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Esboco de uma Teoria da Misica: Para além de uma Antropologia sem Masica e de uma Musicologia sem Homem! Rafael José de Menezes Bastos Universidade Federal de Santa Catarina Preambulo Os nossos esperam 0s vossos®. Se os musie6logos ignoram o povo, os antropélogos ignoram 0 som. (Feld ms.) 0 primeiro contexto da presente discussio 6 o das teorias elaboradas nos ‘iltimos cerea de cem anos pela Etnomusicologia sobre: 1. a defini¢ao de seu préprio campo; e 2. ada misica como categoria objeto de seu conhecimento. Ele aqui comparecerd, entretanto, apenas como pano de fundo. Minha intengdo é concentrar-me nas décadas de 50 e 60 deste século. Ai ocorreram fatos fundamentais na dirego da conformacao da disciplina, tipicamente nos Estados Unidos: a. O paulatino abandono da expressio Musicologia Comparada como nome da Area de conhecimento; b. a correspondente afirmac seu atual nome, Etnomusicologia, inicialmente grafado com hifen (Etno-Musicologia); c. a criagiio em 1955 da Society for Ethnomusicology; sucessora da fugaz (na década de 30) American Society for Comparative Musicology; io de * Publicado originalmente em MENEZES BASTOS, Rafael. “Esbago de ums Teoria da MGsiea: Para Além de uma Antropologia Sem Misica e de uma Musicologia Sem Homer.” in Anuério Antropol6gico/1993, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. pp.9-73 > Hserito nim vstério do Cemitério da Quinta dos Lézaros, na Bahia, Joselina de Menezes Bastos, minha mie, tonstantementeusava este dito como apontamento critica Aquila tudo que Ihe parecia veleidade modernist, ACENO, Vol.1,N. 1, p: 49-101, Jan, a Jul. de 2014 4. a cristalizagéo da comunidade cientifica etnomusicégica. Isto se expressa especialmente pela publicagao, em 1964 e arredores, de alguns classicos, entre os quais The Anthropology of Music (Merriam, 1964). ‘A redugo cronolégica e nacional em considerago nao redundara em prejuizo de uma visio global da drea. Pelo contrario, as referidas décadas norte- americanas representam o projeto etnomusicolégico como um todo: reafirmam seus germes originais de pensamento, assumem por completo seu dilema apontam para deslocamentos na disciplina, previsiveis em suas origens. Incluido neste contexto, o exame localiza-se também no contexto geral ~ atinente As questées I e 2 acima - das diversas outras musicologias, isto é, Musicologia Histérica, Sociologia e Psicologia da Musica, Estética e Folclore Mus isto sera ensaiado - de maneira modesta, entretanto - através da andlise de alguns autores das referidas 4reas, sobretudo europeus. Aqui também as décadas de 50 ¢ 60 merecerao enfoque central, opcio que fiz por razdes semelhantes as expostas para o caso da Etnomusicologia. Finalmente, a presente discussio também trabalha os nexos da Antropologia com a misica e a Etnomusicologia. O célebre dilema etnomusicolégico (Merriam, 1969: 213) nao é uma construcao exclusivamente etnomusicolégica. Tal dilema, congénito nesta area de estudos, estabelece a miisica como constituida por dois planos de abordagem: o dos sons (ou musica) e 0 dos comportamentos (ou cultura). O primeiro mereceria uma anilise musicolégica, sendo que o segundo exigiria um exame antropolégico (conforme as expressdes de Merriam, 1969: 2 13). Entre estes dois planos, as relagdes seriam de determinagao do primeiro pelo segundo, o que porém nunca se explicita claramente senfio em termos de um vago mecanicismo projetivo do comportamento sobre o som. Tal postura nunca mereceu critica antropolégica, o que Ihe concede legitimidade na disciplina, mesmo que por omissio. Esta legitimidade nao se esgota, porém, no plano da omissio critica, Ela pode também ser rastreada pelo exame de atitudes usuais com relagéio 4 misi = enquanto objeto de estudo -, vigentes na cultura antropolégica, sobretudo em sua tradi¢ao oral. Entre estas atitudes, registro a da redugio da musica - especificamente, do som segundo Merriam - ao sistema de notagao da Mitsica Ocidental. Tal redugio estaria na base da afirmagao de que o estudo da misica (de suas tecnicalidades) seria inacessfvel ao antropélogo, constituindo algo de espeeffico, particular, oposto assim ao geral (cultura), que seria o cerne desta Antropologia Sem Musica com relac&o A Musicologia Sem Homem?. ‘A atitude referida nio tipica apenas do conjunto das relacdes vigentes entre a Antropologia e a Emomusicologia, reproduzindo-se globalmente nos campos intersticiais das Ciéncias Humanas com as respectivas musicologias. Por exemplo, entre a Sociologia e a Sociologia da Musica; entre a Historia e a Musicologia Histérica. 5. A forma portuguésa geral tem sua mate. no verbo latino generare, que tem como sentides proprios engendrar, _gerar, dar 0 ser (dai, genitor). Seus sentdos figuradossio: produsir, eriar,compor (dai, general de patente militar), 50 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. Assim contextualizada, a presente discussio intenciona uma reflexio sobre a misica, suas disciplinas cientificas (aqui chamadas de musicologias) - com énfase na Etnomusicologia - e suas vizinhas da area das Ciéncias Humanas, a Antropologia centralmente. Esta reflexao ser de escopo antropolégico pelo estranhamento que procurard produzir no sentido da construgio de todos esses alguns - As vezes, nés - como outros. Em tltima insténcia, ambiciono pensar sobre a miisica no pensamento Ocidental, toma- das as musicologias - a ciéncia, pois - como instante privilegiado deste. Tal o exercicio que farei, na direcio tanto da maior navegabilidade no mundo da misica Kamayurd quanto do desnudamento do dilema etnomusicolégico. Esse dilema, com todas as suas ambigiiidades - 0 terreno por exceléncia, assim, para a manipulagio -, 6 apenas a realizagdo regional etnomusicolégica daquilo que denomino de paradoxo musicolégico. Um paradoxo é a inversio de uma ideologia, operando com relagio a esta a mudanga de sinals, Os nativos ocidentais, como quaisquer outros nativos, sio capazes de operacionalizar, com alto grau de consisténcia, a interface da misica com os outros sistemas da vida sécio-cultural. Quer dizer, o seu contexto, expresso pelo universo de seus usos. Desta maneira, colam, por exemplo, a Marcha Fiebre As vestes negras, aos corpos constritos, as lagrimas, flores, tudo reunindo na direco da composicao do evento enterro. O conjunto destas operacdes dominado pela verbalizagao de normas conscientes (por exemplo: "no enterro, as misicas devem ser tristes"). Estas normas so ad hoc com relacao a cada evento ou dominio, constituindo uma ideologia ou senso comum em toda e qualquer sociedade. No campo cientifico, porém - no das musicologias -, essa fluéncia problematica, esterilizando-se nas dificuldades de evidenciagéio das regras de conjungéio (contextualizagéio) da misica com os outros sistemas e vice- versa. Estas regras, do terreno das representacées coletivas, sio inconscientes. Ademais, sendo de contextualizagao - de encadeamento sintagmitico, pois -, necessariamente atuam também no plano dos paradigmas componentes e atravessam dominios. Eis ai a éncia do dilema etnomusicolégico: como reduzir a expressio da misica (0 som) - sua fonologia e gramética - a seu contexto (0 comportamento) e vice -versa? Afinal, a Marcha Fiinebre também pode ocorrer numa laica aula de Histéria da Mtisica ou num brilhante dia de verdo na casa de um amante nada funéreo de Chopin. A que a Marcha Fiinebre, entao, que pode estar junto com textos tao diversos? ‘A busca da solucao deste dilema tem sido realizada nestes cerca de cem anos de Etnomusicologia basicamente no mesmo eixo em que ele viceja: no da interface contextual. Parte-se aqui da crenca na determinacio da expresso pelo contexto musical e, correspondentemente, da descrenca na pertinéneia mesma de um plano de contetido desta linguagem. Tem-se procurado, assim, no Ambito de uma Pragmatica Musical e, desta maneira, em termos contextuais da miisica, 44 palavra paradaxo tem origem grega: 0 sufixo pard (que da idéia de contraste) mais o nome dévos (aparéneia, ‘senso comum), Um paradoxo, pois, inverte uma ideologia, no sentida de falsa coneléncia (Mannheim 1950) ot do ‘portugues mentira (do latim, mentir?), algo que de to mental fas, nfo sabendo pos areal, embora o imite efnj, s1 ACENO, Vol. 1,1, p. 49-101 Jan, a Jul. de 2014 a resolugio das questées de ordem fonolégico-gramaticai desta linguagem e de sua interface contextual, esta admitida como estruturante do som. Isto caracteriza, em esséncia, nfo somente a abordagem etnomusicolégica mas, em bloco, o conjunto das musicologias conforme procurarei mostrar na segunda parte deste texto. que se pode assim verificar como tendéncia central da Emomusicologia € que a busca de equacionamento da problemitica da interface contextual da misica tem sido feita, em todos esses anos, em termos eles mesmos contextuais. Paralelamente a isto, tem-se cedido lugar, na grande maioria das vezes, A negacio de semanticidade & misica, que assim é decretada como se nada “enviando". Isto esta agudamenta consignado na epigrafe a este texto. O que faz ela? Congela a linguagem musical (minimizada ao som) na sensorialidade pura, desapropriando-a de toda inteligibilidade. Isto constitui um absurdo, lugar de nascimento das tautologias que dominam as claboragdes sobre a questo do sentido musical feitas de dentro das Ciéncias Humanas e de suas satelizadas musicologias. Por outro lado, na reptiblica atico-espartana de Platao (segundo Adorno, conforme adiante), isto aponta relagdes de poder entre entendedores e sentidores, vitéria de Pirro dos primeiros sobre os outros. Superar o paradoxo musicolégico significa superar suas duas dobras: a de sinal positivo, constituida pelo senso comum das normas conscientes e ad hoc de contextualizacio; tanto quanto a de sinal negativo, de paralisia quanto a descoberta das correspondentes regras inconscientes. Somente o projeto de uma SemAntica Musical pode levar isto a termo. Este projeto, recortando o que é sentido o que é contexto, parte da pertinéncia e validade de um plano de contetido musical, codificado no de expresso. Assim procedendo, recompée a integralidade da miisica como linguagem, o que sua condenagéio ao contexto - tio bem traduzida pela minimizagio sonora - lhe extirpou. Uma das caracteristicas fundamentais da linguagem, sem a qual ela nao existe, e exatamente a da escolha com relagao ao contexto. No projeto, pois, de uma SemAntica Musical, esta o aceno que estes fins de século e milénio fazem na direcao do equacionamento cientifico adequado da miisica. Como o de qualquer Semantica, porém, este nao é um intento facil, daf a dissecagao que farei de sua problematica, que por néo ser ingénua parte daquela que considero uma das aprendizagens mais fundamentais da Histéria da Antropologia: "A miisica é social nao s6 por seu contetido, mas também em sua forma "s. Este pensamento, na base do estudo que fiz da mtisica dos indios Kamayur4, é fundamental na direcio do estranhamento do paradoxo musicolégico e, assim, do restabelecimento da linguagem musical enquanto sistema significante e de significado. I Para uma Antropologia da Etmomusicologia ® Conforme Mauss (1979: 118), onde substitu prece por miisca, num exerciio que considera felix no sé devide ao flo de ambos os discursos(misica proce) serem Voco-sonores. 52 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. Merriam (1977: 189-190), num importante estudo sobre a histéria da delimitacao do campo da Etnomusicologia, chama a atengo para o fato de que uma delimitagio destas pode cobrir tanto o que a disciplina deve abarcar no entendimento de cada autor quanto o que ela efetivamente abrange. & importante que se levante desde o inicio a existéncia deste descompasso entre intencio e efetivacio do projeto disciplinar etnomusicoldgico, descompasso este tipico da diplomacia de toda e qualquer ciéncia. 14), 0 primeiro a cunhar uma defini¢do de Emomusicologia"®, Uma nova e extremamente importante sub-regito desta parte sistemética ¢ a "Musikologie", isto é, a Musicologia Comparada, cuja tarefa é comparar a produedo tonal, especialmente 0s cdntieos folelérieos dos diferentes povos, paises e terrtérios, com propésito etnogrédfico e classified-la, na sua diversidade, de acordo com suns caracteristieas A categoria Tonproducte, que traduzi por producio tonal, é 0 nticleo da definigao em andlise, Seu uso - e, nao, simplesmente o da palavra Musik (miisica) - evidencia uma diligéncia e profundidade de intengdes invejaveis em quem esereveu, hd cerca de cem anos, em torno do bindmio relativismo- universalismo. ‘A preferéncia de Adler pelo substantivo Ton coloca todo o continuo de discursos voco-sonoros como objeto de estudo da Musicologia Comparada. Isto, além de logo estranhar a categoria Ocidental miisica. Note-se que estou a tratar a palavra Ton como uma categoria nativa, dai a necessidade de uma sua hermenéutica - como das demais sublinhadas na citacio -, no fique sua compreensio entregue & obviedade. ‘Ao usar essa categoria, Adler estabelece a Musicologia Comparada face a um objeto muito mais amplo, no plano intencional, do que aquele que efetivamente construiu. Isto se concreti: mais ainda pela ancoragem que sofre se Ton: trata (pro-) 0 produtor e 0 consumidor, nio se es concretude, Indo adiante na reflexdo, Adler apresenta a finalidade da primeira tarefa da Musikologie: "comparar a produg@o tonal [...] com propésito etnografico”. O coneeito de Etnografia, que se firma na primeira metade do século XIX - a partir de uma pratica que remonta ao XVIII (Copans, 1974: 23; Harris, 1979: 14-16) -, tem af a acepcao de "classificagio dos grupos humanos a partir de suas caracteristicas linguisticas" (Copans, 1974: 23). Observe-se desde j a primordialidade do aspecto linguistico nesta Etnografia. De formacao anterior a este, 0 conceito de Etnologia é o de "um ramo da Filosofia da Histéria e depois a anélise das caracteristicas raciais", de acordo ainda com Copans. Este mesmo autor (1974: 23) aponta que os dois campos s6 se reunirio no quadro de uma tinica disciplina em fins do século passado, de uma pro-dugdo, isto é, algo que esta a meio caminho entre gotando em si mesmo embora tenha © A nfo ser que dito em contrivio, todas as tradugSes aqui apresentadas (com seus diaeritcos de énfase sio de minha autoria, Boles & Natrie (1977) e Mersiam (1977) Toran usados na reeonstituigo da histria da delimitagao do objeto da Etnomusicologi. Sobre a Musicologia Comparada,utizei Pinto (1983) ¢ Graf (1974). 53 ACENO, Vol.1,N. 1, p: 49-101, Jan, a Jul. de 2014 exatamente a época do texto de Adler em exame. A partir dai, Etnografia implica em coleta e descricio, ficando a Etnologia com a comparacio. ‘A conceituagao adleriana de Etnografia, porém - segundo o texto em comentério indiretamente pode evidenciar -, 6 muito mais a da Etnologia de acordo com a indicago de Copans. Nas palavras de Adler, o que seria a Etnografia de Copans estaria sem rétulo, coberto pela expressio: "classificd-la, na sua diversidade, de acordo com suas caracteristicas" (eu leria: caracteristicas conereto-materiais). Sugiro que nesta operagio de classificagdo est a segunda tarefa da Musicologia Comparada de Adler. Esta tarefa se explicitaria pelo estudo da concretude material-sonora da producdo tonal. No sentido desta interpretacao, note-se a nitida complementariedade que existe no texto entre as operacdes comparar e classificar, complementariedade que se expressa no par etnografico (sto 6, linguistico-cultural)/tonal (quer dizer, voco-sonoro). Admito que é este tonal o rétulo oculto na expressao classificd-la, que 6, desta maneira, atinente ao mundo voco-sonoro. Sumarizando em termos de categorias hoje correntes, a definigao adleriana de Musicologia Comparada seria biffcie: de um lado, ela seria uma Antropologia; de outro, uma Musicologia. Seu objeto: os discursos voco-sonoros humanos. ‘A que vem, entretanto, nessa definigio tio ampla de Musicologia Comparada, a especificagao dos "cantos folcléricos dos diferentes povos, paises e territérios"? O substantive grego éthnos ("povo") esta para a Europa, a partir do Renascimento, como o termo bdrbaros esteve para o mundo grego antigo. Os éthne ("‘povos") no so ai, desta maneira, simplesmente "povos" mas em bloco e residualmente os "outros", aqueles povos pagiios, ndo-cristios’. De repente, no texto de Adler, o salto da inteng&o a efetivagio: de produgao tonal a cantico; dai, a céintico folelérico. Tal compressio, entretanto, nao para no plano temitico: ela se explicita também espacialmente, até territ6rios, isto é, dominios, colénias — terras onde habitam éthne ou, em alemao, Volker (plural). ‘Ai, neste salto, a verificagaio de que a Musicologia Comparada nfo é uma logia desencarnada, mas uma Etno-(musico)-logia na diregao da construgio do binémio "nés"/"outros’. Ai, a sua amarrac&o histérico-cultural, no sentido do entendimento da qual o estudo das relagdes entre a Antropologia e a Miisica com 0 colonialismo e com a construgao dos estados- nacdes modernos é de importéncia fundamental. Trato disto, de maneira breve, na tercei ra parte do presente escrito. Cerca de setenta anos depois dessa conceituagao inaugural de Musicologia Comparada, Kunst (1950: 7) definira a Etno-Musicologia (com hifen) da seguinte maneira: ela estuda » Corominas (1954, vol IT: 459) informa que o uso deste termo (plural, éthnel, doeumentado em espanhol pela primeira -yezem 1630, foi eta pelos tradutores judeus da Biblia, que o aplicaram aos povos estrangeio, polieistas. 54 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. a mtisica e os instrumentos musieais de todos os povos nfio-europeus, incluindo tanto os chamados povos primitivos quanto as nagdes civilizadas orientais. Muito embora esta ciéncia naturalmente faca incursdes repetidas no campo da misica européia, esta 6, em si mesma, s6 um objeto indireto de seu estudo. De Adler (1885) a Kunst (1950), a transformagio daquilo que quase estava entre parénteses em centro definicional da disciplina. Isto mostra como delimitagées de campos cientificos nunca sao monoliticas, contendo os elementos que apontam para a natureza dindmica do campo-objeto Na definicao adleriana, os cdnticos foleléricos - na reducéo minima, a misica vocal dos povos dos territérios, isto é, basicamente os primitivos - sao elementos marginais, intrometidos na conceituacao do autor. Jé em Kunst, eles, convertidos na muisica e nos instrumentos musicais dos povos ndo-europeus, sdo escancaradamente o niicleo de atencdo da Etno-Musicologia, com hifen segundo a escrita até 1955 (vide adiante). Por outro lado, a muisica européia, que em Adler esté implicita como possibilidade de produgdo tonal e que, assim, estaria no centro das atengdes da Musicologia Comparada (como qualquer produedo tonal, entretanto), para Kunst é objeto to somente indireto da Etno-Musicologiz Tudo isto, porém, somente no plano das intengSes. No das efetivacées, oco rre outra inversio: na Musicologia Comparada feita da definigdo de Adler em diante (conforme, a seguir, 0 estudo da Escola de Berlim), a miisica primitiva er tema praticamente exclusivo e a misica européia, irrelevante. Ja na Etnomusicologia - libertada afinal do hifen - que se elaboraré a partir da conceituacao de Kunst (de acordo com o exame que farei das décadas norte- americanas de 50 e 60), a musica européia, embora nunca como tema nuclear, sera um objeto cada vez mais presente. O que se passou nesses setenta anos foi a sedimentacao de um novo campo profissional - a Etnomusicologia -, em esboco a época da definigéio de Adler mas na fronteira de sua cristalizagao no tempo da de Kunst. Adler, como fundador do campo musicolégico como um todo, interessava- se pela musica primitiva na medida em que partilhava a crenga, generalizada na época, de que ela estaria nos primérdios da Misica Ocidental. Por outro lado, Kunst foi um dos tiltimos grandes representantes do espirito da Escola de Berlim de Musicologia Comparada, responsivel inclusive pela proposta do novo nome da disciplina, Etno-Musicologia (vide Kunst, 1950). A sedimentacio desse novo campo profi Etno-logia setorial, atinente A misica. Isto deve ser entendido dentro do quadro das relagdes entre a Miisica e a Antropologia com o colonialismo e com a construgio dos estados -nagées modernos. Conforme ja registrado, estuda rei isto adiante, por enquanto bastando dizer que a disciplina da Etno-musicologi: deve ai ser abordada do ponto de vista de sua contribuigao para a elaboragdo do binémio "nés"/"outros". Aqui, a tematica da identidade do etnomusicélogo - contrastiva com relaciio tanto a do muisico e dos outros musicélogos quanto a do ional constituiu-se em uma 55 ACENO, Vol.1,N. 1, p: 49-101, Jan, a Jul. de 2014 antropélogo ¢ dos demais cientistas da area de Humanas - 6 de relevancia fundamental. Quando, em 1877, nos Estados Unidos, Thomas Alva Edison inventou o fonégrafo, tornando possfveis o registro e a reprodugao sonoros, ele colocou ao aleance da nascente Musicologia Comparada ndo somente transcrigdes mais fidedignas e andlises mais s6lidas. Antes da existéncia deste aparelho - que s6 chega ao mundo da "musica exética" em 1889 -, transcrever este tipo de misica era tarefa problematica, baseada na audi¢io ao vivo’. © que a gravag&o fonogrdfica colocou ao alcance da Musicologia Comparada no deve ser procurado, porém, somente no plano "técnico" da maquina, evidenciavel pela sua intencionalidade material. Procurar is equivaleria a perder de vista seu modo de inclusio nos sistemas de relagées sociais e de pensamento dessa Musicologia, bem como nos da prépri Givilizagio Ocidental como um todo. A gravaco sonora parece constituir uma ideia arquetipica no Ocidente, explicitada enquanto projeto de conservagio do som pelo congelamento (paralisacao). Frangois Rabelais - este mesmo Rabelais que Lévi-Strauss (1969: 124-125) elegeu como fundador dos estudos de parentesco - narra no Pantagruel a passagem de sua expedi¢ao maritima por uma terra tio distante e de invernos to frigidos que as falas e miisicas congelavam antes de ouvidas. Ai, elas s6 podiam ser percebidas quando as pedras de gelo onde haviam sido gravadas eram aquecidas. O préprio Rabelais, pela boca de Pantagruel, vai buscar em Plato, Aristételes, Antifanes da Trécia (século TV a.C.) e Plutarco de Queronéia (46-120 d.C.) a explicacao para fendmeno tio maravilhoso, que, como temitica, comparece frequentemente na literatura quinhentista italiana, tio especialmente fascinada com os Descobrimentos e na qual, alias, Rabelais buscou muito de sua inspiracéio®. Essa ideia arquetipica, no Ocidente, da gravagéo fonografica nao parece se localizar, no entanto, tio somente na Antiguidade Classica e no Renascimento. Ela encorpa-se com o decorrer do tempo, alcancando os inicios do século XIX. Aqui ja se postula o fondgrafo (vide Gelatt, 1977; Read & Welch, 1976), inventado afinal em 1877. que parece constituir o espaco especifico do fonégrafo no pensamento que o construiu é a tentativa de supressao da distancia e a intengio de reversio da lonjura em proximidade, para usar expressdes e pensamento de quem j escreveu magistralmente sobre temética bem préxima - a da tele- visio (Heidegger, 1984: 249). No episédio do Pantagruel mencionado, os sons s6 gelam porque nos confins do mundo, no Mar Glacial, cujas ilhas so habitadas * Foi com base na audio ao vivo que procederam Baker (1882), entre os indios Seneca, e Stumpf (1886), com os Bella Coola, ambos nos Estados Unidos, Este dltimo texto 6 considerado por alguns autores como a primeira eontribuiglo efetivarnente etnomusicolgies, apesar de ainda nao usar gravagGes fonograticas (oilés & Natriez, 1977: 29 ; Nett, 1964: 14, 97) + Fol Tinhorio (198 1: 1g) quem me chamou a atenglo para este episddio pantagrudlico, Para o texto de Rabelais, vide Moland, ed, (2950: 166°170). Quanto 4 literatura quinhentisa italiana, Toffanin (1965). Bntre os eseritores ialianos desea época, importantes para stemiti cae conforme as indicagées originais de Jacob, ed (2843) [apud Tinhorio, 1981 xg], anoto Baldassare Castiglione e Celio Calgaghini. Sobre primeira, vide Carpeaux (1959, vol. FA: 105-106) € ‘Totfanin (1965). Sobre o segundo, Toff (1965) 56 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. por barbaros e monstros. La est, na sua desarticulagao congénita, o inefavel - na distancia to distante que paralisa: 0 ex-dtico e o “ex-aciistico"! Mas, afinal, o fondgrafo - como o radio, o cinematégrafo, a televisio, a maquina de retratos - consegue efetivamente reverter a lonjura em proximidade? Ecoando Heidegger (1984: 249), entendo que nao. Pois a lonjura, mesmo que pouco extensa, é ainda lonjura, constituindo esta lonjura-perto que no campo da ciéncia vem a estabelecer a esséncia de seus objetos. O fondgrafo parece ter a ver com a objetivacao da distancia e com a "outrificagio". ‘A historia da aplicagio do fondgrafo no terreno das musicologias & consistente com as ideias que levantei. Ele nunca ingressou no campo da Musicologia Histérica. E isto, no porque - pobre explicacao - esta Musicologia studaria a misica do passado da Civilizag&o Ocidental, quando ainda néo havia a mquina e, portanto, gravacé Nao, o fonégrafo nao adentrou na musicologia que tem por objeto a Misica Ocidental por razdes outras. Esta disciplina tem a partitura como centro de seu campo de investigagdes. A fonografia, consequentemente, é inadequada como intermediadora de seu objeto. Mas esta nao é a razo substancial daquilo que aprecio. A substancia de tudo esta na crenga, por parte dos praticantes desta Musicologia, na proximidade da misica-objeto, a Musica Ocidental. Da miisica; no, da partitura. Se a Miisica Ocidental é préxima - nfo est4 no Mar Glacial -, ela nao constitui algo a ser "outrificado" e, portanto, nada de musicologia com relagio a ela mas, isto sim, com sua partitura, espécie de fondgrafo (mas visual) seu. 0 fonégrafo, pois (0 auditivo), nunca ingressou no campo da Musicologia Histérica porque a Misica Ocidental est "aqui mesmo" e, assim, gravé-Ta (para estudé-Ia) seria uma impropriedade imperdodvel. Imperdodvel porque é exatamente o movimento oposto aquilo de que necessita sua musicologia: lancé-Ia 14, “outra", através da partitura. Note-se, por outro lado, como o fonégrafo recebeu acolhida triunfal no ambito da fruig&o da Masica Ocidental, 0 que evidencia como esta misica-frufda nao é a mesma coisa que a coisa que ela 6 enquanto misic Quanto ao Folclore Musical e As mtisicas foleléricas, o ingresso do fonégrafo em seu mundo s6 se da a partir da década de vinte (Nettl, 1964: 16; Dahlback, 1958: 7); até esta época os estudiosos desse campo procediam como se aqui também fosse inadequada a gravacao. Foi Bela Barték quem postulou que, enquanto objetos cientificos, as misicas folcléricas eram tao "estranhas” como a "mais primitiva" das "misicas exéticas". Desta maneira, a elas também deveria ser aplicada a fonografia. Mas nao somente por "estranheza” é que essas miisicas deveriam assim ser tratadas, transformando-se em objetos cientificos legitimos. No raciocinio bartokiano (Barték, 1981), era também estético o passe de ingresso das tradig&es musicais em consideragdo no campo da musicologia respectiva. Estético e também politico: a postura de Barték propugna pelo reconhecimento, dentro da universalidade da Musica Ocidental, de uma identidade hingara, para ele tio Ocidental como as dominantes francésa, italiana e alema ¢ s6 constituivel a partir do folclore. Aqui - como também, 37 ntendida. ACENO, Vol.1,N- 1, p: 49-101, Jan, a Jul. de 2014 algumas décadas depois, com relagio & misica popular -, fruigo e entendimento numa s6 caixa: na "outrificacao" de uns "nés" e na familiarizagio de alguns "outros". Tudo, no campo da Mtisica Ocidental, o emblema excelente do concerto das nagoes. ‘As bases institucionais da Escola de Berlim de Musicologia Comparada foram lancadas em 1900, com a constitui¢o do Arquivo de Fonogramas do Instituto de Psicologia da Universidade de Berlim. Este Instituto, dirigido pelo psicélogo, musicélogo ¢ filsofo alemao Carl Sturnpf, era uma entidade das mais respeitadas no cenério da Psicologia européia da época, esta disciplina sendo entao considerada como uma espécie de rainha das Ciéncias Humanas. A Psicologia praticada neste Instituto - interessada na investigagdo dos canai -, embora francamente de base empirico-laboratorial, se contrapunha ao experimentalismo da de um Wilhelm Wundt*?. Consistentemente com esta moldura, 0 projeto do Arquivo era estudar transculturalmente os processos mentais envolvidos na mtisica, especifica- mente se interessando pela andlise melédica e organolégica. Por sua vez, esta andlise melédica ai se centrava nas alturas (frequéncias) sonoras, sistemas de afinagao e escalas. O material fonografico pouco a pouco reunido pelo Arquivo através de expedigées realizadas pelo mundo inteiro constitui para a Musicologia Com- parada nfo somente a base material de sua producao cientifica. Ele vem a substituir as sociedades e individuos que o originaram, resgatados por notas etnogréficas, quer dizer, linguistico-culturais. Esta Psico-Musicologia sé vai se explicitar como disciplina etnolégica através da filiagdo as ideias difusionistas e evolucionistas vigentes na época. Isto se concretiza através da colaboragado de Erich Moritz von Hornbostel com o musicélogo berlinense Curt Sachs. Hornbostel foi aluno de Stumpf no Instituto e seu sucessor na diregéio do Arquivo. Por sua vez, Sachs - que viajara a Europa estudando as colegdes organolégicas de diversos museus etnograficos - tinha como questdes fundamentais de seu interesse as origens da musica e da danga e a classificagdo de instrumentos musicais (vide Sachs, 1947, 1953, 1962). Da colaboragao com Sachs é que provém, entdo, o acento etnolégico - porque originalmente psicolégico - da Escola. No fundamental, a misica ai é abordada a partir do estudo comparativo da origem e difusao de itens, tragos e complexos, isto dentro da moldura da doutrina dos circulos culturais. Por outro lado, esta abordagem embebe-se das ideias evolucionistas de Darwin e Spencer, conforme elaboradas por Tylor e Frazer. Isto vem a sub meter o difusionismo da Escola a postulagao de uma unidade psfquica da humanidade, esta por sua vez entendida nos termos da contencio de que os povos primitivos (os Naturvélker) representariam estigios anteriores de desenvolvimento com relagdio aos europeus. sensoriais 2m do jd referido (1886), conforme o também conspicuo Tonpsychologie (1883, 1890). Sobre a vide Pinto (983: 76-78) e Heidbreder (1964). Stumpf foi orientador, no Instituto, da tese de doutorado (Sobre pereepeao aetstco-tonal) de Wolfgang Kohler, um dos futiros fundadores da Psicologia da estat (Engelmann, 1978: 8) 58 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. Enquanto, pois, Etno-logia, a Musicologia Comparada vai se caracterizar dentro do cendrio da Antropologia de sua época. Ela nao acrescenta originalidade a este quadro, aplicando-o automaticamente, como se o seu objeto - a misica - nada tivesse de especifico. Mas onde estar, ento, para a disciplina tal especificidade, j4 que ai, no plano da inteligibilidade, isto nunca parece se evidenciar? Sugiro que ao nivel da expresso sensivel, quando, congelada a miisica nos mintisculos cilindros de cera em que se a capturava, péde passar ela a ser ouvida, transcrita e analisada com o um exemplo. Isto equivale a verificar que a Musicologia Comparada é a Musicologia Sistematica dos povos primitivos, cuja inteligibilidade se entrega 4 Etnologia e 4 Psicologia. Segundo Adler (1885) e, depois, Riemann (1908), a Musicologia lematica, oposta a Histérica, tem os "aspectos sonoros" da musica como seu campo principal de investigacao (Pinto, 1983: 70-73). De Adler a Kunst, pois, a sedimentagio do novo campo profissional redundou na construgio sociologicamente efetiva de um objeto e no abando- no de intengées meramente penséveis com relagio a cle. A leitura de Hornbostel (1982) d4 ideia do que sumarizei. Esta obra é ‘musicol6gica” - referente ao que Merriam (1969) vir a chamar de som da mitsica -, feita as expensas do material “etnolégico" recolhido por Koch- Griinberg (1982) nas duas viagens que realizou ao noroeste amazonico no inicio do século. Este tipo de colaboracao - entre "musicélogos" e "etnélogos" - veio a se tornar modelar para a Escola (Bose, 1972 e Schneider, 1952). ‘A caracterfstica central da obra em tela - producio paradigmatica da Escola - 0 divércio entre as abordagens "musicoldgica" e "etnoldgica”, a misica ali (0 som) sendo mera ilustragao de ideias genéricas acerca dos povos primitivos: Os resultados mais importantes a que contribuiram os fonogramas de Koch~ Griinberg é que 0 canto de todos os indios, dos esquimés polares aos (habitantes) da Terra do Fogo, tem um cardter comum que o distingue claramente do modo de cantar de todos os outros povos (Hornbostel, 1982: 360 -361). Esta, a caracteristica dos cantos em anilise, é genérica por exceléncia. Em seguida, Hombostel dira que tal caracteristica, além de genérica, é a tinica. Pois este cardter comum (dos “indios" por oposi¢&o a "todos os outros povos") & indiviso. Diz ele: "Da mesma maneira que é facil e certo conhecer 0 caréter indigenas, é dificil encontrar em cada tribo diferen de estilo musical” (Idem: 363). Mas por que toda esta generalidade? Responde o sdbio, alegando que este réter comum proviria "ndo do grau de desenvolvimento nem da cultura, mas da raga [... 0 que est arraigado] to profundamente no fisiolégico que dura por milénios" (Ibidem: 362). Esta Musicologia, portanto, é inapetente para encontrar o diferente no seio. daquele tio diverso do "nés" que ajudava a construir (0 "outro"). Ela apenas quer nele conhecer 0 comum genérico, medida de sua projetada alteridade extrema - naturalismo "musicolégico" somado a tautologismo "etnolégico". Nos comum dos cant: 59 ACENO, Vol.1,N. 1, p: 49-101, Jan, a Jul. de 2014 futuros som e cultura de Merriam, a representacao, enfim, do diélogo surdo do "civilizado" com o seu projeto de "selvagem' - estados-nagées e colénias. Aexpansio que a Musicologia Comparada conheceu na Alemanha durante as trés primeiras décadas deste século foi de grande magnitude. A partir do quadro fundador, o grupo foi se reproduzindo, no sentido do que a montagem de um sistema de ensino para a formacio de egressos foi fundamental. As posigdes de emprego mais relevantes para a categoria encontravam-se no ‘Arquivo de Fonogramas e na Escola de Misica da Universidade, bem como na Colegéo de Instrumentos Musicais e na Biblioteca Publica estatais de Berlim. O Arquivo e a Colegio desempenhavam papel hierarquicamente superior no conjunto, constituindo os locais de servico ideal (Goode, 1969) para a disciplina, seus pontos (""mercados") por exceléncia de safda para o pablico”. ‘A reprodugdo do sistema foi tao potente que em 1930 foi criada a Gesellschaft zur Erforschung der Musik des Orients, cuja denominagio mudou para Gesellschaft fiir Yergleichende Musikwissenschaft em 1933, data a partir da qual comegou a Sociedade a publicar o seu érgio oficial, o Zeitschrift fiir Vergleichende Musikwissenschaft. Wilensky (1970) mostrou como a criagio de uma entidade representativa a nivel nacional sintomatiza para uma nova profissio um passo importante no sentido de sua sedimentacio. Tal entidade iré delimitar 0 novo campo com relagio As areas vizinhas, estabelecendo o perfil profissional legitimo para o desempenho das tarefas de seu quadro de trabalho. Isto vai trazer como consequéncia o discernimento entre tarefas centrais (0 servi¢o ideal de Goode, 1969) e o dirty job, atribuido aos subordinados. Finalmente, a entidade vai intermediar os conflitos entre os velhos e os novos profissionais do campo, que apontam para a mercabilidade do novo trabalho e para as relagdes mantidas pelos profissionais com sua clientela. ‘A cleigéo, pela Escola, das quatro agéncias referidas como locais privilegiados de trabalho explicita duas estratégias cruciais: de um lado, 0 Arquivo e o Museu (com a Colegéo de Instrumentos), levando 4 clientela a imaginagao do "outro". De outro, a reprodugio mesma de quadros: a Universidade e a Biblioteca. Respectivamente, estratégias ptiblica e privada. ‘A ascengao do nazismo e a Segunda Guerra fulminaram a Musicologia Comparada na Alemanha. J& em 1933 - no mesmo ano, pois, do batismo definitivo da Gesellschaft fiir Vergleichende Musikwissenschaft -, fora criada em Nova Iorque a American Society for Comparative Musicology, Estatutariamente, esta tiltima se definia como organizacio-filha da entidade alema, cujos membros tinham inscrigSo automética na americana. George Herzog, na Alemanha um brilhante aluno de Hornbostel, foi membro do Comité Organizador e da primeira e tinica Diretoria da entidade novaiorquina. Herzog, "No sentido da presente reconstituigio,servi-me das noticias relatérios constantes dos aimeros dos doze primeiros anos de Ethnomusicology: inclusive dos doze nimeros iniciais de Bthno-Musicology Newsletter, editados por Alan P. Merriam de 1953 # 1957 e considerados como 9 primeiro volume ée Ethnomusicology propriamente dito. Merriam editou também 0 segundo volume, do nimero 1 g0 3, publicedo em 1958. David P. McAllester foi editor seguinte, desde o nimero Ido teroeiro volume até o nimero 1 do sexto volume, de 1959 @ 1962, Bruno Nett foi o editor desde & rhimero 2 do sexto volume até o nimero 3 do eitavo volume, de 1962 8 1964 60 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. acossado pelo nazismo, transferira-se em 1932 para os Estados Unidos, onde na Universidade Columbia foi estudar com Boas. A criaco desta "regional" da sociedade alema nos Estados Unidos fora uma providéncia tomada como tentativa de fortalecimento internacional da Gesellschaft, em dificuldades na Alemanha nazista: muitos de seus quadros eram judeus ou politicamente indispostos com o estado nacional-socialista. Isto se tornou insustentavel nos anos seguintes, provocando a dissolucdo da comunidade na Alemanha, o que est simbolizado pela morte, em 1935 na Inglaterra, de Hornbostel. Durante alguns anos, quadros norteamericanos como Charles Seeger, Helen Roberts, somados aos emigrados alemies - entre os quais, Herzog, Bukofzer e Kolinski -, tentaram dar continuidade a "regional”. Era o tempo da Grande Depresstio. Com a entrada dos Estados Unidos na guerra, as dificuldades se tornaram muito mais agudas para a organizagiio. Esta, por outro lado, nao se caracterizara como representante da comunidade etnomu- sicolégica americana, ainda em embriado. Tudo isto provocou, em 1939, a extingdo da Society. Nos Estados Unidos, as origens da Etnomusicologia também remontam aos finais do século XIX, estando também ligadas ao arquivo fonografico. Em 1889, 0 arquedlogo norte-americano Jesse Walter Fewkes - futuro diretor do Bureau of American Ethnology da Smithsonian Institution, em Washington - fez, entre os indios Zuni e Passamoquoddy, as primeiras gravacées fonograficas (em cilindros de Edison) de "musica exética" do mundo, transcritas e analisadas dois anos depois por Gilman (vide 1891). Ja no século XX e sob os auspicios do Bureau, Frances Densmore (1922, por exemplo) é um nome que merece mengfo especial. A ela se deve uma extensissima produgio, cuja relevancia, durante muitos anos contestada por suposta superficialidade teérica, recentemente vem sendo reconhecida (Boilés & Nattiez, 1977: 36-37). Embora as portas de entrada das origens norte-americanas da Etnomu- icologia tenham sido as do arquivo fonogrdfico, cabe reparar que aqui elas esto institucionalmente ligadas 4 Etnologia. Nao A Psicologia, como na Alemanha. Uma Etnologia que muito embora - através de Boas - tenha incorporado o interesse psicologico, vai dialogar muito mais com a Linguistica, a Antropologia Fisica e a Arqueologia (Hallowell, 1976). © nome de Boas é congénito na direcdo da conformagao da Etnomusi- cologia nos Estados Unidos. Detentor de um grande interesse pela misica (vide 1955 € 1988), ele vai inclui-lo em sua atividade de professor. Boas foi professor de Kroeber e de Herskovits, respectivamente professores de Roberts (vide 1933, 1936) e de Merriam. Ademais, seguidor do pensamento de Stumpf quanto a musica, ele vai se ligar também 4 posteridade norte-americana da Escola. Conforme disse anteriormente, Herzog, ao emigrar para os Estados Unidos em 1932, foi ser aluno de Boas em Columbia. Entretanto, Herzog ai nfo chegou 61 ACENO, Vol. 1,1, p. 49-101, Jan. a Jul. de 2014 sozinho: com ele, emigraram também os fonogramas do Phonogrammarchziv, as bases institucionais - como espero ter mostrado - da Escola’. O desenvolvimento da Etnomusicologia nos Estados Unidos vai se ligar, entdo, & atividade académica de Boas, estando montado, por outro lado, nos substratos fonograficos do Bureau e do Phonogrammarchiv. Pouco a pouco, isto vai se explicitar pela captura da disciplina - e pelo se deixar capturar desta - pela Etnologia, da qual paulatinamente vai passar a constituir um sub-campo. Esta captura, entretanto, nao é nunca completa pois a 4rea continuara a manter seus vinculos com o cfrculo artistico-musical e com as musicologias em geral, seu quadro de vizinhanea se integralizando pelas suas relagdes com o Folclore. Este proceso de conformagao, que desabrocha nas décadas de 30 e 40 e que vai culminar nos anos 50, pode ser apreendido pelo exame das démarches em torno da nominagdo da disciplina. Pouco a pouco, a antiga Musicologi Comparada passa a ser chamada de Ethno-Musicology; com hifen. Note-se que no modelo de Adler, a Musicologia Comparada 6 comparada tao somente por oposigio A Histérica, a primeira cuidando dos "primitivos", a segunda dos “civilizados’, Ainda dentro deste modelo, a Musicologia Sistematica se evidencia pela abordagem dos aspectos fisicos da miisica. Sob a alegacao, porém, de que comparar é tarefa de qualquer ciéncia, emergiu 0 novo nome do campo: Ethno-Musicology. O que parece estar implicado neste nome é, de um lado, a evidenciagao do contraste Musicologia Comparada/Musicologia Histérica e, pois - em tiltima instancia -, a pertinéncia da area (enquanto musicologia) ao territério da Misica e, assim, ao circulo das Artes. De outro, o que est ai sendo dito é que a nova area é uma Etnologia setorial (atinente A musica) e, desta maneira, também uma Ciéncia (Social). Esta tiltima pertinéncia - cientifico-social - da Etno-Musicologia parece querer ser comunicada com o cancelamento, enfim, do hifen da expressio, 0 que s6 se dé, porém, em 1955, durante o 10 Encontro Anual da Society for Ethnomusicology (SEM). processo que culminou, em 1955, na fundagdo da SEM se fez em torno da criacdo de um mercado cada vez maior de bens e servicos e de prestigio, referente as "misicas exéticas" e folcléricas. A indiistria fonogrAfica desempenha papel central neste mercado, o aparecimento de empresas como a Ethnic Folkways Records, com a sua célebre Ethnic Folkways Library (vide Menezes Bastos, 1993), sendo sintomético desta irrupsao. Paralelamente a isto, a oferta de cursos na area em epfgrafe - em departa- mentos de Musica, Antropologia e Folclore e em bibliotecas, arquivos e museus - gradativamente vai multiplicando o grupo. Os encontros anuais da American Anthropological Association (fundada em 1888) e da American Musicological Society (de 1948) vao, por outro lado, tes fonogramas ficaram inicialmente em Columbia University. Em 1948, Herzog transfe-riu-se para os Archives of Polk and Primitive (atualmente Traditional) Musie de Indiana University, em Bloomington, tendoros levado eonsigo A, eles vio $e igar muito mais & Area do Folelore. Sobre o emprego por Boas do pensamento musical de Srumpf - que le eantrapse ao de Spencer, vide Boas (1955: 341). Tembém Sachs - depois de uma passagem pelo hoje Museu do Homer, em Pars -emigrou para os Estados Unidos (em 1939), tendo ido trabalhar no setor de msi da biblioteca da Universidade de Nova lorque 62 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. cada vez mais incluindo tematicas etnomusicolégicas. Agéncias de financiamento de pesquisa tradicionalmente usadas pela Etnologia, Musicologia e Folelore, pouco a pouco passam a incluir a Etnomusicologia como rubrica financiavel. Correspondentemente a tudo isso, a produgio bibliogréfica do campo cresce aceleradamente. Junto com esta producio, quase sempre relacionada com a fonografia para fins de estudo e/ou entretenimento, a Etnomusicologia alca um véo piiblico cada vez mais vigoroso, tornando-se uma rea académica de relativamente alta visibilidade leiga. Esse processo de sedimentagio da Etnomusicologia vai registrar o aparecimento de alguns textos classicos da disciplina. Na década de 50 aparecem os célebres Enemy Way Music (McAlester, 1954) e Music in Primitive Culture (Nettl, 1956), este tiltimo sendo o primeiro manual da area. A delimitagao do objeto da disciplina e a apresentagdo de seus métodos e técnicas de pesquisa sio tematicas prioritarias no periodo, isto juntamente com estudos que os apliquem, A Etnomusicologia af se caracteriza pela abordagem de trés tipos de misica: oriental, folclérica e primitiva (Nettl, 1956 : 1). Nettl, um ex- aluno de Herzog, e assim um "neto" de Hornbostel, usa em sua delimitacao os critérios da oralidade e/ou nao-ocidentalidade das misicas-objeto, mantendo desta forma a criteriologia de Kunst, ao que acrescenta o discernimento bartokiano quanto as misicas folcléricas. ‘Apesar de todo esse crescimento, a Etnomusicologia nunca alcangou aquela autonomizagao profissional de que fala Freidson (1971), expressa pelo controle sobre seus meios e condigdes de trabalho e sobre o contetido dos mesmos. Esta autonomizacio lhe permitiria o monopélio do mercado que tanto ajudara a constituir e, assim, os ideais da auto-avaliagio inter-pares e da imunidade a pre: externas (Larson, 1977). A inclusio da disciplina na Etnologia nunca conseguiu deslocar esta pro fissfio em termos de seus sistemas de conhecimento e ensino. Aqui, ler-escrever mtisica, mesmo que dos "outros" - emblema do etnomusicélogo com relagao ao etnélogo -, sempre foi algo em si mesmo exético, lancado para as margens da disciplina. Isto quanto a pertinéncia etnolégica e, pois, cientffica da Etnomusicologia. Com relagdo a sua qualificagao musical-artistica - indiciada pelas relagdes de contraste mantidas com a Musicologia Histérica -, 0 mesmo se deu: nenhum deslocamento nos sistemas de conhecimento e ensino musicais, onde a consideragao sobre 0 “outro” - mesmo que através de uma escrita-leitura musical - sempre foi algo de remoto e estranho, remetido para o "ex-actistico" das origens. ‘As razSes para essa nio-autonomizagao da Etnomusicologia devem ser buscadas na concretude das relagdes sociais mantidas pela disciplina com a sua vizinhanga e com a clientela do referido mercado de miisicas "exdticas" e folcléricas. McAlester (1963: 183-185), um relatério analitico do campo, publicado no mimero comemorativo dos dez anos da SEM*, agudamente 35, O SEM conta sua data de origem - para efeitos, inclusive, da numeragio de Ethnomusicology, seu periédico oficial - a partir de 1953, quando Fthno-Musicology Newsletter comegou a ser ppublicads, ainda em forma mimeogrsfada. Note-se que o grupo fundador de entidade incluia os emigrados alemaes (Herzog, Kolinsk e outros), bem como quadros jé nort-americanos, como Chatles Secger, Merr far, Nett, Meester 63 ACENO, Vol. 1,1, p. 49-101, Jan, a Jul. de 2014 aponta as trés caracteristicas basicas da fase de implantacao da disciplina, Nesta fase, 1. a maioria dos etnomusicélogos encontra emprego em departamentos ¢ escolas de musica, em alguns deles j4 havendo majors espectficos da area. O exemplo paradigmatico aqui é o Instituto de Etnomusicologiada Universidade da Califérnia em Los Angeles . Dirigido por Mantle Hood, este Instituto é uma espécie de conservatério de "miisica exética’. Hood (1960) mais um "descendente" da Escola - através de Kunst -, seu Instituto enfatizando a execugdo musical. Segundo McAllester, esta Etnomusicologia “aplica- da" seria “pouco antropolégica". os projetos de pesquisa etnomusicolégica sao financiados através de ligadas Antropologia. Entre esses projetos, McAllester especial ao de Lomax (1968) - 0 conspicuo Cantometrics -, que se égide do Departamento de Antropologia da Universidade Columbia, com o suporte de Margaret Mead, Entre as razdes apresentadas pelo autor para essa tendéncia - marcada por uma forte "@nfase antropolégica” -, esté a de que, nesta época, as fundagdes nacionais (como o National Institute of Mental Health) financiarem muito mais as ciéncias do que as artes. 3. 0 que da mais prestigio - sucess, conforme McAllester, este nativo tao diligentemente reflexivo - ao etnomusicdlogo é interrelacionar as Areas matrizes da disciplina. Entre os exemplos citados pelo autor, de maximiza- ¢fo deste sucess, figura o de Indiana University em Bloomington. Ai, a colaboracao entre os departamentos de Musica (através de Walter Kaufmann), Antropologia (Merriam) e os Archives of Folk and Primitive Music (George List) é caracterizada como extremamente significativa. Este quadro norte-americano da década de 50 € comecos da de 60 sintetiza de maneira aguda a esséncia do projeto etnomusicoldgico. Caso se queira remeté-lo aos tempos arquet{picos da Musicologia Comparada, a Etnologia deve ser vista como uma transformagio da interface Psicologia- Etnologia. O que o quadro em consideragao revela é que a Etnomusicologia, apesar de todo o seu crescimento, 6 um campo sociologicamente ambiguo. De um lado, ela tem pertinéncia artistico-musical. Mas aqui ela é por principio um paradoxo, pois procura, como logia que intenciona ser, a inteligibilidade dentro da quadra ~a Arte - atribufda no Ocidente ao sentir. Isto ela ainda mais extremiza quando, enquanto também "parte" da Antropologia (uma Ciéncia Social) que aspira ser, vai buscar esta inteligibilidade no social (dos éthney). Mas a misica, sua Ancora mais funda, est’ no territério que o pensamento Ocidental consagrou ao individuo ou - quando ao social - sempre & sua sensibilidade, nunca a inteligibilidade sua, Ademais, este social que a Etnomusicologia busca no se encontra no terreno do familiar (do "nés "), mas no da extrema alteridade, paradoxo que arremata a natureza ambigua da incluso musical-artistica da disciplinas. Spengler (973: 140-187) e Toynbee (1963: 275-277) - referéncias que levamo a partir de Tinka de reflex compativel com a de Dumont (970: 2-16 ¢ 198s: 11-7 1), evidenciaram esta devogao da Arte, especialmente da Mics, a ideologia individvalista Ocidental Particularmente, quando referida ao Grande Individuo, 64 peux (1977:9) -, numa MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. No plano de sua primeira incluséo (musical-artistica), portanto, 0 que se verifica 6 que o etnomusicélogo constréi a sua identidade manipulando emblemas marginais A Area inclusiva. Desta maneira, ele como que despreza 0 artista que quase é - misico - pelo cientista social - antropélogo - que quase sera. Enquanto disciplina antropolégica, por outro lado, a Etnomusicologia vai se caracterizar como Area subordinada. Esta assimetria se constr6i a partir da estratificagdo de autoridade cientifica (Ritzer, 1971) ou, na acepcao de Bourdieu (2983), da acumulagio diferencial de capital cientifico vigente na comunidade antropoldgica entre - diga-se assim - "antropélogos gerais" e etnomusicélogos. O recurso envolvido neste processo de estratificagao é a inteligibilidade da totalidade sécio-cultural, especificamente desta enquanto etno. A miisica, reduzida ao som, aqui A um "particular" ou "especifico", espécie de exemplo ow ilustragio da cultura e da sociedade, territorios epistémicos monopolizados pelos "antropélogos ge(ne)rais". f exatamente este sistema de relagdes inter-societérias assimétricas (Cardoso de Oliveira, 1976: 54-58) que constitui o dilema etnomusicolégico, manifestagio regional daquilo que denominei de paradoxo musicolégico. Trata-se, o dilema, do cerne da cultura etnomusicolégica, uma cultura onde a muisica € fonografia, isto 6, pura sensorialidade cuja inteligibilidade nunca 6 semfntica mas pragmitico- contextual. Por outro lado, a totalidade desta cultura - a cultura e a sociedade-, excludente da musica (som), é do tipo funcional: ela, na verdade, nao passa de uma parte arbitrariamente privilegiada. Apesar de toda a aspiragio cientifica da Etnomusicologia, da qual Merriam foi o mais brilhante apéstolo, ela nunea conseguiu apropriar-se do recurso mencionado, a inteligibilidade da totalidade representaria a concretizagéio daquilo a que venho chamando de plano de intengées do projeto etnomusicoldgico e que Becker (1970) aproxima enquanto a dimensaio simbélica de uma profissio. Tal recurso permanece monopolizado, como disse, pelas categorias localizadas no centro ("geral") do sistema antropolégico. ‘A que tanta ambiguidade etnomusicolégica vis @ vis um tio grande crescimento? Esta indagacao parte do pressuposto de que 0 etnomusicélogo, dentro de seus sistemas inclusivos - Misica e Antropologia -, s6 atua com relativa autonomia naquele intersticio que se explicita como o "som da misica dos outros ". Mas, aqui, dois Cavalos de Tréia, da Ciéncia e da Arte, sempre a contestar a disciplina: "nao entendo nada de misica"; "a misica nao se explica, se sente”s, A que o paradoxo? ‘A ambiguidade em toque - que enlaca a Ciéncia e a Arte - torna possivel uma grande margem de manobra na direcio do crescimento da Etnomusicologia. Isto responde, por sua vez, ao crescimento do mercado de heréi ow anio, Quanto a voragio social-sensivel da misiea no Ocidente, eonforme a tradigho estético-Alosétiea que remonta a Filolas, Plato e Arstteles, Vide aterceia parte deste texto para os dois topos, ‘Sobre « primeira fase feta, vide Menezes Bastos (1986a). As frases em consideracao- verdadeiros provérbios quanto 8 diseiplina~sio praticamente sindnimas: ambas apontam, de um lado, para a negatividade do entendimento musical ¢ complementarmente para positividade sentimentalafetiva a respeito da misica. 65 ACENO, Vol.1,N-1,p. 49-101 Jan, a Jul. de 2014 miisicas "exdticas” e folcléricas, mercado este que aponta para as relages com a clientela do sistema. O etnomusicdlogo, nas suas relagdes com o "antropélogo geral" - controlando o som da misica -, manipula algo do dominio antropolégico (0 "outro"). Correspondentemente, naquelas que mantém com o maisico e com os musicélogos - especialmente com o “hist6rico"-, administrando algo sobre o "outro", assenhora-se de parcela do mundo musical atinente a inteligibilidade da misica. Um camaledo, 0 etnomusicélogo: misico entre antropélogos e vice-versa! Isto lhe permite apropriar-se de recursos aqui e ali ao mesmo tempo. Esta a sua mercabilidade, instrumental daquela do mercado de “miisica dos outros" que tio bem intermedia, mercado este que o que vende sio identidades. E nesse mercado enfim, que estd acionalidade tanto das separagdes quanto das unides entre Etnomusicologia, Masica e Antropologia. Merriam é o classico por exceléncia da Etnomusicologia. Co-fundador da SEM, primeiro editor de seu érgao oficial, Ethnomusicology - desde os tempos de Ethno-Musicology Newsletter -, presidente (196 1-1963) ¢ ocupante de todos 08 postos relevantes da Sociedade, ele representa o espirito de cristalizagao da profissio, sendo o primus inter pares na arte de, conforme o licido apontamento de McaAllester (1963: 183-185), fazer a ponte entre a Antropologia € a Musica. Neste seu movimento, Merriam vai se caracterizar como o principe dos etnomusicélogos, o intelectual que encarna a vontade - e os valores - do grupo em questo (Gramsci, 1968). Misico (clarinetista) graduado em 1948 em Northwestern University, ele chega A Antropologia através de Herskovits e de Richard A. Waterman, dois anfibios quanto 4 Masica e a Antropologia. Nesta universidade, Merriam se doutora sob a orientagio do primeiro, com uma tese versando a misica dos cultos afro-baianos (Merriam, 1951)". A heranga do espirito da Escola est4 transparente na obra de Merriam, o que especialmente seu estudo sobre a miisica dos indios Flathead (1967) traz luz. Ai, inspirando-se em Kolinski (1936, 1949, 1959) e Herzog (1935, 1949) - dois dos j4 comentados emigrados -, e retomando a acusmatica de Hornbostel, conclusées (: 330) gravemente indaga: ‘A que conelusses podemos chegar sobre a misica Flathead e os resultados da ans lise deseritos nas paginas anteriores? O ouvido, sozinho, nos diz que quase qualquer angio Flathead que ougamos 6 Indigena Americana, por oposiglo, por exemplo, & misica Africana, Ademais, ela é claramente identficével como misica Indigena Nane-Americans, por oposigao a Sul-Americana e & justamente tao claramente da Planicie quanto se op%e, por exemplo, aos estlos Esquimé ou do Leste. Tudo isto pode ser verificado através do ouvido e a andlise da miisiea 0 confirma especificamente, ponto por ponto. ni salto do Kulturkreis , tanto a continuidade quanto o s (circulo cultural) & culture area (Grea culturaly): do macro e largamente conjetural ao mediano e pontualmente verificavel. Ai, o ouvido é 0 instrumento de testagem, a andlise da misica o epifenomenizando. Adiante, Merriam (330) coloca em perigo seu proprio modelo conceitual: \ Para um resumo da vida e obra de Merriam, vide Gillis (1980). Note-se em Herskovits © Waterman (vide respectivamente 1944 ¢ 1952) a relevinela da temétiea da aculturagia americana das misieas africanas negras, de tio fundamental importincia iustrativec exemplifiadora paras teoria da aculturagio do primeiro (Redfield et ali 1996) 66 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. © ouvido no nos diz, no entanto, se uma cangdo desconhecida & uma canglo Flathead, por oposigio a uma cangio Blackfootou Crow; a anélise nos di a resposta 8 esta questo? Apesar de reparar que a comparacao seria impossivel, devido & falta de estudos sobre a miisica de outros grupos indfgenas da Planfcie compativeis com o seu sobre os Flathead, Merriam (330) responde a si mesmo: A andlise nos mostrou,entretanto, que a misica Flathead nfo pode ser tratada como tum todo e que nao 6 signifieativo eonfundie a configuragio diversa dos vérios sub- ‘grupos de cangGes para alcangar uma "cangio média "Flathead. Pouco adiante, Merriam (331) arremata: "Isto é, a misica Flathead 6 claramente da Planicie; tanto 0 ouvido quanto a andllise confirmam isto”, O que a misica aqui faz - e ouvido e andlise sio os meios "fonograficos" nesta direcio - € somente exemplificar, testemunhando a veracidade (culturalista) do instrumental conceitual pré-existente. Este, sim, é o "geral" de tudo, Note-se que cangSes desconhecidas constituem para Merriam - como para Hornbostel (1982: 363) - um grande perigo. O que sero estas cangdes senio aquelas que - apesar de audiveis e analisdveis - nao esto pré-classificadas dentro de uma "frea cultural”, sendo simplesmente cangdes e, ndo, exemplos? Buscando a identidade da misica Flathead, Merriam (331) deixa-se, afinal, vencer pela tautologia, colocando-a, ademais disto, nos préprios indios: Poderia um indio Flathead, por si mesmo, apontar sem erros as cangSes Flathead de ‘uma amostra mista a ele apresentada? Esta € uma pergunta complexa, pois envolve eritérios outros, além dos estritamente musicais. Os Flathead nfo abstraem sua ‘miisiea, enquanto misiea, do seu contexto [..] O que sera neste texto a musica enquanto mis musical, 0 "som" pantagruélico congelado, extirpado de quem o gerou e condenado ao contexto, ou seja, A miisica enquanto cultura? Eo Flathead, que Homo sera? Como “nés", que no show nao conseguimos abstrair a misica da cerveja? No enfrentamento de todo este paradoxo, aposicao de Merriam, longe de passiva, 6 dramética, resumindo os valores mais caros da profissio. Tal dramaticidade, presente nos germes originais de pensamento do projeto etnomusicolégico, est4 especialmente manifesta em seu clissico, The Anthropology of Music (1964), seu trabalho teérico por exceléncia. Aqui, 0 paradoxo e o esforco para supera-lotransparecem com rigor extremo. Este livro de Merriam explicita a cristalizagdo da Etnomusicologia nos anos 60. Causador de um grande impacto no meio etnomusicolégico, ele também atinge o inclusivo sistema antropolégico, 0 que especialmente uma resenha no Current Anthropology (Merriam et alii, 1966) deixa claro. Procurando definir a tarefa do etnomusicdlogo como "o fazer ciéncia sobre a miisica”, ele se pergunta: ‘Acetnomusicclogia,entdo,é umna ciéncia soca] ow uma humanidade? A resposta 6 que tla pertence aos dois (campos), sua abordagem e seus objeivos edo mais cientfitos que humanisticos, enquanto que seu objeto (subject marter) é mais humanistico que cientifico (Idem, 25). -a senio, em sua estrutura 67 ACENO, Vol. 1,1, p. 49-101, Jan. a Jul. de 2014 Esta dupla pertinéncia da disciplina - nos planos do sujeito e do objeto - nao se coloca para o autor como de natureza genérica; pois "o etno- musicélogo procura criar sua propria ponte entre as ciéncias sociais e as humanidades" (25). Desta maneira, para Merriam, a Etnomusicologia nao é uma soma dbvia mas uma construgio original. Nesta diregio, no entanto, ha barreiras a superar, decorrentes das inadequagées existentes entre os dois continentes (18). Merriam intenta superar estas barreiras com o recurso ao conceito de cultura. Para ele, cultura é "o comportamento humano aprendido e acumulado" (a2). Para Merriam, entio, o que sera a misica? -"um produto do homem e tem estrutura, mas sua estrutura nao pode ter existéncia em si mesma, divorciada do comportamento (cultura) que a produz" (7). Ai, 0 rigor do paradoxo: como se aproximar de uma linguagem se ela, apesar de ter estrutura - isto é, um plano de expressio, com niveis fonologico e gramatical (Lyons, 1974a: 53-98) - e comportamento - sua realidade contextual- pragmatica -, est4 extirpada de contetido? Tem texto, contexto mas, contrariamente a toda evidéncia empirico-indutiva, nada “envia"? Sua estrutura, portanto, nao sera social, para retornar a Mauss (1979: 118), cuja lucidez tenho tentado tomar emprestada desde o inicio? Sera que neste congelamento da misica na "fonografia” nao estara enigmaticamente também congelado o individuo Ocidental? Assim como a Esfinge que, se decifrada - revertida ao social -, rolaré montanha abaixo, invertendo o que ocorrera ao Edipo, que também rolar4 mas para cima? Sera, enfim, que neste enigma de Merriam, representado pela sua célebre definigo da Etnomusicologia como "o estudo da miisica na cultura" (7), nao estaré a manifestagio regional etnomusicolégica do paradoxo musicolégico, este sendo a expressio cientifica (das musicologias) do modo de incluso da misica no pensamento Ocidental? © problema da Semantica Musical resume-se na possibilidade da evidenciagao das transformagées operadas pelo nativo entre expressio e contetido, Blacking (1977: 108) se referia a este como o problema por excelén da descri¢ao etnomusicolégica. Dispor que a musica ("som") nao "envia" sendo ‘ela mesma" ("som") é lutar contra toda evidéncia empirica, universalmente verificdvel. Afinal, a misica extrai a sua universalidade a partir do fato de, ocorrendo em todas as sociedades humanas, ser especifica com relagdo a cada uma destas. Nao ha a misica mas misicas, seu entendimento como "linguagem universal" constituindo uma construc&o Ocidental, concorrente para a erecao do paradoxo musicolégico"”. A misiea, sintomaticamente, est ausente do episédio da Torte de Babel (Gen, XI: t-9). Aqui, Deu s pune os descendentes de Not com a dierenciacio lingustica, sinal da diferenciagéo Gtnica, A identidade humana primordial j& testava,€ elaro, dada: pelo trabalho, através do qual o homem se diverta, isto 6, se tomava diverso dos outros seres (Menezes Bastos, 1983). ApOs 0 pecado original, esta diversdo se torna uma tortura (conforme o Latim Vulgar tmipatiare, original de trabalhar [Menezes Bastos, 1983). Na tradicio bibica o lugar da misica é a comunicagéo com 0 sagrado, esta sendo a competéncia primor dial da Salmodia , posteriormente abragada pelo Gregoriano, A tearia lassieagrega da misica que, junto com a Salmodiajudaica.esténa base do Gregoriano, na sua elaboraco eatélica pro ura aastaro socal da inteligibilidade, direcionando-o para a sensbiidade. Do outro lado da tradigio biblica, a miésica ‘seupa se da sedugio do homem com relagao as mulheres, Os Cantares (0 Ciintico dos Cintieos de Salome) so aqui rquetipicos. 68 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. A questo referente ao tipo de semanticidade da misica - se referencial ou de sentido, afetiva ou cognitiva - nao deve ser confundida com a problematica mesma de sua semanticidade. Tal confusao, muito comum nas diversas musicologias, esta na base da negativa de contetido a linguagem musical. Partindo do principio de que o projeto de uma Semantica Musical se centraliza na problematica do deslindamento das transformagées inconscientes levadas a cabo pelo nativo entre expresso e contetido, seu encaminhamento passa pelo equacionamento das seguintes questdes: 1. quais as categorias, definidas em termos de observaveis, operadas nestas transformagées? 2 . quais as operagées, estabelecidas no plano da redutibilidade, que sofrem estas categorias no processo de transformagiio em referéncia? 3. as categorias e operagées acima se simplesmente nao devem reproduzir © senso comum - sempre ad hoc quanto ao universo estrutural das regras -, por outro lado nao podem deixar de ser aplicdveis ao mundo das evidéncias empiricas nativas. ‘As duas primeiras questées dizem respeito 4 adequagdo operacional de uma teoria semantica, a tltima apontando para a sua adequacdo material (Lyons, 1974b). Subjacente a ambos os tipos de questo, esta a problemitica do "envio" musical, que assim pode ser rapidamente esquematizada: dada uma determinada estrutura fonolégico-gramatical - minimamente, um motivo - qual © seu correspondente no plano semAntico - tipicamente uma axta (valor) - e vice-versa? Quando Merriarn define a tarefa da Etnomusicologia como "o estudo da misica na cultura", identificando a misica (estrutura, nas suas palavras) com: seu plano de expressio (fonologia e gramitica) e a cultura (ou comportamento) com 0 contexto, ele, possivelmente em busca de uma Semintica, instala-se no campo de uma Pragmatica, espécie de Sdcio-musicologia. Parte ele, pois, do principio de que a miisica (som) esté fora da cultura, nao constituindo, pois, comportamento social. Se a mtisica nao 6 social - mas individual, como a ideologia Ocidental a estabelece, indecifravel -, cabe a Etnomusicologia remové-la das Humanidades e langa-la na area da Ciéncia (Social), territério da cultura e do social. Assim fazendo, Merriam de um lado separa, isto é, categoriza. De outro, porém, esteriliza-se nesta separacao, nunca aleangando reduzir os dois mundos de sua misica. Finalmente, tentando distanciar-se do senso comum, Merriam dele se inunda, reproduzindo a ideologia individualista Ocidental sobre a musica. Mesmo a sua Sdcio- Musicologia - sua Pragmatica Musical, que é de resto a sua Etnomu- sicologia - também nao péde ir muito adiante, o que é a medida mesma da diluicdo posterior de seu pensamento. Quando, entretanto, nove anos mais tarde (circa, 1973), Merriam reconceitua a disciplina como "o estudo da musica como cultura" (1977: 204), ele aponta para uma ruptura em seu proprio pensamento, abrindo uma brecha para uma verdadeira Semantica. Na primeira dessas duas definigdes, 0 que se verifica é uma busca do sentido substituida pelo achamento do uso. Na segunda, 69 ACENO, Vol.1,N- 1, p: 49-101, Jan, a Jul. de 2014 entretanto, a perspectiva de uma chave: o sentido da musica como algo socialmente codificado em sua estrutura, que deixa de ser um fétiche. Infelizmente, Merriam nao teve oportunidade de levar adiante esta fina sintese, vitimado que foi, poucos anos depois, por uma morte tao inesperada e brutal. De qualquer sorte, de seu to profundo esforco, um salto bem adiante de uma pobre interligagio da Musica (e musica) com a Antropologia (com a cultura), salto na diregéo de uma Musicologia Com Homem - uma Antropologia Com Misica -, obstinada tarefa para talvez mais um século de trabalho. Se a Etnomusicologia se cristaliza nos Estados nos anos 60, a partir daf o que ocorre com ela? Note-se que por cristalizagdo entendo a normalizagaio (Kuhn, 1975) da disciplina em torno do paradigma (Kuhn, 1975) dilematico. C ada a Etnomusicologia, 0 que os anos seguintes vio mostrar, até a década de 80, é a diluigdo de seu paradigma. Isto propicia um incremento impressionante do campo: sistema de ensino, mercado de empregos, financiamento a pesquisa, publicacao (biblio-disco-filmografica). O erescimento da SEM pode evidenciar isto: em 1981, ela totaliza 2.191 membros (Stone & Cassei, 1986: 2), muitos e muitos adiante das 24 pessoas que, durante 0 54° Encontro Anual da American Anthropological Association (em Boston, 1955), se reuniram para discutir a possibilidade da fundagao da Sociedade (C. Seeger, 1956: 3). Note-se que o periodo em referéncia caracterizou-se por um espantoso boom da inddstria cultural norte americana, especialmente significativo no Ambito das misicas "exdticas” e foldéricas. Estas misicas agora sio 0 objeto de um cada vez mais importante setor da inddstria fonogrifica, radiofnica, televisiva e do show business em geral (Menezes Bastos, 1993). Correspondentemente a este boom, nota-se a utilizagio cada vez mais constante de elementos e processos empregados nessas misicas na elaboracio das misicas urbanas norte americanas. Estas, por sua vez - no eixo jazz-rock - sofrem um processo de difusao internacional sem precedentes, 0 que vem a tornar esta mtisica popular numa espécie de terceiro kathélon ("universal") musical do Ocidente (0 primeiro foi o Gregoriano, o segundo a Misica Ocidental dos séculos XVII-XIX). Paralelamente a tudo isto, vive-se nos Estados Unidos uma época de explosao da questio da etnicidade, com a constituigio de movimentos sociais que, reivindicando direitos civis, encontram na musica o elemento cultural- expressivo por exceléncia diacritico de construgao das raizes, signo crucial da procurada alteridade. No plano propriamente epistémico da Etnomusicologia, a miisiea popular - antes um tema residual - é incorporada como objeto legitimo. Este deslocamento tem a ver com o similar ocorrente no campo inclusive da Antropologia, sob a égide de sua "moderna crise" (Lévi-Strauss, 1962). Apesar de todo esse crescimento - et pour cause -, 0 paradigma dilematico no parece sofrer perturbagGes, senfio em funcio de anomalias (Kuhn, 1975) ‘Para uma visio deste processo de erescimento, vide McLeod (1973: vi), Béhague (1975: iv), Rice (1989: v) e Etekom (4985: 395-396). 70 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. nas 4reas de juntura que a disciplina mantém com as outras musicologias. Isto parece constituir uma perspectiva nova no ar: a da programacio de um corpus scientiarum musicarum que, atravessando as musicologias, penetra nas Ciéncias Humanas inclusivas e nas Humanidades. Chase (1976) - inspirado em Lévi-Strauss (1970) - e C. Seeger (1977) esto na base desta perspectiva, cultivada também por Blacking (1977, 1983), Nattiez (1975) e Feld (1982, 1984). Fora do campo etnomusicolégico, Imberty (1979, 1981) - um psicélogo da misica - e Shepherd (vide Shepherd et alii, 1977) - sociélogo - constituem dois exemplos importantes da tendéncia. ‘A perspectiva globalizante é dominante nesses autores, deixando de aqui haver, portanto, musicologias t6picas definidas a partir dos tipos mus “primitivo", "folk", "popular" ete. Por outro lado, estrate agora a superag&o do cldssico quebra cabecas (Kuhn, 1975) etno-musicolégico - © seu dilema tradicional -, que, como tentei evidenciar, sempre equivaleu A negagao de semanticidade & misica. Em suma, a perspectiva em consideragio parte do prinefpio de que a mtisica é um sistema significante pleno. Essas transformagdes no paradigma dilematico da Etnomusicologia configuram uma crise (Kuhn, 1975) do mesmo que se relaciona com deslocamentos correspondentes nos campos inclusivos da Antropologia e da Misica. Dos anos 70 em diante, se a Antropologia (alguma Antropologia) consagra também para si caracteristicas tradicionalmente mais da Arte do que da Ciéncia (conforme exemplarmente Geertz, 1978), no Ambito da Misica (também de alguma), 0 que se passa € 0 inverso: a "cientifizagdo” da Arte (Boulez, 1972). Rompe-se af, portanto, a biunivocidade entre sensibilidade inteligibilidade com relacdo respectivamente a Arte e & Ciéncia. Paralelamente a isto, 0 "outro" jé nao se contém nos confins do "mundo civilizado”, uma espécie de boomerang parecendo aqui atuar com relagio ao quadro classico colonialista: as antigas metrépolis so invadidas por grandes contingentes populacionais de suas ex-col6nias. I Para uma Antropologia das outras musicologias Interfacio A fazer sentido meu quadro interpretative, se a Etnomusicologia nos termos do paradigma dilematico constitui o paradoxo musicolégico no instante de atengio ao "outro", as demais musicologias, aquelas cujos objetos sio as misicas Ocidentais, deverio estabelecer 0 dito paradoxo quanto ao "nés". Afinal, as musicologias so subsistemas do sistema instituido pelo pensamento Ocidental sobre a misica. Desta maneira, a ordem vigente para 0 caso da Etnomusicologia nao pode simplesmente ser uma ordem tépica e especial. Ela deve ter caréter tipico quanto ao apontado sistema: se hé ordem em algum lugar, deverd também havé-la, transformada ou nao, nos outros similares. nm ACENO, Vol. 1,1, p. 49-101 Jan, a Jul. de 2014 Mas, afinal, para aonde aponto ao dizer musicologias? © termo musikalische Wissenschajt_ (ciéncia musical; depois Musikwissenschaft [ciéncia da miisica]) foi usado pela primeira vez em 1863 por Karl Franz Friedrich Chrysander (1826-1901) quando da fundagio do Jahrbucli fur Musikalische Wissenschaft. Com esta expresso, Chrysander pretendeu indicar uma nova ordem nos estudos de Histéria da Miisica e de Teoria Musical. Esta ordem estabelecia que a rmisica do passado deveria ser editada e executada rigorosamente conforme o espfrito de sua época e locus de sua criagio. O que esse handelista notério assim intentava era uma ruptura com a ténica daqueles estudos em seu tempo, profundamente colada a uma estética do presente. Desta maneira, a uma visio da originalidade nos termos do intérprete, Chrysander preferia uma abordagem no plano do mensageiro, ou seja dos modelos nativos daquela misica do passado. & desta forma que a partitura critico-interpretativa, finalidade da nova ordem de investigagio proposta por Chrysander, se caraeteriza como uma etnografia. Uma etnografia, porém, onde o canal musical - e, nao, lingiifstico (conforme visto supra) - é prevalecente. A criagio, portanto, do termo Musicologia, na segunda metade do século XIX, parece apontar para um movimento na direcéo da propria invencao do objeto miisica do passado. Este comeca a gesticular j4 no século XVIII, através da incluso no repertério das execugdes musicais - piblicas e das cortes - de pecas de compositores ndo-contemporadneos. Antes disto, estas compareciam inexplicitas nas execucGes, tipicamente como "temas" de pecas atuais. Este novo modo de ouvir o passado - como "outro" - sé parece consolidar- se, entretanto, no final do século, em 1885 e arredores. Nesta data, Chrysander, juntamente com Guido Adler (1855-1941) e Philipp Spitta (1841-1894), fundam o Vierteljahrsschriftjiir Musikwissenschaft, no primeiro niimero do qual Adler (885) - conforme estudado -, além de oferecer a primeira definigéo de Musicologia Comparada, também administra conceituagdes para a Musicologia Histérica e Sistemética, isto num quadro de organicidade epistémica sem precedentes. A Musicologia, pois, nasce sistematicamente no plural, enquanto musicologias. E isto, de dentro do territério da Miisica, do cfrculo artistico- musical, especificamente de sua pratica de execugao: para o misico e 0 aficionado, a Ciéncia parece entao ser algo de muito sério para se deixar nas miaos somente dos cientistas. 0 termo musicologias comega a fazer sentido, como o conjunto de trés (a rigor, dois; conforme adiante) sub-campos orjundos do circulo artistico- musical. Isto, devido a uma ruptura com relacio aos discursos da Histéria da Misica e da Teoria Musical. Os referidos subcampos so a rigor dois, e nfo trés, pois a Musicologia Sistemdtica nfo constitui uma area especifica da mesma ordem das Musicologias Historica e Comparada. Ela é muito mais uma abordagem - interessada nos aspectos "sonoros" (fonolégico-gramaticais) da misica —, sente nes 2 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. Mas, e 0 que dizer da Psicologia e da Sociologia da Miisica, bem como da Estética e do Folclore Musicais? Quanto & Estética Musical, sua localizagao € o continente filoséfico, sendo que sua consolidagao desponta a partir de Kant (1961). Neste continente, a Estética Musical encontra uma irma gémea na Filosofia da Arte (Musica), discurso que encontra sedimentacao na Estética de Hegel (1974). Enquanto a Estética Musical cabe o estudo do Belo, a Filosofia da Misica € devida a andlise das relagées intercontextuais da misica com os demais sistemas sécio-culturais. Por motivos utilitarios e apoiado em F. Menezes Bastos (987: 10-11), verei estes dois sub-campos filoséficos como reunidos numa sé e ‘nica musicologia, que chamarei de Estética Musical. Adorno (1983a: 259) assevera que a Sociologia da Mi uma "das diver ciologias de alguma coisa". Isto sintomatiza que no campo sociolégico 0 objeto "miisica" nao se encaixa de maneira especial, mas tipica. Consistentemente, os praticantes da Sociologia da Musica - diferentemente dos musicélogos comparados (no futuro, etnomusieélogos) histéricos - isto 0 sio enquanto socidlogos "gerais". Nao parece aqui ter vigéncia, assim, uma identidade inclufda de "musicélogo” e, desta maneira, de "misico". Isto, desde Comte a Becker, pasando por Weber e Adorno. ‘A Sociologia da Musica nfo procede, pois, do cfrculo artistico-musical mas sociolégico. Compativelmente, nunca fez sentido aqui a busca de autonomia quanto ao objeto "misica", 0 que - conforme adiante - sofreré profundas mudancas, porém, a partir dos anos 70. O caso da Psicologia da Misica é semelhante ao da Sociologia da Musica: trata-se de uma Psicologia de qualquer coisa feita sobre a coisa musical. H4 duas contengdes, porém, aqui: a Psicologia da Musica resulta ser, numa sé caixa, uma Psicologia e uma Psicandlise da Musica, conjungdo extraordinaria na medida em que uma Ciéncia Humana (a Psicologia) e uma sua "contra-ciéncia" (a Psicandlise) [Foucault, 1985] se encaixam num mesmo espago epistémico. Segunda contenc&io: 0 que poderia ter vindo a ser uma especifica Psico- Musicologia coneretizou-se. como Musicologia Comparada (depois, Etnomusicologia), conforme estudei. De acordo com o que trabalhei, esta transmutagio do "psico-" no "etno-" foi tornada possivel pela migracdo dos quadros alemaes (e dos fonogramas!) para os Estados Unidos. 0 Folclore Musical, como musicologia, partilha com 0 campo folclérico inclusivo muitas ambiguidades. Isto jé esta sinalizado pelo fato de as expresses que lhes dao titulo apontarem simultaneamente para as disciplinas e seus objetos. Por outro lado, estes objetos sao reivindicados pelo menos pela Antropologia e Sociologia, com suas respectivas musicologias. Foi exatamente este tipo de reivindicac&o que permitiu & Etnomusicologia, a partir dos anos 30, apropriar-se do estudo das miisicas folcléricas, alcancando uma importante expansio. Finalmente, a profunda e explicita imbricac&o tanto das disciplinas quanto de seus objetos com a emblemitica da construgio das identidade dos estados nacionais parece especialmente estigmatizar a academicidade do Folclore e de sua potencial musicologia. é tao somente 3 ACENO, Vol. 1,1, p. 49-101 Jan, a Jul. de 2014 As musicologias, pois - para resumir -, constituem subcampos epistémicos cuja existéncia advém de quatro grandes circulos: Musica, Ciéncias Humanas, Filosofia e Folelore. De dentro do primeiro continente (Misica), nasceram, na segunda metade do século XIX e a partir de ruptura nos discursos da Historia da Miisica e Teoria Musical, a Musicologia Historica e a Musicologia Comparada (futura Etnomusicologia), sub-dreas As quais a expresso musicologia tem adequacio estrita. Do segundo circulo (Ciéncias Humanas), provém a Psicologia - neste caso, adjunta a Psicandlise - e a Sociologia da Masica, também com a datacio inicial do século XIX. Do terceiro (Filosofia), a Estética Musical (aqui reunida a ilosofia da Art ), a partir do século XVII (Kant) e XIX (Hegel). E: musicologia ces temiticas - sem autonomia - continentes matrizes. 0 termo musicologia tem emprego lato agora. 0 Folclore Musical completa 0 quadro das musicologias, sob o signo de uma especial ambiguidade e falta de soberania. Tratarei dele como reuni- do A Musicologia Comparada (Etnomusicologia). ‘As relacGes das duas primeiras musicologias com as Ciéncias Humanas correspondentes (Etnologia e Histéria) tém duas maos: no sentido Misica- Ciéncias Humanas, busca de legitimidade com relacéo a explicagdo da totalidade sécio-cultural (inteligibilidade). No sentido inverso: procura de ilustrag&o e exemplo senstveis. O limite temporal superior deste quadro so os anos 60, quando se insinua a possibilidade daquilo a que poder-se-ia chamar de “estudos musicais", um corpus scientiarum musicarum transcontinental em termos disciplinares. binémio "som"/"cultura” constitui 0 nexo fundamental do quadro em anilise, a seu respeito podendo-se divisar 0 seguinte continuo das musicologias: MH, MC (E/FM).sscssousseaneenioSM, PMosssesnensneaenssseEM ° 1 2 ' “som” - - “cultura” + No ponto zero da escala, esto as duas "musicologias musicais", provindas do cfrculo artistico correspondente: Musicologias Histérica (MH) e Comparada (MC) [futura Etnomusicologia (E)]. Elas so as que mais enfatizam a "anilise sonora". Incluo o Folclore Musical (FM) na Etnomusicologia. No final do continuo, a "musicologia filosdfica" (Estética Musical - EM). Intermediando os extremos, as "musicologias humanas": Sociologia e Psicologia da Miisica (SM e PM). Conforme trabalharei na terceira parte deste escrito, o par de categorias "som"/"cultura" congrui com os de "sensibilidade"/"inteligibilidade" ‘outros"/"nés"(respectivamente seus termos), 0 que evoca o platonismo da Alegoria da Caverna e do Esquema da Linha Dividida. 74 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. O universo das musicologias - uma diaspora - nao é nem monolitico nem isondmico, tratando-se de um espaco epistémico descontinuo e enrugado"s, ‘Amaioria das andlises sobre as relacdes mantidas pela Etnomusicolo- gia com as outras musicologias tende a privilegiar seus nexos com um discurso disciplinar que pretensamente seria a Musicologia Historica. Simultaneamente, tais investigagdes inclinam-se por construir uma identidade etnomusicolégica com base na suposicao do contraste que existi-ria entre os dois campos do ponto de vista da énfase no enfoque do contexto. A Etnomusicologia seria aqui a rainha da contextualizagdo - medida de sua conterraneidade "antropolégica" -, aquela pretensa Musicologia Historica (injustificadament das interfaces contextuais, emblema de sua atribuida alteridade "histérica”. 6, segundo campo torn: elén ea Etnomusicologia sua tinica resposta do continente nada ha aqui de referéncia as outras musicologias. Tal tendéncia analitica espraia-se pela literatura etnomusicolégica, desde seus manuais e compéndios - via de regra, nas introdugdes destes, quando se elabora a histéria da disciplina - até suas obras menos normais (Kuhn, 1975). Este perfil diz respeito aos anos 50-60 - aqui, meu objeto de atengao -, sendo de notar, porém, que a tendéncia pode ser vista como projetando-se adiante e aquém dai. Isto, mesmo em contribuicdes como as de C. Seeger (1977) e Chase (1976), excepcionais em outro sentido. ‘A predominAncia dessa inclinacdo analitica somada a auséncia de estudos que reportem as relagdes da Etnomusicologia com as outras musicologias apontam para uma profunda encarnagio hist6rico-cultural-social da maneira de a disciplina construir seu quadro articulatério com 2 sda Misi eda Antropologia. © que este mito de origens procura remarcar 6 que a elaboracio da Etnomusicologia continuamente se faz de dentro da Misica - nas suas margens musicolégicas -, como uma segmentagio a partir de uma ancestral unidade com uma Musicologia Hi 0 para 0 territério antropolégico - nos seus confins de artisticidade: das margens quase inteligentes da Arte, onde se busca as origens da Musica Ocidental na musica dos "outros", para os limites quase sensiveis da Ciéncia (Social) - local de procura de ilustracdes e exemplos nao-verbais da alteridade maxima. Embora com essa tica se tenha elaborado uma producio itil no senti- do de uma historia natural, descritivo-cronolégica, dos nexos da Etnomusicologia com a Miasica e com sua posterior tematizacio "humana" através da Antropologia, o quadro daf resultante - o de um mito de origens sob linguagem historica - é incompleto e confuso. Incompleto porque deixa de dar conta das lids’ sendo vista como inapetente na diregéio da abordagem Para tais andlis se a Musicologia por ex: iéncias Humanas. Quase inclusive sori genérica, Isto, no sentido de uma migra " Serv-me das seguintesfontes no sentido do presente quadro das musiologias: Harrison (2969), Ward, ed. (1973), Hindley, e. (977), Hameline (1978), Etzkorn, ed. (1973), Shepherd et ati (1977), Me nezes Bast, F. (2987), Rowell (1987) Albersheie (1972). Os textos etnomusicalgcos estio assinalados na decorrer da pare dos, 5A primeira, por postular a propria “juntura musico logis". A segunda, flagrantemente inspirada em Lévi-Strauss (4970), por diseriminar a Esnomusicologia da pretensa Musicologia Historice em termos no teméticos, mas teérico- rmetodologicos e epistemoldgieos, Ambas as obras, no entanto, generaizam esta Musieologia Histories, constituindova como alter privilegiado da Etnomusicologia. 5 ACENO, Vol.1,N-1,p. 49-101, Jan. a Jul. de 2014 varias outras musicologias e, sobretudo, do sistema de relagdes entre todas elas. Confuso pois generaliza a Musicologia Historica como a Musicologia, deixando de reconhecer que as disciplinas musicolégicas- excecao feita a Estética Musical - nascem no plural, simultaneamente no século XIX, inclusive a Musicologia Histérica. Esta nao tem, assim, nenhuma anterioridade sobre as demais, a ndo ser que se cometa o equfvoco - base, enfim, da tendéncia em anilise - de confundi-Ia com os discursos antecessores de todas as musicologias: a Histria da Masica e a Teoria Musical. Conforme ja estudado, foi através de uma ruptura nesse discurso conjunto (Historia da Misica/Teoria Musical) que nasceram, a meios do século XIX, as desse discurso). 0 objeto de ambas as disciplinas "musicais" - usando categoria nativa - é a miisica do passado. No cas e através da partitura -, 0 passado af coloca-se dentro da moldura da Misica Ocidental. Quanto A Etnomusicologia (ento, Musicologia Comparada), este passado sao as 'S exdticas", supostas na origem da Ocidental, misicas estas logo abordadas através da fonografia. Respectivamente, misicas do "nés" e do “outro”. A primeira sempre pensada como ex-pressdo - quase sempre dolorosa, pois premida - de individuos, grandes individuos ("mestres", "nomes", “génios"). A segunda, como manifestagdo de "sociedades”, "culturas". Quer dizer, misica, de um lado, como liberdade, de outro, como prisio. ‘As Musicologias Historica e Comparada (Etnomusicologia) nfo sao, pois - de acordo com a genealogia do mito -, mie e filha. Elas sfio irmas. Seu nascimento - como intentei mostrar - é o resultado de uma ruptura nos discursos da Teoria Musical e da Histéria da Misica, ruptura esta feita na i do de algo novo no ouvir Ocidental - a musica do passado diregio da constru tentativamente de acordo com o mensageiro e nfo com o intérprete. Pretendendo estudar as relagdes da Etnomusicologia com as suas homélogas, inicialmente levantei um quadro exploratério que me permitisse melhor imaginar para onde aponto quando digo musicologias. Verifiquei em seguida que os estudos relacionais da disciplina com as congéneres privilegiam sua vizinhanca com uma pretensa Musicologia Historica, na realidade com a Historia da Misica/Teoria Musical. Conforme levantei, a Sociologia da Misica ndo 6 uma "musicologia musical" mas "humana’. Por outro lado, ela é uma Ciéncia Social, o que nfo é 0 caso da também "humana" Psicologia da Misica. Dessa maneira, a Sociologia da Misica tem tudo a marcé-la como uma oposta da Etnomusicologia, sendo de notar que o agucamento do intercdmbio entre ambas a partir dos anos 70 est4 na base da perspectiva de um projetado campo musicolégico a que chamei de “estudos musicais". Decido-me assim a estudé-Ia agora, comparativamente com a sua prima cruzada, a Etnomusicologia. Para uma Antropologia da Sociologia da Musica 76 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. Embora as origens da Sociologia da Miisica possam ser remontadas a Comte (1798-1857), Dilthey (1833- 1911) e Simmel (1858-1919), ela s6 se constitui como subcampo da disciplina m&e em 1921, com o célebre Die rationalen und sociologischen Grundlagen der Musik (Weber 1944). Exibindo uma erudic&o notavel com relacdo a literatura musicolégica da época, erudicao esta que o faz viajar do Ocidente a China e a India, aos indios norte-americanos e aos camponeses europeus, Weber constréi nesse texto uma abrangente teoria da Musica Ocidental, fundada na perspectiva da racionalidade. Esta racionalidade deve ser entendida nos termos da efetiva eficdcia teleolégica do sujeito sobre o material sonoro da misica, tal material definindo-se como um conjunto de fendmenos aciisticos em torno da s harménica, Nao h4 no material sonoro da mtisica de Weber nada além de uma pura manifestagao do mundo fisico-actis o tem escopo semiolégico, 0 que sé ira acontecer quando de sua apropriacao social, a questéo contextual aqui sendo determinante. Para Weber, assim, de um lado 0 material sonoro da mtisica, vazio de significado; de outro, sua interface contextual, sua efetiva realizagao social como musica propriamente dita. Intermediando estes dois termos - uma transformagao do som e cultura etnomusicolégicos -, a razo teleologica. (Hé nesse esquema conceitual weberiano um grande paradoxo: como distinguir este material sonoro da musica de qualquer outro material sonoro seno pela musicalidade? Musicalidade esta mais essencial do que aquela de sua propria muisica na medida em que o concreto pensado est mais proximo do real do que o concreto figurado?) © estudo da misica, pois, para Weber também se constitui dilematicamente e de forma mais vigorosa que a etnomusicolégica: enquanto que na Musicologia Comparada (depois, Etnomusicologia), 0 som merece uma abordagem ja musicoldgica - dai se evidenciando a Musicologia Sistematica -, na Sociologia da Masica weberiana ele é um objeto aciistico, enfoca- do como um universo especifico da teoria ondulatéria do som, do qual ele exclui o mundo dos rufdo: E através dessa domesticagao racional do som que Weber ird divisar a contrastagéo da Misica Ocidental com as miisicas de todos os outros povos. ‘Transfiro a palavra para ele: © mesmo ocorre com @ Arte, 0 ouvido musical era, aparentemente, até mais ico. Ele desenvolvido em outros povos do que atualmente entre nds: eerlamente no o era menos [..] Mas a misica racional - tanto 0 contraponto como a harmonia -, formagao da sonoridade na base de trés triades com o terceiro harménio; (..) 86 existiram no Ocidente [..] [1985: 2] Aqui, Weber aprisiona a misica na estreiteza. Inicialmente, ao separar de maneira irreversivel a racionalidade do ouvido musical, reificando-os nos termos do bindmio - respectivamente os termos - "nés"/"outros”. Em seguida, ao legitimar etnocentricamente uma visio evolucionista pobre das relagées entre os diversos sistemas musicais humanos. O que sera para Weber este » Para o presente estudo, vide Etzkorn, ed. (1973), Shepherd et ali (1977) e Supici (1973) 7 ACENO, Vol.1,N-1,p: 49-101, Jan, a Jul. de 2014 ouvido musical senao aquele que, nao sendo tedrico, tao somente é estésico e magico (dos "outros")? Mas tem mais: Weber, por fim, nao alcanca discriminar - nessa racionalidade - 0 que seja producao discursiva valorativo-ideol6gica. Assim, ele acaba por proceder quanto & Mitsica Ocidental como o observador incauto do Ocidente que confunde o valor da igualdade com o igualitarismo mesmo. © que se tem ai a frente do espelho sendo o duplo do dilema etnomusicolégico, que 14 atras aparecerd invertido e refratado (pois numa reflexio que no produz o idéntico mas o "outro"? De um lado, o material sonoro € 0 social; de outro, o som e a cultura. Note-se como ambos os binémios s primeiros termos - que apontam o plano de expresso da mtisica - no passam de projecdes inertes dos segundos - referentes ao contexto -, inviabilizado, por outro lado, o sentido. A inversio retratada, entretanto, s6 se vai configurar plenamente quando da transformagao do primeiro binémio (aquele que se refere 4 Misica Ocidental) no segundo (a dos outros"). Esta transformagao se faz pelo salto da racionalidade e do individuo a estesia e ao gregarismo. Nas fundacées, pois, da Sociologia da Miisica o que se pode levantar é que o dilema etnomusicolégico, sobre ser o cerne da Etnomusicologia, nao passa de uma manifestacdo regional de algo muito mais abrangente: 0 paradoxo musicolégico, amago do pensar Ocidental sobre a musica. ‘A partir de Max Weber, a Sociologia da Mtisica se desenvolve, aleancando sedimentagio nos anos 50. Nesta época, aparecem os primeiros manuais e compéndios do campo, sendo de notar que na direcdo desta sedimentacdo a produgiio européia parece ter muito maior impacto que a norte-americana. Neste processo, ocorre com a Sociologia da Musica, do ponto de vista das relagdes de identidade do campo cientifico correspondente, o inverso que se deu com a Etnomusicologia: se esta, provindo da Misica, foi buscar legitimidade "cultural" (inteligibilidade) na Antropologia - oferecendo-Ihe em troco ilustragéo musical (sensibilidade) -, a Sociologia da Musica, nascendo da Sociologia, direcionou-se para a Misica, na demanda de legitimidade "musical" ‘Assim 6 que, comecando pelos anos 50, os textos de Sociologia da Musica vao ganhando cada vez mais "musicalidade" - as custas de um nimero paulatinamente mais profuso de "exemplos musicais" -, deslocando-se, desta maneira, sua por assim dizer "verbalidade" inicial. Finalmente, verifique-se que este movimento de maturagao da disciplina vai também se caracterizar por uma grande expansio temitica, desencasulando -se a Sociologia da Musica da Misica Ocidental. Vive-se agora a cultura de massa - ou a indiistria cultural (conforme Adorno; vide adiante). A musica, aqui, virtualmente invade o planeta. Nao - é certo - a mtsica, mas aquela, categorizada como musica popular, que denominei de terceiro kathélon (universal) do Ocidente, elaborada com centro no estabelecimento tecnolégico- se desenham: s 78 MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. industrial. Neste novo Gregoriano, a catolizagao estética do Capitalismo, coexistente com a sua ética, protestante”, ‘A Sociologia da Misica que se faz a partir dos anos 60, depois dos deslocamentos produzidos pela Segunda Guerra, se elabora sob o impacto da obra de Adorno (1903- 1969), cuja contribui¢do, muito embora remonte aos anos 30, s6 aleanca a merecida projegio a partir de entao. O fato de Adorno ter sido um talentoso misico, disefpulo de Alban Berg e, assim, "neto” de Schoenberg - 0 criador do dodecafonismo -, é de absoluta relevancia no sentido de uma adequada compreensio de sua obra. Isto, por dois motivos. Inicialmente - o mais dbvio -, porque sua produgio sociolégica se faz visceralmentemente de dentro da misica, tomada, nao, como um "particular" ou “especifico" - minimizagdio a que o pensamento oficial sempre procurou reduzir a misica no Ocidente - mas, numa tradigio que remonta pelo menos a Spengler ¢ Hegel (para nao dizer que ela tem inicio em Aristételes) como um dos "gerais" por exceléncia disto a que se pode chamar de Ocidente. Mas ha outro motivo menos dbvio aqui: Adorno, como compositor, se filia & variante bergiana (oposta a weberniana) da estética dodecafénica. Leibowitz (1957) elabora uma fascinante teoria sobre a Misica Ocidental, reconhecendo o cromatismo como o motor de sua histéria. Para Leibowitz, 0 que acontece nesta histéria - desde o século VI com o Gregoriano até o dodecafonismo - é uma luta de foice no escuro entre o diatonismo e o cromatismo, entre a planura do primeiro e o enrugamento do segundo. Sabe-se muito bem como os teéricos medievais e renascentistas catélicos intentaram aprisionar o cromatismo na planura diaténica, convencidos que estavam da dissolugio ética que o primeiro provocava: lassidao, lascivia e tantos outros diabos mais. Com a "profanizagio" da Musica Ocidental - ou a “eatolizagio" da misica da Europa nio catélica -, este projeto cromatico toma cada vez mais corpo, 0 que - é certo - sempre se deu sob a disciplina diaténica. O Romantismo é que parece - sempre segundo Leibowitz - ter provocado 0 comeco do fim do éthos diaténico, o que é radicalizado pelo expressionismo wagneriano e rompido por Schoenberg. Para o autor em comentério, a Musica Ocidental, a seguir a mesma racionalidade com que irrompera com o Gregoriano, chegara ai - com Schoenberg - ao fim. Isto, sob pena de anacronismo ou caos, absurdos dentro de sua légica (vide a terceira parte deste escrito). Esta teoria da Miisica Ocidental nao ¢ simplesmente de Leibowitz, mas 0 pano de fundo da cultura estética dodecafénica, alcancando - sobretudo em sua segunda geracio (a de Alban Berg e Anton Webern) - o estatuto de manifesto Entre os primeiros e mais importantes manuais da Sociologia da Miisiea, vide Bluukopf (1951). Conforme Btzkor Go73: 8), Blaukopf compendia neste livro que o primeiro objetivo da discipling seria "conceber a producdo ea repreduedio da misica dentro do contexto do processohistéricae evolutive' da sociedade humana’. Em outra parte, do ‘manual © autor assevera, porém, que na Sociologia da Misica a Sociologia e seeandiria para a Musicologia, Esta sfirmagio parece contrariar sua definglo da dseiplina,elaramente poco "mausicologia". Note-se nesta, par outro lado, ® abrangéncia que concede ao campo, que passa a abarcar toda e qualquer misica e nio somente a Ocidental; e 4 crinalasto de ure palsasto diematica Soclola/Mésiea, qu, como visto, no € orginal neta “muselogia 79 ACENO, Vol.1,N-1,p. 49-101, Jan. a Jul. de 2014 apocaliptico: chegara ao fim a Miisica Ocidental! Na terceira geragao e adiante, dentro sempre deste movimento de "vanguarda”, os nativos nao tinham mais ditvidas quanto a esta morte expressionista, a morte do proprio Ocidente através da miisica"=s. ‘A anilise da obra de Adorno revela de imediato uma postura critica amarga contra toda miisica que nfo a Grande Misica do Ocidente. Leia-se: contra as linhagens da Misica Ocidental que nao tinham como télos o dodecafonismo. Seu célebre ensaio Filosofia da Nova Miisica (1974), que clara- mente contrapée Schoenberg a Stravinsky - ali respectivamente o Progresso e a Restauragdo -, é programatico a este respeito. Mas nfo é somente ai que isto se mostra. Seus estudos sobre a miisica popular (tipicamente 1983b) trazem uma condenagio irremovivel a cla: depravagio e epigonismo, ao que adiciona uma alienag&o congénita, responsavel pela outrificagio do lazer na preparagio para 0 trabalho. Desta maneira, para Adorno (1986) a cultura de massa nao 6 uma cultura, mas uma indtistria. Isto equivale a dizer - no contexto de sua forma de pensar - que o homem aqui deixa de ser ativo, tornando-se impotente. E dificil ler Adorno sem Ihe revelar esse amargor e essa impoténcia perante nao s6 0 objeto de seu estudo e deleite - a misica - mas também, implicitamente, a sua propria teoria critica. Aqui, a racionalidade também comparece como senha reificada - senha para a civilizagdo -, com relago ao que ele é franca mente weberiano quanto A Musica Ocidental. Isto 0 conduz a abordar a misica na estritura de uma acusmitica parcial, que vai eleger tio somente os niveis melédico e harménico como aqueles por exceléncia da musicalidade Ocidental. Desta forma, o ritmo - como também o timbre - nfo passa de um migrante ilegal em seu Ocidente, imigrante barbaro ou selvagem (muito daf - como impensado, eu sugiro - nascendo a condenagio a Stravinsky e ao jazz). Consistentemente, Adorno legitima, cientifica e ético-politicamente, to somente uma corrente estética da Miisica Ocidental, estacionando ademais na posigéo de que, enfim, a historia sempre esteve pronta, reinversio do Marx que invertera Hegel?4. Quando Adorno, no entanto, se liberta da prisio hipercritica, ele atinge uma fina sintese tedrica na direcdo da integralizagio da misica como linguagem. Aqui a sua ruptura efetivamente criador: 0 coneeito essencial de sociedade, entretanto, que no s6 abarea todas as dreas parciais, mas eomparece por inteiro em eada uma delas, ni é um mero campo de fatos mais ou menos interligados, nem & uma classe logica suprema, & qual se pudesse chegar pela progressiva generalizagao. Fle 6 em si mesmo urn processo, um exo que se produ. e produ. os seus momentos parciais, uma totalidade no sentido de Hegel (19838: 1991] ‘= Permito-me confidenciar ao leitor que cu mesmo, nunca como numa "Robinsonada’,vivenciel este cima de morte da Misiea Ocidental, Isto, como estudante de Composigio Musical na Universidade de Brasilia nos anos 60. Devo screscentar, entretanto, que, aluno de Levi Damiano Cozzella de Rogésio © Régis Duprat e de Cliudio Santoro, minha ‘genealogia era ali muito mais weberniana que na linhagem de Alban Berg, Isto, se me fer abandonar a msiea erudita~ Dols "tudo a estava feito” -, me permitiy abragar a mistea popular e a Antropologia S'Para uma erica mandsta ao marxismo adornisno, vide Boehmer (1972), texto do qual muito me aprovetei na _resenteleitura, juntamente com Charles et ali (1972), Arames (1983) e Cohn (1986). Contrariamente a Beng, Webern fletem im pensamento estétiea mais fértl na diregto de urna superagio da morte expressionista da Mien Oeidental, através do serialismo (Webern, 1984). Por outro lado, lembre-se como z postura de Adorno sobre a indistia cultural antrapiie A do também “eritico” Benjamin (1983). isto antecipa os debates sobre o "compro misso polit Sobre estes e para o caso da MPD, vide Menezes Bastos (1977, 98). MENEZES BASTOS, Rafael José de. Esbogo de uma teoria da Musica. Este trecho seminal de Adorno - do mesmo escrito onde cle define a Sociologia da Musica como uma “das diversas sociologias-de-alguma-coisa” (vide supra) - rompe com as perspectivas particularistas da misica com relagio a sociedade (e A cultura). Aqui est’ a ruptura do paradoxo musicolégico, implicitamente um comeco de viabilizacdo de uma SemAntica Musical. ‘A teoria da misica de Shepherd (Shepherd et alii, 1977) parte de uma critica radical a0 pensamento Ocidental sobre esta linguagem. Sintomatico desta critica é o exame a que ela procede das obras de Langer (1960) e Meyer (1967), pensadores que, discutindo a problematica do significado musical, concluem que ele se instala na emocionalidade e na subjetividade. Alternativamente, 0 que Shepherd propée é 0 enfoque da questo em termos "émi De inicio, pois, esfumaga-se aqui a abordagem da mt: como "linguagem universal", fora da Torre de Babel. Lembrando o Mauss de A Prece (vide supra), Shepherd recoloca a questio do significado em misica nos termos de uma codificagao social onde o plano de expressfio da linguagem aparece como um cédigo conereto produzido socialmente, ao nivel seja da emissAo (produc), seja da recepeao (consumo). Aqui, neste deslocamento tao proficuo, os ecos arquetipicos do projeto de Adler. Os caminhos da Sociologia da Miisica parecem constituir uma inversio transformada daqueles da Etnomusicologia. Apesar de se constituirem em cima de categorias de entendimento basicamente sinénimas, as duas musicologias relacionam-se com as Ciéncias Sociais respectivas de forma cruzada. A primeira, originalmente de dentro da Sociologia como uma sociologia tipica, pouco a pouco se direciona para o territério da Musica, em busca de substncia musical- artistica. A Etnomusicologia, cria da Musica, procurard, por outro lado, legitimidade "cultural" na Antropologia. Na Sociologia da Musica, 0 objeto mtisica se erige nos termos do individuo e da racionalidade (uma forma de inteligibilidade). Isto, apesar da hierarquia - quero dizer, do holismo - presente no sistema da Musica Ocidental - de inicio, seu objeto exclusivo - e da ideologia da sensibilidade ai constante, inversio que configura o salto da "religido da arte" (conforme Spengler; vide adiante) até a sua Ciéncia. Quanto & Musicologia Comparada, uma outra inversio: a misica é divisada ai a partir dos prismas do coletivo e da irracionalidade, respectiva- mente do cultural (sob a redugao do étnico) e de uma quase animalidade. Em ambos os campos a anélise contextuai é dominante, abandonada a problematica do sentido. Termo a termo, paradoxo musicolégico quanto a0 "nés" e ao “outro”. O crescimento do mercado fonografico, a invasdo do planeta até suas franjas mais remotas pela mtisica popular, novo kathélon, transfiguram a musicalidade Ocidental: a Musica Ocidental é agora, ela mesma e toda ela, mitsica do passado. As questdes da etnicidade e do "compromisso politico" da misica so cruciais nesta direcio: 0 novo kathélon é suficientemente universal” para incluir desde o Flamenco as Raga, desde o Baido ao Bebop, 0 Jazz sendo agora a musica que tudo canibaliza. 81

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