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Brasilia, julho de 2010 educacao UM TESOURO A DESCOBRIR Relatorio para a UNESCO da Comissao Internacional sobre Educacso para o século XXI i organieagac des Nagies Unidas paras Edusaeae, a Olinsia ea Cultirs destaques MEMBROS DA COMISSAG Jacques Delors (Presidente) In’am Al Mufti Isa0 Amagi Roberto Carneiro Fay Chung Bronislaw Geremek William Gorham Aleksandra Kornheuser Michael Maniey Marisele Pedrén Quero Marie-Angélique Sované Karan Singh Rodolfo Stavenhagen Myong Wan Suhr Zhou Nanzhso eh Ri tagar noBrasil FABER-CASTELL ©2010 UNESCO Titulo original: Learning: the treasure within; report to UNESCO of the International ‘Commission on Education for the Twenty-first Century (highlights). Paris: UNESCO, 1996. Publicado pelo Setor de Educacao da Representacao da UNESCO no Brasil, com 0 patrocinio da Fundagao Faber-Castell, uma parceria para promover uma educagio de qualidade para todos no Brasil. Tradugdo: Guilherme Joao de Freitas Teixeira Revisdo: Reinaldo de Lima Reis Capa: Edson Fogaca Diagramacao e Projeto Gréfico: Paulo Selveira Os autores sao responsaveis pela escolha e apresentagao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinides nele expressas, que nao sd0 necessaria- mente as da UNESCO, nem comprometem a Organizagao. As indicagdes de nomes e a apresentagao do material ao longo deste livro nao implicam a manifestacao de qualquer opiniao por parte da UNESCO a respeito da condicao juridica de qualquer pais, territério, cidade, regiao ou de suas autoridades, tampouco da delimitagao de suas fronteiras ou limites. Impresso no Brasil ED.96/WS/9 Representario no Brasil SAUS, Quadra, loco, Lote, mt Joos. asa DF Bes FABER-CASTELL Felon een tec (eed ana das nooeaUaies * ponaeauaas, . Site: wwwunesco.org/brasilia eOindasaCutuza’ E-mail: grupoeditorial@unesco.ogg br SUMARIO A Educacao ou a utopia necessaria Jacques Delors O quadro prospectivo. As tensées a superar Pensar e construir nosso futuro comum ..... Suscitar o interesse da sociedade pela educacao ao longo da vida . Reconsiderar e articular as diferentes etapas da educa Levar a bom termo as estratégias das reformas educacionais. Ampliar a cooperagao internacional a toda aaldeia global PRIMEIRA PARTE: HORIZONTES. Capitulo 1. Da comunidade de base a sociedade mundial Pistas e Recomendagées Capitulo 2. Da coesao social a participagao democratica Pistas e Recomendagées 27 Capitulo 3. Do crescimento econdémico ao desenvolvimento humano Pistas e Recomendagées.. SEGUNDA PARTE: PRINCIPIOS Capitulo 4. Os quatro pilares da educagao Pistas e Recomendacées.. Capitulo 5. A educacao ao longo da vida Pistas e recomendagées .. TERCEIRA PARTE: ORIENTACOES Capitulo 6. Da educagao basica a universidade Pistas ¢ Recomendagécs ... Capitulo 7. Os professores em busca de novas perspectivas Pistas e recomendacoes. Capitulo 8. Escolhas na area da educacao: o papel do politico Pistas ¢ recomendagoes .. Capitulo 9. A cooperagao internacional: educar a aldeia global Pistas e recomendagoes.... ANEXOS O Trabalho da Comissao Membros da Comissao Mandato da Comissio Enderego da Comissio AEDUCACAO OU | A UTOPIA NECESSARIA Jacques Delors Perante os mtiltiplos desafios suscitados pelo futuro, a educacao surge como, um trunfo indispensavel para que a humanidade tenha a possibilidade de progredir na consolidagao dos ideais da paz, da liberdade e da justica social. No desfecho de seus trabalhos, a Comissao faz questao de afirmar sua fé no papel essencial da educacao para o desenvolvimento continuo das pessoas e das sociedades: nao como um remédio milagroso, menos ainda como um “abre- tesésamo” de um mundo que tivesse realizado todos os seus ideais, mas como uma via ~ certamente, entre outros caminhos, embora mais eficaz - a servigo de um desenvolvimento humano mais harmonioso e auténtico, de modo a contribuir para a diminuicdo da pobreza, da exclusao social, das incom- preensées, das opressées, das guerras. Por meio de analises, reflexGes e propostas, a Comissao deseja compartilhar esta convicgdo com 0 maior nimero de pessoas, em um contexto em que as politicas educacionais enfrentam acaloradas criticas ou, entao, so descartadas, por razdes econémicas e financeiras, para o tiltimo lugar das prioridades. Eserdé que temos a obrigacao de evocar esse aspecto? De qualquer modo, a Comissdo pensou, antes de mais nada, nas criangas e nos adolescentes que receberdio 0 testemunho das maos das geragdes mais velhas, as quais tendema focalizar-se demasiado em seus préprios problemas. A educacao é também uma declaracao de amor a infancia ea juventude, que devem ser acolhidas nas nossas sociedades, reservando-lhes o espago que, sem dtivida, Ihes cabe no sistema educacional e também no seio da familia, da comunidade de base e da nagao. Esse dever elementar deve ser constantemente evocado para que seja levado em consideracao, inclusive, nas tomadas de decisao de ordem politica, econémica e financeira: parafraseando o poeta, a crianga é 0 futuro do homem. No final de um século marcado pelo tumulto e pela violéncia, assim como pelo progresso econdmico e cientifico — alias, desigualmente distribuido - eno alvorecer de um novo século, cuja perspectiva é alimentada por um misto de A educacao ou a utopia necessaria angiistia e de esperanca, é imperativo que todos aqueles que estejam inves- tidos de responsabilidade prestem atencao aos fins e a0s meios da educacao. A Comissao considera as politicas educacionais um processo permanente de enriquecimento dos conhecimentos e dos savoir-faire — ¢ talvez, sobre- tudo — um recurso privilegiado de construcao da propria pessoa, além das relagdes entre individuos, grupos e nagdes. Ao aceitarem 0 mandato que lhes foi confiado, os membros da Comissao_ adotaram, claramente, essa perspectiva e pretenderam sublinhar, apoiados em argumentos convincentes, o papel central da UNESCO, em acordo per- feito com as ideias que presidiram sua fundacio, respaldadas na esperanga de um mundo melhor a medida que sabe respeitar os direitos humanos, colocar em pratica a compreensio mitua e transformar 0 avango do conhe- cimento em um instrumento, nao de distingdo, mas de promogao do género humano. Para nossa Comissao, a tarefa, em particular, de superar o obstaculo da extraordindria diversidade de situacdes no mundo, assim como de empre- ender anilises ¢ tirar conclusdes validas para todos, apresentava-se como. algo, sem divida, impossivel. Apesar disso, a Comissio esforcou-se por elaborar suas reflexes em um quadro prospectivo, dominado pela globalizacao, porselecionar as questdes pertinentes que assediam qualquer ser humano, e por tragar algumas orientagées validas no plano nacional e mundial O quadro prospectivo Nas ultimas trés décadas do século XX, além de notaveis descobertas e progressos cientificos, numerosos paises - chamados emergentes - supe- raram o subdesenvolvimento, enquanto o nivel de vida continuou a progredir em ritmos bastante diferentes, conforme as vicissitudes de cada Estado. E, no entanto, um sentimento de desencanto parece dominar 0 mundo e contrasta com as expectativas surgidas apés a Segunda Guerra Mundial. E possivel falar, portanto, das desilusdes do progresso no plano econd- mico ¢ social: eis 0 que é confirmado pelo aumento do desemprego e pelos fenémenos de exclusao social nos paises ricos, assim como pela persis- téncia das desigualdades de desenvolvimento no mundo. Com certeza, a humanidade esta mais consciente dos perigos que ameagam o meio ambiente; mas, ela ainda néo se dotou dos recursos para solucionar esse problema, apesar das numerosas reuniées internacionais — por exemplo, a Jacques Delors do Rio de Janeiro, em 1992 -, e apesar das sérias adverténcias decorrentes de fendmenos naturais ou de acidentes tecnolégicos. De qualquer modo, 0 crescimento econdmico a qualquer prego nao pode ser considerado como avia mais adequada para permitira conciliagdo entre progresso material e equidade, entre respeito pela condigdo humana e pelo capital natural que temos obrigagdo de transmitir, em bom estado, as geragGes vindouras. Sera que ja extraimos todas as consequéncias desses fatos, no que diz respeito tanto aos fins, modalidades e recursos de desenvolvimento susten- tavel, quanto a novas formas de cooperagdo internacional? Com certeza que nao! Eis 0 que sera, portanto, um dos grandes desafios intelectuais e politicos do proximo século. Essa constata¢ao nao deve levar os paises em desenvolvimento’ a negli- genciaras forcas motrizes classicas de crescimento e, em particular, o indis- pensavel acesso ao universo da ciéncia e da tecnologia, com 0 que essas condicionantes implicam matéria de adaptagao das culturas e de moderni- zacao das mentalidades. Eis outro desencanto e outra desilusao para aqueles que haviam vislum- brado, com o fim da Guerra Fria, a perspectiva de um mundo melhor e em paz. E nao basta, como forma de consolo ou de alibi, repetir que a historia é tragica. Todos nds ja sabemos ou deveriamos saber: se a Segunda Grande Guerra fez 50 milhées de vitimas, como nao evocar que, desde 1945, foram declaradas cerca de 150 guertas que provocaram 20 milhées de mortos antes, e, também, aps a queda do muro de Berlim? Riscos novos ou ja antigos? Pouco importa, as tenses permanecem latentes e explodem entre nagdes, entre grupos étnicos ou a propésito de injustigas acumuladas no plano econémico e social. Em um contexto marcado pela crescente interde- pendéncia entre os povos ¢ pela globalizacao dos problemas, o dever de todas as autoridades constituidas consiste em avaliar tais riscos e adotar os recursos para superé-los. Mas, como aprendera conviver nesta aldeia global, se somos incapazes de viver em paz nas comunidades naturais a que pertencemos: nagio, regio, cidade, aldeia, vizinhanea? A questo central da democracia 6 saber se desejamos e somos capazes de participar da vida em comunidade; convém nao esquecer que esse desejo depende do sentido da responsabi- 1. Deacordocom os estudosda Contferéncia das Nagies Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), ‘a tendimento méiio dos “paises menos avangadas” (sf milhes de habitantes), et atualmente baixanda: por habitante, eleestaria fixado em USS 300, por ano, contra US$ 906 nos outros paises em desenvolvimento USs 21.598 nes paises industrializados. A educacao ou a utopia necessaria lidade de cada um. Ora, apesar de ter conquistado novos espacos, domina- dos anteriormente pelo totalitarismo e pela arbitrariedade, a democracia tem tendéncia a debilitar-se com o decorrer dos anos; como se tudo tivesse, incessantemente, de recomegar, renovar-se e ser reinventado. Como é que as politicas na area da educagao poderiam ignorar esses trés grandes desafios? Como é que a Comissio poderia deixar de sublinhar 0s aspectos em que essas politicas podem contribuir para um mundo melhor, para um desenvolvimento humano sustentavel, paraa compreensdo mtitua entre os povos ¢ para a renovagdo de uma vivéncia concreta da democracia? As tens6es a superar Com esse objetivo, convém enfrentar - para supera-las em melhores condigées - as principais tensdes que, por nado serem novas, encontram-se no dmago da problematica do século XXI. Atenso entreo global eo local: tornar-se, aos pouces, cidadao do mundo sem perder suas raizes pela participagio ativa na vida do seu pais e das comunidades de base. Atensao entre o universal eo singular: a globalizagio da cultura realiza- se de forma progressiva, masainda parcialmente. De fato, ela ¢ incontornavel com suas promessas ¢ com seus riscos: um dos mais graves é, exatamente, o esquecimento do carater tinico de cada pessoa, de sua vocagao para decidir seu destino e realizar todas as suas potencialidades, conservando a riqueza de suas tradicdes e de sua propria cultura que, se nao forem tomadas as devidas providéncias, corre o risco de desaparecer sob a influéncia das mu- dangas em curso. A tensdo entre tradicao e modernidade esta relacionada com a mesma problematica: adaptar-se sem se negara si mesmo, construir sua autonomia_ em dialética com a liberdade e a evolugao do outro, além de manter sob controle o progresso cientifico. Com este espirito é que se deve enfrentar 0 desafio instigante das novas tecnologias da informa¢ao. A tensao entre o longo prazo e o curto prazo, tensao permanente, mas. alimentada hoje pela supremacia do efémero e do instantaneo, em um contexto em que o excesso de informagées e de emogées passageiras leva a uma constante concentragao nos problemas imediatos. As diferentes propostas procuram respostas e solugGes répidas quando, afinal, um grande numero de problemas exigem uma estratégia respaldada na paciéncia, Jacques Delors consenso ¢ negociacao relativamente as reformas a empreender; esse é 0 caso no que se refere, precisamente, as politicas na drea da educagao. A tensao entre a indispensavel competi¢ao € 0 respeito pela igualdade de oportunidades. Questo classica formulada, desde o inicio do século XX, tanto as politicas econémicas e¢ sociais quanto as politicas educacionais. Questo resolvida, em alguns casos, mas nunca de forma duradoura. Atual- mente a Comissao tem a ousadia deafirmar que o imperative da competicao impele um grande ntimero de responsaveis a esquecer a missao que consiste em fornecer a cada ser humano os meios para realizar todas as suas potencialidades. Diante de tal constata¢4o, e no que diz respeito ao dominio abrangido poreste relatério, fomos levados a retomar ea atualizar 0 conceito de educagao ao longo da vida, de maneira a conciliar a competicao incen- tivadora com a cooperagio fortificante e com a solidariedade que promove a unido entre todos. A tensao entre 0 extraordinario desenvolvimento dos conhecimentos e ascapacidades de assimilacao do homem. A Comissio nao resistiu a tentacao de acrescentar novas disciplinas, tais como 0 autoconhecimento e a busca dos meios adequados para garantir a satide fisica e psicolégica ou, ainda, a aprendizagem de matérias que levem a conhecer melhor e preservar o meio ambiente. E, no entanto, os curriculos escolares estao cada vez mais sobrecarregados; nesse caso, sera necessario fazer escolhas, com a condi¢ao de preservar os elementos essenciais de uma educagao basica que ensine a viver melhor pelo conhecimento, pela experiéncia ¢ pela construgio deuma cultura pessoal. Finalmente ~ e, neste caso, trata-se também de uma constatagdo per- manente -, a tensao entre o espiritual e 0 material. O ser humano ~ muitas vezes, de forma insensivel ou sem a capacidade de exprimir tal estado animico - tem sede de ideal ou de valores a que, para evitar ferir alguém, atribuimos o qualificativo de morais. Compete 4 educagao a nobre tarefa de suscitar em todos, segundo as tradigdes ¢ as convicgdes de cada um, no pleno respeito do pluralismo, essa elevagao do pensamento e do espirito até o universal e, inclusive, uma espécie de superacao de si mesmo. O que esta em jogo - e a Comissio tem plena consciéncia das palavras utilizadas —é a sobrevivéncia da humanidade. 10 A educacao ou a utopia necessaria Pensar e construir nosso futuro comum Um sentimento de vertigem apodera-se de nossos contemporancos, divididos entre essa globalizacao — a cujas manifestagdes eles so obrigados, as vezes, a se submeterem - e a busca pessoal de stias raizes, referencias e filiagdes. ‘A educagao deve enfrentar esse problema porque, na perspectiva do parto doloroso de uma sociedade mundial, ela situa-se, mais do que nunca, no amago do desenvolvimento da pessoa e das comunidades; sua missao consiste em permitir que todos, sem excecao, fagam frutificar seus talentos € suas potencialidades criativas, 0 que implica, por parte de cada um, a capacidade de assumir sua prépria responsabilidade e de realizar seu projeto pessoal. Essa finalidade supera qualquer outra; sua realizagao, longa e dificil, serd uma contribui¢ao essencial para a busca de um mundo mais convivial ¢ justo. Ora, a Comissao faz questdo de sublinhar, com vigor, esse aspecto em um momento em que algumas mentes sio assediadas pela diivida relativamente as possibilidades oferecidas pela educacao. Com certeza, ainda existe um grande ntimero de outros problemas a espera de solucao; vamos mencioné-los a seguir. Mas este relatorio & elaborado no momento em que a humanidade, diante de tantos infortinios causados por guerras, criminalidade e subdesenvolvimento, hesita entre a aceleracao do proceso, sem ter a possibilidade de controla-lo, e a resig- nacao; vamos, pois, oferecer-lhe outra saida. Somos levados, portanto, a revalorizar as dimens6es ética e cultural da educacio e, nesse sentido, a fornecer os recursos para que cada um venha a compreender o outro em sua especificidade, além de compreender o mundo em sua busca cadtica de certa unidade; mas, previamente, convém comegar pela compreensio desi mesmo em uma espécie de viagem interior, permeada pela aquisicao de conhecimentos, pela meditacaoe pelo exercicio da autocritica. Esta mensagem deve orientar qualquer projeto sobre a educagao vin- culada a ampliacao e ao aprofundamento da cooperacao internacional que, alids, constitui o ultimo aspecto destas reflexdes introdutérias. Nessa perspectiva, enumeramos os aspectos fundamentais: as exig¢n- cias de ordem cientifica e técnica, o autoconhecimento e a consciéncia do meio ambiente, assim como a construcao de capacidades que permitam orientar a acdo de cada um, como membro de uma familia, cidadao ou como um produtivo membro da sociedade. Jacques Delors A Comissao nao subestima, de modo algum, a indispensdvel fungao da criatividade e da inovagao, a passagem para uma sociedade cognitiva, os processos endégenos que permitem o actimulo de saberes eo acréscimo de novas descobertas que, por sua vez, so aplicadas em diversos dominios da atividade humana, tanto na rea da satide e do meio ambiente quanto na produgao de bens e servigos. Ela esta ciente, também, das limitages e, inclusive, dos fracassos, das tentativas para transferira tecnologia aos paises mais desfavorecidos, precisamente devido ao carater endégeno dos mecanismos de acitmulo e de implementacao dos conhecimentos. Dai, entre outros aspectos, a necessidade de uma iniciacao precoce a ciéncia, a seus métodos de aplicagao, assim como ao dificil esforco para direcionar © progresso ao respeito pela pessoa ea sua integridade. Nesse ambito, e da mesma forma, a preocupacao ética deve ser levada em consideracao. Essa é uma forma de evocar também que a Comissao estd consciente das missdes que a educaco deve desempenhar a servico do desenvol- vimento econdmico ¢ social. O sistema de formagao profissional é acusado, frequentemente, como responsavel pelo desemprego; tal constatagéo - em parte, procedente, — n3o deve sobretudo ocultar a necessidade de imple- mentar outras exigéncias de ordem politica, econémica e social, para que seja possivel alcangar o pleno emprego ou permitir o impulso da economia nos paises subdesenvolvidos. Dito isto, a Comissao pensa que cabe & educagao construir um sistema mais flexivel, com maior diversidade de cursos e maior possibilidade de transferéncia entre diversas modalidades de ensino ou, entao, entre a experiéncia profissional e 0 retorno para aprimoramento da formagao, constituem respostas validas para as quest6« formuladas pela inadequagao entre a oferta ¢ a demanda de emprego. Tal sistema permitiria também reduzir o fracasso escolar que — e trata-se de uma evidéncia—esta na origem do enorme desperdicio de recursos humanos. Mas esses aprimoramentos desejaveis e possiveis serao insuficientes sem a inovacao intelectual e a implantacao de um modelo de desenvolvi- mento sustentavel, segundo as caracteristicas peculiares de cada pais. Com os progressos atuais e previsiveis da ciéncia e da tecnologia, além da exigéncia crescente do cognitivo e do imaterial na produgao de bens e servicos, convém reconsideraro lugar do trabalho e de seus diferentes status na sociedade de amanha. Para criar essa sociedade, a imaginagao humana deve adiantar-se aos avan¢os tecnoldgicos, se quisermos evitar 0 aumento do desemprego ¢ a exclusao social ou, ainda, as desigualdades em relagao ao desenvolvimento. "1 12 A educacao ou a utopia necessaria Por todas essas razdes, parece-nos que é imperative impor 0 conceito de educagdo ao longo da vida com suas vantagens de flexibilidade, diver- sidade e acessibilidade no tempo e no espaco. Ea ideia de educagao perma- nente que deve ser, simultaneamente, reconsiderada e ampliada; com efeito, além das necessarias adaptacées relacionadas com as mudan¢as da vida profissional, ela deve ser uma construgao continua da pessoa, de seu saber e desuas aptidées, assim como desua capacidade para julgar e agir. Eladeve permitir que cada um venhaa tomar consciéncia desi proprio e de seu meio ambiente, sem deixar de desempenhar sua funcao na atividade profissional € nas estruturas sociais. ‘A esse propésito, chegou a ser evocada a necessidade de avancar em diregdo a uma sociedade educativa. E verdade que a vida pessoal ¢ social constitui um imenso campo de aprendizagens e de realizagdes; nessa perspectiva, somos seriamente tentados a privilegiar 0 potencial educa cional dos mais recentes recursos da comunicagao ou da vida profissional ou, ainda, das atividades de cultura ¢ lazer, a ponto de chegarmos a esquecer certas verdades essenciais. Com efeito, se cada um deve utilizar todas essas possibilidades de aprender e de se aperfeicoar, nem por isso deixa de ser verdadeiro que, para estar em condigées de utilizar, corre- tamente, tais potencialidades, o individuo deve dispor de todos os elemen- tos de uma educagao basica de qualidade; melhor ainda, é desejavel que a escola venha a incrementar, cada vez mais, 0 gosto e prazer de aprender, a capacidade de aprender a aprender, além da curiosidade intelectual. Pode- mos, inclusive, imaginar uma sociedade em que cada um seja, alternada- mente, professor ¢ aluno. Nesse sentido, nada pode substituir o sistema formal de educag3o que, a cada um, garante a iniciacao as mais diversas disciplinas do conheci- mento; nada pode substituir a relagao de autoridade, tampouco o didlogo entre professor ¢ aluno. Eis o que tem sido afirmado e repetido por todos os grandes pensadores classicos que se debrugaram sobre os problemas da educagao. Assim, compete ao professor transmitir ao aluno tudo 0 que a humanidade j4 aprendeu acerca de si mesma e da natureza, além do que ela tem criado ¢ inventado de essencial. Suscitar o interesse da sociedade pela educacao ao longo da vida O conceito de educacao ao longo da vida aparece, portanto, como uma das chaves de acesso ao século XI. Ele supera a distingao tradicional entre educagao inicial e educagdo permanente, dando resposta ao desafio Jacques Delors desencadeado por um mundo em rapida transformacdo; tal constatacao, porém, nao constitui uma novidade ja que relatérios precedentes sobre a educa¢ao sublinhavam a necessidade de um retorno 4 escola para enfrentar as novas situagSes que ocorrem tanto na vida privada quanto na vida profis- sional. Além de permanecer atual, essa exigéncia tornou-se ainda mais premente; e para superd-la, impe-se que cada um aprenda a aprende! No entanto, aps a profunda modificagao dos quadros tradicionais da existéncia humana, surge outro imperativo que nos obriga a compreender melhor 0 outro ¢ o mundo: exigéncia de compreensao miitua, de ajuda pacifica e - por que nao? - de harmonia, ou seja, precisamente, os valores de que nosso mundo ¢ tao carente. Esta tomada de posicao levou a Comissao a conferir relevancia a um dos quatro pilares que apresentou ¢ ilustrou como as bases da educacao: trata- -se de Aprender a conviver, desenvolvendo o conhecimento a respeito dos outros, de sua histéria, tradigdes ¢ espiritualidade. E a partir dai, criar um novo espirito que, gracas precisamente a essa percepeao de nossa crescente interdependéncia, gracas a uma anilise compartilhada dos riscos e desafios do futuro, conduza a realizagao de projetos comuns ou, entdo, a uma gestao inteligente ¢ apaziguadora dos inevitaveis conflitos. Eis algo que, para alguns, pode parecer uma utopia que nao deixa de ser necessdria — inclusive, vital — para sair do ciclo perigoso alimentado pelo cinismo ou pela resignag: A Comissao, na verdade, sonha com uma educacao criativa e que sirva de suporte a esse novo espirito; nem por isso, ela menosprezou os outros trés pilares da educag3o que fornecem, de certa forma, os elementos basicos para aprender a conviver. Em primeiro lugar, Aprender a conhecer. Mas, considerando as répidas alteragdes suscitadas pelo progresso cientifico e as novas formas de atividade econdmica e social, ¢ inevitavel conciliar uma cultura geral, suficientemente ampla, com a possibilidade de estudar, em profundidade, um reduzido numero de assuntos. Essa cultura geral constitui, de algum modo, 0 passaporte para uma educa¢io permanente, a medida que fornece © gosto, assim como as bases, para aprender ao longo da vida. A seguir, Aprender a fazer. Além da aprendizagem continuada de uma profissio, convém adquirir, de forma mais ampla, uma competéncia que torne o individuo apto para enfrentar numerosas situacdes, algumas das quais sao imprevisiveis, além de facilitar o trabalho em equipe que, atualmente, é uma dimensao negligenciada pelos métodos de ensino. Essa 13 14 A educacao ou a utopia necessaria competéncia e essas qualificacées tornam-se, em numerosos casos, mais acessiveis, se os alunos e os estudantes tém a possibilidade de se submeter a testes e de se enriquecer, tomando parte em atividades profissionais ou sociais, simultaneamente aos estudos. Essa é a justificativa para atribuir um valor cada vez maior as diferentes formas possiveis de alternancia entre escola ¢ trabalho. Por ultimo e acima de tudo, Aprender a ser, alids, o tema predominante do Relatério de Edgar Faure*, publicado em 1972, sob os auspicios da UNESCO. Suas recomendagdes permanecem atuais j4 que, no século XXI, todos nds seremos obrigados a incrementar nossa capacidade de autono- miae de discernimento, acompanhada pela consolidacao da responsabilidade pessoal na realizagio de um destino coletivo. E também, em decorréncia de outro imperativo sublinhado por esse relatério: n3o deixar inexplorado nenhum dos talentos que, a semelhanca de tesouros, esto soterrados no interior de cada ser humano. Sem sermos exaustivos, podemos citar a meméria, 0 raciocinio, a imaginagao, as capacidades fisicas, o sentido estético, a facilidade de comunicar-se com os outros, o carisma natural de cada um... Eis 0 que confirma a necessidade de maior compreensao de si mesmo. A Comissao evocou, ainda, outra utopia: a sociedade educativa baseada na aquisigao, atualizagao e utilizagao dos conhecimentos, ou , as tres, fungdes relevantes no processo educative. Com o desenvolvimento da sociedade da informacao e a multiplicagao das possibilidades de acesso a dados e fatos, a educacao deve permitir que todos possam coletar, selecionar, ordenar, gerenciar e utilizar esse volume de informagées € servir-se dele. Aeducagao deve, portanto, adaptar-se constantemente a essas mudangas da sociedade, sem negligenciar as vivéncias, os saberes basicos ¢ os resul- tados da experiéncia humana Finalmente, perante uma demanda cada vez maior, além de ser cada vez mais exigente, como atuar de modo que as politicas na 4rea da educa- ¢40 executem um duplo objetivo:a qualidade do ensino ea equidade? Estas sdo as quest6es formuladas pela Comissdo a propésito de cursos, métodos e contetidos de ensino, como condigses necessarias para sua eficacia. 12. FAURE, E. etal. Aprendera ser Lisboa: Livraria Bertrand; SSo Paulo: Brazil, DifusSo Europa de Livro, 1974. Disponivel em francés em: . - notade tradugio. Jacques Delors Reconsiderar e articular as diferentes etapas da educacao Ao focalizar suas propostas em torno do conceito de educagao ao longo: da vida, a Comissao nao teve a pretensdo de sugerir que esse salto qualita- tivo viesse a prescindir de uma reflexao sobre as diferentes etapas de ensino; pelo contrario, sua intengdo consistia em confirmar, ao mesmo tempo, algumas orientagées relevantes identificadas pela UNESCO ~ por exemplo, a importancia vital da educag3o bdsica - ou em incentivar a revisio das func6es assumidas pela educacao secundaria ou, ainda, em fornecer respostas para as indaga¢Ges que continuam a ser suscitadas pela evolugao_ do ensino superior e, sobretudo, pelo fendmeno da massificacao. Convém reconhecer simplesmente que a educagao ao longo da vida permite ordenar ~ e, ao mesmo tempo, valorizar — as diferentes fases de aprendizagem, articular as transi¢des e diversificar os percursos indivi- duais. Assim, sera que é possivel escapar deste funesto dilema: selecionar, mas multiplicando o fracasso escolar e 0 risco de exclusao social; ou nivelar o ensino, em detrimento da promogao dos talentos? Tais reflexdes, afinal, adotam 0 que foi tao bem definido, por ocasiao da Conferéncia de Jomtien, em 1990, sobre a educagio basica ¢ as necessi- dades educativas fundamentais. Essas necessidades referem-se tanto aos instrumentos essenciais de aprendizagem (leitura, escrita, expressio oral, cdleulo, resolucao de proble- mas), quanto aos contetidos educativos fundamentais (conhecimento, aptidoes, valores, atitudes), indispensaveis ao ser humano para sobreviver, desenvolver suas capacidades, viver ¢ trabalhar com dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, aprimorar sta qualidade de vida, tomar decisoes ponderadas e continuar a aprender’. Além de sua aparéncia, essa abordagem 6, de fato, impressionante; mas, dai, nao se deve inferir que ela tenha a pretensao de levarao actimulo exces- sivo de programas. A relacao entre professor ¢ aluno, o conhecimento do ambiente em que vivem as criangas, a adequada utilizagio dos modernos meios de comunicacao (nos lugares em que eles so operacionais), podem contribuir conjuntamente para o desenvolvimento pessoal e intelectual de cada aluno. Os saberes basicos desempenham, neste caso, seu verdadeiro papel: ler, eserever e contar. A combinagao do ensino classico com as 3. UNESCO, Declared Mundial sobre Educaedo pars Todos: Satisfacdo das Necessidades Bésicas de Aprendizagem, Jomtien, 1990. Brasilia: UNESCO, 1990. Disponivel em:

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