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Tópicos Avançados

em Ciências Sociais
Material Teórico
Sociologia do Corpo

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Silvio Pinto Ferreira Junior

Revisão Textual:
Profa. Sandra Regina F. Moreira
Sociologia do Corpo

• Introdução
• O corpo como ‘lugar’
• O Corpo e a Cultura
• A prática da capoeiragem
• Considerações Finais

O principal objetivo desta Unidade é compreender como o corpo é afetado


por elementos externos que constroem a cultura de um grupo. Veremos que a
tradição transferida entre gerações e que é representada pela gestualidade e pelos
simbolismos, faz do corpo um importante veículo cultural.

Leia atentamente o conteúdo desta Unidade, que lhe possibilitará conhecer a importância
do corpo como elemento de estudo das ciências sociais.
Você também encontrará nesta Unidade uma atividade composta por questões de múltipla
escolha, relacionada com o conteúdo estudado. Além disso, terá a oportunidade de trocar
conhecimentos e debater questões no fórum de discussão.
É extremante importante que você consulte os materiais complementares, pois são ricos
em informações, possibilitando-lhe o aprofundamento de seus estudos sobre este assunto.

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Unidade: Sociologia do Corpo

Contextualização

Para iniciar esta Unidade, a partir da imagem abaixo, reflita sobre a questão do corpo e a
gestualidade como expressões culturais que representam características da sociedade.

Fonte: iStock/Getty Images

Pergunte-se:
»» Por que o gesto pode ter significados para grupos sociais?
»» O corpo reflete as características culturais de determinadas sociedades?
»» O balé ou a capoeira são expressões culturais que podem significar uma compreensão
de grupos e de fatos históricos?

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Introdução
A sociologia pode ser problematizada no sentido de evidenciar o corpo e a gestualidade
como lugar de produção do conhecimento. Nesta unidade vamos estudar o corpo como eixo
da relação do humano com o mundo e em vida coletiva. Veremos como o corpo pode ser
analisado à luz do tempo e do espaço.

O corpo como ‘lugar’


O corpo, como aqui pretendemos apresentar, é identificado pela sua gestualidade, pelos
movimentos e pela relação com o espaço. O corpo é também um “lugar” de observação da
vida coletiva, da projeção do simbólico, da inscrição da cultura e da reinvenção da tradição.
Portanto, faremos aqui algumas reflexões acerca deste assunto começando pela gênese do
pensamento sociológico.
Ao evidenciar o conhecimento do corpo e da gestualidade que se expressa em sua
movimentação, é possível perceber registros de relações simbólicas e sociais, pois no corpo se
inscrevem e se atualizam experiências culturais.
No sentido de pensar o corpo pelo viés sociológico, devemos ressaltar que o desenvolvimento
do conhecimento científico, tal qual se manifestou a partir, principalmente, de Descartes
e no que se seguiu a partir do renascimento em 1600 na Europa, o “organismo” e seu
funcionamento esteve no centro das primeiras metodologias daquele período.

O que é o método científico cartesiano?


Descartes é considerado o primeiro filósofo “moderno”.
Ele mesmo não se considera mestre e sim um explorador,
estudioso e descobridor daquilo que encontrou. É essencial a
sua contribuição à epistemologia, pois estabeleceu um método
que ajudou o desenvolvimento das ciências naturais. O método
cartesiano põe em dúvida duas coisas:
1. o mundo das coisas sensíveis,
2. o mundo das coisas inteligíveis.
Ou seja, duvidar de tudo é sua premissa. Para René Descartes
as coisas só podem ser apreendidas por meio das sensações ou
do conhecimento intelectual. A evidência da própria existência
e a primeira certeza, segundo o filosofo: “penso, logo existo”.

O organismo estudado pelas ciências naturais serviu como base para as primeiras pesquisas
científicas na área das ciências humanas e sociais. Primeiramente com Augusto Comte e logo
depois com Durkheim, a sociedade também passou a ser vista, estudada e interpretada a partir
desta mesma ideia de ‘corpo’.
Para Durkheim, por exemplo, a sociedade funcionaria como um organismo vivo, onde
cada instituição que dele fizesse parte, representasse um órgão em funcionamento tal qual
ocorre com o corpo humano. Neste sentido, Durkheim procurou explicar que a sociedade

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Unidade: Sociologia do Corpo

funcionaria harmoniosamente e de forma equilibrada se todos os órgãos que a compõem


também estivessem em pleno e bom funcionamento. Isto quer dizer que os problemas sociais
poderiam se explicar na medida que tal organismo apresentasse suas patologias. Nesse
itinerário, os sociólogos do século XIX enxergavam que o Estado representava uma parte
deste corpo como, por exemplo, o pulmão, as instituições religiosas o coração, as instituições
de ensino o cérebro, os ginásios esportivos os músculos e assim por diante.
Entendendo a sociedade como um corpo, ou seja, um organismo vivo, como aqui estamos
discutindo, poderia se diagnosticar seus principais problemas, ou patologias e apresentar soluções.
Este legado do pensamento sociológico durkheiminiano, deixou alguns resquícios na
maneira de pensar a organização da sociedade. Para muitos estudiosos esta é uma interpretação
ultrapassada, porém deixa-nos aqui a compreensão de que o corpo toma dimensões no meio
acadêmico-científico até como modelo explicativo de estruturas funcionais. Esta visão não
deixa de despertar certa curiosidade.

Émile Durkheim (1858-1917)


Para Durkheim a sociedade tem que funcionar como o organismo
biológico, como um órgão humano: se funciona mal, entra em
colapso. Ela é um organismo vivo, daí a ideia de funcionalismo, para
a qual não apenas a célula deve ser observada, mas todos os órgãos.
Fonte: Wikimedia Commons

Richard Sennett (1943-)


A Grécia antiga, a Roma imperial, a Idade Média, a Modernidade
e, atualmente, a Pós-modernidade atribuíram ao corpo certo valor
e indicaram determinado lugar que este deveria ocupar no espaço
público. Assim o fisiológico parece estar, em certa medida, subordinado
à simbologia social, representações políticas e culturais sobre o corpo
e aos modelos epistemológicos que vigoram em cada época.
Fonte: Wikimedia Commons

O sociólogo contemporâneo da universidade de Nova Iorque, Richard Sennett, escreveu


sua obra ‘Carne e pedra’, também por este viés: enaltecendo a ideia de corpo e sua relação
com os espaços e a formação das cidades.
Sennett inicia sua obra explicando a estruturação das casas e como estas eram construídas
a partir da funcionalidade e da ideia de corpo. Para isto o autor pesquisou desde as sociedades
primitivas, explorando, em particular, as residências dos gregos na antiguidade e como estas
eram pensadas e arquitetadas a partir do corpo.

Carne e pedra é uma história da cidade contada através da experiência


corporal do povo: como mulheres e homens se moviam, o que viam e ouviam,
os odores que atingiam suas narinas, onde comiam, seus hábitos de vestir, de
banhar-se e de que forma faziam amor, desde a Atenas antiga à Nova Iorque
atual (SENNETT, 2003, p.15).

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O Corpo e a Cultura

O homem vetruviano de Leonardo da Vinci anunciava o corpo como o Pode o corpo produzir cultura? Esta é nossa primeira
centro de muitas análises científicas.
questão.

Se considerarmos o corpo como carne do mundo, mas


também dotado de alma e espírito, nossa reflexão pode ir
muito mais além.

Le Breton dirá, uma frase muito interessante neste


sentido: “Antes de qualquer coisa a existência é corporal” (LE
BRETON, 2006, p. 07). O corpo é nossa marca ontológica
e epistemológica, condição imperativa de nossa presença e
existência na relação com o mundo e com os outros, bem
como com a produção da própria cultura.

(...) As sociologias nascem em zonas de ruptura, de turbulência, de falha das


referências, de confusões, de crise das instituições, numa palavra, lá onde são
eliminadas as antigas legitimidades. Lá onde é desenhado o fio condutor do
pensamento aplicado na compreensão e na determinação de conceitos, naquilo
que escapa temporariamente aos modos habituais de idealização do mundo.
Trata-se de dar significado à desordem aparente, de encontrar as lógicas sociais
e culturais. O trabalho, o mundo rural, a vida cotidiana, a família, a juventude, a
morte, por exemplo, são eixos de análise para a sociologia que só conheceram
o desenvolvimento integral quando as representações sociais e culturais que os
dissolviam, até então, na evidência, começaram a se modificar suscitando uma
inquietação difusa no seio da comunidade. O mesmo aconteceu com o corpo
(LE BRETON, 2006, p. 11).

A gestualidade produzida pelo corpo é compreendida como uma linguagem própria, em


movimento a partir das relações sociais estabelecidas. O gesto desempenha uma função
significativa, articulando o simbolismo da cultura nas ações gestuais socialmente construídas a
partir das ações mútuas, estabelecidas e reconhecidas pelos sujeitos.

O gesto: O gesto é ação, movimento dinâmico e expressivo de um simbolismo histórico


e cultural. O gesto não deve ser visto como uma ação puramente mecânica e distraída
realizada pelo corpo em movimento. Esse simbolismo que o gesto carrega permite
uma imersão em uma existência potencialmente humana no campo simbólico que é
condição primordial para nos tornarmos humanos plenos em sua pluralidade.

A gestualidade: A gestualidade não deve ser reduzida a um dado mecânico, pois está
Importante! carregada de intenções, sentidos, direções, intensidades que compõem uma diversidade
de significações, a partir de diferentes contextos desenhados pela linguagem do corpo
em movimento, caracterizando uma relação sempre original e singular com o mundo
que se desdobra na produção do conhecimento, na história e na linguagem, nos códigos
culturais e que dão sentidos aos acontecimentos, marcando a gestualidade configurada
nas ações que se conectam com o mundo a partir dos símbolos construídos.

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Unidade: Sociologia do Corpo

O corpo e sua relação com o espaço, bem como toda a aprendizagem que absorve através
das relações culturais, possibilita que sejamos ‘desenhados’ e que ‘desenhemos’ nossa relação
com o mundo. Assim, construímos diferentes formas de sensibilidades, de gestualidades, de
percepções, que dão sentido às diversidades na existência humana, tencionando os fios da
pluralidade cultural e da singularidade dos sujeitos.
Se estamos explorando a ideia do corpo e gestualidade, é importante também considerarmos
redimensionar a compreensão do movimento como linguagem, cujo sentido é dado para
superarmos dissecações da vida e simplificações objetivas a partir de processos em direção à
razão, aqui chamados de processos ‘racionalizantes’.
A filosofia, desde sempre, busca a compreensão do ser humano no mundo, porém esta não
se dará no campo das ideias nem do pensamento, mas na experiência vivida, a qual inclui a
confluência da razão com o pensamento.
A existência é anterior ao pensamento, entretanto, é da natureza humana buscar conhecer
e explicar o mundo. Assim como é da ciência criar formas e possibilidades interpretativas,
ainda que parciais e provisórias.
Dito de outra forma, construímos a maneira de ser no mundo, compreender, pensar,
experimentar fenômenos, enfim, de produzir cultura.
O corpo é o nosso primeiro “instrumento” na medida em que é o primeiro meio técnico
de que nos valemos para construir relações com o mundo e atribuir sentidos às coisas, sendo,
portanto, o registrador e o transmissor da cultura.
Segundo explica Anthony Giddens (2004), a cultura de uma sociedade se faz tanto de
aspectos tangíveis quanto intangíveis.
Aspectos tangíveis da cultura são os objetos, os símbolos, a tecnologia, a arquitetura, os
monumentos etc. Já os aspectos intangíveis da cultura compreendem as crenças, os valores,
as ideias, os modos de ‘saber fazer’ etc.
Tais registros a que estamos nos referindo podem ser expressados pelo corpo através do
gesto. O gesto carrega significados específicos que nos permitem compreender, preservar
e transmitir valores, hábitos, sentimentos, normas, costumes; marcado por um processo de
incorporação da cultura, nas suas diversidades e pluralidades locais e temporais, na passagem
do signo à expressão.
De acordo com Pierre Bourdieu (2001), a esse conjunto de expressões e valores que
o corpo é capaz de transmitir e/ou transferir e desta forma criar e estabelecer diferenças
culturais, dá-se o nome de habitus.
O aprendizado compartilhado entre os grupos sociais, nas suas diferentes esferas, é
compreendido de forma diversa por cada indivíduo, pois este, como diz Pierre Bourdieu, é
portador de capital cultural de acordo com o habitus que permeia o universo de conhecimento
que lhe foi apresentado desde sempre.

Habitus: sistema de diferenças constitutivas da ordem social em que


a posse de capital financeiro e de capital cultural vão ditar hierarquias
estruturantes das ações e dos simbolismos.

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A transmissão do habitus, da qual trata Bourdieu, torna-se possível pelo processo de aprendizagem,
marcado pela natureza social do habitus na medida em que relaciona o corpo em sua forma material
às suas habilidades e aptidões, comunicando a partir do gesto. Essa comunicação se dá naturalmente
através dos canais sensoriais do corpo e não somente pela imitação.
O habitus “constitui o lugar de solidariedades duráveis, de fidelidades incoercíveis, (...)
fundadas em leis e laços incorporados, adesão visceral de um corpo socializado ao corpo social
que o fez e com o qual ele se faz corpo” (BOURDIEU, 2001 p. 176-177).
É assim, pelos conhecimentos e pela cultura transmitidos pela educação, que nos distinguimos dos
animais. Para irmos mais longe, o corpo permite ainda a transmissão oral de todos estes saberes.
As culturas que se tornaram mais evidentes na sua pluralidade a partir da globalização desde
a segunda metade do século XX, evidenciaram elementos da tradição. Tais elementos, em
contraste com a modernidade, se destacam ainda mais, criando um movimento de resistência
à homogeneização cultural.
Neste sentido podemos tomar como exemplo a cultura afro-brasileira, uma vez que o Brasil
nos oferece um grande leque para estudar as diversidades culturais.
Para sermos mais específicos, tomemos, como exemplo, a capoeira.
A capoeira é hoje um esporte praticado no mundo inteiro. Pretende-se fazê-la parte
dos jogos olímpicos, conforme será sugerido no evento de 2016 no Rio de Janeiro. Além
disso é reconhecida pelo IPHAN – Instituto do patrimônio histórico e artístico nacional –
como patrimônio cultural intangível, também reconhecida pela UNESCO como patrimônio
imaterial da humanidade.
Milhares de pessoas de todas as idades, raças, sexo e classes sociais, em países de todos os
continentes, praticam hoje a capoeira.
No entanto, pouco se discute sobre sua escrita histórica e social que oscilou entre a ilegalidade
e a legalidade.

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Unidade: Sociologia do Corpo

A prática da capoeiragem

Fonte: Johann Moritz Rugendas (1802–1858)/Wikimedia Commons

A pratica da capoeiragem foi oficialmente proibida a partir do Decreto n° 487 de outubro


de 1890, constando no Código Penal da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil,
prevendo uma pena de dois a seis meses de detenção aos seus praticantes. Somente a partir
da década de 1930, a partir do processo de modernização cultural difundido pelo governo de
Getúlio Vargas é que a capoeira passou a ser “aceita” socialmente.
Os capoeiristas no passado eram perseguidos, presos e proibidos de praticar sua arte.
Mas o que isso tem a ver com o corpo e a sociedade?
Bem, façamos uma reflexão: a capoeira não é apenas um esporte, um jogo ou uma dança
como muitos consideram. A hermenêutica nos instiga a reavaliar essas limitações. Neste
sentido, a capoeira traz consigo uma história do passado escravagista brasileiro: de uma cultura
que miscigenou com índios e brancos e trouxe consigo, nos porões dos navios que partiram
da África, hábitos alimentares, conhecimentos específicos, saberes, crenças, folclore, música,
religião, culinária, dança, indumentária etc.
A capoeira é considerada uma junção de dança, jogo e luta que é representada por
movimentos do corpo que simbolizam uma cultura que resistiu ao tempo, ainda que hibridizada.
Desta forma, quando nos referimos à capoeira, pensamos numa série de coisas em torno
do esporte, como por exemplo, a sensualidade, a hierarquia representada pelas cores dos
cordões, as músicas cantadas em dialetos misturados à língua portuguesa, os instrumentos
musicais que fazem do jogo praticamente um ritual, a força, o gingado, a arte.

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Um outro sentido que podemos abordar sobre a capoeira, é a sua prática pelas camadas
sociais mais desfavorecidas. Isso indica uma forma de movimentar o corpo, gesticular e se
expressar, com grande identificação com a cultura do negro e do pobre.
Também a capoeira foi, durante muito tempo, praticada pelos homens. Hoje já divide de forma
praticamente equilibrada o espaço da roda do jogo com mulheres e crianças de várias idades.
A resistente cultura afro-brasileira sobreviveu ao tempo, às perseguições, mortes, epidemias etc.,
atravessando séculos. Tudo isso só foi possível pela tradição oral transferida entre as gerações.
Vale ressaltar que a capoeira foi objeto de discriminação e muito pouco estudada
cientificamente até a primeira metade do século XX, aparecendo as primeiras pesquisas nos
anos 1940 em diante.
Com o tempo a capoeira foi sendo aprimorada e subdividida em modalidades: capoeira de
Angola e capoeira Regional.

sua finalidade é a afirmação social do negro a partir da negação da


Capoeira de Angola: mestiçagem, numa tentativa de manter a “proposta de pureza” da
capoeira, valorizando a especificidade do negro.

tem como finalidade a afirmação do negro a partir da “proposta


Capoeira Regional: de mestiçagem”, a partir da inserção de outras manifestações e
códigos na capoeira, norteada pela busca de eficiência.

Capoeira Angola Capoeira Regional


Original Moderna
Tradicional Descaracterizada
Jogo Baixo Jogo Alto
Jogo Lento Jogo Rápido
Recreativa e Maliciosa Agressiva e sem malícia
Envolta de religiosidade e misticismo Secularizada e isenta de símbolos religiosos
Praticadas pelas camadas Praticadas pelos estratos sociais médios e
marginalizadas superiores

É importante destacarmos que essas cisões nem sempre significam singularidades, mas às
vezes preconceitos, construções excludentes, afirmações de legitimidade e originalidade etc.
No que tange à organização da capoeira, podemos identificar que, de maneira geral, se
organiza em forma de um sistema. Existe uma articulação interna que é dada pelos seguintes
elementos: a roda, os toques musicais do berimbau, as músicas, a ginga e os movimentos
corporais dos estilos conhecidos, além das duas modalidades bem definidas: a capoeira
Regional e a capoeira Angola.
A roda de capoeira caracteriza-se como um espaço social, marcado pela dinâmica e
imprevisibilidade do jogo de corpo, na comunicação do gesto. Nesse espaço, o jogo de capoeira
estabelece-se na tensão e oposição entre dois oponentes que recebem o nome de ‘camaradas’.
O gesto flui no espaço/tempo revelando a energia e a criatividade dos movimentos quando a
luta/dança/jogo começa.

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Unidade: Sociologia do Corpo

A ginga, movimentação básica da capoeira, é realizada no ritmo de seu principal instrumento


- o toque do berimbau - que além de determinar o estilo, qual seja, Angola ou Regional,
encaminha o andamento do jogo, conforme suas variações. Cada toque de berimbau determina
um jogo diferente, em consequência, determina também o uso singular do corpo.

Quando a capoeira começa, o espaço é desenhado. Os gestos são intensos e acompanham


o berimbau, as palmas, os cânticos, o pandeiro, o atabaque da roda. Nessa produção simbólica
relacionada à gestualidade do corpo no jogo da capoeira, predomina a movimentação para
baixo, em direção a terra: o “baixo corporal”. O corpo na baixa posição enfatiza os movimentos
do quadril e dos pés. O movimento básico do jogo é a ginga, marcando a busca de um equilíbrio
dinâmico, potencializando a execução de golpes e contragolpes, a maioria executada com os
pés, enquanto os braços protegem o rosto.

Do ponto de vista simbólico, os cânticos nas rodas de capoeira cumprem algumas funções,
como por exemplo: função ritual, elemento mantedor das tradições e espaço dinâmico de
constante repensar dessa mesma história. O rito se manifesta com a participação de todos
os capoeiristas presentes no espaço da roda, os instrumentistas que se revezam, cantando e
batendo palmas.

Na consideração da história social do exemplo que aqui utilizamos, a capoeira, destacamos


os fragmentos que tratam de mudanças nesse sistema cultural, a partir da dialética da tradição
e que representam os valores divulgados no passado e reinterpretações de condutas hodiernas.
Alguns desses elementos tornam-se paradoxais, pois, nas rodas de capoeira, os valores do
passado são constantemente reavaliados durante o jogo.

A tradição cultural oral é marcante, fazendo-se presente tanto na forma como são passadas
as técnicas corporais, quanto nos movimentos através das narrativas históricas.

É preciso ainda considerar que, enquanto construção de uma coletividade, a técnica é revelada
socialmente pela tradição, permanecendo os gestos eficazes reorganizados pelo contexto social.
Nesse sentido significa dizer que, as formas de uso do corpo hoje ensinadas na capoeira não são as
mesmas experimentadas no passado. Um novo contexto social implica em outros usos e sentidos
para o corpo em movimento, bem como para o espaço que este corpo ocupa. Ainda que seja uma
tradição, nunca é igual nem ao que foi no passado, bem como no futuro, haverá novos elementos
incorporados. Portanto, podemos dizer que a tradição é efêmera.

Ao contrário de uma compreensão estanque ou cristalizada, a tradição é inserida e gestada


no processo dinâmico da cultura. Aqui a gestualidade como uso do corpo potencializa a
reinvenção do corpo e do jogo de capoeira.

O conhecimento do corpo utilizado pelos capoeiristas, no acontecimento do jogo, mobiliza


a percepção do outro e dos símbolos, a disponibilidade corporal na utilização de técnicas de
corpos, o cálculo na projeção virtual da gestualidade, envolvendo o controle, a velocidade, o
alcance, bem como a intencionalidade dos gestos. A produção desse conhecimento aproxima-
se de uma “ciência do concreto”, que envolve um conhecimento prático, razão prática, intuição
sensível, potencialidades e insuficiências, retiradas de suas experiências vividas no jogo de
corpo nas rodas de capoeira (LEVI-STRAUSS, 2006 ).

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Levi-Strausss, chama a esses resíduos da cultura, esses estilos de jogar capoeira, de
bricolagem do gesto.

Para Levi-Strauss:
Bricolagem é um processo que se define basicamente pela ausência de um projeto.
Glossário Tem o papel de criar signos e significados utilizando-se de resíduos culturais
acabados, imprimindo-lhes rearranjos, reorganizações e operando com o fato
de trabalhar com elementos fragmentários já existentes.

Os ‘camaradas’, na capoeira, não definem de maneira antecipada o projeto que será


desenvolvido, ou seja, a gestualidade que será empregada durante o jogo é uma composição
de arranjos de resíduos e de fragmentos de fatos. Nesse sentido, a composição da gestualidade
que se evidencia durante a dinâmica do jogo é sempre singular, desviando-se de uma norma
ou de um pré-projeto, concebido antecipadamente.

A cultura enquanto um sistema aberto, que opera tanto pela repetição quanto pela
reorganização de sua estrutura, se faz presente na gestualidade do corpo no jogo da capoeira.

Na dispersão dos corpos no espaço da roda, a previsibilidade dos movimentos não é


preponderante na relação entre os jogadores.

Não se entra na roda com uma sequência de movimentos pré-estabelecidos.

A inversão do corpo ao entrar na roda, o olhar do outro camarada durante o jogo, o diálogo
e a sedução no uso da gestualidade, bem como o arrebatamento exercido pela musicalidade
presente na roda, torna instáveis e vulneráveis as tentativas de uma predefinição no devir do
jogo. A gestualidade adquirida e disponível está aberta às experimentações.

Novas sequências de movimentos criadas pelos jogadores nas rodas de capoeira apresentam
infatigavelmente variações, uma vez que o capoeirista cria livremente, na hora, golpes de
ataque e de defesa, conforme seja o caso, que nunca foram previstos e sem nome específico
e que após o jogo ele próprio não se lembra mais do tipo de seu improviso.

O exemplo da capoeira abre espaço para pensarmos pela mesma perspectiva outras
tradições culturais que são transferidas e mantidas pelo gesto, ou seja, através do corpo. Neste
sentido, se juntam à capoeira, o samba, o forró, a congada e tantas outras expressões culturais
que fazem do corpo sua moradia.

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Unidade: Sociologia do Corpo

Considerações Finais

Fizemos aqui uma reflexão a respeito da capoeira e de sua função no organismo social.
É importante destacar que a capoeira é apenas um exemplo de que há todo um simbolismo,
uma representação que transmite um conhecimento em torno do que, a princípio, pareceria um
simples esporte. Assim também podemos pensar outros exemplos como as festas tradicionais,
os carnavais, o candomblé, a umbanda, enfim. Há um universo a ser explorado em torno do
corpo e sociedade, que aqui, apenas buscamos iniciar.

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Material Complementar

Para complementar os conhecimentos adquiridos nesta Unidade, segue sugestão de leituras:

Sites:
O corpo – filosofia e educação:
http://cruzeirodosul.bv3.digitalpages.com.br/users/publications/9788508114481

Introdução à sociologia
http://cruzeirodosul.bv3.digitalpages.com.br/users/publications/9788508114740

Nesse corpo tem gente!


http://cruzeirodosul.bv3.digitalpages.com.br/users/publications/857396362X

Século XXI – A era do corpo ativo:


http://cruzeirodosul.bv3.digitalpages.com.br/users/publications/9788544900352

Todos enriquecerão sua compreensão sobre a sociologia do corpo como tema de estudo em
ciências sociais.

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Unidade: Sociologia do Corpo

Referências

BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Editorial da Fundação Caulouste Gulbenkian, 2004.

LE BRETON, David. Sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2006.

LEVI-STRAUSS, Claude. Pensamento selvagem. 6ª ed. Campinas: Papirus, 2006.

SENNETT, Richard. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Record, 2003.

VIEIRA, Luis R. O jogo de capoeira: cultura popular no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Sprint, 1998.

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Anotações

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