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Universidag | C_ siset/uFU 1000340764 ro oven uidence de Phistoire — ce que wit ls historens cooRaNBORA CA COLES HSTORAE HSTOROSRARA Elana de Freitas Outra Teco de Souze oroRACAO RETIONECA Conrado Estoves Chnstane Mort de Olvera Vera Chackam Vera tcl De Simon Castro renots isonet Agjane Dias fen conforms 0 Noo cord Onaga indica para cailogo stant 1. Hstorogafia 907.2 Essa. Nenha pre deta psbiarto gg Uderiancia Colegdo HISTORIA & HISTORIOGRAFIA, Cooedenos5o Eliana de Freitas Dutra Frangois Hartog Evidéncia da histéria © que os historiadores veem Tradugéo. Guilherme Jodo de Freitas Teixeira com a colaboragéio de Jaime A. Clasen NUNN SIE UEIE auténtica ee CAPITULO tH Disputas a respeito da narrativa A historia nos relat alguma coisa? Nio, é Alsin Decaux quem relata, ou melhor, relatva, Nao teria cle tepresentado pars um grande mimero de pessoas, em nossos monitores de televisio na década de 1970, 0 rosto ea vor da histéria? Nao exam elogiaden Precisamente seus talentos de narrador? Aligs, nlo se encontra em fextos escritos por historiadores profissionais, empenhados em fa. ver conhecer determinado livro de hist6ria, que esse se Ié como tum romance? Lé-se de um extremo a0 outro, ess livro universitirio, sério, que escapa ao suposto tédio suscitado por obras desse género, Nessa formula lisonjeira, tio gasta quanto frequentemente utlizada, sudo subsiste no como. Sou eu quem o recomenda a vocés, leitores nie especialistas no assunto; garanto-lhes que se trata, sem dtivida, de historia ~ de acontecimentos ocorridos na realidade, de urn fe. némeno histérico verdadeiramente explicado, de arquivos inéditos que foram submetidos a uma anilise, de novos conhecimentor cfetivamente fornecidos — mas, nfo obstante ou além disso, o lives € legivel. A montagem, a trama, a escrita permitem a vocts, le ores, a possibilidade de abordar este texto como se tratasse de uma obra de ficel0; vocts podem abandonarse 10 prazer da leiturs adquitir instrugio de forma divert, Como um romance, signifi, Precisamente: as aparéncias de um romance; mas #10 um roman~ ©¢, tampouco um romance histérico 0 qual, por sua ver, coloca Ale Des: tsa Deca ts eo tl dae progapa indi enw 96998 7a rppan oA ena ~O ai os HRCI vB a servigo da ficgZo o detalhe que confere 0 aspecto de verdadeiro a0 relato. Pelo como, indica-se que leitor um tanto curioso vai, supostamente, beneficiar-se desses dois registros. Neste caso, a histéria nos relata alguma coisa? Nao, de modo algum — vio responder esses mesmos historiadores profissionais; exis- tem espasos especificos para isso, € h muito tempo que a historia~ narrativa deixou de nossa ocupacio. Tenham presente, portanto, ‘0s sarcasmos lancados por Lucien Febvre, na década de 1930, sobre 2 hist6ria-narrativa, “historizante”, tributiria dos acontecimentos [Svéncmentielle] ou, ainda, “hist6ria-batalhas”! E, mais amplamente, voeés sabem perfeitamente que a hist6ria se constituiu como disci plina, na segunda metade do século XIX, ao preferir, com base no ‘modelo das ciéncias naturais, a ciéncia ao invés da arte. Ciéncia de observagiio, cigncia de anilise,leitora de documentos que, um dia talvez, culminard na sintese e na deducdo de leis. Lembrem-se das titicas virulentas e reiteradas de Fustel de Coulanges ou, um pou- co mais tarde, as instrucdes minuciosas de Langlois e de Seignobos a respeito do historiador que, 20 redigir seus textos, nunca deve “endomingar-se”! Para cla, a narrativa é sinénimo de pedantismo ou de ingenuidade (a crénica medieval é “ingénua” [“naive”}; ver supra p. 159-160). Entretanto, na série dos retornos anunciados que se tornaram habituais para nds, figuram tanto o acontecimento quanto a narra~ tiva. Sob o titulo “Retour au récit” [Retorno 3 narrativa], 0 histo- tiador Lawrence Stone tinha levantado essa lebre, ji em 1979, a0 apresentar um primeiro “inventério das alteragSes operadas na moda da atividade de historiador”. Mas o que ele designava por “narrativa” [‘técie"] ou “narracio” nio era, de modo algum, problematizado, tampouco definido com precisio; era somente uma “abreviatura cémoda”, permitindo descrever um fenémeno de distanciamento em relacio as diferentes formas da histéria cientifica, até entio, prevalente (STONE, 1980, p. 118, 142). Apesar de sua pretensio em ser simplesmente descritivo, o termo nao era, no entanto, neutro. De forma mais séria, foi um filésofo que elaborou a principal reflexio sobre a questo da narrativa em sua rela¢io com a histéria ¢, portanto, um questionamento sobre a evidéncia da histéria. Em. 174 Drouras «ao De Nama sua obra Temps et récit, Paul Ricoeur (1983-1985) ~ preocupado em perscrutar 0 mistério do tempo — considerava, de fato, alterna~ damente, 2 historia e a fic¢ao para chegar 8 conclusio de que seria impossivel existir histéria sem um vinculo, por mais ténue que fosse, com a narrativa.® Filésofo, associado 4 tradigo hermenéu- tica ¢ bom conhecedor da filosofia da hist6ria anglo-sax, Ricoeur tinha-se tornado também, nessa ocasiZo, o leitor atento ¢ inven- tivo dos historiadores franceses contemporineos que, sob a égide dos Annales, haviam decidido virar as costas precisamente para a hist6ria-narrativa. A comecar por Femand Braudel, com sua obra La Méditerranée (1966): livro seminal dessa nova hist6ria. Com toda a evidéncia, existe ai um importante desafio para quem defende que histéria e narrativa nao so inteiramente separiveis. O que se passa, entio, com essa hist6ria? Constituiria uma excegio ou, pelo contririo, conserva, apesar de tudo, um vinculo com a narrativa ou com uma forma de narrativa? Histéria-narrativa Neste ponto, um balizamento historiogrifico pode ser titil para nés. O que se pretende dizer quando se fala da rejeigio da narrativa pelos historiadores dos Annales? Em primeiro lugar, uma polémica Girigida contra a hist6ria met6dica, entio, dominante. Trata-se de romper com 0 qué? Com a histéria-narrativa, ou historizante, ou twibutéria dos acontecimentos [événementie palavras ou expresses io praticamente sindnimas; mas o uso dessa expressio desvalorizadora nio procedia, de modo algum, de um uestionamento da narrativa enquanto tal. O que se deve entender por historia-narrativa? Simplesmente aquela que reserva 0 primeiro plano aos individuos e aos acontecimentos. Seu questionamento se cfetua sob a pressio das incipientes ciéncias sociais, para quem © objeto da ciéncia jé nao é o individuo, mas os grupos sociais; tampouco a sequéncia dos acontecimentos em sua superficialidade, ‘onsiderando que essas © A questo cental € a do tempo e de soa iepeesentbidade: porno, a hinoriografia ocwpa apenas um momento da investigagio, ea afmaio de um vacuo, por minim qve si, ene Inscria emaratva, depend, por sua vez, ds hiporese principal segundo 2 qual eri imposvel Daver tempo pend a nfo ser ret, 175 Brenan ona outcomes et mas © repetitivo ¢ a série (SIMIAND, 1960; ver infra, p. 222-223). Tendo-se tornado econémica ¢ social, a historia pretende, pela parte que Ihe compete, contribuir para a construcao dessa nova ciéncia da sociedade sobre si mesma. Passando do nacional (sua principal preocupacio, durante todo o século XIX) para o social, a historia abandona, em breve, a narrativa das origens, a narragio conti dos faustos da nacio, em favor do “tecitativo da conjuntu quantifica, constr6i séries, elabora tabelas ¢ curvas). Deixando de se contentar com a ordem de sucesso e com a linha da cronologia (subentendida unicamente pela ideia de progresso), ela procede a comparagées, de miiltiplas maneiras, preocupada em mostrar repe- tices e remanéncias. seu microsc6pio, 0 acontecimento deixa de ser “vistvel”, Ele, por si s6, é nada ou quase nada; além disso, a luz que no the pertence. O tempo a partir do qual ela trabalha jé no € 0 do acontecimento, demasiado breve e nio significativo, ‘mas um tempo, também social, pontuado por ciclos, conjunturas, estruturas € crises. Com suas oscilagdes e seus movimentos de grande amplitude, suas camadas profimdas e suas lentides, esse novo tempo histérico (que conduz 3 longa duragio braudeliana) prescinde totalmente do acontecimento e da historia politica. Assim, ela proclamaria que repudié-lo é, 20 mesmo tempo, abandonar a narrativa. Seri suficiente rejeitar acontecimento e individuo para escapar da narrativa? Inversamente, bastard evocar 0 retorno do acontecimento (e do individuo) para chegar 4 conclusio de um retorno da narrativa? Quando, a0 reffetir sobre o objeto da histéria, Lucien Febvre tirava a conclusio de que “os fatos sio fatos”, ele equiparava o his- toriador a0 histologista 0 qual, através da ocular de seu microscépio, limita-se a ver o que, previamente, havia “preparado”. Ao criticar ‘uma concepeio obsoleta da ciéneia (aquela reivindicada pela historia positivista que, em sua opinio, ficara atrelada a Claude Bernard) pretendia levar ou reconduzir 2 histéria para o lado da ciéncia viva, mas, de modo algum, aproximé-la da narrativa de fic¢o, tampouco de dissolvé-la nessa narracio. O historiador constréi seu objeto, semelhanga de um centista, nio como um romancista. Ao declarar 176 Donnas a ezeno a atts, que “os fatos sio fatos”, Febvre nfo pensava, de modo algum, em apresenti-lo como um mestre da intriga; ele defendia uma hist6ria ‘mais cientifica ou verdadeiramente cientifica, convidando a refletir sobre suas condigdes de elaboracio (¢ apontando o equivoco de Péguy ao criticar os historiadores por fazerem habitualmente a his- t6ria sem meditar a respeito dos limites e das condiges da histéria) Mas, ele no langava, de modo algum, um questionamento sobre 2 escrta da histéria: sobre a narrativa. Posteriormente, a histéria tem mantido e reformulado essa ambigio no sentido de ser cada vez mais cientifica (portanto, mais realista ou verdadeira), por seu recurso aos grandes paradigmas do século XX, antes de investir nos primeiros computadores. Sem nunca ceder 4 critica epistemoldgica, ela se mostrou cada vez mais preocupada com as condicdes de sua produgio, além de mais cons- lente de que seus objetos no eram dados imediatos das fontes, mas produtos; para comecar, impunha-se sobretudo que ela formulasse perguntas, aventasse hip6teses e construisse modelos, bem mais do que relatasse 0 que tinha acontecido. Em um artigo provocador e que, rapidamente, se tomou famoso, publicado em 1967, Roland Barthes procurava determinar se algum trago especifico distinguia narrativa histérica e narrativa ficticia, do ponto de vista das moda~ lidades da prépria narragio. Ele observava que “o apagamento (para nio dizer, o desaparecimento) da narragio na ciéncia historica atual que, em vez das cronologias, procura falar das estruturas”, era 0 indicio de uma mutacio. “O signo da histéria 6, daqui em diante, niio tanto o real, mas o inteligivel” (Banus, 1984, p. 153-166). A exptessio é aceitivel se, imediatamente, for acrescentado que 0 real, assim designado, era datado; tratava-se do real do realismo — do romance realista~ concebido como fidedigna imitagio do real. Portanto, 0 inteligivel nio se opde, em iiltima anilise, ao real, mas unicamente a determinado real Sem qualquer pretensio de fazer um trocadilho, viu-se, por- tanto, a hist6ria moderna praticamente renunciar & narrativa, sem nunca ter formulado a questio da narrativa enquanto tal. Assim, 20 invés de abandono, seria preferivel, em companbia de Ricceur, falar de “eclipse” da narrativa (tornou-se invisivel, mas ela continua Wz Ercbica ston ~O oi os wcanote eH presente ¢ pode tomar-se, de novo, visivel: fazer retomo, como observava Stone). Se prolongarmos, ainda um instante, a perspectiva historiogrifica, seria preferivel falar de uma ocultacio (de modo algum, deliberada) da questo da narrativa, que remonta muito mais longe que o combate dos Annales contra a historia met6dica ¢ em favor de uma hist6ria social (0 real & social), até mesmo mais Jonge que o combate, travado na segunda metade do século XIX, em favor de uma histéria, no mais arte, mas ciéncia, preocupada sobretudo em conhecer e nfo tanto em fazer ressurgir passado — his- t6ria que, de resto, era minimamente tributiria dos acontecimentos [événementell]. Tendo-se tomado homem de arquivos, 0 historiador dessa historia observava, ou seja, estabelecia os fitos, 8 semelhanca de um fildlogo que estabelece um texto, ¢ procedia i sua exposicio sem pesquisa, nem apuro: tal como eles eram (ver supra, p. 159). Histéria-Geschichte De fato, enquanto a antiga distingGo entre res gestae ¢ historia rerum gestarum — ow seja, as agdes executadas, por um lado, e, por outro, sua narragio — permanecer operatéria, no ha Iugar para formular a questio da narrativa. Ou, melhor dizendo, é evidente que © trabalho do historiador, seu talento e sua originalidade em relagdo a seus predecessores — em suma, tudo aquilo que leva um principe a recorrer a seus servigos ~, apoiam-se em seu dominio da arte da exposi¢o. Em tal regime de produgio histérica, a historia depende claramente da ret6rica, e pode sempre ser definida com justeza, de acordo com a formula de Cicero, como apus oratorium ‘macxime, fungio por exceléncia do orador e, antes de mais nada, obra oratéria (ver supra, p. 41-42). Principe da cidade, o orador (orator) & - deveria ser ~ 0 homem dotado das melhores condigdes para escrevé-la. Isso nao significa, de modo algum, que esteja isenta da exigéncia de verdade; pelo contririo, ela se afirma como lux veritatis (luz de verdade, evidéncia). Ha um verdadeiro estoque de formulas famosas do mesmo Cicero que retomam e vio transmitir essa vulgata helenistica até a época moderna. Corolitio dessa definigio € a antiga concepgio da histéria como “exemplar”. Coletinea de exempla, ela & a “mestra de vida” 178 Denras A 80 om asa, (magisira vita). Visando formar o cidadio e esclarecer o politico, ela deve também ser capaz de servir para a instrugo do ser humano individual. Natrativa das inconstincias da Fortuna, ela deve ajudar a suportar as reviravoltas de situacio, propondo exemplos para imitar ou evitar. Transformando-se, desde entio, de bom grado, em histéria de vidas, ela se mostra atenta a tudo 0 que nio se vé imediatamente, a todos os indicios que Plutarco designa especifi- camente como os “sinais da alma”. Ela serve-se do encadeamento: admiracio, emulagio ¢ imitagio. Histéria filos6fica, ou seja, moral, ela € 0 espelho em que cada um, através dos retratos esbogados € do relato de episédios secundirios, pode observar-se com o obje- tivo de agir em melhores condigdes e se tornar melhor. Com essa hist6ria, cuja finalidade € mais ética que politica ou, até mesmo, simplesmente civica, passou-se da cidade grega para 0 Império Ro- mano ~ ou de Cicero para Plutarco ~ cuja obra Vidas paralelas tern marcado permanentemente, para além da Antiguidade, as maneiras de escrever € 05 us0s da historia (Har 0G, 2005, p. 99-147). Assim, no século XVIII, Cicero ¢ Plutarco setio parafraseados ¢ copiados na obra, profusamente disseminada, Traité des études (1726) do abbé Rollin, em que a histéria é apresentada como “escola comum da raga humana” (Hartoc, 2003, p. 14). Segundo essa perspectiva, até mesmo a hist6ria pagi pode ser “salva”, desde o momento que Ihe é reconhecido um valor de formacio, em primeiro lugar, para 0s principes, mas também para os stiditos. Relaté-la torna-se licito, ¢ sua aprendizagem, Gti. Ora, no final do século XVIII, esses topo’ perdem influéncia, enquanto surge outra forma de histéria. Se o tema da “historia mestra de vida” continua sendo evocado, ele esti esvaziado de um verdadeiro sentido; além disso, parece que a parcilha entre res geste € historia rerum gestarum deixou de ser pertinente. Entre os sécuilos XVI e XVII, assistiu-se 2 uma progressiva autonomizacio da his~ toria, endossada e radicalizada pelos filésofos e historiadores alemies ao formarem e imporem, pouco a pouco, o conceito de Geschichte: historia no singular, a historia em si, a Historia (Koseteck, 1990, em particular, p. 42-53). Caduco &, daqui em diante, 0 dispositive segundo o qual haveria, por exemplo, os acontecimentos, assim como 179 Brcben amen =O airs amnnone Ye a8 agdes ¢ as faganhas do principe, por um lado, e, por outro, sua exposigao, sua apresentacio, ou seja, a narrativa claborada de tudo isso por seu historiégrafo. Tal pritica deixou de existir e, em seu lugar, ha uma historia que continua avancando lentamente: historia processo [procés] ou evolucio [processus], sobretudo historia progresso [progris) Nese novo quadro conceitual, a historia vai definir-se, finalmente, de acordo com a formula de Gustav Droysen (1882, 2009), como conhecimento de si mesma: autocompreensio no e pelo tempo. Foi abandonado, certamente, o espaco da retérica que pres~ supunha a partilha entre as res gestae © a historia rerum gestarum, na qual no se formula a questio da narrativa enquanto tal ou, mais exatamente, ela nfo suscitava um sério problema epistemologico. Ao tomar como referéncia, em primeiro lugar, 0 tribunal e as técnicas de investigagio judicial, o historiador, reconhecido como mestre das, artes da orat6ria, deveria, entio, causar impressio e principalmente convencer sua audiéncia ou seus leitores, sendo orientado por uma Jégica da persuasio, demonstrando-lhes do modo mais nitido possi- vel o que ele evocava, Da mesma forma, desfez-se o velho topos das ligdes da hist6ria: como é que esta titima poderia continuar sendo exemplar quando ~ de acordo com a observacio de Tocqueville confrontado com as convulsdes da Revolugio Francesa ~ 0 passado deixou de iluminar 0 futuro, quando a distincia vai aumentando entre campo de experiéncia e horizonte de expectativa, entre o que é conhecido ¢ 0 que é pretendido (ou amedronta)? A légica do progresso implica que o exemplar ceda 0 lt ‘inico. O passado toma-se ultrapassado (Harroc, 2003, . ‘Mas, com a histéria-Geschichte, a questio da narrativa, da co- locago em narrativa, deixou de ser formulada; ha ocultagio dessa dimensio. A historia em si é, por hipétese, res geste € historia rerum _gestarum: no mesmo movimento, os acontecimentos e sua narracdo. De fato, a historia fala e, afinal de contas, exprime-se a si mesma, Encontra-se, de novo ~ mas, em outro nivel ~ a epistemologia tu- cididiana. O bom historiador ser precisamente o homem que se apaga diante dela: nfo aquele que, 3 semelhanca de Michelet, a leva a falar, sobretudo em seus siléncios, mas aquele que a deixa falar, sem interferir, porque ele sabe vé-la em todo o seu desdobramento 180 Daas 40 Da ar progressivo. © filésofo apresenta-se, entio, de bom grado, como aquele que tem o olhar mais apurado. Entre a concepeio retérica da histéria e a posigio do histo- ricismo, havia espago para estados intermediérios. Assim Fénelon, com seu Projet d’un traité sur Vhistoire ‘le propde a Académie frangaise™ que mande escrever tal livro, fornece suas principais ticas, além de esbocar, nessa ocasiao, a propria concep¢a0 ria, Se ele comega por recordar o tema ciceroniano ou obrigatério das licGes da histéria, ele passa rapidamente da reté para a poética, ao comparar a historia com 0 poema épico citar, dessa vez, Horacio). O historiador, prossegue ele, deve “vé-la inteiramente com um s6 golpe de vista [..], mostrar sua unidade e ‘extrait, por assim dizer, de uma tinica fonte, todos os acontecimentos principais que dependem dessa fonte”. No entanto, Fénelon no é um historicista, por antecipagio, ou um inventor da historia em si, tendo em si mesma seu inicio e seu fim (0 proprio objetivo, seu tlos em linguagem aristotélica); ele levaria a pensar, de preferéncia, em Polibio, De fato, 0 que justifica o desvio pela poética é, antes de mais nada, levar em consideragio o leitor. E para este diltimo que o histo- riador deve fazer com que sua e assemelhe “um pouco” 20 poema épico com a preocupacao de levi-lo a “descobrir as ligagdes” ea “chegar ao desfecho”. Neste aspecto, cle distingue-se totalmente do erudito que “segue seu gosto sem consular o piiblico” e, pagina atris de pigina, acumula os achados de sua “insaciével curiosidade” A pottica é, portanto, também a polémica; de qualquer modo, Fénelon passa da retérica para a poética, equiparando historiador e poeta, até concluir ~ sem diivida, com um sorriso — que um exce- lente historiador 6, talvez, ainda mais raro que um grande poeta: “Se um homem iluminado viesse a aplicar-se a escrever sobre as regras. da hist6ria [..1], ele poderia observar que um excelente historiador 6 talvez ainda mais raro que um grande poeta”! Inst de France (comport de cinco Académie), fandida em 1634 por 181 voix oa asond~O out os somazces it A histéria-Geschichte nfo ignorou, nem impediu, essa abor- dagem poética; mas, para ela, € a propria histéria, por sis6, que & épica. O historiador no deve proceder como se ela fosse isso mesmo, posicionando-se do ponto de vista do leitor. Em si mesma, ela tem seu inicio e seu fim, o proprio telos: seu objetivo e seu sentido. ‘Mas, a0 tomar-se uma disciplina, a historia desconfiou dessa visio romantica. Em sua pretensio de ser, daqui em diante, cién- cia positiva, objetiva, baseada em fitos sdlidos, ela delimitow suas ambi¢des, com Ranke, a dizer como as coisas aconteceram (wie es eigentlich gewesen), deixando o restante a Deus. Para saber e exprimit 98 acontecimentos, era necessirio e suficiente frequentar assidua~ mente 0s arquivos. O wie (como) — que traz em seu bojo, porém, a questio da coloca¢io em narrativa — jé nfo tinha, assim, de ser problematizado, visto que a historia devia, finalmente, tomar-se conhecimento de si mesma. De maneira global, nos séculos XIX © XX, assistiu-se a afirmagio ¢ ao fortalecimento, até mesmo, 20 endurecimento, das ambicbes cientificas da historia~Geschichte (mas, paralelamente também, 4 sua critica e ao seu questionamento ra- dical). Ao acumular fatos, o historiador procurava ou verificava as leis da historia, “Uma varidvel da intriga” E evidente que isso nfo passa de um esquema que deu lugar a miiltiplas variantes ¢ adaptagdes, através das contribuigdes da so- ciologia ¢ da economia, mas também levando em conta relagdes, no minimo, ambivalentes, entre a histéria e a filosofia, Entre essas vatiantes, a hist6ria social dos Annales, pela qual haviamos comecado, tepresentow uma forma muito flexivel e fecunda. Mas, em todos os casos, a narrativa nfo estava na ordem do dia; exceto para rejeité-la sob a forma de hist6ria-narrativa. O que deixava, porém, intacta a questio da narrativa, na medida em que o principal objeto do debate incidia sobre o acontecimento, e nao sobre a narrativa. Renunciar 4 historia-narrativa, isto é, 3 hist6ria tributéria dos acontecimentos [événementielle], era, por conseguinte, abandonar nao a narrativa, ‘mas simplesmente uma forma particular de narrativa. 182 a a penne Dinas 4 taro ba nave De fato, Paul Ricoeur ~ leitor de La Méditerranée de F. Bratu- del ~ ndo teve dificuldade em mostrar, nesse livro, com seus tés Patamares voluntariamente distintos, a trama de uma narrativa, © declinio do Mediterraneo e sua safda da grande historia: tal é 2 incriga global, mas virtual, que vai contar com a contribuigio dos {és niveis ¢ das trés temporalidades. Enquanto um romancista teria uurdido [esses diferentes aspectos] em uma tinica narrativa, Braudel Procede analiticamente, por distingio de planos, deixando is interfe- téncias a preocupacio de engendrar uma imagem implicita do todo. E assim que se obtém uma quase-intriga virtua, fragmentada eng vias subintrigas” (Rucur, t. 1, p. 300). © principal interesse a anilse de Ricarur nio consiste em dizer ~ “Voce pensave tor rompido com a narrativa; ora, nada disso ocorreu ou, pelo menos, nao € algo assim tio facil” ~, mas em sublinhar que Braudel inven. tou outro tipo de intriga (e, portanto, de inteligibilidade) como conjugacio de estruturas, de ciclos e de acontecimentos: uma nove parrativa, portanto, na qual as interferéncias, as diferencas consttuemn também outros tantos recursos de inteligibilidade. Com o seguince corolirio: 0 acontecimento nem sempre é, ou somente, o breve brilho limitado a0 texceiro nivel em que, no entanto, é confinads Por Braudel. Com fuangées diversas, ele pertence a todos os niveis acontecimento no consista em fizer desaparecer a narrativa (nem © acontecimento), mas em transformé-los. A polémica, como é normal, prevalecia em relagio 3 epistemologia. A longa duragio ‘nfo era, sem qualquer outra consideraclo, a inimiga da narrativa, Assim, a histéria ndo deixou de dizer as agGes e as facanhas dos homens, de relatar, em vez da mesma narrativa, narrativas com formas diversas. Da historia-retrica & historia-estrutural, pasando Por aqucla que designei como histéria-Geschidhe, as exigéncias, os Pressupostos ¢ as maneiras de utilizé-lastém evidentemente assumido * Rico oes som noes de ing (he) «de a , (outed Jr en rie te Arles ede et pot ectchecrs posse, ea hee eee ‘ras 3 hitra como marcha progresivs (pms). ma hi és (CBRE oe aes TOT br. mat hndoneomo we). Vr eaban 183 EredioA DANN ~O cH HORE YEH aspectos bastante diversificados; no entanto, é recente o questiona~ ‘mento sobre a narrativa (a narrativa enquanto tal). Ele tornou-se possivel pela safda ou pelo abandono da histéria- Geschichte — evo- lugdo [processus] e progresso [progrés] —, assim como pela reintro- dugio do historiador na hist6ria; mas também, a partir da posicio preponderante ocupada pela linguistica na década de 1960, pelas indagagdes empreendidas sobre o signo e a representacZo. Por sua ver, a histéria poderia ser tratada como (nfo reduzida a) um texto. Voltamos a encontrar, entio, Roland Barthes, com outra for~ mula provocativa: “O fato limita-se @ uma existéncia linguistica”” Na qual se pode ler o ciimulo do ceticismo; ou simplesmente a evocagio de que, entre “uma narrativa ¢ uma série de aconteci- mentos, nio hi uma relagio de reprodugio, reduplicagio, nem equivaléncia, mas — como € indicado com precisio ainda por Ri- ceeur —uma relagdo metaforica”. Assim, para designar a relacio da narrativa hist6rica a0 passado real, ele teria preferido recorrer 3 nocio de “représentance”®” ou de “lieutenance” [substituto], em vez de representacio. Dessa maneira, empreende-se a indicagao relativa 2 parte de construgio — a narrativa traz & linguagem um andlogo (“o ser como do acontecimento passado”) ~ €, a0 mesmo tempo, parte de dependéncia em relagiio & efetividade do passado (“o ter-sido do acontecimento passado”). Finalmente, para que seja possivel sus- citar a questio da narrativa, sem que a hist6tia corra o risco de se deteriorar, basta que 0 historiador vena a se formular esta simples pergunta que Ihe havia sido sugerida por Michel de Certeau: 0 que estou fazendo quando fago hist6ria? Pequeno deslocamento inicial que é suficiente para desencadear uma indagacao sobre a evidéncia da hist6ria, em todas as acepges do termo. 1 +0 que ca nog de ue”, “Paco” de Goma de Gammont in REIS, 2011 p17, am dep. 281,307. NT). 184

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