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| | Marcos Bagno lingua linguagem | ingutstren Si C4 PONDO OS © PINGOS NOS Ii dL, humana de sua fungdo eminentemente social e cultural e de seus componentes biolégicos, mais precisamente cognitivos, ou seja, rela- tivos a produgo-aquisigo de conhecimento a partir das experiéncias vividas individualmente e em coletividade. E uma escolha pessoal, claro, como poderiam ser tantas outras. E a tentativa que fago, aqui, 6 precisamente oferecer argumentos que me ajudem a defender essa escolha. A propaganda nao & a alma do negécio? Assim, na primeira parte, busco oferecer & leitora e ao leltor definigdes o mais precisas possivel do que se entende por lingua, linguagem ¢ linguistica dentro do caminho teérico escolhido. Na segunda parte, a pergunta que dispara as respostas & como e por que as linguas mudam? Aqui também me esforco por esclarecer os fatores sociais e os fatores cognitivos que, entrelacados, provocam © fenémeno da mudanga lingufstica, que tanto intriga as pessoas em geral e que, tradicionalmente na nossa cultura, sempre tem sido visto como algo negativo, como um sinal de ruina e deterioragao da lingua. justamente para afastar esses fantasmas é que proponho esse percurso. Essa segunda parte é uma sintese de uma discussao bem mais pormenorizada que fago em torno da mudanca linguistica em minha Gramética pedagégica do portugués brasileiro (2012). Este pequeno livro se destina, primordialmente, as pessoas que comecam a adentrar os estudos da linguagem e também, é claro, Aquelas que jé militam nesse-campo hé muito tempo. Evidentemente, nada impede — e assim espero — que ele atraia o interesse de todas as que se interessam pelos temas aqui tratados. Para isso, fiz um grande esforco de redagdo para que o texto evitasse a nomenclatura ‘técnica excessiva e falasse da maneira mais simples a suas leitoras e seus leitores. Tomara que eu tenha conseguldo! MARcos BAGNo www.marcosbagno.org Da lingua para a linguagem até a linguistica 1. Linguagem, cognigéo e cultura fmgua que falamos exerce uma fungao tio dominante poderosa em nossas vidas que uma das maiores dificuldades para quem vai se iniciar nos estudos da lin- guagem é langar sobre ela um olhar minimamente objetivo, quer dizer, fazendo da I{ngua/linguagem um objeto, uma “coisa’ que se delxa observar, estudar, analisar etc. Em muitas das demais éreas de conhecimento, principalmente nas chamadas ciéncias naturais, a pessoa que pesquisa tem na sua frente um objeto concreto, palpavel, mani- pulavel — uma pedra para o geélogo, uma planta para o botanico, um animal para o zoélogo, uma substéncia para ‘ran a ane ONT © ‘© qu{mico, um érgio do corpo humano para 0 médico etc. — ou um fendmeno que pode ser verificado por melo de observagaio direta ou de instrumental adequado — a queda de um raio, a chuva, um terre- ‘moto, o surgimento de uma estrela nova, a radiagio solar, a colisto dos dtomos ete. No caso do estudioso da linguagem, porém, a situagdo é bem diferente, Em todas as areas de conhecimento, a lingua/linguagem serve de ferramenta importantfssima para o desenvolvimento da pesquisa, da teorizago — do saber, enfim. E por meio da Iingua/ linguagem, por exemplo, que 0 fisico elabora seus cAlculos, exprime suas teses, produz suas teorias, testa suas hipdteses, redige suas formulas, Albert Einstein s6 péde afirmar que E = me, isto 6, energia é igual a massa multiplicada pelo dobro da velocidade da luz no vécuo", porque tinha a sua disposigao os simbolos e os conceitos da linguagem para formalizar a ideia, além da capacidade de traduzir esses simbolos e conceltos em palavras ordenadas numa frase, que pode ser expressa em qualquer Iingua do mundo. Esse distanciamento entre objeto/fendmeno e expressdo do objeto/ {fenémeno nao ¢ possivel na ciéncia da linguagem. Por que néo? Porque, nessa ciéncia, a linguagem é, a0 mesmo tempo, 0 objeto/fenémeno € a expresso desse objeto/fendmeno. Nés usamos a lingua para falar da lingua, seja usando Idelas do senso comum (‘A juventude de hoje tem um vocabulério pobre ¢ fala muito errad termos técnicos ("Em lati "), sefa usando , 0 sujeito da oragdo se expressa no caso nominative"), Nas demats cléncias, os estudiosos criam uma metalin- guagem, isto é, um conjunto de termos com definicéo bem precisa, ara organizar sua rea de conhecimento. No caso do linguista, porém, a lingua é sua metalinguagem, Num livro cléssico de introducao a lingufstica, o inglés John Lyons escreveu que “a principal dificuldade que a pessoa recém-chegada aos estudos linguisticos enfrenta é a de nao estar preparada para encarar a lingua objetivamente". Essa dificuldade se deve ao fato de que ser humano é ser na linguagem. Nossa relacdo com a lingua/linguagem 6 to densa, tensa e complexa que a prépria palavra relagdo acaba se revelando muito pobre para dar conta disso. Somos seres feitos de carne, osso e linguagem. Estamos mergulhados na linguagem tanto quanto os peixes esto mergulhados na 4gua. A linguagem é 0 am- biente em que vivemos, e até mais do que isso: nossa experiéncia com a linguagem é ainda mais radical do que a do peixe com a égua, porque a agua existe fora do peixe, enquanto a linguagem existe tanto fora de nés, no nosso meio social, quanto dentro de nés, no nosso cérebro. A linguagem faz parte da nossa prépria constitulgao fisica, fisfolégica (constituigao que inclut também nossa psique, ja que néo faz sentido separar corpo e mente, que sdo uma coisa s6). A dificuldade de langar sobre a linguagem um olhar objetivo também se deve a outro fato: a natureza incontornavelmente social da espécie humana. Somos animais politicos, como escreveu Aristételes ha dois milénios e meio, ou seja, somos seres gregarios, existimos no coletivo, nossa vida s6 faz sentido em sociedade. & a linguagem é, de- certo, o nexo mais poderoso que mantém uma comunidade humana interligada, intraligada, coesa. A prova mais impressionante disso sdo os casos registrados de criangas que, muito cedo privadas do contato humano, nunca aprenderam a falar, mesmo depois que, jovens adul- tas, foram encontradas e reconduzidas ao convivio social. Assim, € sempre mais produtivo, quando se estuda a linguagem, consideré-la nesses dois planos a0 mesmo tempo: 0 do individuo e 0 da socie- dade. Se ser humano é ser na linguagem, ser humano também é ser social, de modo que linguagem e sociedade sao indissociavei tentar separé-las é como tentar negar a existéncia de um dos lados de uma folha de papel, de uma das faces de uma moeda. S6 mesmo na literatura fantéstica de um mestre como o argentino Jorge Luis John Lyons, introduction to Theoretical Linguistics. Cambridge: Cambridge Univer- sity Press, 1968, p.2. Maen ooh — on lags Borges podemos encontrar o relato sobre um disco que s6 tem um lado?, Na vida real, muito mais fantéstica que qualquer literatura (como © préprio Borges sempre reconheceu, aliés), a lingua é um disco com seus dois lados bem nitidos, o biolégico-individual e o cultural-soci mas unidos para sempre. ‘A melhor imagem para representar metaforicamente a lingua/ linguagem talvez seja a célebre fita de Moebius’, um objeto matem4- tico que sé tem um lado, uma borda, uma fronteira e 6 nao orientavel, quase como o disco de um lado s6 da ficeao de Borges. Figura 1: ita de Moebius. ‘Se uma formiga se pusesse a caminhar ao longo dessa fita, ela retornaria ao ponto de partida depois de ter atravessado todo 0 comprimento da fita. Assim fazemos nés a cada milésimo de segundo com a linguagem: nos moventios do individual para o social o tempo todo, sem jamais sair de um para entrar no outro nem vice-versa! 2. A cognigao social Quando dizemos que a linguagem est inscrita no cérebro de cada individuo, estamos afirmando que ela 6 um fendmeno de ordem ¥ ContoEl disco” do volume libra de arena. Buenos Aires: Emecé, 1975. ® Affita (ou falxa) de Moebius (ou Mabius) deve seu nome a0 matemitico alemo Au {gust Ferdinand Mobius (1790-1868), que se dedicou ao seu estudo, cognitiva. Se consultarmos o diciondrio Houaiss, encontraremos, no verbete cognitivo, a seguinte acepgao: Diz-se dos principios classificatérios derivados de constatagdes, percepsdes e/ou ares que norteiam a passagem das repre- sentagdes simbélicas & experiéncia, e também da organizacéo hierdrquica e da utilizagdo no pensamento e linguagem daqueles mesmos prinefpios. Parece complicado, nao é? Mas o que é realmente complicado, complexo, é a nossa capacidade fabulosa de adquirir conhecimento por meio dos nossos sentidos fisicos e dos processamentos da nossa mente, ativados em grande parte por esses mesmos sentidos, sensagdes e sentimentos. E 0 que é mais fabuloso: fazemos tudo isso do modo mais espontdneo e inconsciente e, principalmente, nunca sozinhos, sultural. mas sempre em interacao soci A palavra cognigao é uma versio técnica, cientifica, da palavra conhecimento, mais comum e corriqueira. As duas tém a mesma origem: o verbo latino cognéscere, do qual deriva 0 nosso verbo conhecer (que em fase mais antiga da lingua era conhocer, forma mais préxima do termo original latino). Um fato interessante nes- sas palavras é a presenga, tanto em latim quanto em portugues, do prefixo co-, que é, na verdade, a preposi¢ao com. 0 conhecimento/ cognicao se constréi em comunidade, num trabalho coletivo, ou seja, uma colaboragao. Toda forma de conhecimento é, portanto, social. Sendo, ele se petrifica, se fossiliza, deixa de ser conhecimento para se tornar apenas... clment ‘A linguagem entao é um fenémeno de ordem sociocognitiva, quer dizer, ao mesmo tempo em que & uma capacidade biolégica da espécie humana (e exclusiva da espécie humana) de adquirir/ produzir/transmitir conhecimento por meio de representacbes/ simbolizagdes do mundo, ela também € uma forga motora de Uso scout — md ing coesdo social, ela ¢ preservada e transformada pelos membros de uma comunidade humana e, por isso, sujeita aos fluxos, influxos € contrafluxos politicos, econdmicos e sobretudo culturais dessa comunidade, Nesse sentido, é certo dizer que a lingua é um traba- tho social empreendido coletivamente por todos os membros da comunidade que a utilizam. Cada um de nés ndo é um mero “usud~ rio" da lingua que falamos: nés também somos os produtores, os ccultivadores, os preservadores, os transmissores ¢ os transformadores dessa Iingua que nos pertence a cada um de nés como individuo e como membro de um grupo social que partilha uma mesma cultura (Com suas miltiplas subculturas). Figura 2: Cognig soci. Nessa figura, bastante esquemética, o pequeno cfrculo em torno de cada individuo representa sua cogni¢do particular, seus conhecl- mentos, suas habilidades e todo o conjunto de crengas, valores, ideias, reconceitos, superstigdes etc. que ele detém. A linha que conecta 0s individuos entre si é a linguagem, a ferramenta biolégico-social que nossa espécie desenvolveu para sobreviver em comunidade, Essa comunidade, soma das cognigdes individuais que formam uma cogni¢ao social, & circundada pela fronteira de sua cultura, uma fronteira que, como se vé, nao é rigida nem fechada, mas suficiente- mente flexivel para permitir que seus membros recebam influéncias culturais de outras comunidades e que exergam influéncia cultural sobre os membros de outras comunidades. Muitos estudiosos contempordneos nossos vém investigando as profundas interagdes, inter-relagdes e interinfluéncias de linguagem, cogni¢ao e cultura, sobretudo na perspectiva da evolucao conjunta (ou coevolugao) dessas trés poderosas ferramentas/habilidades hu- manas. A principal conclusao é a de que as mudancas que ocorrem nesses trés campos so to intimamente entrelacadas que, na prética, é impossivel estabelecer qualquer vinculo de causa e efeito entre elas, de maneira que a ideia de coevolugao é a que melhor da conta, até o momento, dessas transformacées. Figura 3: Caevelugo de linguagem, cultura e cogs, Se as coisas realmente sao assim, 0 estudo da linguagem ndo pode ser dissociado do estudo simult4neo dos fendmenos cognitivos e culturais. As teorias sobre o funcionamento da lin- guagem humana que se concentravam exclusivamente no aspecto cognitive (individual) ou no aspecto cultural (social) sempre acaba- ram topando em becos sem safda, exatamente porque ndo levaram em consideracao o caréter indissoctével de I{ngua, processamento cognitivo e relagdes socioculturais. & essa a conclusdo do linguista australiano Nicholas Evans, especialista das linguas de seu pais ¢ da Polinésia: ‘ous gr nao van on a 16 Estd cada vez mais claro que o que faz de nés seres humanos 6 nossa capacidade de construir e participar do mundo mental compartilhado, de coordenar nossa atengao e nossos objetivos € de nos sintonizar com quem sabe, sente e quer o qué. Foi essa intensa socialldade que deu propulséo ao poderoso salto que nos tirou da companhia de todas as outras espécies animals 20 nos capacitar para construir esse mundo compartilhado em constante evolurao que chamamos de cultura. Essa proeza reside numa capacidade de mantermos registros constantes sobre as consequéncias sociais e psicolégicas do que acontece & nossa volta’, Essas nogées também nos levam a revisar uma formula cléssica em diversos campos dos estudos da linguagem: aquela que diz ser preciso estudar “a lingua em contexto”. Embora tenha sido importante durante multo tempo para contradizer os estudos linguisticos que dueriam ver a lingua apenas como um sistema abstrato, independente de seus usuérios, ou seja, uma lingua descontextualizada, agora che. ou 0 momento de dizer, mais radicalmente, que lingua é contexto, Sea lingua esta dentro de nés e se a lingua 6 0 ambiente social em ue circulamos, ndo pode haver separagio entre a linguagem e seu Uso, entre quem fala ¢ onde fala. No momento em que duas ou mais Pessoas iniciam alguma troca verbal por meio da lingua, todos os Componentes individuais (psicolégicos, cognitivos, biogréficos etc) € sociais (histéricos, politicos, culturais, ecolégicos, étnicos, religio- S08 etc) sdo ativados para compor uma intrincada rede em que as Componentes se fundem ¢ se confundem. Assim, quando a interagio se dé em outro pais que néo aquele em que a lingua é falada, o uso da lingua comum obriga os participantes a se reconhecerein den. tro de um contexto especifico no qual, por exemplo, as formas de ratamento, os pronomes que as representam e as formas verbais icholaBvan Dying Wor: Endangered Lan Chester Wie Backwl, 2010p tee and Wht Thy Haves al decorrentes serdo empregados segundo os padtdes socioculturais nativos dos participantes, mesmo que, no lugar onde se encontram, as relagdes interpessoais se deem de outro modo (pense no uso do ‘you indiferenciado em inglés e nas formas vocé/tu/o senkor/a senhora que precisam ser empregadas em portugués). Em algumas Iinguas australianas, nao se usa “acima’, “abaixo’, “4 esquerda” e “A direita” e, sim, norte, sul, leste e oeste. Falar essas Iinguas, portanto, é representar o mundo de uma maneira mi diferente daquela como ele é representado em outras linguas, por- que/é preciso ter um conhecimento profundo, e inconsciente, dos pontos cardeais para se orientar na realidade. Em outras linguas, para usar 0 pronome pessoal adequado, é preciso conhecer todas as relagdes de parentesco existentes dentro da familia e, as vezes, de uma comunidade inteira. Nés, em portugués, s6 temos eu, tu, ele/ela, vocé, o/a senhor/a e seus plurais, mas em kunwinjku, outra Ifngua australiana, o sistema pronominal é bem mais complexo. Di- gamos que a avé Alice est falando com sua neta Joan sobre Mary, que é filha de Alice e mée de Joan. Alice teria de se referir a Mary como al-garrng (“aquela que é minha filha e sua mae, sendo vocé a filha de minha filha”), enquanto Joan se referiria a Mary como al-doingu (“aquela que é sua filha e minha mae, sendo vocé a mie de minha mae). Abrir a boca e comesar a falar uma lingua é, instantaneamente, criar um ambiente sociocultural € sociocognitivo moldado pelos fa- lantes daquela lingua. £ criar um contexto de relagdes ¢ interagées. Ou seja: lingua é contexto, 2.1. Um exemplo de lingua-cogni¢ao-cultura em aco Os processamentos sociocognitivos que fazem a lingua ser 0 que € tém sido estudados e descritos por muitos pesquisadores mundo afora. Talvez 0 campo de investigagao em que eles se mostram com mais nitidez Seja o da mudanga linguistica. Vamos nos dedicar a ela i i : L | i i i i i j & na segunda parte deste livro, Entretanto, como aperitivo, e para que vocé entenda desde j4 como lingua-cogni¢do-cultura se entrelagam, vamos dar um rapido exemplo: Aconjungo mas tem a mesma origem do advérbio mais: 0 advér- bio latino magis, “mais; maior quantidade", Como foi que uma palavra que significava “maior quantidade”, “acréscimo”, “aumento” passou a significar também “contraposi¢ao”, “diferenga’, “oposigao” etc.? Usado inicialmente em construgées comparativas de superioridade, mais assou a significar ndo s6 superioridade de quantidade, mas também de qualidade: se X & mais do que Y, entao existe diferenga entre Xe Y ©, por conseguinte, existe oposigdo entre X e Y. Por exemplo: Gleydson é bonito, mas antipatico. Temos aqui duas declaragdes sobre Gleydson: ‘A+B = Gleydson é bonito e antipatico, Nessa adigao, porém, os dois termos no tém o mesmo valor. De fato, o sentido mais remoto das construgdes adversativas foi a comparagdo, que poderia ser representada assim: Ac Gleydson & mais antipstico do que bonito, Temos, portanto, uma ideia A e uma ideia B, sendo que B é mals importante do que A: uma comparagao de superioridade. No entanto, como jé dissemos, se uma coisa’ é superior a outra é porque existe uma diferenga, uma oposipdo entre elas, daf: Ae Gleydson é bonito, mas antp Assim, 0 que antes era um simples sinal de adigéo e, portanto, de inclusio, passou a designar um peso maior que fazia a balanga pender mais para um lado do que para o outro; na etapa seguinte, 0 que temos & uma oposicao entre doié termos: B+B > @<8t magis mais > +8 Nesse trajeto cognitivo (inclusdo + diferenga ~ oposicao), en- tra em jogo também a metéfora, um dos nossos mecanismos mais potentes de reciclagem das informagdes que processamos em nossa mente. 0 processo metaférico sempre parte do mais concreto para 6 mais abstrato: assim, um termo que de inicio era empregado para expressar uma adigao (magis, isto &, mais, no sentido matemético mesmo), uma soma de coisas concretas, vai sendo metaforizado, até se transformar numa oposi¢ao conceitual entre duas entidades abstratas (beleza antipatia). A passagem também de quantidade (concreta) para qualidade (abstrata) resulta da metaforizacao. A dife- renga na escrita entre mats e mas é um mero capricho ortogréfico, um artificio provavelmente criado para distinguir as duas palavras (um artificio que, como bem sabemos, nem sempre funciona, ja que 6 muito comum as pessoas confundirem mats e mas na escrita, uma confusdo que se deve, precisamente, a origem comum das duas palavras ¢ ao resquicio da nogio de “adi¢do” que sobrevive bem 14 no fundo..), Por fim, vamos lembrar que esse processo também ‘ocorreu em italiano (onde a conjungao é ma) e em francés (mais, pronunciado ‘mé’). Por que dizemos que a conclusdo desse percurso (magis->mais->mas) & um fendmeno sociocognitivo? Porque ele nao foi inventado por nenhum individuo solitario, por nenhuma pessoa especialmente sabida que percebeu em mais um potencial de oposigao, além da nogéo de soma que a palavra jé tinha. Foram todos os falantes da Iingua que, num trabalho conjunto, portanto social, pondo em funcionamento coletivo os recursos de seus cé- rebros, recursos portanto cognitivos, enriqueceram a lingua com uma nova palavra funcional, um trabalho téo bem-sucedido que, como sabemos, fez de mas um dos conectivos mais importantes da lingua, & tudo isso contra 0 pano de fundo da cultura, cultura que 60 ambiente fisico e simbélico em que estamos mergulhados e que esta mergulhado em nés! 3S i i e i i i i 3. 0 que é lingua? Uma das muitas afirmagdes importantes atribuidas ao linguista suigo Ferdinand de Saussure (1857-1913) é a de que “o ponto de vista cria 0 objeto”. Por que é uma afirmasao importante? Porque quando o objeto que vamos estudar é a lingua, tudo se complica. JA dissemos anteriormente que o linguista, ao contrario de seus colegas de outras areas do saber, usa a I{ngua como recurso para investigar e refletir sobre a prépria lingua, seu objeto. Como se isso ndo bastasse para dificultar nossa vida, ainda tem mais: a lingua no é um objeto acessivel, um objeto concreto como uma pedra, um bicho, uma substancia, um osso etc. A lingua, nas palavras do mesmo Saussure, 6 um objeto escondido. Nés s6 temos acesso, gracas & au- digo, a uma série de ruidos que uma pessoa expele pela boca e que, or algum motivo, fazem sentido para outras pessoas que também emitem os mesmos sons ou sons parecidos e que reconhecem neles algum contetido informacional. Mas todo 0 processamento cerebral complexo que levou a pessoa a encadear aqueles sons especificos daquela maneira especifica e, como se fosse pouco, a provocar em outras pessoas algum tipo de compreensdo ou percepeio do mundo suas coisas... mistério. 0 antropélogo canadense Jean-Claude Corbeil formulou esse mistério da seguinte maneira: A tinica coisa que é real é 0 comportamento linguistico do individuo, cuja Gnica manifestagao explicita, concreta, é a cadeia sonora produzida, portanto uma série de sons que se sucedem no tempo e formam grupos mais ou menos complexos separados por respiragdes, pausas, paradas, silénclos, Todo © resto, sobretudo 0 sentido e as regras que comandam a reunido dos elementos, é implicito, escondido na inte ena meméria dos falantes, fora de aleance imediato tanto do ouvinte como do observador. Na ling ica, © real é sempre individual e sempre em situag4o, determinado por coorde- nadas temporais, espaciais e socials. Dentro deste espirito, poderia se dizer que a Iingua no existe, mas que s6 existem indivfduos que falam't Retomando a afirmagio de que “o ponto de vista cria 0 objeto", ndo é exagero dizer que nessa tinica frase se resume toda a filosofia da ciéncial Seo cientista tem na sua frente um objeto de estudo, 0 pponto de vista que ele assume vai marcar profundamente a andlise, a descrigdo e a interpretarao desse objeto. E a palavra de origem grega teoria significa precisamente “ponto de vista’. 0 caso da lingua, como objeto de ciéncia, ¢ um belissimo exemplo. Se a linguista A. vé na lingua um fendmeno social, cultural, politico, a concepedo de lingua que ela vai produzir sera marcada por essa perspectiva, por esse ponto de vista. Se o linguista B,, por sua vez, considera que a lingua é um dado biolégico, que j4 vem embutido na nossa estrutura genética, é claro que seu conceito de Iingua serd expresso de acordo com essa visio. Se a linguista C. prefere estudar agées auténticas, do uso da a lingua com base no estudo das real \gua, empiricamente coletaveis numa comuntdade de falantes, sua teoria lingufstica vai ser muito diferente da do linguista D., que pre- fere conceber, com base nesses usos auténticos, um sistema abstrato, uma entidade teoricamente construida que ele vai chamar de lingua. Qual dessas teorias é melhor, mais certa, mais satisfatéria..? Todas, desde que cada uma delas seja um construto intelectual coerente, com principios e postulados que nao se contradigam e que, pelo contrario, sirvam de alicerce e argamassa para 0 edificio tedrico. Sao essas diferencas de ponto de vista que fazem nascer, em cada ciéncia, as distintas escolas de pensamento que se dedicam a inves- tigacdo do objeto dessa ciéncia. No caso da lingufstica, por exemplo, 5 Jean-Claude Corbel,Blementos de uma teora da regulagio lingustica, in: M. Bagno (org). Norma ingustca 80 Paulo: Baigdes Loyola, 2001, p.177. ‘ougone yaaa vt Ps vai mew ene — pods eng ns temos o estruturalismo, o gerativismo, o funcionalismo (em suas diversas correntes), a sociolinguistica, a linguistica antropolégica, 0 sociointeracionismo, o sociocognitivismo, a andlise do discurso e por ‘af val, e vai longe. Afinal, a lingua, como objeto de ciéncia, s6 pode ser apreendida pela nossa capacidade de teorizacao: ela 6, repetimos, um objeto escondido, Por isso, entre as diferentes escolas teéricas, a defi- nico de “lingua” pode ser radicalmente diferente de uma para outra. E por isso que, neste texto, 0 ponto de vista assumido 6 0 de que, como ja fol dito, a lingua é um fato/fenémeno de natureza sociocognitiva, ou seja, ela existe no cérebro de cada individuo, mas também depende das interagdes socials para ser ativada e permitir a integragdo desse individuo na heranga cultural que é a dele. A partir dessa teoria, vamos propor a seguinte definicao: Nessa definicdo, certamente proviséria (como tudo na ciéncia, aligs), chamo a atengo, de novo, para a presenga de termos que trazem oprefixo con-/e0~: conjunto, compartilhado, comunicativo, comunidade, convencées, coevolul. Outra palavra muito importante € processo: temos 0 habito (cultural) de considerar a lingua como um produto, uma coisa pronta acabada, uma espécie de pacote que recebemos de empréstimo, com coisas que devemos usar sem estragar. Mas essa é uma visio enganosa: a lingua ndo é, ela sempre estd, esta sempre em formacao, em decomposicao e recomposicao, perde coisas com o tempo e ga- nha outras também, sempre ao sabor das transformagées culturais e cognitivas de seus falantes. E cada um de nés tem todo o direito de usar e abusar da lingua, que faz parte da nossa prépria constituigéo biolégica, é uma parte de nés, e nao alguma coisa que esté fora de nés e que, por isso, no nos pertence. 3.1. A lingua como multissistema | Na nossa definig&o acima, dissemos que a lingua é um conjunto de representagdes simbilicas do mundo fisico e do mundo mental. Mas 4e que modo esse conjunto de representagées simbélicas se constitul, se organiza, funciona'e opera? linguista brasileiro Ataliba T. de Castilho propds recentemente uma teoria multissistémica funcionalista-cognitivista’ para nos- so entendimento do que é uma lingua. E 0 esquema que ele sugere 6 0 seguinte: Es - Ee - aan Bi a Nova gramética do portugues brasileiro (Sie Paulo: Contexto, 2010), princi- palmonte nas piginas 69-79. sa, umanuane texte — pnd 24 Nessa concepsao, a ingua é um multissistema porque se subdivide em quatro sistemas independentes: 0 discurso, a gramética, 0 Iéxico © a semantica, Esses sistemas sao acionados pelo nosso dispositive sociacognitive, que decorre da generalizagéo das nossas estratégias conversacionals, pois é a conversagfo, a interago social por meio da lingua falada, que molda e modela nossa capacidade de linguagem. ‘Todo uso que fazemos dos nossos recursos linguisticos esta sujeito aos Processos de discursivizagdo, gramaticalizagéo, lexicalizagdo e seman- ticteagao. E & sempre muito mais produtivo e esclarecedor examinar as propriedades desses recursos linguisticos, simultaneamente, sob a 6tica desses quatro sistemas independentes. £ precisamente assim que procede Castilho ao descrever o portugues brasileiro em sua gramatica. Para dar um exemplo minimo, quando estudamos os verbos, em portugués, podemos distinguir neles as seguintes propriedades: Lexicais: um verbo é uma palavra que se caracteriza por tra- zer marcas morfol6gicas de tempo, modo, niimero e pessoa. Essa morfologia ¢ exclusiva dessa classe de palavras. Por exemplo, em FAL-A-SSE-MOS temos -SSE- (tempo e modo: imperfeito do subjuntive) e -mos (pessoa ¢ niimero: 1* do plural), além, é claro, do radical FAL- mais a vogal temética -A-. GRAMATICAIS: os verbos ocupam lugares especificos na sintaxe, como niicleo de um sintagma verbal. O verbo é 0 centro do pre- dicado, em torno dele é que se organiza a frase ou sentenga. SEMANTICAS: os verbos representam os estados de coisas (aquilo que pode ocorrer no mundo real ou mental), ou seja, as ages, estados e eventos que precisamos expressar ao falar ou escrever. DIscuRstVAS: um verbo é uma palavra que introduz participantes no texto, que os qualifica devidamente (pelo processo de predica- $0) e que concorre para a constituigao dos géneros discursivos, Sracas a alternancia de tempos modos. Essas propriedades sio basicas, mas nao rigidas. Ao contrario, oso paderoso dispositivo saciocognitiva atua o tempo todo, provocan- do, como ja mencionei, os processos de lexicalizapao, gramaticalizagao, semanticizasdo e discursivizagao. Por exemplo, um verbo pode se transformar num adjetivo (‘um vestido muito cheguei”), 0 que ¢ um processo lexical. Pode também ser usado como simples marcador conversacional, para ritmar a conversagao (“Eu ando multo cansado, sabe?"}, 0 que é um processo discursivo, Ele pode até perder seus sentidos primédrios e se transformar numa mera palavra funcional, como aconteceu com o verbo haver, que em sua origem significava “ter, possuir concretamente” e hoje sé é usado com o sentido abstrato de “existit” (S6 hd tamanduds no Brasil"), como uma particula adverbial ‘quando nos referimos ao passado ("Hé cem anos estourou a I Guerra Mundial") ou um verbo auxiliar ("J4 havia comegado a chover quando Maria saiu”). Uma vez que nao temos certeza do que vai acontecer no futuro, o tempo verbal chamado futuro é empregado com frequéncia ara indicar exatamente a diivida, a incerteza (“Por onde andard a tia Aurora?”), 0 que é um processo semantico, Séo esses processds que, em marcha ininterrupta, disparados por ‘nosso dispositivo sociocognitivo, fazem de qualquer lingua humana um ‘multissistema em perpétua transformacdo. Eles explicam por que as fnguas mudam de maneira incessante, mas também — gracas precisa- ‘mente & sociocognico — por que elas mudam sem jamais perder sua capacidade de permitir a intera¢do social e cultural dos membros de uma ‘mesma comunidade linguistica. A lingua nunca deixa os falantes na mao, ‘Toda descrigao linguistica (como a dos diciondrios e das graméticas) & sempre provis6ria, vale por algum tempo, mas logo tem de ser revisada e refeita para acompanhar os ininterruptos processos de mudanga. No ensino tradicional de I{ngua, os exercicios mais comuns eram (ou sao, porque, infelizmente, muita gente ainda hoje faz isso!) as co- nhecidas “andlise morfol6gica’ (dizer a que classe gramatical pertencem as palavras) e “andllse sintatica” (classificar os termos da oracio de acordo com suas funcdes: sujeito, predicado, objeto direto etc). Essas préticas, muito antigas, revelam um entendimento primitivo da lingua apenas como léxico e gramatica, ou seja, palavras e suas fungées. Na proposta contempordnea de multissistemas, essas andlises tradicionais sdo renovadas teoricamente e acopladas a outtras andlises, justamente & 4 seméntica e a discursiva, que permitem uma apreensio mais global dos fatos linguisticos. Os estudos gramaticais convencionais também percebiam as propriedades semanticas e discursivas das formas lingu(sticas, mas ndo sabiam exatamente o que fazer com elas ¢ acabaram realizando misturas pouco consistentes, incapazes de dar plenamente conta dos fatos de linguagem, Foram necessdrios mais de 2.500 anos para ‘compreendermos que a linguagem & um fendmeno de ordem socio- cognitiva e que é necessério estudé-la sob esse foco e nfo mais como uma mera lista de palavras que se organizam segundo regras fixas, Retornando ao diagrama proposto por Castilho, convém lembrar que aqueles quatro sistemas, apesar de independentes, também intera- gem uns com os outros, gracas precisamente ao DSC (dispositive socio- cognitive) ou, melhor, através dele, pois é esse dispositive que aciona e dispara nossas capacidades de apreensdo do mundo e de representagio dessa experiéncia em formas linguisticas. Eo psc que perm , por ‘exemplo, como vimos, que um advérbio latino (magis) seja recatego y ‘como conjungao (mas), 0 que s6 é possivel pelas conexées que este DsC fa- vorece entre os diferentes sistemas, jf que nessa transformagao magis > ‘mas entraram em ago processos nao s6 lexicais e gramaticais, como também discursivos e semanticos. = oe = Por fim, é sempre importante enfatizar que esses processos todos ‘ocorrem na conversagdo, nas trocas linguisticas, a atividade primeira, priméria e primordial que exercemos com a linguagem em sociedade. 4. 0 senso comum sobre a lingua Como jé vimos, a Ingua ¢ um objeto de estudo clentffico, mas 6 também, e de um modo muito mais amplo, um fenémeno socio- cultural, uma instituigao, uma coisa sobre a qual toda e qualquer pessoa se acha no direito — legitimo — de falar, debater, discuti. A linguista britanica Deborah Cameron afirma que nés, seres huma- nos, nao sé falamos linguas como também falamos sobre a lingua que falamos. Ela deu a esse fendmeno sociocultural 0 curioso nome de higiene verbal. Em todos os campos do conhecimento, sempre tem existido ‘um embate entre as ideias que recebem o rétulo de clentificas e as Idetas que pertencem ao que se chama de senso comum. Dizemos que um enunciado tem caréter cientifico quando ele é resultado de investigagao empirica (isto é, com dados da realidade), feita segundo metodologias controladas, com levantamento de hipdteses, testagem dessas hipéteses, com confirmagao ou negacao de seus postulados € reelaboragao posterior dos prinefpios hipotetizados. Por isso, 0 conhecimento assim obtido & sempre provisério, pode ser criticado, refeito, de modo a fazer avancar o estado do saber atual de de- terminada drea de investigacao. A historia de qualquer ciéncia é a histria de suas reformulagdes, do abandono de teorias e métodos por outras teorias e métodos, a histéria de seus avancos sucessivos, Justamente por tentar seguir princfpios e métodos bem delineados é que os postulados cientfficos so, com frequéncia, contraintuitivos. Como assim? A intuigdo & uma poderosa ferramenta cognitiva que nés te- mos, 6 a “faculdade de perceber, discernir ou pressentir coisas, aa at 8 8 dno neni, ele — pndo png oi 8 independentemente de raciocinio ou de andlise” (Houalss). £ uma estratégia de sobrevivéncia da espécie: intuir é pressentir, antever, com base na experiéncia vivida ou nas informagdes dadas por nos- sos sentidos. No entanto, como bem define o dicionério, é algo que fazemos “independentemente de raciocinio ou de andlise”. E & ai que a porca da ciéncia torce o rabo, porque o método cientifico s6 pode receber esse rétulo — cientifico — quando se vale precisamente do raciocinio e da andlise! Um exemplo famoso pode nos ajudar a entender tudo isso. Com base em sua intui¢ao — na experléncia acumulada ao longo de milénios pelos grupos sociais e comprovada individualmente pelos sentidos pela percepeaio —, os seres humanos acreditaram durante eras a fio (€ muitos ainda hoje acreditam!) que o mundo era plano ¢ que o Sol girava em torno dele, £ tao facil “comprovar” isso: basta ficar num amplo campo aberto ou num deserto e acompanhar a trajetéria do Sol ao longo do dia, de um horizonte ao outro. Ora, quando cientis- tas como Copérnico e, mais tarde, Galileu — gracas ao raciocinio 8 andlise — comegaram a afirmar que a Terra nao é plana e que, muito pelo contrério, é ela que gira em torno do Sol, o escandalo foi geral, porque tais afirmagdes eram totalmente contraintuitivas, se chocavam frontalmente com as crengas mais difundidas da época, crengas inclusive oficializadas péla Igreja (que persegula, torturava € queimava na fogueira quem se opusesse a elas). A forga das ideias preconcebidas e cristalizadas milenarmente 6 ‘to grande que, mesmo depois de a 35 amplamente os postulados cientfficos, conservamos, na linguagem, aquelas nogies erréneas: até hoje, por exemplo, dizemos que 0 Sol “nasce” no leste e “se pe" no ‘este, embora saibamos racionalmente que 6 0 movimento de rota;ao da Terra que provoca o fendmeno de alternancia do dia e da noite. Ideias assim so chamadas de estere6tipos, de uma raiz.grega — sté- eos — que significa “s6lido tridimensional’. As idelas estereotipadas so as que se cristalizam, endurecem, ficam sélidas como rochas. E é preciso muita 4gua mole, batendo durante muito e muito tempo, para furar essas pedras duras.. Crengas arraigadas ao longo do tempo, esteredtipos, supers- tigdes, mitos e preconceitos formam um conjinto de ideias que recebem o nome coletivo de senso comum. 0 senso comum 6 essa nebulosa de opinides que resistem durante muito tempo a todo tipo de reflexao critica, de questionamento, porque, de tao impregnadas no imaginério coletivo, acabam sendo consideradas como “naturais", quando de fato sao resultado de uma longa construgao cultural. Felizmente, com o passar do tempo e avango do conhecimento, muitas dessas idefas véo se “desnaturalizando” e até mesmo sendo combatidas, sobretudo quando sao prejudiciais ao bom convivio em sociedade, quando implicam opressdo, desrespeito, discriminagao. Hoje em dia, por exemplo, na maioria das sociedades democraticas, © racismo, 0 machismo, a intolerancia religiosa, a homofobia, a vio- lencia sexual etc. so atitudes e comportamentos sociais condenados € até, com muita frequéncia, considerados como crimes passfveis de punigao. Sendo uma parte tao fundamental do nosso préprio ser individual e social, a linguagem nao tinha como escapar das investidas do senso comum, E 0 senso comum linguistico, de um modo poderosissimo, resiste bravamente as investidas das criticas e dos questionamentos que as ciéncias da linguagem fazem dele. Muitas idetas completamente falsas vigoram na matorta das sociedades humanas, sobretudo das sociedades letradas, a respeito da lingua e das linguas. Vamos ver algumas delas: © Na grande maioria dos pafses, as pessoas falam uma lingua 56: nna Franca é o francés, na Itélia € 0 italiano, no Japao é o japonés ‘ete. Situagdes como as do Canadé, da Bélgica ou da Sufga sio excegbes. © ‘A ortografia é essencialmente baseada nos sons da I{ngua € go- vernada por regras claras e precisas. ‘exua 9 anon e Yon ¥0 y 8 : i i t i ; i i 30 Se alguém quer realmente aprender uma lingua estrangeira, diga- ‘mos 0 espanhol, é muito melhor passar uns meses na Argentina ou no México do que frequentar durante anos uma escola de linguas. ° Algumas Iinguas so naturalmente mais dificeis de aprender do que outras. Algumas linguas so naturalmente mais primitivas, toscas e pobres do que outras. Os modos de falar revelam a inteligéncia das pessoas, de modo que quem fala tudo errado necessariamente é mais estiipido do que quem fala tudo certo. A capacidade de aprender uma lingua estrangeira é um dom es- pecial que algumas pessoas tém e outras no. Palavras que as pessoas usam e que no estéo no dicionério simplesmente nao existem. £ mals facil aprender chinés se vocé for descendente de chineses do que se for descendente de europeus, por exemplo. * _Asiinguas tém caracteristicas especiais, personalidades propria: © francés & romantico, o alemao 6 rude, o russo é sonhador, 0 es- panhol tem sangue quente, o chinés é simples e direto, o japonés & misterioso, 0 grego 6 filosbfico etc. ° Todo mundo tem sotaque, menos eu. © portugués é uma das Iinguas mais dificeis do mundo. As mulheres falam mais do que os homens. Quem nao sabe ler nem escrever no pensa direito... Por mais “naturais" que possam parecer, todas essas crencas sdo infundadas, so erros grosseiros, e tém sido desconstruidas, pega por pega, pelos linguistas, fildsofos, antropélogos, socidlogos, Psicélogos e outros cientistas desde, pelo menos, a segunda metade do século XIX. Elas continuam vivas, porém, no senso comum muitas vezes até, infelizmente, onde deveriam ser denunciadas e combatidas: no ensino de lingua materna e/ou de linguas estrangelras. Séo tao absurdas, infundadas ¢ irracionais quanto acreditar que os negros ‘so menos inteligentes que os brancos, que os indios so preguigosos or natureza, que as mulheres devem se sujeltar aos homens ou que ‘0s homossexuais sao doentes ou pervertidos. principio que guia a matoria das ideias sobre lingua no sen- so comum 0 do erro, Isso se deve a uma longufssima tradi¢ao, Iniciada no século II! antes de Cristo, quando surgiu a disciplina chamada gramética, uma tentativa de ctiar um modelo ideal de Iingua, baseado nas escolhas dos grandes escritores do passado. Feitas essas escolhas, todos os demais usos, a comecar pelos usos falados, receberam o rétulo de erro, de opgdes ilegitimas de falar e de escrever. A nocdo de erro, no entanto, tem de ser lancada na lata de lixo das idefas ruins por qualquer pessoa que queira se debrucar sobre qualquer area de conhecimento para investigar um fato-fendmeno natural ou social. Imagine se Charles Darwin, ao visitar as ilhas Galépagos em 1835 € ao encontrar em cada uma das ilhas uma espécie diferente de tentithdo (um passarinho), cada qual com um formato de bico di ferente, tivesse decidido que s6 uma delas era “certa’ e que todas as outras, por serem “erradas’, deviam ser eliminadas ¢ destruidas. A fascinante teoria da evolucao, que até hoje explica satisfatoriamente as transformagées que ocortem em todos os seres vivos, nunca teria sido formulada. Ora, bem na contramdo disso, como cientista (um dos maiores de todos os tempos, alids), ele procurou investigar por que um mesmo passarinho tinha assumido caracteristicas distintas em cada itha, qual era a explicagdo para aquela varlagao no espaco € para as mudangas ocorridas no tempo (dois conceitos — variagao mudanga — importantfssimos também na lingu(stica). Como bem sabemos, a conclusdo de Darwin foi de que em cada nova variedade de tentilhdo 0 bico correspondia ao tipo de alimento que o passaro encontrou em cada uma das ilhas, que apresentam ambientes muito iversos entre si. Ocorreu, portanto, uma adaptagdo, fenémeno im- portantissimo na biologia evolutiva. Heo, uncsicesmeic — pond plage a Fgura 4: As diterentes adapagies dos bcos ds tenties das thas Galipagos. Ora, 6 assim que procede também uma cientista da linguagem se descobre, por exemplo, que numa mesma sociedade, como a brasi- leira, existem pessoas que dizem tu FALOU, tu FALASTE e tu FALASSE para expressar a mesma idela de uma ago transcorrida no passado, ola val querer investigar as origens dessa variaco e explicar cads uma dessas formas verbais por melo de hipéteses, bara ver se s4o vélidas ou ndo. A ideia é “certa” ou, pior, que ela vai testar de que uma dessas formas “bonita’, e que as outras sio “erradas” ou “feias” ¢ descartada logo de safda como um falseamento das coisas pelas crengas equivocadas que vigoram no senso comum, Besse senso comum que torna dificil, para quem esta se iniciando hos estudos clentficos da linguagem, a observagio da prépria lingua © das Inguas em geral como um objeto de investigagdo. Confundir o iscurso cientifico com o discurso do senso comum éum risco ao qual estamos todos sujettos, por causa da prépria natureza do fenémeno da linguagem, profundamente entrelagado na nossa humanidade, nas nossas préticas socais,culturais, na nossa psicologia mais intima has mossas crencas, atitudes, opgies ideoldgicas ¢ posturas-diante dos fatos da vida em sociedade. Ao contrério da Sgua e do azeite, 4ue se juntam, mas ndo se misturam, essas duas ordens de dlscarce estdo sempre prontas para se entrelacar numa trama complicada, onde fica quase impossfvel distinguir onde comeca um fio e onde termina outro, Mas, atencao! Nao estamos aqui recuperando o velho mito da :", em que o cientista aparece como uma pessoa “neutralidade cientific totalmente desvinculada da realidade comum, desprezando todas as {delas e crengas dos “leigos", vivendo isolado no seu pequeno mundo de investigacdes, cAlculos, experimentos e descobertas, o estere6ti- po do “cientista maluco” (estereétipo racista e machista, diga-se de passagem, porque essa figura mftica é sempre homem e brancol). As mulheres e os homens que se dedicam a ciéncia vivem em sociedades complexas, participam da construgdo coletiva dessas sociedades, com seus valores, suas hierarquias, suas divisdes de classe, suas diferen- gas de género, compartilham em maior ou menor grau os principios da cultura e das subculturas em que estdo imersos ¢ por ai vai. A \inica coisa que os distingue dos demais membros da sociedade é uma opsao profissional e consciente por determinados modos de observar e analisar os fatos-fendmenos do mundo que nos cerca. Opsao consciente, sim, mas isso ndo quer dizer que, como qualquer ser humano normal, elas e eles estejam livres das investidas sorra- teiras do inconsciente e do que possa haver de tragos pouco nobres em suas personalidades. A antiga classificago do ser humano como “animal racional” cafu por terra ha muito tempo, desde que Sigmund Freud deixou claro que quase tudo o que fazemos e dizemos é fruto do nosso inconsciente. No entanto, mesmo com todos os obstaculos que enfrentamos na tarefa de observar a lingua objetivamente, vale a pena tentar Afinal, ja diziam os gregos: pathémata mathémata, ‘os sofrimentos sdo ensinamentos’, isto 6, “a gente aprende com as dificuldades”. E os romanos, que também gostavam de trocadilhos, diziam: Per angusta ad augusta, “pelos caminhos estreitos [se chega] ao cume”, quer dizer, a0 Spice, a0 ponto mais alto, a0 objetivo nobre, augusto. Também i s iam, com 0 mesmo sentido: Per aspera ad astra, “pelas asperezas [do caminho a gente chega] aos astros’, ou seja,& elevagio do espirito. Ea melhor maneira de percorrer as trilhas ingremes e Asperas sem tropesar demais é olhar com muito cuidado para as pedras do caminho © aprender o maximo sobre elas. E é nisso que a ciéncia nos ajuda. 5. Quantas linguas? Uma pergunta muito comum, motivada pela curiosidade das Pessoas, é: “Quantas linguas so faladas no mundo?". 0 nimero que ircula entre os estudiosos € 7.000, mas, como diz 0 ditado, “sete € conta de mentiroso”. Por qué? Porque é muito dificil estabelecer com precisdo matematica a quantidade de Iinguas faladas no nosso Planeta, A razio disso é que definir o que é uma lingua nao é tarefa das mais faceis. Anteriormente propusemos uma definigao geral de lingua, mas definir o que é uma lingua espectfica e quantas delas existem mundo afora... é quase impossivel. Os linguistas podem empregar seus crité- ros cientificos para decidir onde comeca uma I{ngua e onde termina outra, mas ndo existe consenso na comunidade dos pesquisadores, Se znem mesmo os especialistas conseguem responder, quando safmos do restrito ambiente cientifico a coisa se torna ainda mais complicada. O fato é que o rétulo de lingua é aplicado segundo critérios que tém muito mais.a ver com ideologias politicas, nacionalismos, tradigBes culturais, religiéo do que com elementos estruturais, gramaticais etc. Basta pensar, por exemplo, no debate que existe no Brasil desde a Independéncia sobre o portugués falado aqui: jé podemos chamé-lo de “brasileiro”? Tem gente que defende que sim, outros que dizem que nao, @ assim vamos levando. No inicio de 1930, um projeto de lei quase foi aprovado no Congreso para que a lingua majoritéria dos brasileiros fosse chamada oficialmente de brasileiro, mas as perturbagées sociais epoliticas provocadas pelo golpe de Estado, que derrubou o presidente Washington Lufs ¢ dew inicio a ditadura de Getilio Vargas, fizeram a lei ser esquecida. Mas em outros lugares o nome da lingua fol de do por decreto e, mesmo que os linguistas se oponham, a voz'deles representa muito pouco quando 0 assunto & politica e nacionalismo. Figura 5: Parece que alumaseditreseuropeias j no ttm divide sobre o nome de nossa lingua 5.1. Os nomes das linguas Existem muitas situagdes pelo mundo em que modos de falar pare- cidos recebem nomes diferentes por motivos exclusivamente polt 35 roo watt eerie — pond plage ok 36 Socioculturais. & 0 caso do servo-croata que, para os linguistas, é um ‘mesmo sistema linguistico, com a mesma proniincia, mesma gramitica e ‘mesmo léxico, mas que, depois do desaparecimento da antiga ugoslavia ¢ de seu desmembramento em seis pequenos paises, passou a receber homes distintos para marcar a identidade das nagGes recém-surgidas: Sérvio, croata, bésnio e montenegrino. 0 emprego de sistemas de éscrita distintos para o sérvio (alfabeto cific) ¢ para o eroata (alfa beto latino), em eorrespondéncta com as divergenciasreligiosa (sérvios (pin et x- anhol);acess0:02 set, 2014, de usuérios de uma lingua como primeira lingua (L1) ou como in gunda lingua (L2). 0 inglés, por exemplo, é a Li da Populate le diversos patses, com centenas de milhées de falantes, mas também 6 a-L2 mais empregada hoje em dia no mundo inteiro, de modo que ‘© mimero total de usuérios do inglés é na pratica, incalculavel. Pe outro lado, so muitos os paises que tém o inglés como lingua a es — lingua da administragao piblica, da educacao formal, dos ie comunicagao ete. —, mesmo no sendo a lingua mals empregada n territério. £ 0 caso das ex-colénias britdnicas na Africa que, ip independéncia, optaram pela Iingua do antigo colonizador para a criar conflitos étnicos com a escolha de um idioma em detrimento do: outros. Na Nigéria, por exemplo (175 milhdes de habitantes), an 521 linguas catalogadas, mas ¢ o inglés que funciona como ling oficial, na tentativa de permitir uma comunica¢ao mais ampla entre tantas etnias distintas. A mesma situacdo se encontra nas ex-coldnias portuguesas, francesas e belgas no continente africano. De acordo com a pégina Ethnologue: Languages of the World, uma referéncia muito citada quando 0 assunto sto estatisticas desse tipo, as linguas mais faladas no mundo como primetra lingua seriam as seguints ‘Lingua Paises | _Falantes® 1 Chinés 33 1197 2___Espanhol 31 414 3 Inglés 99 335 4 Hint 4 260 5 Arabe 6 237 6 Portugués rr 203 7 Bengali 4 193 @ Russo 16 167 9 Japones 3 a2 10 Javanés 3 a Fonte: : acesso: 02 et. 2014). ‘pusen vs nso ane me = fench— pond gos mos se, sano, & Essa tabela, no entanto, como nao poderia deixar de ser, apresenta Problemas. 0 rétulo de chinés, por exemplo, é aplicado a uma multi- plicidade de Iinguas e dialetos, frequentemente sem intercompreensio ‘miitua. Existe uma lingua oficial, tradicionalmente chamada mandarim (Putonghua em “chinés"), usada pela grande maioria da populasgo chinesa, mas no por todos os chineses como lingua primeira, 0 hindi, por outro lado, aparece sozinho, como uma lingua es- ecifica, sem se levar em conta o urdu que, como {A discutimos, é de fato idéntico ao hindi. Os falantes de urdu como primeira lingua somam, segundo o Ethnologue, mais de 64 milhdes, o que alteraria bastante a estatfstica. 0 caso do arabe também é peculiar: a tabela exibida no site apresenta um niimero total de falantes de “arabe”, mas 30 mesmo tempo subdivide essa “lingua” em 19 variedades regionais (marroquino, libio, tunisiano, egipcio etc) que so, como jé dissemos, sistemas linguisticos que ndo permitem a intercompreensao total entre seus falantes. Quanto ao portugués, a primeira observagio é: por que o Ethno- logue subdivide o arabe e 0 chinés, mas ndo faz a mesma coisa com © Portugués (e com o espanhol, o francés e o inglés)? Parece predo- ‘minar ali uma visio conservadora, tipicamente ocidental, de que as linguas europeias, mesmo depois de levadas para os quatro cantos do planeta, mesmo depois de inais de meio milénio de expansdo e de Intenso contato com outros idiomas, essas I{nguas permanecem homogeneas, sem grande variagao. Ora, n6s, brasileiros, sabemos muito bem as dificuldades que temos para entender completamente o que dizem os portugueses, sobretudo em situagdes de fala espontanea e, mais ainda, se forem pessoas da zona rural, com seus dialetos muito peculiares, Nao admi Fa que os filmes portugueses, quando passados no Brasil, jé venham com legendas. Prosseguindo, 0 mesmo site lista onze paises onde o portugues seria falado como primeira lingua: além dos pafses indepen- dentes que tém o portugués como lingua ofictal (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Mocambique, S40 Tomé e Principe, Timor-Leste) e de Macau (cidade chinesa, ex-coldnia portuguesa devolvida a China em 1999 e onde o portugués ji desapareceu na prtica,aparecem a Franga (1) € a india. Ora, na India o que, de fato, existe sto crioulos" de base portuguesa, ainda assim muitissimo pouco usados, com pro- babilidade de extingao em breve, quando a tiltima geracio de falantes deixar de existit: Por outro lado, nfo se menciona o caso do Urugual, aque tem uma pareela de sua populardo cuja primeira lingua ha ai tas geragdes 6 0 portugués uruguaio, jé devidamente reconhecido e estudado pelos linguistas urugualos. Por fim, 0 grande problema é que 0 portugués (Ge for mesmo uma lingua 86) ¢ realmente a Mngua majoritéria da populagao somente no Brasil e em Portugal. Em todos os demais paises, mesmo aqueles em que a lingua tem o status de oficial, o portugués 6 minoritério, aprendido formalmente na escola, enquanto as verdadeiras linguas nacionals so outras, Algumas esta- tisticas informam, por exemplo, que somente 3% dos mogambicanos ‘tém o portugués como primeira lingua. Tudo isso para concluir com o que jé dissemos: 6 muito di estabelecer estatisticas confidveis quando o assunto é lingua. 5.4, multilinguismo é a regra ‘Uma coisa importante é reconhecer, desde logo, qué ovelho refréo “um povo, uma nagdo, uma lingua” é uma ilusio ideol6gica. A ideia de que “na Franga se fala francés; na Italia, italiano; na Turquia, turco; na China, chinés; na Corela, coreano etc.", com um vinculo simbélico muito forte entre o nome do pafs eo nome da lingua, ndo tem cor- respondéncia na realidade dos fatos. As situacoes de multilinguismo 6 que so a regra mundo afora. E como multiplicidade linguistica equivale a multiplicidade étnica e cultural, sao frequentissimos os © Grol: "Cade uma das inguas mists nasedas do cntato de um oma europea ‘com linguas nativas, ou importadas, e que se tornaram linguas mi ‘comunidades socioculeurais"(Diciondrio Houaiss). ‘exer 3 oh vv DT 8 Une wea, clock — pnd o ngs nos £ z casos de conflito linguistico, isto é, de disputas — muitas vezes com ‘guerras, perseguigées e massacres — entre os falantes das diferentes inguas existentes num mesmo territério. A ansia de determinado Srupo social (religioso ou étnico, por exemplo) de conquistar a he- gemonia politica, cultural, religiosa e linguistica de um pais é 0 que leva a essas situagdes conflituosas. Sociedades monolingues praticamente nao existem, até porque, dentro de uma mesma lingua, existem diferentes variedades regionals € sociais, e uma delas acaba sendo transformada em norma para a totalidade dos falantes, gerando inevitdveis distancias culturais entre os que empregam uma variedade mais préxima da norma e os que empregam variedades muito afastadas dela. 0 Brasil, como sabemos, é um caso exemplar a esse respeito, mas esta longe de ser uma excegao. 0 muttilinguismo é bastante previsivel em pafses muito extensos € com grande populago, como a China, a india, a Rissia, a Indonésia, a Nigéria etc. Mas também se verifica em pequenas nagdes, como Por- tugal (onde o portugués, com variedades bem marcadas regionalmente, Convive, por exemplo, com 0 mirand@s, cooficializado na década de 1990), Luxemburgo (um pais com metade da rea do nosso Distrito Federal, mas que tem trés Iinguas oficiais: 0 francés, o alemao e 0 luxemburgués, variedade de alemao), Uruguai (espanhol e portugués), Bélgica (francés, neerlandés e alemio), para no mencionar 0 caso classico da Suica (francés, aleméo, italiano e romanche). E nunca é demais lembrar que 0 Brasil, com suas 190 linguas indigenas, mais tumas duas dezenas de linguas de imigragao (alemdo, italiano, japo- nés, drabe libanés etc), esté entre as nagées com a maior diversidade linguistica do mundo. De fato, além das linguas que tradicionalmente tém sido faladas dentro das fronteiras de cada pais, existem também, e com cada vez mals frequéncia e mais intensidade, as linguas de imigrasao, levadas para os mais diferentes lugares pelos grandes movimentos populacionais que o mundo sempre presenciou e presencia em nossa época de forma muitas vezes dramética, quando nio trégiea’, Isso explica, por exemplo, por que, no territério da Franca, as muitas variedades de arabe formam o segundo conjunto de Ifnguas mais faladas do pats, depois do francés. Nos Estados Unidos, a intensa imigragdo proveniente do México, de Porto Rico e de outros pafses latino-americanos esté fazendo do espanol uma lingua com presenca cultural e politica cada vez mais forte naquele pats: segundo o recém- -fundado Observat6rio da Lingua Espanhola e das Culturas Hispanicas nos Estados Unidos", sediado na Universidade Harvard, 0 nimero de falantes do espanhol em territério estadunidense poderé ultrapassar, em 2050, 0 da populacdo total do México, que é hoje o maior pais de lingua espanhola (120 mithdes de habitantes). Essas situagdes levaram, por exemplo, & publicago, em 1996, na cidade de Barcelona (Espanha), da Declaragdo Universal dos Direitos Lingu(sticos", um conjunto de principios norteadores para uma convi- vncia pacifica e harmontosa entre os povos e suas linguas. O primeiro esboco dessa declaracdo foi iniciativa do linguista pernambucano Francisco Gomes de Matos, numa reuniéo internacional ocorrida no Recife em 1984. Esse documento é importante porque chama a atengdo para as constantes situagSes de perseguicio de grupos étnicos por causa de sua lingua, de proibi¢do sistemética de uso de linguas minoritarias etc. Nas sociedades mais democriticas, surgiram, sobre- tudo a partir da segunda metade do século XX, politicas lingufsticas de valorizagao, protecao ¢ estimulo ao uso de Iinguas nao oficiais, s, de imigracao etc. minorit & Ue, umetny c — pond png oi * & 6. Nao existem “linguas primitivas” 0 final do século XIX foi marcado por uma politica extremamente agressiva das poténcias coloniais europeias. Depois das independén- clas dos Estados Unidos em 1776 e dos paises latino-americanos na primeira metade do século XIX, as poténcias europeias, para recupe- rar as riquezas perdidas, se langaram numa empreitada que passou 4 histéria com 0 nome de Partilha da Africa ou Corrida pela Africa, Até entio, a exploragao do continente africano, de seu povo e de suas Fiquezas era feita de modo mais ou menos “informal, levado a cabo sobretudo por comerciantes, traficantes, contrabandistas etc, Essa explorasio se limitava, em grande parte, as regides mais préximas da costa. Mas a cobiga das grandes poténcias logo voltou seus olhos © suas garras para o interior do continente, pouco conhecido e, sem dGvida, chelo de mais riquezas para arrancar, A partir de 1880, portanto, os governos europeus se engajaram, de forma institucionalizada e explicita, na disputa pelo continente. Em novembro de 1884 se realizou a Conferéncia de Berlim, que reuniu as poténcias colonlais da época, incluindo os Estados Unidos, para realizar a partilha da Africa. Assim, Inglaterra, Franca, Portugal, Es- anha, Itélla, Alemanha e Bélgica ocuparam imensas 4reas da Africa, delimitando fronteiras, criando instituigdes oficiais, enviando exércitos, missiondrios religiosos, comerciantes, professores, médicos, abrindo hospitais, escolas, quartéis etc. Em toda a Africa, somente dois pafses se mantiveram indepen- dentes: a Libéria e a Abissinia (atual tiépia). A Libéria tinha sido criada em 1847 por ex-escravos que aceitaram a proposta de grupos ¢ instituigdes estadunidenses de serem “devolvidos” Africa, onde Poderiam viver mais “livremente” e mals“ integrados” a cultura “original” do que nos Estados Unidos, pais em que jamais poderiam (€ até hoje praticamente ndo podem) se integrar A sociedade domi- nante branca. Daf o nome Libéria, derivado do latim liber, ‘livre’. Na ealidade, a criagdo da Libéria era s6.0 primeiro empreendimento da ACS (American Colonization Society — Sociedade Colonial Americana), que pretendia adquirir, como as demais poténcias, areas coloniais na Africa. No entanto, esse empreendimento nao teve sucesso. A Abissinia, por seu lado, era um império muito antigo e, prin- cipalmente, era (¢ 6) o tinico pais africano em que o cristianismo se impés muito cedo, fazendo surgir a Igreja Copta. A dinastia etfope remontava ao século Il a.C, (¢ s6 foi deposta em 1974) e a cristia- nizagdo do pats se iniciou em 316 d.C. Além disso, ndo apresentava nenhum tipo especial de riqueza natural que merecesse a avidez das poténcias europefas. Mesmo assim, os etfopes tiveram de lutar contra o projeto italiano de transformar seu pats num “protetorado” da Itélia, Em 1896, a Etidpia reafirmou sua independéncia diante Isso, porém, ndo impediu que o insano das poténcias coloi Mussollini, em 1935, tentasse novamente conquistar o pafs, mais uma vez sem sucesso. ‘A Partilha da Africa (e também do Oriente Médio) fica evidente quando observamos 0 tragado das fronteiras dos pafses que surgi- ram apés os movimentos de independéncia do continente. Em muitos deles, as fronteiras sao linhas retas, como se tivessem sido tragadas com réguas e esquadros. Na verdade, elas foram mesmo tragadas com réguas e esquadros — diante da possibilidade de eclodirem guerras entre as poténcias coloniais pela disputa daquelas areas, elas se reuniram e fizeram acordos sobre quem ficaria com 0 qué. Procure ver, por exemplo, os mapas de paises como Mauritania, Argélia, Libia, Egito, Mali, Iraque, Jordania, Siria, Kuwait... Todos tém linhas retas, quando nao s4o inteiramente compostos de linhas retas, ao contrat de outras nag6es, cujas fronteiras foram historicamente tracadas por desdobramentos politicos internos e externos e/ou por grandes aci dentes naturais (rios, montanhas, mares etc). As consequéncias dessa partilha autoritaria e arbitréria se verificam até hoje no continente africano. Povos da mesma I{ngua e cultura ficaram divididos entre dois ou mais paises, enquanto populagées tradicionalmente rivais 8 nc, unceunec — pond pagar oe 48 foram obrigadas a conviver num mesmo Estado, o que vm gerando Sempre muitas tensées e guerras, rth sa Figura 7: Mapa do nore da fica. Observe as linhas retas que formam os mapas de muitos paises Essas fronteiras foram delimitadas artificialmente pelas poténcias coloniais, em levar em conta os interesses das populagées implicadas {sso tem gerado intimeras guerras econflitos sangrentos no continents desde o inicio do processo de independéncia, nos anos 1950-1960. 6.1. A ciéncia racista A conquista da Africa foi, evidentemente, um banho de sangue. Com a Revolugao Industrial, os europeus tinham desenvolvide uma indistria armamentista poderosa, moderna e eficente, contra a qual as armas tradiclonals dos povos africanos néo puderam oferecer resisténcia, Para mencionar apenas um dos Incontdveis horrores co- Imetidos pelos europeus nesse periodo — periodo em que continuava a explorarao de seres humanos como escravas, iniciada no século XVI Polos portugueses —, podemos citar as exibicées de seres humanos como atragées de circos e zoolgicas. Nesse perfodo (até os anos 1930) ocorreram as “exposigBes colo nas" em que indviduos trazidos da Africa, do‘Articoe da Polinésia eram exibidos como atragdes exéticas em “zoolégicos humanos" de diversas cldades europeias ¢ estadunidenses. Samoanos, tuaregues, nibios, pigmeus, hotentotes, malgaxes, inuits (“esquimés") eram mantidos em jardins botdnicos e jardins zoolégicos, muitas vezes em jaulas na mesma segao de macacos e outros animais selvagens. Figura 8: Cartazesanunclam es zolicos humanos. Essas exposigdes tinham, ao lado de sua fungao de mes implo apoio “cientifico”. junto as populagdes dos paises europeus, um amplo apoi nok — pode 0 ping No século XIX, 0 racismo ganhou ares de “ciéncia” com o desenvolvi- ‘mento da eugenia, uma teoria pseudocientifica que tentava mostrar a Superloridade da “raga” branca sobre as demais “racas” humanas — e até mesmo dentro da “raga” branca havia uma hierarquia de superio- ridade: 0s n6rdicos acima dos latinos e outros povos mediterréneos, Por exemplo. : Entre os cientistas e pensadores que defenderam a eugenia se destacam o francés Arthur de Gobineau (1816-1882), que esteve no Brasil e ficou horrorizado com a nossa “mistura de raras’,e o zaélogo © geblogo suigo Louts Agassiz (1807-1873), que também velo fazer Pesquisas no Brasil e escreveu: Aqueles que pdem em diivida os efeitos perniciosos da mistura de ragas e sdo levados, por falsa filantropia, a romper todas as barreiras colocadas entre elas deveriam vir ao Brasil, Com base nos principios eugenistas, a colonizacSo se justficava Plenamente: era preciso levar a “civilizacdo" aos povos “selvagens” fa2é-los abandonar seus costumes “bérbaros”, impor a eles a religido crista de modo que deixassem de adorar seus “Idolos” e “deméntos” ¢ de praticar “feltipos” e “magia negra’. Também era preciso impor 3 eles as “Iinguas civilizadas” para que deixassem de falar por meio de grunhidos e urros. Essa ideologia se impregnou profundamente na mentalidade europela da época, fazendo muita gente bem-intencionada acreditar na necessidade de “civilizar” os outros povos e até mesmo levando muitos a se engajar nessa em, médicos, professores etc). ipresa (missionarios religiosos, 6.2. A pseudociéncia das linguas “primitivas” esse grande projeto ideol6gico colonialista, a ciéncia lingufsti- 2 da época deu sua contribuislo, alegando a existéncia de “linguas Primitivas”. 0 caréter primitivo dessas linguas era considerado ébvio e natural: como é que povos atrasados, inferiores, intelectualmente retardados, selvagens etc. poderiam falar, a ndo ser por meio de grunhidos, rangidos, frases toscas, vocabulario pobre etc.? A propria nogdo-de-I{ngua era negada a esses modos de falar que recebiam, quando muito, o rétulo pejorativo de “dialetos” Com o avango das ideias progressistas, com as revolugées sociais € politicas ocorridas desde aquela época até hoje, com a democra- tizagao das sociedades europeias e americanas, com a conquista e ampliagdo dos direitos humanos, o racismo "cientifico” foi denunciado e demolido pelas versdes contempordneas da linguistica, da socio- logia, da antropologia, da psicologia e outras ciéncias. Infelizmente, porém, o efeito da propaganda colonialista persistiu e persiste, muito arraigado nas culturas populares e até mesmo entre pessoas que se acham muito cultas. 0 que caracterizaria uma lingua *primitiva’? Seria a pobreza na gramatica, nos recursos sintéticos do idioma? Uma comparacao répida entre 0 latim cléssico e o latim vulgar ¢, mais adiante, entre 0 latim vulgar e as Iinguas romanicas mostra as intimeras “perdas” que ocorreram no processo. No entanto, é claro que também ocorreram muitos “ganhos", porque afinal toda lingua humana tem que dar conta de expressar uma série de categorias sociocognitivas sem as quais © conhecimento e a comunicag4o seriam impossiveis (tempo, lugar, espaco, pessoa, objeto, visdo, movimento, evento etc). No entanto, pelos princfpios da mudanca lingufstica, essas categorias passam a ser expressas de outras maneiras. Se as linguas romanicas abando- naram as declinagdes do latim, as fungSes sintéticas passaram a ser exercidas pela ordem dos termos na oragao ¢ pelo uso das preposi- ses. O latim nao apresentava artigos nem pronomes de nao-pessoa (a chamada “3* pessoa” verbal), lacunas que foram supridas em todas as linguas romanicas. Se existissem linguas “primitivas” também poderfamos falar de Imguas “desenvolvidas’. 0 que caracterizaria essas linguas? Dificil sexu yg mene ve weg 2 52 Cimpossivel) responder: Se o paralelo for feito entre desenvolvimen- to tecnolégico e “desenvolvimento” lingufstico — como muita gente, equivocadamente, faz — poderiamos dizer que as linguas mais “de- senvolvidas" seriam as I{nguas faladas pelos povos mais desenvolvidos do ponto de vista cientifico, tecnolégico, econémico etc. Ora, qual 6 a lingua dos dias de hoje que corresponde melhor a essa definigao sendo o inglés? O inglés, no entanto, é uma lingua extremamente simples, do pon- to de vista morfossintético. Observe, por exemplo, quantas tradugées ossiveis existem, em portugués, para uma tinica forma verbal inglesa: vocé pdde —_vocés puderam podia podiam you coun poderla poderiam pudesse pudessem puder puderem O inglés nao tem, como as demais linguas indo-europeias, mar- cas de género para os substantivos e adjetivos — por seu turno, as linguas do grupo germanico, de onde provém o inglés, classificam suas palavras em masculinas, femininas e neutras. Os determinantes em inglés, 20 contrario do que acontece em tantas outras linguas, no ‘trazem marcas de género nem de mimero: the (‘o, a, 0, as’), my (‘meu, minha, meus, minhas’) all (‘todo, toda, todos, todas, tudo’) etc, Jé em alemdo, os artigos definidos assumem diversas formas, a depender do género, do mimero e do caso sintético do termo determinado: der, die, das, den, dem, des etc. 4Ao longo do tempo, portanto, o inglés sofreu drésticas simpli- ficagdes morfossintaticas — a morfologia verbal, simplissima, é 0 melhor exemplo disso: enquanto, para aprender bem 0 portugués, lum estrangeiro precisa conhecer mais de dez tempos verbais com suas respectivas desinéncias, mais as marcas de pessoa ¢ numero, mals 0 participio passado (que tem marcas de pessoa e nimero) — e {sso 6 para os verbos regulares, que ndo trazem mudanga de vogal no radical nem mudanga de radical —, para aprender 0 verbo inglés basta aprender o infinitivo e o participio passado e saber que a nao- -pessoa do singular ganha um -s: love, loved, loves. Ser que o inglés 6 uma lingua pobre, primitiva? Bobagem. Tudo 0 que os falantes do antigo anglo-saxio (o ante- ppassado remoto do inglés) conseguiam expressar com suas morfologias verbais e nominais complexas, os falantes contempordneos de inglés também conseguem, e até mais, porque o mundo se transformou ra- dicalmente nesses iltimos 1.500 anos, de modo que foi preciso criar ‘um vastfssimo vocabuldrio e uma ampla rede de relasSes lexicogra- maticais para dar conta de expressar 0 mundo moderno. Por outro lado, quando examinamos uma lingua falada por uma populacdo tradicional, que se mantém vinculada a seu territério de origem e & sua cultura ancestral, ficamos surpresos com a extrema complexidade que muitas delas apresentam. A lingua tuitica, por exemplo, falada no extremo norte do Brasil e na Colémbia, tem toda uma morfologia prépria para expressar, no verbo, a origem da infor- ‘magdo que est sendo transmitida (uma conjugagao epistémica, por assim dizer): Tatiica Portugués diiga apé-wi Ele jogou: euvi diiga apé-i Ele jogou: eu owvi diiga apé-yt Ele jogou: tenho ind{cios disso (por exemplo, as mar- ‘eas de chuteiras no campo) diiga apé-yigi Ele jogou: me disseram diiga apé-hiyi Ele jogou: pode se supor (por exemplo, porque ele tem ‘o hdbito de jogar na sexta-feira e hoje é sexta-eira) Nenhuma lingua europela apresenta morfologia semelhante. ‘Um exemplo final nos vem da Austrétia. No dalabon, uma das centenas de Iinguas faladas pela populagio aborigine australiana, é possivel condensar tantas informagées numa tinica palavra que para traduzi-la precisamos de um texto completo em portugués (ou qual- quer outra I{ngua europeia): ounpear bse uncanar ankoc ~ ponte oping noe g Wekemarnimotkktindokan: Desconfio que eles dois, que sto de geragdes de niémero {mpar jum com relasdo ao outro, tenham que ir, com as consequéncias Para alguma outra pessoa, e sem uma pessoa-chave sabendo sobre isso; ao escolher a forma de palavras que escolho, indico aqui que um desses que est4o desempenhando a ago 6 minha sogra/madrasta ou um parente equivalentemente respeitado, 0 linguista australiano Nicholas Evans explica como se forma uma palavra como essa: Primeiro, comega-se com o significado basico, “Ir”. Em dalabon, énormalmente bon — mas quando se fala da prépria sogra ou de parentes a quem se dedica também um elevado respeito, € preciso usar uma forma polida da palavra, dokan. Assim, a primetra tarefa é verificar a relagao de parentesco que se tem com a pessoa de quem se vai falar. Em seguida, coloca-se © prefixo molkktin- ("8 revelia de”) neste contexto, ele denotaria que a aco esta sendo desempe- nhada sub-repticiamente, sem detxar saber quem deveria saber a respeito. Assim, é preciso saber nao s6 0 que as duas pessoas estdo fazendo, mas se elas esto mantendo as pessoas certas {informadas a respeito disso. Em seguida, acrescenta-se marni-, que significa “para'o beneficio de alguém/em detrimento de alguém” ou “em nome de alguém” — representando o evento como tendo algum efeito, positive ou negativo, conforme o contexto, para um terceiro, Depois, ¢ preciso especificar se duas ou mais do que duas pes- s0as estdo indo e, se forem s6 duas, que relacdo de parentesco existe entre elas. A palavra que apresentei poderia ser apro- Priada para falar de uma dupla mae-filha ou tio-sobrinho, por ‘exemplo, mas para falar de duas irmas ou de um par avé-neta Seria preciso substituir ke- por barra-. Finalmente, acrescenta-se 0 prefixo ‘apreensivo” ke-, para retratar a situagio como inde- sejavel. Traduzi o prefixo com “desconfio que... tenham que”. Mas em outro contexto, como aconselhando uma pessoa mais competente a garantir que as duas nao vao, ou que elas delxem a pessoa certa saber que esto indo, uma traduedo melhor seria “de modo que elas nao acabem indo’. Se essa é uma lingua “primitiva’, confesso que tenho medo de estudar uma I{ngua “avangada'... Mas é um medo infundado, porque no existem linguas primitivas nem linguas avangadas! Toda lingua preenche mais do que satisfatoriamente todas as necessidades de interaeao social da comunidade que a emprega. Quando os primeiros linguistas ocidentais chegaram a itha da Nova Guiné, logo acima da Austrélia, fizeram uma descoberta sur- preendente: a ilha era o lugar com a maior diversidade linguistica do mundo — mais de 800 linguas divididas em aproximadamente 16 familias distintas. Por causa das montanhas extremamente al- tas da ilha, as populagdes foram se isolando ao longo dos milénios € desenvolvendo suas préprias linguas. Outra coisa que chamou a atencdo dos ocidentals era 0 estdgio de civilizagio extremamente recuado da grande maioria daquelas populagées, algumas das quais vivendo praticamente na Idade da Pedra ainda no século XIX. Ora, essas mesmas populagdes que levavam uma vida ainda préxima da pré-histéria falavam I{nguas extremamente complexas do ponto de vista morfossintético. Como era possivel? A resposta € muito simples: ndo podemos confundir desenvolvi- ‘mento tecnolgico com desenvolvimento linguistico. Os seres humanos — seja qual for o estagio de sua cultura — pertencem todos a uma mesma espécle — Homo sapiens sapiens — e, portanto, dispdem to- dos do mesmo eérebro com as mesm{ssimas capacidades cognitivas. Uma crianga nascida no interior do Paran4, se for levada para viver desde pequena no Nepal, aprenderé a falar nepalés como qualquer criancinha nascida la, e vice-versa. Como o cérebro humano é 0 55 ech — pond os gn 56 mesmo e tem de dar conta de simbolizar o mesmo mundo e as mes- ‘mas experiéncias de vida, as linguas humanas, por mais diferentes que sejam — e séo —, dispdem de recursos para desempenhar lindamente essas tarefas. As diferencas entre as linguas nao impedem, por exemplo, a prética da traduedo, talvez. uma das mais antigas atividades desempe- nhadas pelos seres humanos. A prova cabal disso est precisamente nos exemplos que demos acima, Nao temos em portugués particulas sramatlcais evidencials especificas como o tuitica, mas se tivermos de traduzir diiga apé-yigi, podemos dizer “me disseram que ele jogou’, Para decidir que tradugZo usar no momento de verter para o portu- ‘gués a forma verbal do inglés you could vamos ter de analisar todo © contexto e 0 cotexto para usar a forma verbal mais adequada, de modo a preservar a coesdo e a coeréncia do texto, O grande linguista russo Roman Jakobson (1896-1982) escre- veu esas palavras lapidares: “As Iinguas se distinguem muito mais pelo que elas ¢ém que dizer do que pelo que elas podem dizer”. 0 que significa isso? Que numa lingua humana se pode dizer tudo que se diz numa outra lingua humana, mas que esse poder dizer est su) 8 gramética de cada ingua, que obriga o falante a se expressar ine- vitavelmente segundo as regras de seu idioma, Em portugués, por exemplo, o género gramatical estd inscrito em todos os substantivos da Iingua: no exato momento em que escolhemos lum substantiyo, ele jé vem com seu género gramatical intrinseco, que nos obriga a fazer a concordancia de género com os demais termos do sintagma, Por isso, ao traduzir o inglés “This house is beautiful but it is very expensive’, somos obrigados a dizer: Essa casa é bonita mas ¢ muito cara. Se formos traduzir para o francés a célebre declaragéo de Jilio César — Veni, vidi, vici (Vim, vi, venci) —, seremos obrigados a usar trés vezes 0 indice de pessoa fe (“eu”) — Je vins, je vis, je vainguis — Porque em francés nenhum verbo pode vir desacompanhado de Seu sujeito, Em russo no existem artigos definidos, mas ao traduzir dessa Iingua para a nossa, teremos de empregé-los onde julgarmos conveniente e necessério... 6.3. A discriminagao e 0 preconceito linguisticos Uma derivagéo do mito da lingua “primitiva” é a idela de que as pessoas que ndo tém educacao formal e nao se valem das formas linguisticas padronizadas e prescritas pela tradi¢ao gramatical falam “tudo errado’, Assim como os europeus se consideravam superiores aos negros, aos indios, aos polinésios, aos aborigines australianos etc, também muitas pessoas das camadas dominantes da sociedade consideram que os pobres, os analfabetos, os habitantes da zona rural (e, em alguns lugares, as mulheres, os jovens, os negros, os imigran- tes etc) nao sabem falar, tém vocabuldrio pobre, sdo incapazes de raclocinio I6gico. & a expressdo mais clara e vigorosa do preconceito linguistico, conjunto de ideias que se manifesta concretamente na discriminagdo pela linguagem. Esse preconceito foi e (infelizmente) continua sendo transmitido e preservado pela pedagogia tradicional de lingua. Muitas e muitas pessoas abandonam os estudos porque ficam traumatizadas ao entrar na escola e, logo em seus primeiros contatos com o mundo escolar, s40 alvo de discriminagdo, de deboche, de piada por causa de seu jeito de falar — discriminagdo praticada nao s6 pelos colegas, mas também por muitas professoras ¢ muitos professores. Vai nessa mesma linha de pensamento arcaico uma coluna assi- nada pelo poeta Ferreira Gullar, na Folha de S.Paulo (17/2/2008), em que ele (logo ele, que é nordestino e que sempre fol considerado um homem de ideias progressistas!) pergunta: Mas quem é 0 povo? Aquela gente nordestina, magricela, tostada de sol, que mal sabe falar? (grifo meu) A afirmagio de que existe alguém que “mal sabe falar” revela, Para comegar, uma profunda ignorancia do enunciador no que diz Use uma mec — pnd 0 ings & respeito aos avancos da antropologia, da psicologia, da medicina, da linguistica contempordneas. Todo e qualquer ser humano dotado de suas plenas capacidades fisicas e mentais é perfeitamente capaz de falar e de falar bem. 0 cérebro humano é extremamente organizado, de modo que, ao contrério do que tanta gente pensa, é simplesmente Impossivel falar sem obedecer regras gramaticais. 0 problema esta em acreditar que as tinicas regras gramaticais so as poucas, Pouquissimas, descritas (mal descritas) e prescritas pela tradigéo gramatical, Se alguém falasse “sem gramética” ndo conseguiria se fazer entender — e nem a pessoa mals preconceituosa vai poder dizer que uum enunciado como “nds chegou Id e os home jé tinha ido embora” é incompreensivel porque, supostamente, nao apresenta concordancia nem obedece estritas regras morfossintaticas... Nao existem “Iinguas primitivas", Existem, isso sim, opiniGes, Preconceitos, mitos, lendas,ilusdes, fantasias — elas, sim — primitivas, toscas, tacanhas e bisonhas — quando nao explicitamente fascistas. E € desse tipo de ignordncia que temos obrigacao de nos livrar e de livrar aqueles que nos procuram como educadores. 7. O que é linguagem? Este livro apresenta no titulo um trio de palavras aparentadas: 'ngua, lingiwagem, linguistica. é tratamos, até agora, da primeira delas, a lingua. Agora chegou a vez da linguagem, O termo Iinguagem tem muitos significados e sentidos, mas va- ‘mos nos deter aqui em duas de suas definicées, as mais importantes, A primeira é: Nés somos seres muito particulares, porque temos precisamen- te essa capacidade fantdstica de significar, quer dizer, de produzir sentido por meio de simbolos, sinais, signos, {cones etc. 0 filésofo francés Jean-Paul Sartre escreveu certa vez que nés somos seres "condenados a liberdade”. Poderiamos dizer, nessa linha de raciocinio, que também somos seres condenados a significar. Nenhum gesto humano é neutro, ingénuo, vazio de sentido — muito pelo contré- rio, ele & sempre carregado de sentido, nos mais variados graus, ¢ cabe justamente a nossa capacidade de linguagem interpretar o sentido implicado em cada manifestagdo dos outros membros da nossa espi ‘A segunda definigo de linguagem é decorrente da primeira: 7.1. Linguagem verbal e néo verbal & dessa segunda acep¢ao de linguagem que provém uma distin- 40 fundamental: a de linguagem verbal e linguagem nao verbal. ‘A linguagem verbal é precisamente aquela que se expressa por meio do verbo — termo de origem latina que significa “palavra’ —, ou seja, por meio da lingua, que é, de longe, 0 sistema de signos mais completo, complexo, flexivel e adaptivel de todos — nao por acaso, € de Ifngua que deriva a palavra linguagem, pois toda linguagem é sem- pre uma “imita¢do da lingua’, uma tentativa de producdo de sentido to eficiente quanto a que se realiza por meio da Iingua. A linguagem verbal pode ser oral, escrita ou sinalizada (a Iingua dos surdos). ‘A linguagem nao verbal é toda aquela que se vale de outros signos, nao lingufsticos, signos que podem ser das mais diversas e diferentes naturezas. As placas de transito e as cores dos seméforos, ‘osu vg noon os en ge $ seu. nese, ceo — pnd o ngs nos 60 Por exemplo, constituem uma linguagém néo verbal, assim como os apitos ¢ gestos de mao do juiz num jogo de futebol. & essa riqueza de possibilidades de representacao/expressio que nos permite falar de linguagem musical, linguagem cinematogréfica, linguagem teatral, linguagem corporal, linguagem da danga, da pintura, da esculeura, da arquitetura, da fotografia e por af vai, e vai longe, sem mencionar as famosas linguagens secretas, linguagens cifradas, que exigem o dom{nio de cédigos reservados a poucos iniciados. Existem também as linguagens artificiais, isto é, sistemas de comunicagao elaborados conscientemente Para permitir 0 funcionamento de dominios especificos de saber. S40 linguagens artificiais, por exemplo, as que séo empregadas na mate- Imatica, na l6gica, na computagao etc. 0 estudo dos miiltiplos sistemas de linguagem verbal e no verbal é da algada da semiética (ou da Semiologia, conforme a corrente teérica), que também se interessa elas transposi¢des de um sistema para outro (por exemplo, da fala Para.a escrita, do romance para o cinema, da misica para a danga etc). Essa faculdade de linguagem é muito poderosa, porque nasce da aguda necessidade que nés, seres humanos, seres sociais e culturais, temos de interagir com nossos coespecificos (membros da nossa mes- ma espécie), de aprender com eles, compartilhar nossas experiéncias transmitir o conhecimento acumulado por nosso grupo social. Na maioria das pessoas, essa faculdade encontra vazio na fala, ha articulagdo de sons e na sua combinagao em palavras e frases. No entanto, quando a fala ndo est disponivel por alguma razdo — como a surdez —, essa necessidade premente de interagao social faz Surgir outros sistemas de signos, neste caso, as chamadas Iinguas de sinals, que se valem das maos, das outras partes do corpo e das expressdes faciais para se realizar. As Iinguas de sinais podem ser criagdes espontaneas de criancas ou pessoas adultas surdas, no de- sejo de interagir com seu grupo social, mas jé existem mundo afora muitas linguas de sinals devidamente codificadas, descritas em di- clonarios e graméticas e até mesmo institucionalmente reconhecidas, como € 0 caso da LrBRas, lingua brasileira de sinals. As linguas de sinais so sistemas to complexos e completos quanto as linguas faladas e, justamente por isso, so chamadas de linguas e j4 nao de “Iinguagens”. Os surdos falam concretamente por meio dos sinais, tanto quanto os nao surdos fazem gestos abstratos com o aparelho fonador, sintetizando-os em sons. 8. 0 que é linguistica? Chegamos agora ao terceiro termo do nosso trio: linguistica. Talvez. o mais facil de definir, j4 que a lingufstica é a ciéncta que estuda a linguagem humana em geral e as linguas humanas Particulares. Esse movimento pendular entre o geral e o particular se explica também de modo facil: como a espécie humana é uma s6, dotada dos mesmos recursos cognitivos e das mesmas configuragées fisiolégicas, ¢ obrigada a resolver os mesmos problemas de represen- tagdo/expressio da experiéncia/conhecimento, é mais do que seguro apostar que existam tragos comuns a todas as linguas humanas — e de fato existem. Por outro lado, como os diferentes grupos humanos vivem em ambientes ecolégicos diferentes, em climas diferentes, tendo de se valer de recursos naturals diferentes e, principalmente, consti- tuem culturas diferentes, cada lingua humana deve apresentar ca- racteristicas préprias, especificas, peculiares — ¢ de fato apresentam. Costumo dizer que a linguistica quer descobrir e explicar aquilo que cada falante sabe, mas ndo sabe que sabe. E que qualquer pessoa tem um conhecimento amplo e fundo da I{ngua (ou das Iin- uas) que ela fala. Uma vez adquirida pela crianga, a lingua se firma profundamente em sua cogni¢do, ¢ tudo 0 que esse individuo vai fazer pelo resto da vida é aprofundar ainda mais seu conhecimento — intuitivo @ inconsciente e, também, analitico e consciente — dessa lingua adquirida na infancia. Ninguém conhece melhor uma lingua X do que uma pessoa falante dessa lingua X: ela sabe reconhecer perfeitamente uma construgio ingufstica como bem ou mal constituida, como pertencente ou nado 2 a gramitica de sua lingua, Por isso também costumo dizer; 0 falan- te comum é 0 melhor gramético que existe. £ claro que estamos usando aqul o termo gramdtica numa acepgo muito diferente da que circula no senso comum, a de um livro que contém as normas para se falar e escrever “certo’, Na teoria lingufstica, a gramética 6 o que faz tuma lingua ser 0 que 6, & 0 conjunto de regras (de novo: intuitivas ¢ inconscientes) que seus falantes acionam para, falando, construir Sua identidade social de... falantes daquela lingua, Nenhuma crianga brasileira falante de portugués, por exemplo, vai dizer *zinhosinal no lugar de sinalzinho, porque, pelas regras da gramética de sua lingua, a marca de diminutivo sempre se coloca no final do nome. Ora, isso é o contrério do que se dé, por exemplo, no quimbundo, uma Ifngua trazida para o Brasil pelos africanos escravi- zados: nela, “sinal" se diz.rimbu e, no diminutivo, karimbu, “sinalzinho, Pequena marca” — sim, vocé adivinhou: é do quimbundo que vem 0 ‘nosso carimbo. (Em tempo: o asterisco {*] é empregado na linguisti- ca para indicar construgao improvavel, inaceitavel na gramética da lingua.) Ninguém jamais ensinou essa regra formalmente a crianga brasileira e nenhuma professora na escola perde tempo ensinando ue as marcas de diminutive vém no final dos nomes: a crianga jé chega na escola sabendo disso, Esse 6 um exemplo {nfimo de toda a complicadissima e sofisticada rede de regras gramaticais que qualquer falante de uma lingua, depois de uma certa idade, domina e utiliza. Assim como usamos nossos olhos, ouvidos, narizes, pulmées, ernas e outras partes do corpo com agilidade e destreza sem termos consciénela de como elas funcionam, assim também utilizamos nossa lingua com total competéncia e habilidade, inclusive para praticar um dos nossos passatempos favoritos: falar sobre a lingua, Nao satisfeitos com essa capacidade fenomenal de usar a lingua ara nossa interacao social, representacdo do mundo e produgo de Conhecimento,também nos dedicamos a prética da epilinguagem, quer dizer, comentar, debater, discutir, avaliar, crticar, elogiar, repreender, apreciar etc. a Iingua que falamos e a lingua que os outros falam. B 6 podemos fazer isso porque somos conhecedores perfeitos, totais € absolutos das regras de funcionamento da nossa lingua. ‘Aeepilinguagem se distingue da metalinguagem, que menciona- ‘mos mais acima: enquanto a epilinguagem tem a ver com 0 uso da lingua para falar da Iingua de maneira assistematica, intuitiva, sem reflexdo tedrica especifica, a metalinguagem é 0 conjunto de termos empregados pelos estuliosos de qualquer Area de conhecimento para formalizar seu campo de saber e descrever com rigor seus objetos de investigagao. Quando empregamos termos como adjetivo, fonema, léxico, fricativa, sintagma etc., estamos nos valendo da metalinguagem propria da linguistica. No entanto, como 4 discutimos, essa extraordinéria faculdade de linguagem que nos permite falar uma lingua particular (ou mais de uma, é claro) & um objeto escondido, Por isso, no desejo de poder conhecer esse objeto seu funcionamento os cientistas da linguagem — 05 linguistas — se dedicam a examinar os poucos dados disponi- veis, aquela “série de sons que se sucedem no tempo ¢ formam grupos mals ou menos complexos separados por respirapdes, pausas, paradas, siléncios’, para retomar as palavras de J.-C, Corbeil citadas mais atras, Com esses dados, é possivel formular hipéteses, propor ins- trumentos de andlise e metodologias de pesquisa capazes de pouco a pouco revelar (verbo que significava, em latim, “puxar o véu") 0 funcionamento desse misterioso objeto escondido. 0 lingulsta, ao contrério do falante comum (eu diria até “normal"), quer ter um conhecimento sistematizado, formalizado, consciente, do que 6 de como é uma lingua para, daf, algar voos ainda mais altos e aprender mais sobre 0 que é e como é a linguagem humana em geral. 8.1. Quem mais se ocupa da lingua e da linguagem? ‘A linguagem, por outro lado, € o elemento central de tudo aquilo que se pode classificar de humano. Jé disse e repito: ser humano é 8 i i i | j i 64 ser na linguagem. Por isso, o estudo da linguagem e das linguas no ¢ privilégio da ciéncia linguistica nem dos linguistas. Algumas areas especificas desse enorme campo de saber sio ocupadas mais assiduamente por linguistas profissionais, porque so 0s especialistas da lingua como sistema estruturado: a fonologia, a morfologia ¢ a sintaxe, principalmente. Mas tdo logo ampliamos 0 foco e iluminamos o vasto terreno que se abre para além desse niicleo Central de estudos, topamos com uma profusio de fendmenos de toda ordem em que a Iingua/linguagem est profundamente implicada, Por isso, so muitas as disciplinas que se dedicam a ela, além da Linguistica propriamente dita, assim como também a linguistica se divide em diversas subdisciplinas com foco mais concentrado em determinados aspectos do fenémeno linguagem, A semantica, por exemplo, é 0 estudo do significado das unida- des da Iingua e de seus conjuntos, Embora esse estudo seja exercido bredominantemente por linguistas, ele também convida a reflexdes de ordem légico-filos6fica. Alids, a filosofia da linguagem é uma di ciplina antiqutssima, praticada ha milénios, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Os fildsofos da linguagem se interessam, sobretudo, pela natureza do significado, pelo uso da linguagem, pela cogniao (e 0 relacionamento entre linguagem e pensamento) e pelas relagdes entre linguagem e realidade. Fruto mais recente das investigagées filoséficas sobre a lingua- Bem, a pragmatica examina e descreve os principios de cooperacao ‘que atuam no intercdmbio de linguagem entre o falante e o ouvinte, rincipios que permitem ao ouvinte interpretar 0 enunciado do seu interlocutor, tomando em consideracao, além do significado literal, elementos da situagdo € a intengdo que o locutor teve ao enuncié-lo, Seu principal suporte é a teoria dos atos de fala. Numa outra perspectiva, também existe a sociologia da lingua- em, que se debruca sobre os efeitos dos usos da(s) lingua(s) sobre a inamica social. Por exemplo, o prestigio de determinadas formas de uso da lingua sobre outras, 0 preconceito social que se exerce sobre pessoas ou grupos de pessoas por causa de seu modo de falar, os processos de normatizacdo de uma lingua ou de uma variedade de lingua para que se torne lingua oficial etc. Prima-irma da sociologia da linguagem @ sociolinguistica que, no entanto, inverte de certa maneira a diregdo do foco para estudar como a lingua ¢ suas estruturas sto afetadas pelas dinamicas sociai: Ao desvendar alguns dos fatores sociais responsaveis pela mudanga das linguas, a sociolinguistica trouxe novo impulso para a lingufsti- ca histérica, surgida no século XIX, quando teve um extraordinario desenvolvimento, mas detxada de lado na primeira metade do século interessados no exame da lingua em seu XX pelos linguistas ma estado atual, contemporaneo. ‘Também muito aparentadas entre si sdo a antropologia lin- guistica e a linguistica antropolégica. A primeira investiga de que modo a lingua/linguagem molda a comunicagao, constitui a identidade social, influi no pertencimento de individuos a grupos, organiza em larga escala as crencas culturais e desenvolve uma representa¢ao cultural comum do mundo natural e do mundo social. A linguistica antropolégica, sendo primordialmente linguistica, explora 0 que se passa entre lingua/linguagem e cultura e as relacdes entre biologia humana, cognigdo e linguagem. Uma disciplina também muito préxima da antropologia linguistica & a etnografia da comunicagdo, que aplica a metodologia da pesquisa etnogréfica (descricdo minuciosa dos padres culturais peculiares de um determinado grupo social) para a andlise dos processos de comunicagao dentro de uma dada comunidade de fala Uma vez que toda manifestacdo da linguagem se realiza na for- ma de discurso, um campo de estudo muito desenvolvido nas tiltimas décadas tem sido precisamente a andlise do discurso, que se vale das contribuigdes de diversas disciplinas (lingufstica, soctologia, psicandlise, ciéncias da comunicacdo, filosofia etc) para Investigar de que forma os enunciados soctalmente significativos se constroem ‘evs sa amon ¥ ve won va & no ana eorea — ea cigs ot 66 nao somente do ponto de vista estrutural, textual, mas também do Ponto de vista da argumentagdo, das ideologias, das cristalizagées de formas e formatos discursivos em determinados perfodos histéricos, dentro das instituigées etc, A linguistica textual, por sua vez, postula que qualquer ma- nifestacdo discursiva se concretiza na forma de um texto e que, Por isso, 6 necessério estudar os elementos que fazem um texto sero que &, os chamados fatores de textualidade (coesio, coeréncia, informatividade, situacionalidade, aceitabilidade, intencionalidade, intertextualidade, por exemplo). Mais recentemente, a lingufsti- ca textual passou também a se Interessar pelos processamentos cognitivos da lingua, que exigem uma andlise atenta de fatores extratextuals, contextuais ete. A anilise da conversagao, como o nome deixa supor, estuda o ue ocorre nas trocas verbais entre as pessoas, quais as estratégias que usamos, por exemplo, para nos apoderarmos da palavra durante um didlogo, para garantir que nosso interlocutor se mantenha inte- ressado no que dizemos, entre outras muitas coisas, A psicolinguistica se dedica p: jordialmente a investigacao dos processos de aquisipdo da linguagem, dos fatores cognitives que Permitem 0 processamento e a produgo da linguagem, Préxima dela esta a neurolinguistica, interessada no funcionamento do cérebro humano como processador da linguagem, e também nos distirbios de linguagem mais conhecidos (afasia,dislexia, gagueira etc). Quando os avancos teéricos e metodolégicos das diversas disci- plinas voltadas para o estudo da linguagem sio aproveitados para a Solusao de problemas praticos ou de atividades profissionais especi- ficas, ¢ comum empregar-se a designacao de linguistica aplicada, Os ramos mais difundidos dessas aplicagdes $20.0 ensino de lingua (L1.e 12), a tradusao, a lexicografia, a codificagdo da linguagem nos meios de comunicagao, a linguagem forense, entre varios outros. 8.2. Escolas de pensamento linguistico J4 vimos que, sendo um objeto escondido, a lingua/linguagem precisa ser construfda teoricamente para entéo ser examinada descrita. Ao longo da histéria, diversas escolas tedricas tém surgido, cada uma delas dando sua contribuigao para um melhor entendimento dessa nossa faculdade. A mais antiga de todas as escolas te6ricas recebe o nome de gra- mitica tradicional e reine os postulados que compdem a doutrina sobre lingua elaborada a partir das primeiras reflexdes dos filésofos gregos (século V a.C,) até a constituigdo da disciplina gramatical, por volta do século Ill a.C, também no mundo de lingua grega. Levada para o dom{nio da lingua latina pelos romanos, essa dou- trina vai se enraizar em toda a Europa e, de la, para o resto do mundo colonizado pelos europeus. Desprovida de uma metodologia propria- ‘mente cientiica,e muito ritiada por isso nas escolas de pensamento lingufstico modernas e contempordneas, ainda assim as primetras intuigbes dos fildsofos e filélogos antigos merecem exame atento. Do outro lado do mundo, na fndia, também se desenvolvew uma refinada teoria gramatical, iniclada no século V a.C. por Panini que se preocupava em descrever da forma mais detalhada possivel a lingua sagrada da religiao hindu, 0 snscrito. No Oriente Médio, em meados do século Vill da nossa era, o persa Sibawayhi produria uma monumental gramética da lingua arabe, tendo sido o primeiro linguista a distinguir entre os sons da lingua e as unidades abstratas deduzidas a partir deles, os fonemas. E costume considerar que os estudos sobre lingua/linguagem re- ceberam um tratamento propriamente cientifico no século XIX, com o desenvolvimento da linguistica hist6rica, que ja mecionamos, de onde se originou o famoso método filolégico-comparativo, empregado pelos lingulstas para comparar linguas diferentes etentar estabelecer um parentesco entre elas. No mesmo perfodo, surgiu a dialetolog g ancestral remota da sociolinguistica moderna, que procurava registrar € descrever as distintas variedades de uma mesma lingua nacional, Na virada do século XIX para o século XX, surge o estruturalismo, Inspirado nas ideias atribuidas ao 4 citado Saussure, que se desen- volverd brilhantemente, influenciando outras éreas do conhecimento (psicandlise e antropologia, principalmente). Nos anos 1930-1940, frutifica a corrente do relativismo linguis- tico, com a célebre hipdtese de Sapir-Whorf, segundo a qual a lingua ue falamos molda nosso modo de pensar e de conceber 0 mundo. Na década de 1960, gragas aos trabalhos do estadunidense Noam Chomsky (nascido em 1928), surge a escola tedrica conhecida como gerativismo (ou gramética gerativa, gramética gerativo-transforma- ional), muito influente até os dias de hoje. Com o desenvolvimento do estruturalismo classico, aparecem as diversas correntes te6ricas agrupadas sob o rétulo de funcionalismo ‘que, a0 contrario do gerativismo (uma escola que estuda a linguagem como forma e como cognipdo individual), preferem observar a ingua em sua fungdo de comunicagao e intera¢do social. Mais recentemente, muitos estudiosos vém tratando 0 objeto lingua como algo indissoctével das dinamicas cognitivas individuais € coletivas ¢ do ambiente socfocultural, dando origem ao chamado sociocognitivismo, Cada uma dessas areas de estudo e dessas vertentes tedricas — além de outras que nao pudemos mencionar — é um mundo comple- x0 que se ramifica em diversas subdreas. Todas se desenvolvem em ritmo acelerado e vém acumulando grande volume de conhecimento, teorias métodos. Quem se interessar por conhecer mais a respeito de algum campo especifico ou de alguma escola teérica particular Poder consultar com proveito os titulos enumerados nas suigestées de leitura no final do livro, Como e por que as linguas mudam? 1, Um cérebro social jom 0 que sabemos até 0 momento, é posstvel dizer Co a mudanga lingufstica é um processo social € cognitivo. Afinal, se j4 dissemos que a lingua tem de ser abordada numa perspectiva sociocognitiva, a mudanca linguistica ndo pode escapar dessa mesma abordagem. Isso significa dizer que dela participam fatores socioculturais, decorrentes das dinamicas de interaco dos individuos e das populagdes de uma dada comunidade, e fatores sociocogni- tivos, derivados do funcionamento do nosso cérebro quando Processamos a lingua que falamos (e fazemos isso a cada segundo), processamento que Implica no s6 0 individuo, como também as demais pessoas com quem ele interage. ran sng sv SND WO OHED $

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