sua etiologia s6 foi publicado em 2980 por Slots, Reynolds e Genco, pesquisadores = State University of New York at Buffalo (SUNY- Buffalo). A equipe dirigida pelo eminente Robert ‘Genco até hoje é uma fértil produtora de pesquisas 2 éreas de Microbiologia e Imunologia Oral. Seguindo a linha mestre da especificidade, as

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