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Nota sobre as relagdes do homem com a natureza no Renascimento Jodo Carlos Lino Gomes REsuMO 'Nosso objetivo neste texto ¢ compreender a formagao da idéia de natureza no Renascimen- to em fungao da sua importancia para a compreensio do conceito de natureza trabalhado zna modernidade ocidental e seu impacto sobre a experiencia do ser humano que se assume como livre e dominador do mundo natural. Pretendemos mostrar como a mudanca deste conceito permitiu a constituigae da Ciencia moderna que, por sua vez, tornou-se um verda- deiro paradigma para o saber na modernidade. Palavras-chave: Natureza; Renascimento; Ciencia moderna. centista, nao mais diz respeito a crenca em um universo possuidor de uma alma onde as coisas funcionam a partir dos impulsos de sua vontade, como para os gregos em geral. A natureza moderna é um mecanismo que tem de ser compreendido de fora (pois nao podemos penetrar em seu interior) a partir de modelos construidos pelo intelecto humano e € a Ciéncia ‘moderna que tera como obrigagao a construcao destes, quando ela comeca a criar um conjunto de novas hipoteses sobre o funcionamento da realidade. O importante € que esta forma da Ciencia pensar a realidade influenciou tanto a Filosofia moderna quanto as Ciéncias Humanas no século XIX. 0 conceito de natureza, que comeca a se esbocar em um certo momento do universo renas- Se queremos compreender a mudanca do conceito da natureza no Renascimento, € necessé- rio nao esquecer que a concepgao do ser do mundo até o final da Idade Média esta apoiada na cos-mologia aristotélico-medieval, que teve como seut grande sistematizador Santo Tomas do Aquino, Para o Aristételes, a propria ordem da cidade devia ser a reprodugao da ordem da na- tureza, ou seja, a ordem da cidade estava fundada na physis e, portanto, as leis que regulavam a vida dos homens (nomos) constituiam-se em uma dialética onde ao mesmo tempo em que se Professor do curso de Filosofia da PUC Minas, da Fajee do Ista; lino@uai.com br. 32 Tad sna Ge Onis Hans «3,03, 6.3237, st O08 renas- nde as eral. A demos fencia ajunto ma da manas Frac n8 Nota sobre as eles do men nm a nature no Reasciment diferenciavam da physis, pois eram convengao e nao natureza, s6 encontravam sentido na medi- da que instauravam a ordem da comunidade politica tendo como parametro a ordem do cosmos: Esta concepgao aristotélica de cosmos se define pela idéia de um todo hierarquizado onde ca- da coisa tem seu lugar na ordem do mundo. Mesmo antes de conhecer os textgs aristotélicos, a Idade Média, com sua conviccao crista de um mundo criado por Deus, reproduzia a idéia de uma natureza ordenada. A partir do momento em que 0s textos do Aristoteles voltam para oci- dente, no final do século XII e durante 0 século XII, tem-se um forte aparelho conceitual para expressar a idéia medieval de um mundo hierarquizado. Alexandre Koyré (1982) esereve que © mundo aristotelico “€ um ‘mundo’, uma natureza, ou um conjunto hierarquizado e bem ordena- do de naturezas, conjunto muito estavel e muito firme e que possui uma existencia propria; que a possui por si proprio” (p. 35). Pois € esta concepsao de mundo que os renascentistas criticam (pelo menos, os que vao se abrir para o modemo conceito de natureza) e esta critica esta intimamente ligada a mudanca no estatuto da natureza para eles. Segundo Collingwood, ha dois momentos na idéia renascentista de natureza: o primeiro é marcado por uma concepgao organica desta ¢ 0 segundo por uma con- cepgaio mecanica. Conforme este autor, os renascentistas estiveram muito mais proximos de Platao e de Pitagoras (por utilizarem o modelo matematico para pensar a realidade) que de Aris- toteles. Entretanto, num primeiro momento, a matematica convive com a visio que percebia a natureza como possuidora de uma alma, como um ser vivo. Collingwood (s/d.) escreve que “as filosofias naturalisticas do século XV e XVI atribufam a natureza razéo e sentido, amor, édio, prazer e sofrimento, ¢ encontravam nessas faculdades e nessas paixdes as causas dos processos naturais’ (p. 140). Mas a tendéncia matematizante, sobre a qual falamos anteriormente, impés-se ao animismo presente no conceito renascentista da naturezi e influenciou, com isto, a passagem da concep- Gao organica para a concepgao mecanica do mundo natural. Neste momento ¢ necessario ressaltar que o uso da matematica nao garantiu o surgimento de ‘uma cigncia tal como teremos no século XVI. Robert Lenoble (s/d.) chama nossa atengao para este fato escrevendo que (..) 0 desenvolvimento do século XVI foi exclusivamente literario e artistico, A filosofia ea ciencia nao s6 nao assinalam qualquer progresso, exceto, evidentemente, algumas descobertas de pormenor, como se entcontram até em regress4o: abandona-se a sistematizacao de Aristoteles pata regressar a te- ‘mas animistas, magicos, muito velhos, que remontam aos neoplatonicos, a Plutarco, a Macrobio, ¢ ate as tradigbes do 0 Egito e da Caldeia. (p. 233) Lenoble afirma também que os renascentistas amaram a natureza, mas ndo a conheceram em fungao do fato de terem abandonado o referencial te6rico de Aristoteles e dos medievais e nao terem abracado outro para as suas investigacdes. E importante frisar que Collingwood (s/d.) entende que ha uma certa diferenga entre a con- cepgao organica grega e a renascentista, Para ele, o Renascimento pensava as causas formais ou cficientes como pertencentes ao mundo natural, ndo situando-se fora deste, como em Arist6te- les. © autor explica que na concepcdo organica a relacio entre a natureza € © homem era ainda concebida em termos de astrologia e magia; isto porque 0 poderio do homem sobre a natureza era concebido, nao como o poderio do espirito sobre 0 Festa costae de Gens Homans, 30 3, 3297, se 208 33 Joa Cars tino Gomes ‘mecanismo mas sim como 0 poderio de uma alma sobre outra alma, que implicava magia; ¢ aquilo que na natureza era mais exterior, ou esfera estelar, era ainda concebido em moldes aristotelicos co- ‘mo senclo a mais pura ea mais eminentemente viva ou ativa ou influente parte do organismo cosmico ¢, portanto, como a causa de todos os acontecimentos ocorridos nas outras partes; consequentemen- te, como astrologia. (p. 141) Isto, de certa forma, explica o desenvolvimento de um certo saber sobre a natureza no Renas- cimento. Este se deu em um quadro onde os limites entre a magia a ciéncia ndo eram muito claros. E até dificil falar de uma cosmovisio renascentista ja que, nesta época, o que percebemos €aexistencia de um universo onde tudo € possivel. Na medida em que destruiu a concepgao de um mundo fundada no sistema aristotélico, o Renascimento se viu sem fundamentos ontologi- cos seguros para pensar a realidade. Isto se tornou um problema ja que toda cultura tem neces- sidade de pressupor o que seja a realidade, ou seja, ela tem de posuir uma certa nocao sobre o ser do real. E a partir desta pressuposi¢ao que se constroem as religides, a arte, a filosofia etc, sendo que é nela que se funda, de certa forma, a base ontologica que sustenta o proprio estar no ‘mundo das pessoas e de suas producées culturais. Quando os renascentistas rompem com 0 universo aristotélico-medieval mas nao conseguem construir iama nova visto do mundo unifi- cada, eles ficam em uma posigao onde, na ausencia de referenciais para dizer o que € realidade, tudo passa a ser posstvel. E 0 que nos mostra Alexandre Koyré (1982) ao escrever que (.) se se desejasse resumir em uma frase a mentalidade da Renascenga, eu proporia a formula: tudo € posstvel. A tinica questio € saber se “tudo € posstvel” em virtude de interveneOes de forcas sobrena- turais, e essa €a demonologia sobre a qual Nifo escreveu um volumoso livro que teve um enorme su- ‘ces50; ou se se recusa a intervencio de forcas sobrenaturais, para afirmar que tudo € natural e que ‘mesmo os fatos miractilosos se explicam por uma acio da natureza. E nessa naturalizagao magica do sobrenatural que consiste o que se chamou o “naturalismo” da Renascenga. (p. 48) nl E importante assinalar que as questOes expostas anteriormente nao impediram que, pouco a pouco, a concepcao mecanica da natureza ganhasse espaco no universo cultural renascentista. Segundo Collingwood, foi Copérnico quem provocou a crise da cosmologia moderna no século XVI, coisa que muito ajudou na mudanca das idéias renascentistas sobre o mundo. Em seu livro De revolutionibus orbium coelestium, publicado em 1453, cle critica a teoria ptolomaica, on- dea terra era vista como centro do universo, operando toda uma mudanga ao nivel da Astrono- mia, Para o Collingwood, a importancia do descobrimento de Copérnico “consistiu nao tanto em deslocar 0 centro do universo da terra para o sol como em, implicitamente, negar que o mundo tivesse fosse que centro fosse” A ideia de um universo pensado como um absoluto recebe, assim, um duro golpe e temos posteriormente em Galileu, com sua afirmagao de que o livro da natureza esta escrito em lin- uagem matematica, a consumacao deste ‘Nao € dificil imaginar a ruptura operada em relacdo a Grécia por esta nova imagem do mun- do, E toda uma mudanga ao nivel da ontologia aristotélico-medieval que se pode perceber af Esta mudanga também teve lugar ao nivel de uma antropologia, pois o proprio homem se vé questionado quanto a sua dignidade de ser e seu lugar no mundo. No que se refere a sua relacao 34 Tea do tua de Oia Mans, 3,03 5.3237, st 208 tuilo nico en- as- tito nos ode bgi- ves feo ete, 'no no sifi- de, tudo su. que tdo sta, talo on n0- ato co tos in- Nata sobre elas do harem cam a ature no Renastimert com a natureza, radicaliza-se entre esta e o homem o afastamento que se iniciou quando a Re- mascenca comecou a superar a fase em que preponderava a concep¢ao organica do mundo natu- ral, Com este afastamento, esté colocada a possibilidade da agao humana sobre o mundo natural em um universo cujos limites sao absolutamente questionaveis. Nao hd mais ima physis como possibilidade da ordem do mundo humano. O que se comega a ter é uma natureza entendida co- mo um conjunto de elementos que, separados do homem, podem ser operados por ele, A con- cepcao aristotélico-medieval do mundo hierarquizado, ordenado e estavel vem abaixo. A natu- teza deixa de ser um paradigma para pensar a ordem do mundo pois este, para os homens do Renascimento, ndo tem centro eo homem nao tem um lugar. Mas € necessério nao esquecer que, segundo Robert Lenoble, foi Sécrates quem fez a primei- ra tentativa na direcao de uma objetivacao do mundo natural quando ele opde o mundo das coi- sas fisicas ao mundo da consciéncia e mostra claramente que seu interesse esta neste ultimo. Le- noble [s/d.] escreve: Repete-se que Socrates foi o iniciador do pensamento ocidental, que de imediato € representado, nao semalguma razao, como o Espirito conquistador do mundo. Ora, Sécrates nunca olhou este mundo. ‘arias vezes se tentaram paralelos, com frequencia arriscados, entre 0 Sdcrates ¢ Cristo. Mas o mais caracteristico € certamente aquele de que menos se fala: nos dois casos, a doutrina desenvolve-se sem enhuma cosmogonia, sem nenhuma preocupacao em relacao aquilo que designamos hoje, ou que se designava entdo por uma fisica. O caso, extremamente raro, merece ser mencionado. Sécrates € ‘um moralista, 36.0 homem Ihe interessa; vive na Agora e, quando os seus discipulos o levam um dia a passear a alguns estadios de Atenas, nas margens do Ilissos, aborrece-se no meio dessas coisas sem alma e que nao falam, e regressa, logo que pode, para ou meio dos homens. Tinha baseado a fisica. (p, 57-58) Entao, antes dos renascentistas, 0 desprezo socritico pela natureza tornou possivel, parado- xalmente, o primeiro esforco no sentido de uma objetivagao desta. Na medida em que Sécrates faz da consciéncia uma esfera especifica de investigacao, ele a separa do mundo das coisas fisicas ¢ estas, por sua vez, aparecem aos olhos humanos como um campo que também tem sua especificidade. Mas a mudanga que o Renascimento realiza com relagao ao ideal aristotélico-medieval de mundo tem suas implicagoes no conceito de razao que o ocidente vinha construindo desde o tempo dos gregos. Nao eta mais possivel, em um quadro onde os préprios fundamentos da Tazo estavam sendo questionados, continuar compreendendo o exercicio desta razio como a busca por exceléncia das causas finais. Collingwood (s/d.], ao analisar 0 movimento cosmolé- gico renascentista, escreve que a teleologia foi a doutrina mais atacada por este movimento, Segundo o autor, critica-se “a teoria das causas finais, a tentativa de explicar a natureza como penetrada por uma tendéncia ou esforco para realizar formas ainda nao existentes” (p. 137) Collingwood {s/d.] continua suas reflexdes, dizendo que a nova doutrina da natureza traba- tha suas explicagoes referindo-se as causas eficientes, explicando todos os processos e todas as mudancas “pela agao de coisas materiais jé existentes no comeco de cada mudanga” (p. 138). Desta forma, de uma razao grega que procurava os fins, passa-se para um modelo de razio que tenta compreender as ages que permanentemente informam os processos na natureza Esta razdo que centra seus esforcos nas causas eficientes é, de certa forma, o prentincio do que se convencionou chamar, posteriormente, de racionalidade instrumental e que vai ganhar toda sua forca com a ascensao da Ciéncia moderna. esa do stivs de inca Manas, 3,03 9 3237, se 08 35 idido idan- > que leom qual- > ho- eque adoe uma nase mens con- neial rmos iade reas ardo ‘siva- ores > nos dade abje- apor sum sdo lizar, Nota sobre as lags do hare om a natura oReastiment dema e da Ciencia moderna e as Ciencias Humanas terdo de prestar contas a ele no século XIX. Se se tornou comum a critica de uma transposi¢ao dogmatica do método das Ciencias empirico- formais para as Ciencias do espirito (critica com a qual concordamos), isto ndo nos livra da ne- cessidade de compreender a historia do esforco da mente humana na busca dé um mundo me- nos ofuscado pelas trevas da ignorancia Referencias COLLINGWOOD, R. G. Ciencia e filosofia. Lisboa: Editorial Presenga, [s/4.] KOYRE, Alexandre. Estudos de historia do pensamento cientifico. Rio de Janeiro: Forense Universi- ‘aria; Brasilia: Ed. da Universidade de Brasilia, 1982. KOYRE, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitaria; So Paulo: Ed. da Universidade de Sa0 Paulo, 1979. HELLER, Agnes. O homem do Renascimento. Lisboa: Editorial Presenca, (s/. LENOBLE, Robert. Historia da idéla de natureza. Lisboa: Edi¢des 70, [s/4.] Fea dood Coca Humana, 3, 3p SDT, se O08 7

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