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M716a Mokarzel, Marisa

Rios de terras e águas: navegar é preciso / Marisa


Mokarzel (Coord.); Janice Shirley Souza Lima; Simone de
Oliveira Moura. – Belém: Unama, 2009.
164 p.

ISBN 978-85-7691-087-9

1. Arte contemporânea no Pará. 2. Artes visuais.


3. Educação para as artes . 4. Artistas paraenses.
5. Programa Petrobras Cultural
I. Lima, Janice Shirley Souza. II. Moura, Simone de
Oliveira. III. Título.

CDD: 709.05

BELÉM - 2009
FUNDAÇÃO INSTITUTO PARA O DESENVOLVIMENTO DA AMAZÔNIA

PRESIDENTE
Marlene Coeli Vianna

VICE-PRESIDENTE
Édson Raymundo Pinheiro de Souza Franco

GERENTE GERAL
Odília Solange Salbé Reis

UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA

REITOR
Édson Raymundo Pinheiro de Souza Franco

VICE-REITOR
Antonio de Carvalho Vaz Pereira

PRÓ-REITOR DE ENSINO
Mário Francisco Guzzo

PRÓ-REITORA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO


Núbia Maria de Vasconcelos Maciel

DIRETORA ADMINISTRATIVA
Etiane Borges Arruda

DIRETOR DO CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E TECNOLOGIA


Evaristo Clementino Rezende dos Santos

COORDENADORA DO CURSO DE ARTES VISUAIS E TECNOLOGIA DA IMAGEM


Ana Del Tabor Vasconcelos Magalhães

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA


Vanessa Alcântara

FIDESA -Fundação Instituto para o Desenvolvimento da Amazônia


Av. Alcindo Cacela, 784 - Umarizal - Belém - Pará - Brasil - CEP: 66040-020
Fone: (91) 3246-8658/3246-9415– Fax: (91) 3246-8300

UNAMA – “Campus” Alcindo Cacela: Av. Alcindo Cacela, 287, 66060-902 – Belém – Pará.
Fone: (91) 40009-300. Fax: (91) 3225-3909.
PROJETO RIOS DE TERRAS E ÁGUAS: NAVEGAR É PRECISO

COORDENAÇÃO TÉCNICA
Marisa de Oliveira Mokarzel

COORDENAÇÃO DE ARTE E EDUCAÇÃO


Janice Shirley Souza Lima

COORDENAÇÃO DE APOIO E PRODUÇÃO


Simone de Oliveira Moura

CONCEPÇÃO E ELABORAÇÃO DO PROJETO


Janice Shirley Souza Lima
Marisa de Oliveira Mokarzel
Simone de Oliveira Moura

PESQUISA E TEXTO
Janice Shirley Souza Lima
Marisa de Oliveira Mokarzel
Simone de Oliveira Moura

PROJETO EDITORIAL
Projeto Gráfico: Melissa Barbery e Danielle Valente
Editoração Eletrônica e Diagramação: Melissa Barbery
Ficha Catalográfica e Normatização Catalográfica: Maria Miranda
Revisão de originais: Iraneide Souza Silva
Revisão final: Janice Lima, Marisa Mokarzel e Simone Moura
Impressão: Grafica Supercores
Tiragem: 1000 exemplares
Fotografias : Armando Queiroz, Jocatos, Kamara Kó, Lila Bemerguy, Lise Lobato, Marco Antonio Serrão, Mariano
Klautau Filho, Miguel Chikaoka, Octávio Cardoso, Paula Sampaio, Tina Vieira, Val Sampaio.

Esta publicação é acompanhada de 12 lâminas com imagens e 01 DVD contendo um documentário.

PRODUÇÃO DO DOCUMENTÁRIO EM DVD


Coordenação e Entrevistas: Marisa Mokarzel
Produção: Cabano Produtora - Marly Helena
Direção: Dimitri Maracajá
Câmera: Marcelo Rodrigues
Áudio: Marcelo Rodrigues
Edição: Dimitri Maracajá
Roteirização: Dimitri Maracajá
Projeto Gráfico: Melissa Barbery

Criação do site: UNAMA


Projeto gráfico: Melissa Barbery e Vitor Souza Lima
AGRADECIMENTOS

Armando Queiroz, Elieni Tenório, Jocatos, Lise Lobato, Mariano Klautau Filho, Mestre
Amadeu, Nina Abreu, Guilherme Carvalho da Silva (morador da Comunidade
Quilombola Abacatal), Paula Sampaio, Renata Maués, Zenaide Paiva.
O RIO DA MINHA CIDADE

O rio da minha cidade


Não é o rio Tejo
Nem é mais belo que o rio
Da aldeia do poeta.
O rio da minha cidade
Escreve poemas
Nas almas dos pescadores.
Por não ser o Tejo
Nem mais belo que o da aldeia do poeta
O rio da minha cidade
Guarda a memória de Narciso
Que a ele sempre volta
Porque sabe que o rio da minha cidade
É mais belo que o Tejo
E que o rio que corre na aldeia do poeta;
Foi no rio da minha cidade
Onde Deus lavou as mãos de suas culpas
Após ter moldado o corpo do primeiro homem,
Concedendo natureza divina
Ao rio da minha cidade
Tão cheio de tudo
Tão mais belo que o Tejo
E que o rio que corre na aldeia do poeta.
Pois no rio da minha cidade
Não se vêem barcaças
Querendo reinos deste mundo
Porque ele só admite navios profundos
Atrás da dracma perdida.
Ó grande Tejo
Ó desconhecido rio da aldeia do poeta,
O rio da minha cidade
É sagrado e opera milagres
E tanto vale a pena, se grande
A alma pequena
Nele mergulha a sua dor
Que já se vê no céu
Além do Bojador
Porque o rio da minha cidade
É mais belo que o Tejo
E que o rio que corre na aldeia do poeta.

Emanuel Matos
O projeto Rio de Terras e Águas: navegar é preciso traz como uma de suas
propostas documentar e difundir a obra de seis artistas do Pará, de linguagem e expressão
próprias, pessoais, diferentes uma de outra mas cujas raízes se encontram dentro de uma
órbita comum – a da cultura local. É nessa órbita que eles buscam suas referências, e
é a partir dela que buscam resgatar a memória, o patrimônio, e, ao mesmo tempo, se
lançam no rumo do contemporâneo. Além disso, o projeto se propõe a produzir material
educacional destinado não apenas a difundir esse trabalho, mas contribuir para fazer da
arte um instrumento de inclusão social.
O projeto foi contemplado no edital do Programa Petrobras Cultural, no
capítulo dedicado à formação e educação pelas artes. Através desta linha de patrocínio, a
Petrobras estimula projetos cujo objetivo seja ampliar as possibilidades de recepção das
artes e das manifestações culturais, privilegiando a educação. Ou seja: não se trata apenas
de patrocinar a arte e a sua difusão, mas também de transformar obras artísticas em
ferramentas para educadores, além de contribuir para a produção de material educacional.
Maior empresa brasileira, a Petrobras é também a maior patrocinadora das artes
e da cultura em nosso país.Através de uma política cultural com bases sólidas e princípios
rígidos, a Petrobras norteia sua concessão de patrocínio para a mais ampla gama possível
de ações, de tal forma que não apenas a produção mas também o resgate, a recuperação
e a difusão das artes sejam incentivadas ao máximo. E, assim, propicia ao cidadão a
possibilidade de ir além do contato com a obra dos nossos artistas e nela se reconhecer,
reconhecer sua própria identidade, sentir que essa obra de arte integra o seu patrimônio
pessoal e o patrimônio de todos nós.
A missão primordial da Petrobras é contribuir para o desenvolvimento do Brasil.
Apoiar de forma decidida, permanente e cristalina as nossas artes e a nossa cultura é
parte desse nosso compromisso.

Petrobras

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A Fundação Instituto para o Desenvolvimento da Amazônia – FIDESA, entidade
privada sem fins lucrativos, foi instituída, em 1997, com o objetivo de fomentar atividades
de pesquisa, extensão e de capacitação de recursos humanos, especialmente na
Amazônia, e o de promover o ensino à distância e atividades artístico-culturais, visando
o desenvolvimento da qualidade de vida e o saber do homem da Região.
As ações da FIDESA são garantidas a partir da execução de Programas e Projetos,
realizados através de convênios e contratos com entidades parceiras. Dentre estes, se
destacam o Programa de Desenvolvimento Científico, Tecnológico e Social - PDCTS e o
Programa de Fomento à Capacitação Docente e Técnica - PFCDT.
Foi no âmbito do PDCTS que se consolidou a parceria da Fundação para a
realização do Projeto Rios de Terras e Águas: navegar é preciso.Tendo em vista o objetivo
para o qual o projeto foi executado esta parceria foi de fundamental importância para o
cumprimento da missão a que a FIDESA está destinada.
A missão da Fundação corrobora o pensamento dos criadores do Projeto, pois
considera que todas as formas de expressão cultural são válidas para que a sociedade
brasileira mantenha a sua identidade, que é caracterizada pelas diversidades dos vários
povos que constituem a demografia do Brasil.

Odília Solange Salbé Reis


Gerente Geral - FIDESA

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As autoras deste belo trabalho, na escolha do título revelaram inspiração na obra
de Fernando Pessoa. No entanto, deram tanta vida ao seu conteúdo que não parece
coerente completar o pensamento do poeta e dizer: “viver não é preciso.”
Janice, Marisa e Simone, navegaram e mergulharam profundamente nos rios de
imaginação e criação de seis artistas contemporâneos do Pará, descobrindo e revelando
suas trajetórias com a sensibilidade peculiar que impregna a alma dos amantes da cultura
e das artes.
Deste especial mergulho brotaram, além do livro educativo que contempla uma
interessante proposta pedagógica de arte-educação, um documentário vivo e pungente,
com imagens e depoimentos dos artistas, colhidos em seus ambientes de vida e criação.
Para a Universidade da Amazônia é gratificante divulgar o resultado de uma
pesquisa executada com tanto esmero e competência, promovendo a disseminação do
conhecimento produzido e contribuindo para o desenvolvimento da educação, na área
das artes e da cultura, no contexto do patrimônio material e imaterial que integram a
memória e a história da nossa sociedade.
O reconhecimento da Universidade se estende aos artistas Armando Queiroz,
Elieni Tenório, Jocatos, Lise Lobato, Mariano Klautau Filho e Paula Sampaio, que não
apenas permitiram o acesso e a divulgação de suas obras, mas se envolveram, se doaram
ao trabalho, com tamanha generosidade.
O compromisso da Universidade da Amazônia com a educação, através da arte
e da cultura, é uma marca deixada pela professora Graça Landeira, que certa feita nos
declarou: “a vida sem arte, não tem sentido!”
Em homenagem a ela, que deve estar navegando em rios infinitos, desejamos
que, em cada um dos leitores desta obra, brilhe a luz da beleza com a qual ela conseguia
enxergar a arte, a vida e as pessoas.

Núbia Maciel
Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão - UNAMA

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É com imensa satisfação que oferecemos o resultado de uma iniciativa singular
e inovadora em que a Arte Contemporânea do Pará é presenteada com um estudo
voltado para a democratização dos saberes artísticos/estéticos no âmbito dos espaços
educativos e culturais.
A competência e seriedade com que o material educativo foi produzido revelam
o compromisso das educadoras/pesquisadoras em garantir um ensino de Arte com
qualidade contemplando questões patrimoniais, culturais e artísticas dos seis artistas
selecionados. Sendo este um momento ímpar para a multiplicidade de ações curriculares
imprescindíveis no ensinar/aprender Arte na atualidade.
O envolvimento das instituições culturais com a universidade na produção deste
estudo sinaliza um marco para ampliar o acesso as obras de cada artista e garantir
caminhos possíveis no processo de alfabetização cultural, tão necessário em tempos de
globalização.
A proposta do material educativo e seus desdobramentos de utilização no ato de
educar irão possibilitar múltiplos olhares e significados sobre a arte paraense, ampliando
caminhos possíveis à construção de conhecimentos.
A sensibilidade investigativa de cada educador e agente cultural será a ferramenta
necessária para a utilização deste material.

Ana Del Tabor


Coordenadora do Curso de Artes Visuais e Tecnologia da Imagem - UNAMA

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RIOS DE TERRAS E ÁGUAS: NAVEGAR É PRECISO
um projeto educativo sobre arte e patrimônio cultural

O projeto Rios deTerras e Águas: navegar é preciso foi selecionado e financiado pelo
Programa Petrobras Cultural na categoria Formação/Educação para as Artes: Materiais e
Documentação.Teve como proponente a Fundação Instituto para o Desenvolvimento da
Amazônia (FIDESA) e como parceira beneficiária a Universidade da Amazônia (UNAMA).
O projeto foi idealizado e elaborado pelas professoras e pesquisadoras Janice Lima,
coordenadora de arte e educação, Marisa Mokarzel, coordenadora técnica e Simone
Moura, coordenadora de apoio e produção.
O objetivo do Rios de Terras e Águas: navegar é preciso foi documentar e difundir
a obra de seis artistas do Pará, que se encontram interligadas por questões patrimoniais,
culturais e artísticas e apresentam-se em um contexto cultural local, em que estes buscam
suas referências, articulando-as ao espaço mais amplo da arte contemporânea.
Os seis artistas se inserem em um campo identitário diversificado, no qual se
discutem questões relativas à memória da cidade observada por Mariano Klautau Filho, o
patrimônio imaterial representado pela festa religiosa do Círio interpretada por Jocatos,
a memória dos remanescentes dos quilombos captada pelas lentes de Paula Sampaio e
a cerâmica marajoara, herança ancestral indígena, reinventada por Lise Lobato. Nestas
discussões também se inclui a questão de gênero, que pode ser identificada nas imagens
criadas por Elieni Tenório e o processo lúdico provocado pelos tradicionais brinquedos
de miriti, que ganham grandes dimensões e readquirem novos significados nas propostas
de intervenção de Armando Queiroz.
Para a compreensão do projeto que pretendeu desenvolver questões sobre a arte
contemporânea do Pará, foram realizados materiais de apoio aos educadores e agentes
culturais, compostos por: um livro educativo, contendo imagens e textos referentes
aos artistas, sua obra e os referenciais culturais por eles utilizados, e uma proposta
pedagógica; um documentário em mídia digital (DVD), mantendo o mesmo princípio que
rege o livro e 12 pranchas compostas com imagens da obra de cada artista e do ambiente
que serve de referencial.
Os materiais educativos de apoio aos educadores e agentes culturais foram
lançados em uma exposição formada por 16 painéis coloridos, idealizados para circular
em universidades, escolas públicas e privadas, comunidades e outras instituições.
Com este material educativo pretendeu-se, então, promover uma rede que
possibilitasse as indagações a respeito não somente das questões de arte contemporânea,
mas também culturais e patrimoniais, provocando diálogos com diferentes áreas do
conhecimento.

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O material foi previsto para ser utilizado por representantes do ensino formal e
não formal (universidades, colégios, secretarias municipais e estaduais, museus, centros
comunitários e centros culturais). Nos municípios do Pará: Belém,Ananindeua,Abaetetuba
e Santa Izabel foram realizadas oficinas de capacitação para uso do material com 12
grupos formados, cada um, por 40 pessoas, totalizando 480 educadores.
A intenção foi associar a produção artística ao contexto cultural, no qual o artista
vai buscar as suas referências, para que, no contato com a obra, o cidadão possa se
reconhecer e a distância entre ele, a arte e o patrimônio cultural se torne cada vez
menor.

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Fig 1: Objeto criado por Armando Queiroz em 1997, que integrou sua exposição individual Sermões.
Foto: Armando Queiroz.
A voz suave, o gesto gentil se contrapõe à ironia que muitas vezes percorre
os trabalhos de Armando Queiroz. Atento à realidade política e social de seu país,
preocupado com o patrimônio cultural de sua cidade, o artista desenvolve um pensamento
plural, que não se detém apenas em uma categoria de arte. Apesar de admirar formas
artísticas mais tradicionais como a pintura e o desenho, costuma se expressar através
de objetos, intervenções urbanas, performances e vídeos. Aos quinze anos realizou um
autorretrato e, adulto, se perguntou se naquele desenho já havia uma intenção de arte.
Este mesmo desenho integra o vídeo Retratos Vivos, resultante da Bolsa de Pesquisa do
Instituto de Artes do Pará (IAP), com a qual foi contemplado em 2007.
Para Queiroz (2008), “arte é vida, fundamentalmente”1, considera que o artista
compreende realidades e as devolve em trabalho artístico. O autorretrato é apenas
um exemplo de um olhar sobre si mesmo, que se inscreveu na memória e encontra-se
vinculado à própria história de vida de quem o concebeu. Anos depois, incorporado a
outra obra, o desenho ganha novo significado, sem perder os traços do momento vivido,
registrado no papel.
A trajetória artística de Armando Queiroz tem início em 1993, quando sua obra
é selecionada no II Salão Paraense de Arte Contemporânea (SPAC). Trata-se de uma
espécie de oratório de madeira, adornado com fitas coloridas; no pequeno altar, ao invés
da santa ou santo, encontra-se uma minúscula garrafa dourada de coca-cola. Esta obra
provocou uma reação espontânea do público: de repente alguém amarrou dinheiro na
fita e fez um pedido; em seguida, várias pessoas repetiram o ato, e assim a obra adquiriu
um novo formato e tornou-se interativa, mesmo não sendo esta a intenção do artista.
Esta obra inicial de Queiroz já delineava o começo do caminho artístico voltado
para pequenos objetos, provenientes de armarinhos e casas de bricabraque. Com o
olhar de lince, Armando costuma percorrer as variadas mercadorias e pinçar miudezas
inusitadas para compor a coleção que lhe serve de matéria para a construção do objeto
artístico. A admiração que sente por Marcel Duchamp é perceptível nessas pequenas
obras em que se apropria de objetos prontos (ready-made), produzidos pela indústria, e
os desloca da sua função habitual para ocupar o campo da arte.

1. Este depoimento consta da entrevista concedida para o Projeto Rios de Terras e Água: navegar é preciso, gravado
para o vídeo, em 2008.

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Um dos objetos mais significativos criados por Armando Queiroz, em 1997, para
integrar a sua exposição individual Sermões, em homenagem ao Padre Antonio Vieira, é
um prato, no qual estão impressos quatro escudos da Cruz de Malta e no centro contém
um globo e um garfo (Fig. 1). Para o crítico Paulo Herkenhoff (2005, p. 29) a obra “[...] é o
testemunho das navegações portuguesas pelos quatro cantos do mundo”; considera que
o “[...] garfo abocanha o globo em alusão à voracidade do conquistador europeu sobre
as novas terras”2. Esta obra pode ser vista como um exemplo, entre tantos outros, do
sentido político e histórico que Queiroz pode dotar os seus trabalhos.
A crítica ácida e poética enunciada pelo artista, também está presente mais
adiante quando seus trabalhos crescem em escala. Uma de suas primeiras intervenções
foi realizada em 2002, no campus da Universidade Federal do Pará (UFPA), por ocasião
do Salão das Águas. O trabalho, que já havia sido pensado no workshop coordenado por
Rubens Matuck, teve como referência a praia de Porto Arthur, em Mosqueiro, na qual
observou as construções de currais artesanais de pesca e as associou ao encurralamento
a que o homem hoje se encontra submetido. Tendo como base a forma circular dos
currais de pesca, mandou construir um gradil metálico de portas pantográficas com
cinco metros de diâmetro (Fig. 2) e colocou-o em um lago artificial desativado, existente
na Universidade.

Fig. 2: Curral Urbano, criado para o Salão das Águas, em 2002, e apresentado no espaço livre do campus da
Universidade Federal do Pará. Foto: Armando Queiroz.

2. No Arte Pará 2005 esta obra foi exposta em uma sala de cunho político ao lado da obra O Filho Bastardo, de Adriana
Varejão, que também se refere à conquista colonial.

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Fig. 3: Abaetetuba, cidade ribeirinha que gira em torno do comércio entre as ilhas circunvizinhas e a Feira situada
próximo ao rio. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

O universo ribeirinho associou-se ao universo urbano, e o gradil de ferro teve


como objetivo discutir a vida nas grandes cidades, nas quais as pessoas, com medo da
violência, encurralam-se com grades e portas fechadas “como peixes em um curral”. Mais
adiante, Armando (2005) alerta que esta obra “[...] não deve ser compreendida apenas
como uma limitação física, mas como a impossibilidade de vivenciar, em sua plenitude,
uma realidade maior, que se confunde com a própria busca de nossa identidade” 3.
A crítica à proteção claustrofóbica expande-se ao mundo veloz que reduz o
tempo e pouco permite espaço para a contemplação, ato tão comum ao ribeirinho
acostumado à imensidão do rio, ao horizonte largo que permite a ilusão de um tempo
dilatado, em que o olhar se perde e a sensação é que a vida se torna mais longa. Armando
percebe a realidade das grandes cidades e a outra experimentada pelo ribeirinho, que
cada vez mais vê se alterar a paisagem e os atos corriqueiros.
A aguçada percepção, a atenção dedicada às diferentes realidades talvez tenha
conduzido o artista a uma aproximação afetiva com Abaetetuba, cidade ribeirinha, próxima
a Belém. Logo na entrada, quando se avista o portal, lê-se a mensagem que define o perfil
da pequena cidade: “Abaetetuba capital mundial do artesanato de miriti”. Trata-se de um
lugar aparentemente sem grandes atrativos, que no passado foi famoso pelos alambiques,
engenhos de cachaça e hoje possui estaleiros que dão formas aos coloridos barcos que
percorrem os inúmeros rios da Amazônia.

3.Armando Queiroz preocupa-se com a memória de sua produção, por isso registra todo o seu processo e classifica-o por
ano, categoria de arte, exposição. Depois o armazena em um CD. Os depoimentos contidos neste parágrafo estão gravados
em um CD, de 24 de junho de 2005, e apresentam-se no item 4, Instalação e Intervenção, Subitem Salão das Águas.

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Nasceu em Abaetetuba João de Jesus Paes Loureiro, poeta, que ocupou
importantes cargos no governo municipal e estadual, contribuindo com o processo
educativo e cultural do Estado. O poeta é, portanto, uma importante testemunha do
que os barcos representam, não somente para Abaetetuba, mas para toda a Amazônia.
Confirma: “[...] um conjunto característico da visualidade amazônica é formada pelos
barcos. É a dança das cores. As embarcações, na região mapeada de rios, assumem as
mais diferentes funções de sobrevivência, transporte e lazer”4 (LOUREIRO, 2000, p. 382).
Não é à toa que os barcos estão na lista dos brinquedos de miriti mais
tradicionais, que não podem faltar, seja durante o Círio, seja durante o Festival de Miriti
– MIRITIFEST, ou na casa dos artesãos, onde se pode encontrar os diferentes tipos de
brinquedos como o soca-soca, os pombinhos, a cobra e o tatu. Zé do Barco, o Jessé, que
vende peixe salgado na Feira da Beira, diferente dos outros artesãos, especializou-se em
um único brinquedo: o barco. O Zé é amigo de Armando Queiroz e foi um dos artesãos
que o ajudou em suas criações com o miriti.

Fig. 4: Os brinquedos de miriti vendidos na girândola por ocasião do Círio ou do Festival do Miriti.
Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

4. João de Jesus Paes Loureiro, além de ter sido Secretário de Educação do Município e Secretário de Cultura do
Estado, foi o criador do Instituto de Artes do Pará (IAP), que vem a ser uma das mais importantes instituições que
investem no processo artístico através das Bolsas de Pesquisa. A citação foi retirada de um texto de grande importân-
cia histórica: Fontes do Olhar, que serviu de base para a Fundação Nacional de Arte (FUNARTE), realizar, com Osmar
Pinheiro e Luiz Braga, o mapeamento da “visualidade amazônica”, nos anos 1980.

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O interesse de Queiroz pelo
miriti vem da infância, quando, por
ocasião do Círio de Nazaré,observava
com curiosidade as girândolas
(Fig. 4) repletas dos mais variados
brinquedos. Ficava maravilhado
com a profusão de cores, intrigado
com a fragilidade daqueles objetos
com os quais brincava com tanto Fig. 5: Ilha próxima a Abaetetuba, onde se encontra o
cuidado, mas duravam tão pouco. Na miritizeiro. Foto: Armando Queiroz.

verdade, o miriti é macio, facilita o entalhe, mas é muito frágil; provém do miritizeiro,
palmeira encontrada na várzea amazônica, que pode ter várias utilidades. Alguns artesãos
consideram-na abençoada, pois dela aproveita-se tudo, do fruto pode-se fazer mingau,
suco, creme, doce e até bronzeador. Da flor produz-se o licor, da folha constrói-se o
chapéu e do talo criam-se os brinquedos e muitos outros produtos.
A palmeira é encontrada nas ilhas dos arredores (Fig. 5); o fornecedor vende os
blocos que vêm com aproximadamente 100 talos, que já se encontram tratados, mas
necessitam ser secados. O movimento entre as ilhas e Abetetuba é intenso. Grande parte
da vida dos abaetetubenses gira em torno de uma grande feira à beira do rio Maratauíra,
um dos afluentes do rio Tocantins. É intenso o trânsito comercial. Há um posto fluvial
para abastecer as embarcações que também navegam carregadas, além do miriti, de açaí,
pupunha, bacuri e outros produtos.
O cenário da Feira da Beira é constituído pelo vai-e-vem de transeuntes, de
mototaxis e taxiciclistas (Fig.6). Na Feira há milhares de barraquinhas que vendem peixe
e camarão salgado, frutas, rosquinhas, uma variedade de produtos alimentícios, panelas,
instrumentos de trabalho, redes, roupas, enfim, uma infinidade de coisas. Nas lojinhas,
que se confundem no embaralhar de cores, pode-se encontrar também uma série
de produtos e até um Salão de Beleza, que enumera a lista de serviços: corte, luzes,
relaxamento, pintura e hidratação.

Fig. 6: A feira de Abaetetuba,


situada na beira do rio, ponto
de grande concentração de
compra e venda de vários tipos
de produtos, onde circulam
mototaxis, taxiciclistas e um
grande número de pessoas. Foto:
Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

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Fig. 7: Mestre Amadeu, um dos principais artesãos do miriti, vendendo os brinquedos criados por ele com a
colaboração de membros da sua família. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

Bem próximo à Feira, pode-se avistar o Mercado Municipal de Peixe, onde trabalha
o Mestre Amadeu (Fig. 7), que vende peixe, mas tem como grande paixão o brinquedo
de miriti. O título de Mestre adquiriu pela presteza e exímia habilidade com que entalha
o miriti e cria os brinquedos para serem vendidos, principalmente no Círio. Como
presidente da Associação de Artesanato de Brinquedo de Miriti revela que no Círio de
2008 foram vendidas em torno de 38.000 peças, confeccionadas por vários artesãos.

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O brinquedo que considera
mais fácil de fazer é a cobra e o
que mais gosta de criar é o casal de
pombinhos. Conta que começou a se
interessar pelo artesanato de miriti
quando foi acompanhar a mãe para
realizar uma cirurgia em Belém, na
época do Círio. Ao se deparar com
a Praça do Carmo, colorida com
os trabalhos dos artesãos, ficou
Fig. 8: Um dos objetos de grandes proporções, em miriti,
maravilhado e solicitou uma graça a criado em 2003 por Armando Queiroz, em parceria com os
Nossa Senhora de Nazaré: pediu a artesãos. Foto: Armando Queiroz.

ela que lhe desse o dom, a habilidade


do corte e o transformasse em um artesão. Acredita que Nossa Senhora o atendeu.
O Mestre é um dos mais conceituados artesãos de Abaetetuba e trabalhou junto com
Armando Queiroz em vários momentos. Amadeu o considera um amigo, um parceiro,
estes mesmos sentimentos são compartilhados por Armando.5
Observando o transitar do artista por Abaetetuba, a relação que estabelece com
os habitantes e, principalmente, com os artesãos, pode-se ter a dimensão do quanto
Queiroz está envolvido com a cidade e com a cultura do miriti. Apesar do encantamento
pelos brinquedos de Abaetetuba ter nascido na infância, somente em 2001 tem o miriti
como objeto de estudo, explorando-o de forma mais sistemática. Esse entrelaçamento
afetivo e profissional com a cidade e os abaetetubenses intensifica-se em 2002, no
workshop Projetos Tridimensionais I, promovido pelo IAP e coordenado por Rubens
Matuck. Naquela ocasião frequentou os estaleiros de Abaetetuba e se aproximou dos
carpinteiros e artesãos, com os quais desenvolveu basicamente dois insólitos objetos: um
Pinteiro de madeira, onde se torna impossível criar pintos, uma vez que não possui nem
porta e nem fundo e um Gaiolão de miriti, também sem porta (Fig. 8).
Armando busca uma proximidade das diferentes realidades: a sua e a do artesão.
Considera que a artesania é tão importante quanto as artes visuais. Interessa-lhe romper
com os graus de hierarquia criados por algumas convenções socioculturais. O que mais
lhe importa é dialogar de forma participativa, promovendo uma relação de igual para
igual. Esta convivência e amizade com os artesãos foi se fortalecendo pouco a pouco.
Considera-os coautores; por esta razão, em suas obras com o miriti questiona o que vem
a ser autoria. Armando define-se como um propositor, cujos trabalhos são realizados
através de uma autoria compartilhada, na qual predomina o processo de troca de idéias
e de conhecimentos.

5. Este depoimento de Mestre Amadeu foi obtido durante as gravações do vídeo para o Projeto Rios de Terras e Águas:
navegar é preciso, em Abaetetuba, no dia 17 de janeiro de 2009.

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Para Armando Queiroz, Abaetetuba, mesmo sendo uma cidade próxima de
Belém, tem um significado próprio, um perfil diferenciado, conquistado com o miriti.
Compreendendo esses significados culturais que dotam de uma identidade o lugar, quando é
contemplado, em 2003, pela primeira vez, com a Bolsa de Criação Artística do IAP, continua
a trabalhar, paralelamente, junto com os artesãos, os objetos de miriti – e alguns desses
objetos foram concebidos a partir das conversas realizadas nos barracões de Abaetetuba.
Todavia, o projeto Possibilidades do Miriti como elemento plástico contemporâneo, idealizado
em função da Bolsa do IAP, tem como produto final uma exposição que parte não do
objeto de miriti, mas do fruto do miritizeiro, mais precisamente da cor interna do fruto.

Fig. 9: Instalação na Sala dos Espelhos, realizada no Museu Histórico do Estado do Pará, em 2003, como resultado do
Projeto Possibilidades do Miriti como elemento plástico contemporâneo. Foto: Armando Queiroz.

A mostra é dividida em duas salas: a dos Espelhos e a Amarela (Figs. 9 e 10). Nesta
última, o que predomina é a cor de ouro. A luz. A partir desse momento, o artista reverte
o conceito mais tradicional de produto, comumente associado ao miriti, e concentra-se no
que à primeira vista encontra-se invisível, está por dentro do fruto, que é o amarelo. Coloca
em discussão um dado pictórico: a cor; um dado fotográfico: a luz. A instalação realizada
no Museu Histórico do Estado do Pará (MHEP) é acompanhada pelos sons recolhidos das
fabriquetas de miriti, pela película amarela fixada nos vidros. Tem como foco central uma
garrafa de plástico. Dentro, uma lâmpada. Como resultado, o que se vê é o amarelo banhar
a sala, confundir-se com a luz que vem da rua e penetra o ambiente. A solução simples,
desprovida de grandes artifícios, revela-se mágica, provoca “[...] a interrelação entre duas
realidades distintas: o cotidiano da cidade e o espaço museal”6.
6. Quando lhe foi enviado o texto para confirmar alguns dados, Queiroz enviou por e-mail esta explicação datada de
02 de fevereiro de 2009.

30
Na Sala dos Espelhos ficavam
seis módulos revestidos com vidros
espelhados sobre os quais a imagem do
vídeo Anima 2 refletia e se multiplicava,
invadindo a sala, espalhando-se pelos
corpos dos visitantes, pelas paredes,
fragmentando-se no espaço. Eram
imagens das ilhas circunvizinhas de
Fig. 10: Instalação da Sala Amarela, resultante da Bolsa de Abaetetuba, com seus miritizeiros, que
Pesquisa do IAP, realizada em 2003, com garrafa plástica e
filtro amarelo, remetendo à cor interna do fruto de miriti. se misturavam à imagem daquela que
Foto: Armando Queiroz.
Queiroz elege como “a guardiã do
poder transformador da natureza”7.Trata-se de D. Nina Abreu, uma das mais prestigiadas
e criativas artesãs do miriti, que antes adorava criar bonecas de pano, até que o comércio
popular de R$ 1,99 retirou-lhe a possibilidade de subsistência. O miriti então prevaleceu
em sua vida e de forma inventiva rompeu com a tradição do uso exclusivo da pintura,
adicionando tecidos às roupas de alguns bonecos de miriti. Dona Nina também foi
responsável pela criação de um novo objeto que se popularizou: o pato dentro do
paneiro, reproduzindo a forma como são vendidos, antes de transformarem-se no prato
principal do almoço do Círio: o pato no tucupi.
O vídeo e a instalação estreitaram ainda mais os laços de Armando Queiroz
com Abaetetuba e com a cultura do miriti. Dos objetos criados paralelamente, que
vinham sendo feitos, ou idealizados desde 2002, um foi mostrado no IAP, no período da
exposição da Bolsa – o objeto híbrido: GaiolaBarco. O outro, uma espécie de maquete da
cidade de Belém8 (Fig. 11), participou da exposição Amazônia BR, em São Paulo, no Sesc-
Pompéia. Esta maquete, feita em miriti,
que representa o olhar do caboclo
sobre a cidade, o artista a concebeu
como se fosse um grande jogo, uma
espécie de tabuleiro impregnado pelo
olhar de quem vê a cidade através dos
rios.Trata-se de uma visão cabocla. Com
esta obra o artista realiza uma reflexão
sobre a relação entre Belém e as cidades
ribeirinhas, ao mesmo tempo em que
Fig. 11: Maquete da cidade de Belém, idealizada por
privilegia o ponto de vista daquele que Armando Queiroz e realizada em parceria com os
percebe a cidade através das águas e com artesãos de Abaetetuba. Esta obra foi apresentada na
exposição Amazônia BR no Sesc Pompéia, em São Paulo.
suas mãos constrói a Belém imaginária. Foto: Armando Queiroz.

7.Afirmativa de Armando Queiroz que se encontra registrada no CD gravado em 06 de agosto de 2006, no item 6.Anima 2003.
8. Esta maquete também foi exposta em Belém, no Arte Pará 2007.

31
Fig. 12: A Gaiolabarco e os pássaros de miriti em grandes dimensões, apresentados no Festival de L’OH, em Paris,
França, em 2005. Foto: Armando Queiroz.

Fig. 13: Galeria de retratos de cidadãos abaetetubenses, realizada no Festival de L’OH, em Paris, França, em 2005.
Foto: Armando Queiroz.

32
Armando Queiroz, que já expôs em duas cidades da Alemanha, Wiesbaden e
Nürnberg, em 2005 leva os objetos de miriti para a França, durante o Festival de L’Oh,
evento que estava inserido na programação do Ano do Brasil na França. Sem usar
a cor, em parceria com os artesãos, cria pássaros e cobras em grandes dimensões.
Leva, ainda, para a capital francesa, o objeto híbrido GaiolaBarco (Fig.12), vindo das
experiências anteriores. Com esse conjunto de objetos espalhados pelo jardim francês,
o artista entrelaça o elemento contemporâneo com a manifestação proveniente de
uma tradição cultural que integra a identidade amazônica.
Neste mesmo jardim, na fachada do Teatro Maison-Alfort (Fig. 13), Queiroz
afixa a galeria de retratos de cidadãos abaetetubenses, trabalho que originalmente foi
realizado no Mercado Municipal de Carne de Abaetetuba (Fig 14), como resultado da
participação de Queiroz no projeto Tridimensionais II, promovido pelo IAP e coordenado
por Ary Peres, em 2003. Esta intervenção foi criada a partir de uma visita que o artista
fez à residência de um ex-prefeito de Abaetetuba. Lá encontrou uma Galeria de Honra,
representação de notáveis, que, em geral, encontra-se em repartições públicas, e não
em uma residência particular. Por esta razão, Armando estranhou quando entrou na
sala do ex-prefeito e se deparou com a Galeria formada por retratos de ex-políticos,
ou pessoas que ocuparam cargos importantes na cidade.
Ao criar a Galeria de Honra no Mercado, mantendo o mesmo desenho da
Galeria encontrada na casa do ex-prefeito, o artista realizou um deslocamento
contextual, devolveu ao espaço público um tipo de representação que, singularmente,
ocupara o espaço privado. Mas, ao invés de prestigiados políticos, montou a coleção
de notáveis com o cidadão comum ou com figuras ilustres da cultura popular, como
Mestre Amadeu. Transferida para Paris, a Galeria não possui o mesmo significado,
apesar das fisionomias dos retratados e dos brinquedos de miriti comportarem os
traços identitários do lugar de onde vieram.

Fig.14: Trabalho realizado, em


2003, no Mercado Municipal de
Carne de Abaetetuba, que serviu
de referência para a Galeria de
retratos do Festival de L’Oh. Foto:
Armando Queiroz.

33
Este trânsito cultural proposto no Ano do Brasil na França por Armando Queiroz
revela a preocupação com as fronteiras culturais que cada vez mais se diluem; com um
patrimônio que o artista sabe da importância e da necessidade de se preservar. Loureiro
(2000, p. 376), o poeta nascido na “capital mundial do artesanato de miriti”, ao analisar
a transformação cultural da Amazônia, traduz o posicionamento reflexivo de Queiroz:

A questão que aqui se põe não é a da preservação tradicionalista de uma


cultura do passado, mas no que concerne às necessidades da cultura
regional, como expressão de um momento histórico, para manter-se
como processo, experimentando suas trocas simbólicas com outras
culturas, sem mutilações ou deslocamentos, permanecendo respeitada
e integra, no seio de um ethos ético que a constitui.

O miriti é apenas uma das vertentes do conjunto de obras que Armando Queiroz
realiza. Percebe-se, ao longo de sua trajetória, uma diversidade de manifestações, em
algumas delas se sobressai o trânsito entre o popular e o erudito, em outras, o que
prevalece é a subjetividade. Existem também as obras em que as questões patrimoniais e
as da especificidade da arte se evidenciam. Mas, independente da vertente que prepondere,
há um eixo de pensamentos e ações que interligam os diferentes caminhos, provenientes
do envolvimento do artista com a arte, com o patrimônio, com a cidade, com a vida.

34
Perfil de Armando Queiroz

Armando de Queiroz Santos Júnior nasceu em Belém do Pará em


1968 e sua formação artística foi constituindo-se através de leituras,
experimentações, participações em oficinas e seminários. Expõe
desde 1993 e participou de diversas mostras coletivas e individuais
no Brasil e no exterior. Sua produção artística abrange desde objetos
diminutos até obras em grande escala. Desenvolve conceitualmente
seus trabalhos a partir das questões sociais, políticas, patrimoniais e
estabelece relações entre arte e vida. Cria observando o cotidiano
das ruas, apropriando-se de objetos populares de várias procedências
e tem como referência a cidade.Vive e trabalha em Belém.

Exposições Individuais

2003
ANIMA, Museu do Estado do Pará, Belém (PA)

2002
Confluências, Galeria Theodoro Braga, Belém (PA)

2001
Objetos, Galeria Sandra Rezende,Vitória (ES)

1997
Sermões, Pe. Antônio Vieira, Galeria de Arte da UNAMA, Belém (PA)
Projeto Macunaíma, Galeria Macunaíma, Rio de Janeiro (RJ)

1995
Identidade Interior, primeira individual, Galeria Theodoro Braga,
Belém (PA)

Exposições Coletivas

2008
Contiguidades, Museu Histórico do Estado do Pará, Belém (PA)
Obranome II, Museu Nacional do Conjunto Cultural da República,
Brasília (DF)
Poética da Percepção: questões da fenomenologia na arte brasileira, Museu
de Arte Moderna, Rio de Janeiro (RJ)
Arte Pará 2008, artista convidado, Belém (PA)

2007
Exposição de vídeos da série Estudos em vídeoarte Corpo toma Corpo:
o corpo como intermediador entre a vida e a arte, resultado da Bolsa de
Criação Artística do Instituto de Artes do Pará (IAP)
Arte Pará 2007, Belém (PA)

2006
Projeto Fio da Meada, Site Specific no mercado do Ver-o-Peso, 25º Arte
Pará, Belém (PA)
Casarão Fórum Landi, Site specific Belém (PA)
2005
Intervenção urbana no Festival de L’oh! Programação oficial do Ano do Brasil na França Maison-
Alfort, Paris (França)
Rede Emergente, FUNARTE, Rio de Janeiro (RJ)
Projeto Lâmina, Site Specific no Mercado de Carne Bolonha, 24º Arte Pará, Belém (PA)

2004
Salão UniversidArte, Faculdade do Pará (FAP), Belém (PA)
A mão do Lugar, intervenção urbana no bar São Jorge, Belém (PA)

2003
Evidências, promovida pela Kunsthaus de Wiesbaden e Associação dos Artistas Plásticos do Pará
(AAPP),Wiesbaden (Alemanha); como resultado do workshop Projetos Tridimensionais II, promovido
pelo Instituto de Artes do Pará (IAP), Belém (PA)

2002
Exposição de resultados do Workshop Art in Progress, Nürnberg (Alemanha)
Banquete das Orações, como artista convidado para exposição inaugural do Laboratório das Artes,
Espaço Cultural Casa das 11 Janelas, Belém (PA)

2001
Intercâmbio, Galeria Theodoro Braga, Belém (PA)
Exposição de resultados do Workshop Terra dos Rios, Galeria de Arte da UNAMA, Belém (PA)
Artista convidado do Salão de Pequenos Formatos para a itinerância em Curitiba (PR)

2000
Salão Arte Pará Dois Mil, Belém (PA)
IX Salão Municipal de Artes Plásticas (SAMAP), João Pessoa (PB)
26º Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte: O Brasil Amanhã, Museu de Arte da Pampulha, Belo
Horizonte (MG)
Projeto Prima Obra 2000 – FUNARTE, Brasília (DF)
7º Salão Nacional Victor Meirelles, Museu de Arte de Santa Catarina, Florianópolis (SC)
Dezcaminhos – Galeria Fidanza – Museu de Arte Sacra, Belém (PA)

1999
II Workshop UFPA, Campus da Universidade Federal do Pará, Belém (PA)

1998
Artista convidado do Arte Pará 98, Museu do Estado do Pará – MEP (PA)

1997
Coletiva do Projeto Macunaíma, Galeria Macunaíma, Rio de Janeiro (RJ)

1996
II Salão de Pequenos Formatos, Galeria de Arte da UNAMA, Belém (PA)
De longe, de perto: olhares – VII Semana de Cultura Alemã, Galeria Theodoro Braga, Belém (PA)

1994
III Salão Paraense de Arte Contemporânea (SPAC), Belém (PA)
XIII Salão Arte Pará, Belém (PA)

1993
II Salão Paraense de Arte Contemporânea (SPAC), Belém (PA)
XII Salão Arte Pará, Belém (PA)
Prêmios

2009
Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas 2009-2010

2007
Prêmio Aquisitivo, XIII Salão de Pequenos Formatos, Belém (PA)

2006
Prêmio Aquisitivo, XII Salão de Pequenos Formatos, Belém (PA)

2004
Grande Prêmio, I Salão UniversidArte, Faculdade do Pará – FAP, Belém (PA)

2003
Prêmio Especial Graça Landeira, IX Salão de Pequenos Formatos, UNAMA, Belém (PA)

2000
Prêmio Espaço Arte Pará Dois Mil (Operai dell’art e della Vita), promovido pela Fundação Romulo
Maiorana, Belém (PA)

Obras em Acervos
Espaço Cultural Casa das Onze Janelas
Estacon
Galeria Graça Landeira da UNAMA
Fundação Romulo Maiorana
Faculdade do Pará (FAP)
Museu da Universidade Federal do Pará
Dr. Jorge Alex
Michael Arnegger
Milton Kanashiro
Marisa Mokarzel

Atelier
Av. Nazaré 444/152. Belém – Pará – Brasil.
Telefones: (91)3241.7410 / (91)8129.2018
E-mail: queirozarmando@ig.com.br
Título: Ateliê de Costura
Ano: 1997
Técnica: Mista sobre Tela
Dimensões: 1,00 m x 0,75 m
Acervo da artista
“Depois de cortar e modelar, a pintura
de Elieni Tenório é a segunda pele. Essa
roupa, mais que cobrir ou velar, revela
sentidos do corpo. O molde, com suas
linhas e pontilhados, ajusta imagem e
desejo. A roupa seria uma espécie de
arquitetura do ser”.
Paulo Herkenhoff

Elieni Tenório iniciou sua formação artística em 1986, ao participar de um curso


de desenho na Escolinha de Arte do Alixa (pseudônimo do artista Alexandre Silva dos
Santos Filho, também amapaense). Durante muitos anos esse artista e professor do
antigo curso de Educação Artística da Universidade Federal do Pará, hoje denominado
Artes Visuais, manteve a Escolinha, tornando-se responsável, nessa década, pela iniciação
artística de muitos paraenses.
Filha de um funcionário da Guarda Territorial do Amapá e uma costureira, na
adolescência Elieni observava sua mãe trabalhando na máquina de costura e quando
esta concluía o trabalho, a menina ocupava a máquina. No ateliê de costura da mãe
transformava as pernas das calças do uniforme cáqui do pai em saias, blusas e vestidos e
com os retalhos que sobravam de outras costuras criava bonecas. Sua mãe não gostava
que a filha costurasse; não queria que ela se tornasse costureira, talvez porque esta seja
uma profissão que exige muito esforço e sacrifício.
Porém, no curso da Escolinha de Arte, Elieni descobriu sua vocação para a Arte e
nunca mais parou de produzir. A partir dali, começou a experimentar diversas técnicas
e suportes. Nesse processo de experimentação encontrou o universo feminino, e, no
decorrer dos anos, este foi se tornando um tema inesgotável para a artista.
A resistência de sua mãe para que não se tornasse costureira talvez tenha feito
com que buscasse uma outra profissão, não obstante, a cor cáqui do uniforme de seu pai,
o ambiente do ateliê de costura de sua mãe com seus aviamentos, tecidos e instrumentos
de trabalho, e sua consequente habilidade para a costura permanecem presentes em sua
produção artística.
Esse universo tão familiar é ressaltado na tela Ateliê de Costura, na qual é possível
observar os detalhes do vestuário das personagens, o debrum branco num vestido azul,
o rendilhado que evidencia seios e colo noutro vestido, a leveza ou o peso dos tecidos,
e, principalmente, o ruge-ruge do ambiente, onde quase podemos ouvir as conversas
que parecem versar sobre a cor do momento ou o último número da revista de moda.

41
Título: Por Ela
Ano: 2001
Técnica: Pintura sobre tela
Dimensões: 1,00 m x 0,75 m
Acervo da artista

Tons de azul, violeta e verde predominam e se complementam para indicar a


placidez do ambiente. O azul parece reunir quietude, habilidade e beleza, o violeta,
resultado da combinação do azul com o vermelho, inspira dignidade e nobreza, enquanto
o verde, que vem da combinação do azul com o amarelo, reflete a generosidade, a
cooperação e a adaptabilidade das personagens desta cena. Vestidos verdes parecem
afirmar o dito popular: “quem de verde se veste em sua beleza confia”.

42
Na pintura de Elieni Tenório, a figura feminina quase sempre ocupa o centro, às
vezes isolada na geometria de um cubo, círculo ou retângulo, expondo sensualidade na
imponderável janela ou arena espelhada, e, também, quando a cena ganha atmosfera
familiar com álbuns de retratos de recatadas mulheres em seu cotidiano.
O certo é que a artista segue em busca da essência feminina e a revela em cenas
religiosas e profanas, comuns e incomuns. A pintura denominada Por Ela, fez parte da
exposição Nós, soluço que desata realizada em Santarém, município paraense localizado
na região conhecida como Baixo Amazonas, em 2001.
Em Por Ela pode-se observar a figura feminina exposta, numa atitude sensual/
sexual. Metade do seu corpo sai por uma suposta janela e é amparado por cabeças
masculinas, cujos olhos estão encobertos por óculos escuros. Porém, trata-se de uma
janela ou de um portarretratos? Há, nessa pintura, uma justaposição, cujo paradoxo
desmancha as fronteiras entre o imaginário e o mundo real, e, deste modo, coloca em
questão relações entre arte e vida.
No jogo de ambivalência janela/portarretrato proposto pela artista é
necessário que entendamos a arte além da representação do real, e, principalmente,
como a possibilidade de criação de novas e inusitadas realidades.
De frente para o cubo transparente que a contém, um homem com a cabeça
inclinada para baixo, sentado sobre um outro cubo transparente, encontra-se numa
posição enigmática. Seria o marido ou o amante traído? Ou ainda, seria um voyeur que
cansou de observá-la?
Para o jornalista e crítico de Arte, Cláudio de La Roque Leal (2003):
Desde sua mostra “Suburbano Coração” (1998), uma leitura do
sentimento do povo mais simples, do povo do subúrbio, a artista está
cada vez mais interada e interessada nesses sentimentos que afloram
nas prostitutas e nos homens debruçados sobre a mesa de bilhar.
Elieni não abandonou a condição da mulher, ao contrário, questiona
cada vez mais, como se em uma página policial de jornal, por que essas
mulheres são sempre as eternas vítimas? Afirma categoricamente
que se os homens matam por “contrato”, por terras, bebedeira: as
mulheres matam por dor, humilhação. Assim, enquanto os homens
matam desconhecidos; pelos maus-tratos, pelo amor, mulheres matam
seus amantes, suas amigas, seus filhos, como Medeia que por vingança
assassina os dois filhos do homem que ama e que abandonou.
Na tela Pela própria natureza, mais uma vez as personagens têm os olhos encobertos
por óculos escuros. Parecem dizer que nós, espectadores, não precisamos vê-los, mas
senti-los perscrutando nossas intenções, pois, como afirma Didi-Huberman (1998, p. 29):
“O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável, porém,
é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha”.
Pelas mãos de Elieni, os bastidores usados pelas bordadeiras, nessa obra,
transformam-se em lentes/janelas por onde se vê a intimidade da mulher que se multiplica
e assume várias vidas, histórias, como a atriz vivendo seus papéis.

43
Título: Pela própria natureza
Ano: 2002
Técnica: Mista sobre tela com bastidor
Dimensões: 53 cm x 73 cm
Acervo da artista

A transparente pureza do véu de noiva contrasta com a seminudez do corpo


branco, de onde sobressaem detalhes em vermelho: unhas pintadas de verniz, batom em
lábios carnudos, lingerie e pulseira. Tudo isso encerrado por uma fita métrica que serve
de debrum para o quadro e também de faixa para a miss, personagem central, cuja parte
inferior do corpo escapa da lente/bastidor.
O que percebemos na atmosfera desta cena é a heroína contemporânea da
crônica citadina. Longe da “pureza” e passividade da mulher de outrora surge aquela que
impõe uma nova moral sexual. São amantes, prostitutas, mães, mulheres de um tempo
de sentimentos e atitudes livres, que elegem o homem para ser amado e amá-las. As
mulheres da obra de Elieni Tenório nos provocam e indagam: “O que ainda se espera de
nós”?
Da pintura à gravura, a artista continua o percurso reinventando modos de
desvelar o mundo feminino e experimentando técnicas, suportes, na eterna busca de
plasmar o visível e o invisível.
O intrigante objeto que lembra os calendários de parede é composto de cinco
xilogravuras, cujo suporte é folha de jornal. Na gravura intitulada ...o que a folhinha não
marca poderíamos pensar que a artista está falando do pouco tempo que temos hoje em
dia para os prazeres da vida. Bem que poderia ser!

44
Mas, quando a artista fala dessa gravura diz que o título faz referência a uma frase
muito utilizada em determinada época, em que se reportava às pessoas que querem
mostrar às outras que são diferentes do que verdadeiramente são, ou seja, que vivem
de aparências. Para essas pessoas usava-se a seguinte frase: “Fulano só quer ser o que a
folhinha não marca”. Portanto, há nessa imagem uma crítica sutil às falsas aparências, ao
mesmo tempo em que a idéia de calendário nos faz lembrar que, como o tempo, tudo
passa, inclusive a beleza física.
No processo de produção, uma fina camada de entretela é colada sobre a folha de
jornal e sobre ela a imagem é gravada, por meio da técnica de xilogravura. Na cena, em
trajes de banho, as personagens parecem participar de um alegre dia de verão, à beira-
mar ou à borda de uma piscina.

Título: ...o que a folhinha não marca


Ano: 2003
Técnica: Objeto com 5 xilogravuras
Dimensões: 55 cm x 45 cm
Acervo da artista

45
Pode ser também uma cena posada para uma campanha publicitária, uma vez que
na parte inferior da imagem se observa um código de barras, o que pode representar a
venda dos produtos que os modelos estão portando: roupas de banho e óculos escuros.
Entretanto, a imagem pode também estar representando o narcisismo de homens
e mulheres, a venda da beleza, a competição entre meninos e meninas de programa.Todas
essas possibilidades, além de outras, podem ser cogitadas como interpretação dessa
imagem, numa contínua revelação de sentidos.
Da representação figurativa da mulher, Elieni parte para a elaboração de artefatos
relacionados com o seu universo. Nesse momento, quando começa a se desvencilhar da
figuração da forma feminina propriamente dita, se dá conta de que estava falando de si o
tempo todo. É como afirma a curadora Lídia Souza: “A arte é sua catarse, seu começo-
meio de vida. Nela se aglutina o poder do devir, a reverência e a irreverência, a liberdade
de divinizar-se e humanizar-se, sem censura” (SOUZA, 2006, p. 3).
A artista prossegue compondo um singular vestuário. Na fase da série Vestida de
Obsessão outros elementos foram agregados na composição desses objetos, como flores
e debruns feitos em crochê, contudo, na série seguinte, denominada Sobre a Pele, Elieni
já não os utiliza.
A princípio, vale-se dos moldes como suportes. As linhas do molde, instrumento
de trabalho das costureiras, ora se cruzam ora seguem paralelas, um labirinto para os
olhos leigos, não obstante, um mapa do corpo que será vestido para a costureira e uma
cartografia da alma feminina para a artista.
Sobre a folha do molde de revistas de figurino, Elieni esboça as peças, um desenho
minucioso, pelo qual vai projetando cortes, costuras e volumes que serão posteriormente
modelados em tecidos previamente preparados.

Desenho sobre molde Detalhe de processo de criação.


de revista de figurino. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.
Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

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Detalhe de processo de criação. Detalhe de processo de criação.
Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

Tecidos florais utilizados em cortinas e coberturas de sofás recebem um


tratamento especial, goma e pigmento de tom amarronzado. A cor lembra o cáqui do
uniforme de seu pai, faz com que o tecido assuma a aparência de envelhecido, ao mesmo
tempo em que imita a cor da pele humana. A goma favorece a criação das formas,
encorpa o tecido para criar volumes. A artista é incansável nesse processo, constrói e
(des)constrói quantas vezes forem necessárias, até encontrar a cor e a forma ideais para
o que planejou.

Livros/diários da artista.
Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

47
48 Objetos em processo de criação.
Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.
Instalação Sobre a Pele
Ano: 2008
Fotos: Marco Antônio Serrão
Acervo da artista

O curador Paulo Herkenhoff (2006, p. 187) fala desse vestuário que parece
confundir-se com a própria pele:
A pintura de Elieni Tenório se põe como um couro estendido. É uma
panóplia do corpo (ou o corpo mesmo representado), [panóplia =
armadura]. A pintura é pele decorticada como molde da segunda
pele [a roupa]. O corpo fragmentado costura uma totalidade que
identifica hipóteses de vestígio do sujeito.

Nesses objetos, o corpo e a sensualidade da mulher se transfiguram em peças de


vestuário, que não serão vestidos, mas, olhados como Arte. Peças íntimas, ou nem tanto,
moldadas no tecido engomado e envelhecido. A cor do tecido é quase a cor da pele.Tecido
e pele parecem suturados um a outro, onde as fendas propositadamente recortadas
deixam escapar a sensualíssima intenção do desejo, os sentidos mais secretos do corpo.
Cotidianamente ElieniTenório vai compondo seus projetos e tudo é minuciosamente
registrado em diários que são verdadeiros livros de Arte.
Na instalação que a artista criou durante a vigência da bolsa de pesquisa, com
a qual foi premiada pelo Instituto de Artes do Pará (IAP), os objetos ganharam enormes
dimensões. Além disso, os elementos que nas fases anteriores apareciam como coadjuvantes
da obra, agora assumem papéis de protagonistas. Assim acontece com: os manequins de
lojas de roupa, os moldes de figurinos e os bastidores de bordadeiras.

49
Instalação Sobre a Pele
Ano: 2008
Fotos: Marco Antônio Serrão
Acervo da artista

Os moldes de figurinos ora servem de suporte, recebendo desenhos e pinturas,


ora aparecem em primeiro plano, disputando com os manequins de lojas de roupas a
cena principal. A renda, que antes aparecia como detalhe, agora aparece na forma de um
imenso corselet. A instalação ganha ares de
passarela e as peças parecem que a qualquer
momento vão entrar em movimento e
desfilar diante dos espectadores.
Como se saísse de dentro da
parede um busto de manequim chama
a atenção. Aqui o bastidor se torna
aparente, sai do verso, como na obra Pela
própria natureza, e se apresenta como que
formando a cintura de uma imensa saia
estendida.
O desenho no busto lembra um
corpo tatuado. A tatuagem, assim como as
vestes na obra de Elieni Tenório, forma uma
segunda pele que cobre e revela sua linguagem
Instalação Sobre a Pele acerca do corpo e da alma feminina.
Ano: 2008
Fotos: Marco Antônio Serrão
Acervo da artista

50
Instalação Sobre a Pele
Ano: 2008
Fotos: Marco Antônio Serrão
Acervo da artista
51
Perfil de Elieni Tenório

Elieni Tenório Soares Gomes nasceu no Mazagão (AP), em 1954. Sua


formação artística se deve a cursos de extensão, dos quais participou
na Universidade Federal do Pará, no Instituto de Artes do Pará e na
Fundação Curro Velho. Nesta última, a artista se qualificou como
instrutora, e desde então vem ministrando cursos e oficinas de Arte em
diversas instituições. Em 2007 foi premiada com a Bolsa de Pesquisa e
Experimentação Artística do Instituto de Artes do Pará, e em 2008 foi
selecionada pelo programa de apoio à produção artística e intelectual
“Rumos Artes Visuais 2008 – 2009” – Itaú Cultural.

Exposições Individuais

2008
Universo da Mulher. Galeria de Arte do SESC/DOCA, Belém (PA)
Obsessão. Galeria Bellevue-Saal,Wiesbaden – Alemanha

2007
Linhas, Agulhas e Moldes – A arquitetura do ser. Galeria 237 e ESMAC,
Belém (PA)

2006
Objeto do Desejo. Galeria de Arte do SESC, Belém (PA)
Entrelinhas. Espaço Cultural do Banco da Amazônia, Belém (PA)

2005
Pinturas e Gravuras. Galeria de Arte Elf, Belém (PA)
Ponto a Ponto. Galeria Caleidoscópio, Belém (PA)

2004
Vestida de Obsessão. Museu Histórico do Estado do Pará (Sala Manuel
Pastana), Belém (PA)

2003
Mostra de Pinturas (Sob Medidas, Nos Bastidores, Olhar, Reflexos, Espelhos e
Outras Segundas Intenções). Galeria de Arte Elf, Belém (PA)

2002
Por Ela. Belém Vivo/Remix, Belém (PA)
Nos Bastidores da Vida. Galeria de Arte do SESC, Belém (PA)
Essência do Feminino. Galeria de Arte da Sala Vip Valeverde Turismo, Belém
(PA)
Nos Tempos do Apagão: aventuras e desventuras. Galeria de Arte do SESC,
Ananindeua (PA)
Sob Medida. Museu Histórico do Estado do Pará (Sala Manuel Pastana),
Belém (PA)
Corpo. Galeria de Arte do SESC, Ananindeua (PA)

2001
O Silêncio que Evoca. Galeria de Arte do SESC, Araxá, Macapá (AP)
Nós, soluço que desata. Galeria de Arte Tapajós, Santarém (PA)
O Olhar que Plasma. Café Imaginário, Belém (PA)

2000
Reflexos. Galeria de Arte Graça Landeira (UNAMA), Belém (PA)
O Silêncio que Evoca. Galeria Theodoro Braga, CENTUR, Belém (PA)
1999
Espelhos da Alma. Galeria Theodoro Braga, CENTUR, Belém (PA)
Vivências. Espaço Cultural do SESC, Belém (PA)

1998
Suburbano Coração. Museu de Arte CCBEU, Belém (PA)

Exposições Coletivas

2007
XIV Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira, Portugal
1ª Bienal Internacional de Sorocaba, São Paulo (SP)
4ª Bienal de Gravura de Santo André, São Paulo (SP)
16º Encontro de Artes Plásticas de Atibaia (SP)
XXVI Salão Arte Pará. Fundação Rômulo Maiorana, Belém (PA)
2º Salão da Vida. Memorial dos Povos, Belém (PA)
Arraial de Todos os Tempos. Galeria Theodoro Braga – CENTUR, Belém (PA)
Meu Anjo. Espaço Cultural do Banco da Amazônia, Belém (PA)
Minha Visão de Fé. Estação Gourmet, Belém (PA)
Acervo Onze Janelas [Gravuras no Pará]. Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, Belém (PA)

2006
8ª Bienal Naifs do Brasil (Entreculturas).Artista convidada da Mostra Matrizes Populares, Piracicaba (SP)
XII Salão UNAMA de Pequenos Formatos. Galeria de Arte Graça Landeira (UNAMA), Belém (PA)
Metavisão. Galeria Theodoro Braga – CENTUR, Belém (PA)
Sublimes rios, místicas águas. Espaço Cultural Banco da Amazônia, Belém (PA)
Traços e transições revisitadas. Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, Belém (PA)

2005
XI Salão UNAMA de Pequenos Formatos. Galeria de Arte Graça Landeira (UNAMA), Belém (PA)
Salão da Vida. Museu Histórico do Estado do Pará (MHEP), Belém (PA)
Seis Sentidos. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Belém (PA)

2004
X Salão UNAMA de Pequenos Formatos. Galeria de Arte Graça Landeira (UNAMA), Belém (PA)

2003
XII Salão de Artes Plásticas de Atibaia (SP)
XXII Salão Arte Pará. Fundação Rômulo Maiorana, Belém (PA)
Luzes da Amazônia. Palacete Bolonha, Belém (PA)
Carnaval, Estandartes, Alegorias e Endereços. Museu de Arte CCBEU (MABEU), Belém (PA)
Da cor do Sangue. Galeria Municipal de Arte, Belém (PA)
Traços e Transições. Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, Belém (PA)
Contágios.V Encontro Anual da Associação dos Artistas Plásticos do Pará. Museu Histórico do Estado
do Pará. Belém (PA)
Evidências. Kunsthaus,Wiesbaden, Alemanha
Gravura.com. Coletiva de artistas paraenses. Espaço Cultural Banco da Amazônia, Belém (PA)

2002
4º Salão de Arte SESC. Araxá, Macapá (AP)
XXI Salão Arte Pará. Fundação Rômulo Maiorana, Belém (PA)
5 x 4. Espaço Cultural da Lectus, Belém (PA)
Ases de Copas x Damas de Ouro. Espaço Cultural Banco da Amazônia, Belém (PA)
IV Encontro dos Artistas Plásticos do Pará. Museu Histórico do Estado do Pará, Belém (PA)
Aviação. 29º Aniversário da Infraero. Exposição de obras de artistas da Associação dos Artistas Plásticos
do Pará (APPA). Aeroporto Internacional de Belém. Infraero e APPA. Belém (PA)
Apagão: luzes e travas. Museu de Arte CCBEU (MABEU), Belém (PA)
2001
8º Salão de Artes Cidade de Itajaí (SC)
XIII Salão de Artes Plásticas, Praia Grande (SP)
2º Salão de Artes Plásticas Jaguariaíva (PR)
33º Salão de Arte Contemporâneo de Piracicaba (SP)
X SAMAP - Salão Municipal de Artes Plásticas, João Pessoa (PB)
Arte Verão. Galeria Debret, Belém (PA)
Intercâmbio. Galeria Theodoro Braga (CENTUR), Belém (PA)
Ver Belém II. Galeria de Arte Debret, Belém (PA)
Todos Nós. Galeria Theodoro Braga (CENTUR), Belém (PA)

2000
IX SAMAP - Salão Municipal de Artes Plásticas, João Pessoa (PB)
VI Salão UNAMA de Pequenos Formatos. Galeria de Arte Graça Landeira (UNAMA), Belém (PA)
1º Salão de Artes Plásticas de Pato Branco (PR)
XXV Salão de Artes Plásticas de Jacarezinho (PR)
XIX Salão Arte Pará. Fundação Rômulo Maiorana, Belém (PA)
32º Salão de Arte Contemporâneo de Piracicaba (SP)
Dezcaminhos. Projeto Dezigual. Galeria Fidanza, Belém (PA)
Circuito Visual Coleção de Artes Visuais do MEP. Museu do Estado do Pará (MEP), Belém (PA)
Movimento Contemporâneo no Salão Tannewald, Caxias do Sul (RS)
Projeto Prima Obra 2000. Galeria da Funarte, Brasília (DF)
Movimento Contemporâneo Centro Municipal de Cultura do Balneário Camboriú (SC)
Novos Contemporâneos. Galeria do Centro Cultural de Santa Catarina, São Paulo (SP)
Intimação. Museu Judiciário do Pará, Belém (PA)
Entremeio. III Encontro da APPA. Museu de Arte de Belém (MABE), Belém (PA)
Arte no Goeldi. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém (PA)
Ver Belém. Galeria de Arte Debret, Belém (PA)

1999
XVIII Salão Arte Pará. Fundação Rômulo Maiorana, Belém (PA)
31º Salão de Arte Contemporânea de Piracicaba (SP)
I Salão Internacional de Minigravura.Vitória (ES)
Mapeando poéticas – confirmação revelação de talentos. Galeria Municipal de Arte. Belém (PA)
Brasil Quinhentos Anos de Arte. Fundação Cultural Brasil/Portugal. São Paulo (SP)
Contemporaneidade Alemã/Brasileira. Fundação Cultural de Blumenau; Museu de Arte de Joinville e
Museu de Itajaí (SC)
Na Passagem da Corda. II Encontro da APPA, Museu de Arte de Belém, Belém (PA)
29ª Coletiva do Centro Cultural Tao Sigulda, São Paulo (SP)

1998
IV Salão UNAMA de Pequenos Formatos. Galeria de Arte Graça Landeira da UNAMA, Belém (PA)
IV Salão de Arte. Museu Naval da Amazônia, Belém (PA)
Mapeando Poéticas - Confirmações Revelação de Talentos. Galeria Municipal de Arte, Belém (PA)
Marcando Trilhas – Xilogravura. Galeria Municipal de Arte, Belém (PA)
V Mostra de Arte da AAEPA. Museu da UFPa, Belém (PA)
Círio: Caminhos da Fé. Museu Histórico do Estado do Pará (MHEP), Belém (PA)
Prêmios e Distinções

2006
XXV Salão Arte Pará. Fundação Rômulo Maiorana, Belém (PA). 2º Grande Prêmio
6º Salão de Arte SESC. Araxá – Macapá (AP). Prêmio Incentivo

2005
XXIV Salão Arte Pará. Fundação Romulo Maiorana, Belém (PA). Prêmio Aquisição

2004
XXIII Salão Arte Pará. Fundação Romulo Maiorana, Belém (PA). Prêmio Aquisição

2002
XV Salão de Artes Plásticas “Francisco Cimino”. Amparo (SP). Menção Honrosa

2001
VII Salão Unama de Pequenos Formatos, Belém (PA). Aquisição

2000
XIV Salão de Artes Plásticas “Francisco Ciniro”. Amparo (SP). Prêmio de Bronze

1999
V Salão Unama de Pequenos Formatos. Belém (PA). Aquisição
7º Salão de Arte Cidade de Itajaí (SC). 3º Lugar
II Salão de Artes Plásticas Volkswagen Clube. São Bernardo do Campo (SP), Prêmio Especial e Medalha
de Ouro
V Salão de Arte Museu Naval da Amazônia. Belém (PA). Prêmio Medalha de Prata

1998
Concurso Pintura Mural. SEMEC – CEAL e FUMBEL, Belém (PA). 1º Lugar
II Salão de Artes Plásticas da Base Aérea de Belém. Belém (PA). Prêmio Aquisição

1997
VI Salão de Arte “Primeiros Passos”. Museu de Arte CCBEU, Belém (PA) – 1º Lugar
I Salão de Artes Plásticas da Base Aérea de Belém, Belém (PA). Medalha de Ouro

Obras em Acervos
Museu Histórico do Estado do Pará (MHEP), Belém (PA)
Museu de Arte de Belém (MABE), Belém (PA)
Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA), Belém (PA)
Museu de Arte CCBEU (MABEU), Belém (PA)
Museu de Arte Contemporânea da Bienal de Vila Nova de Cerveira, Portugal
Espaço Cultural Banco da Amazônia, Belém (PA)
Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, Belém (PA)
Secretaria de Estado de Cultura de Wiesbaden, Alemanha
Universidade da Amazônia – Casa da Memória, Belém (PA)
Pinacoteca Municipal de Atibaia (SP)
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura – Fortaleza – CE
Fundação Rômulo Maiorana, Belém (PA)
Instituto de Artes do Pará, Belém (PA)
Galeria Elf (Gileno Chaves), Belém (PA)
Estacon (Lutfala Bitar), Belém (PA)

Atelier
Residencial Ipuan, Rua A, nº 38. Marambaia. CEP: 66.615-760. Belém – Pará – Brasil.
Telefones: (91)3231.5515 / (91)8142.8502
E-mail: elienitenorio@yahoo.com.br
Fig 1: O cotidiano do bairro do Guamá, com o comércio informal e o vai e vem de pessoas.
Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.
Jocatos criou seu nome artístico a partir da junção das primeiras sílabas de
seu nome de nascimento: João Carlos Torres da Silva, sendo que o último sobrenome
cedeu apenas a sua letra inicial. O inquieto imaginário do artista o acompanha nos atos
cotidianos, na casa de dois andares repleta de objetos. No térreo, uma mesa sempre
posta, cuidadosamente arrumada, à espera de convidados ou organizada para alguma
celebração, talvez a da própria vida. A casa em que mora foi por ele projetada é herança
de um bairro no qual sempre habitou. Lugar onde se encontram as recordações da
infância, os amigos, feiras, prédios e ruas que conhece em detalhes, tem afeição, constitui
o universo que o identifica. Na concepção de Garcia Canclini (2000, p. 190):

Ter uma identidade seria, antes de tudo, ter um país, uma cidade ou
um bairro, uma entidade em que tudo que é compartilhado pelos que
habitam esse lugar se tomasse idêntico ou intercambiável. Nesses
territórios a identidade é posta em cena, celebrada nas festas e
dramatizadas também nos rituais cotidianos1.

Definição muito apropriada a Jocatos que constrói a sua identidade artística


a partir de um bairro no qual deposita suas lembranças, compartilha com os outros
moradores: sentimentos, idéias, afetos. Com eles, celebra suas conquistas e alegrias, chora
suas tristezas. Há, nesse convívio, um intercâmbio de conhecimentos, de ações. Nessa área
urbana, Jocatos desempenha o papel do amigo artista que contribui com as festividades
da igreja, da escola. Trata-se do lugar identitário de sua obra, do espaço de referência
para o seu processo artístico. E qual é esse bairro que abriga as fontes de inspiração que
norteiam o trabalho do artista? Guamá2, que integra um dos 48 bairros de Belém, cidade
situada na região Norte do Brasil.
Palavra que pertence ao vocabulário indígena, Guamá pode significar “rio que
chove”. Significação muita adequada a esse bairro, localizado em uma cidade constituída
por grande volume de água, proveniente de rios e chuvas. A poética do nome se mistura
à densa população que povoa noites e dias de intenso movimento e se deixa revelar pela
desigualdade social, presente em um bairro economicamente desfavorecido.

1. Esta concepção de Nestor Garcia Canclini, relativa à identidade, encaixa-se perfeitamente a Jocatos, descreve a
profunda relação que o artista tem com o seu país, com sua cidade, com o seu bairro.
2. Este bairro encontra-se organizado no 8º Distrito Administrativo de Belém, juntamente com o Jurunas, Cremação,
Canudos, Terra Firme e Condor.

59
Para Jocatos, trata-se de um bairro que não dorme. No burburinho da noite já
brilhou a Estrela do Norte, gafieira muito frequentada e que recebeu inúmeros casais de
dançarinos que talvez também tenham exibido seus passos nos salões do Clube Onze
Bandeirinhas. Durante a noite, bem mais cedo, o artista diz ser possível avistar a lamparina
anunciando o vendedor de pamonhas e de cascalho. Seja noite, seja dia, os contrastes
sobressaem-se. O cotidiano, aparentemente impregnado de hábitos interioranos, divide
espaço com os traços da globalização.
Na diversidade cultural, no entanto, predomina o universo da cultura popular,
as cores fortes inscritas no trânsito caótico de informações e no vai-e-vem (Fig.1)
constante, que preenche de dinamismo comércios e ruas. A poluição sonora e a poluição
visual misturam-se ao cheiro bom das ervas vendidas na Feira do Guamá. Movimentam-
se, residem no bairro, famílias vindas de outras cidades brasileiras, principalmente do
Maranhão, que convivem com aquelas que ali nasceram, e juntas passam a construir a
história do lugar. Essas imagens acompanham o dia-a-dia do artista que enuncia:

Da minha sacada observo e registro com o olhar, com o corpo todo,


o cotidiano que me permite experimentar sentidos, idéias, emoções e
intenções, provocando minha percepção estética com a qual procuro
desenvolver, no meio em que vivo, um olhar inquiridor, cuidadoso e
criativo [...]3.

Fig 2: O som que percorre o bairro, preenche com a diversidade sonora os vários recantos do Guamá. Foto: Miguel
Chikaoka/Kamara Kó.

3. Esta afirmativa encontra-se entre os materiais cedidos pelo artista. Trata-se de um documento intitulado Trajetórias,
composto de imagens e textos organizados por Jocatos.

60
O olhar esmerado capta as cenas, que,
retidas na retina, são devolvidas em forma de
arte. Jocatos (Fig.3) é um artista multifacetado,
cria instalações, objetos, realiza intervenções
urbanas, mas é a gravura que lhe fornece
um pensamento norteador dos múltiplos
segmentos da prática artística. O processo
criativo, seja qual for, traz o princípio da
gravura, técnica empregada por grandes
artistas como Albert Dürer, Rembrandt e
Francisco Goya. No Brasil torna-se popular
com as ilustrações da literatura de cordel e
ganha destaque no meio artístico com Lasar
Segall, Oswaldo Goeldi e Lívio Abramo.
No universo da arte, Jocatos,
primeiramente, dedica-se à xilogravura e
à gravura em metal, com uso de matrizes
tradicionais e impressão sobre papel. As feiras
Fig 3: Jocatos em seu ateliê, durante seu processo de
e mercados do bairro fornecem o material criação. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.
temático. A tacacazeira é uma das figuras
emblemáticas que o artista, conhecendo muito bem o seu ofício, registra com singeleza e apuro
técnico.Trata-se de uma série de personagens percebidos no cotidiano, construídos com suaves
linhas, traçadas com ponta-seca, com cortes de goiva, que dão forma às delicadas histórias.

Fig 4: Panorâmica do ateliê do artista com os inúmeros instrumentos. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

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As experimentações, contudo, logo surgem e o ato de gravar perde a tradição da
multiplicidade para dar lugar a gravura híbrida ou única, na qual a matriz pode ser a própria
obra. Emergem como tema, nesse momento, as cartografias, os acidentes geográficos,
mas, desta vez, o que fica demarcado é o lugar, o homem se ausenta da imagem. Os rios
transformam-se em símbolos cartográficos, armazenados em caixas de madeira como se
fossem jóias (Fig. 5), mapas antigos, abstrações. No entanto, composto por material pouco
nobre, o suporte onde o artista crava a imagem é peculiar, tem sua função alterada. A
lata de sardinha, utilizada pelo artista, já não serve para acondicionar pequenos peixes,
foi transportada para o campo artístico. Transformou-se em gravura-objeto, tornando-se
única, revertendo o processo da reprodutibilidade.
Os estabelecimentos de vendas, a feira e os mercados são importantes fontes
fornecedoras dos suportes não usuais que o artista utiliza em seu processo artístico. Não
apenas as latas de sardinha integram o espaço da arte, mas também as latas de goiabada e
margarina, que Jocatos recorta, dobra, crava as ferramentas, perfura transformando-as ora
no que denomina de gravura-objeto, ora em escultura. As latas emprestam suas cores e
estampas, para logo depois serem modificadas, ganharem texturas e diferentes formas.
Mesmo dedicando-se às experimentações, o artista segue realizando a gravura
tradicional e nos novos trabalhos permanecem os vestígios do gravurista, neles, distingue-
se o princípio artístico que questiona a reprodução e repensa o conceito de gravura. A
inquietação conduz Jocatos à tridimensionalidade. Mas, as latas não são o único suporte
advindo da indústria que o artista se apropria. As imagens também podem ser gravadas
em caixas de papelão, que talvez tenham armazenado a própria lata de sardinha ou outro
produto proveniente de uma indústria qualquer.

Fig 5: Gravuras guardadas em caixas, como se fossem jóias. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

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Fig 6: Made in Gravura, instalação de 2004, formada com caixas de papelão. Foto: Jocatos.

As pequenas gravuras, compostas por mapas, desenhos quase abstratos, transferem-


se para o papelão e, como se fossem um Ex-líbris, passam a dialogar com sinais, palavras e
números que se encontram impressos na caixa, identificando o teor frágil do produto, ou o
provável dono da mercadoria. Sobre o papelão, ainda se percebe os rastros de lacre, resina
que sinaliza aquilo que não pode ser violado. Neste contexto de infindáveis interpretações,
a instalação firma-se em sua complexidade, mesmo que constituída por material usado e
perecível, por caixas sujeitas ao desmanche ou a novas combinações. Realizadas em 2004,
empilhadas lado a lado, umas sobre as outras, as caixas (Fig. 6) ocuparam o espaço da
instalação e receberam o nome de Made in Gravura. Na verdade, essas caixas foram
recombinadas e apresentadas de várias formas em distintos lugares.
Antes, em 2000 o artista havia realizado, em seu próprio bairro, com a participação
da comunidade, uma intervenção artística que denominou de Fé (Fig.7). A intervenção
ocorreu em frente ao Grupo Escolar Estadual Frei Daniel. O artista utilizou 360 latas de
manteiga Nossa Senhora de Nazaré dispostas em forma de procissão religiosa. Mais tarde,
essas latas estarão presentes em diversas obras e a imagem nelas impressa nos remete à
procissão que agrega milhares de devotos. Em Belém, todos os anos, no segundo domingo
do mês de outubro, fiéis aglomeram-se e diluem-se na multidão que acompanha o Círio
de Nossa Senhora de Nazaré, a maior manifestação religiosa do Pará.

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Fig 7: Intervenção realizada em frente ao Grupo Escolar Estadual Frei Daniel, no Guamá. Com 360 latas de manteiga
Nossa Senhora de Nazaré, em 2000. Foto: Jocatos.

O Círio, que significa imensas velas de cera, tem origem em Portugal e está
relacionado a uma pequena aldeia de pescadores e ao fidalgo D. Fuas Roupinho, um dos
auxiliares do rei D. Afonso Henriques, que Nossa Senhora de Nazaré salvou de cair no
abismo. Em Belém, integra uma lenda muito semelhante a outras de cunho religioso:
remete à imagem de Nossa Senhora encontrada pelo caboclo Plácido no caminho de
Vigia para Belém, às margens do igarapé Murutucu. Esta imagem que foi levada para casa
por Plácido, mas sempre retornava para o local onde havia sido achada. A notícia se
espalhou e o governador resolveu então levá-la para o palácio do governo, deixando-a
sob a guarda de soldados.Todavia, a imagem retornou ao igarapé. Plácido, então, ali mesmo
ergueu uma ermida para acolher a santa, justamente o local onde atualmente se encontra
a basílica de Nossa Senhora de Nazaré.
Quase um século depois, em 1793, a imagem (Fig. 9) foi trasladada para a capela
do palácio do governo, para no dia seguinte prosseguir em meio à procissão, dando
início ao primeiro Círio de Nossa Senhora de Nazaré, quando os fiéis novamente a
conduziram ao lugar onde foi encontrada pela primeira vez, ou seja, a ermida construída
por Plácido, a atual basílica de Nazaré.
Considerado um bem cultural de natureza imaterial, após 211 anos de realização,
o Círio é declarado patrimônio cultural brasileiro, em 05 de outubro de 2004 (IPHAN,
2004), ficando registrado no Livro das Celebrações, instituído no Decreto Federal Nº.
3.551 (BRASIL, 2000). Este reconhecimento confirma a valorização de um bem que
integra a identidade cultural da cidade, e é celebrado tanto nos atos cotidianos mais
simples, como no almoço servido após a procissão, em que se destacam os pratos típicos
como o pato no tucupi e a maniçoba, até as festas populares que acontecem no
período que antecede e sucede a procissão de domingo.

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Fig 8: Durante o Círio: o mar de promesseiros e devotos de Nossa Senhora de Nazaré. Foto: Miguel Chikaoka/
Kamara Kó.

Algumas latas que Jocatos incorpora aos seus trabalhos estão relacionadas com
a tradição do Círio, com a identidade cultural da cidade. Não é à toa que o artista
elege as latas de manteiga que possuem a imagem da Virgem para construir muitas das
suas instalações e realizar intervenções públicas. Fabricadas em Goiás, essas latas são
encontradas no supermercado do bairro do Guamá. Depois de usadas, também são
utilizadas pela população para outras funções como vender amendoim, cascalho, servir
de depósito para arroz, farinha e carvão, além de funcionarem como vasos, os quais
muitas vezes são usados para vender flores, próximo ao cemitério.
Cortando, perfurando e martelando essas latas, tão caras aos moradores do bairro,
Jocatos cria algo com teor artístico e, neste instante, como foi dito, a lata transforma-se
em gravura. Contudo, sai do plano
para a tridimensionalidade (Fig. 10 e
11), transformando-se em objetos
sacros constituídos por cores
fortes. São candelabros, oratórios,
ícones sagrados que se articulam,
dotando de significado religioso a
instalação. Na mostra Ofertório, que
o artista realiza em 2001, na capela
do Museu Histórico do Estado do
Fig 9: O papel picado em homenagem à passagem de Nossa
Pará (MHEP), o popular e o religioso Senhora de Nazaré em sua Berlinda adornada de flores. Momento
se entrelaçam. mais esperado do Círio. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

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A lata de manteiga Nossa Senhora de Nazaré cede sua imagem a 45 peças formadas
por relicários, ostensórios e castiçais que ocupam o altar e as dependências da capela.
Em relação à exposição, Jocatos (2001) afirma: “[...] o sacro é algo que está presente no
meu trabalho há algum tempo. Participei, por exemplo, do projeto Arte e Paixão, que
era realizado durante a Semana Santa, no Centur. Considero um desafio desenvolver um
trabalho a partir de um tema estabelecido” 4. No Ofertório, o artista trabalha um tema
sacro que estabelece para si mesmo.

Fig 10: Objetos criados por Jocatos com a lata de Fig 11: Oratório para João e Maria, instalação realizada
manteiga que traz a imagem de Nossa Senhora de Naz- na Capela do Museu Histórico do Estado do Pará, 2001.
aré. Foto: Jocatos. Foto: Jocatos.

Jocatos dedica essa exposição a seus pais, que se chamam João e Maria, nomes
que remetem aos personagens bíblicos, fornecendo, assim, um duplo sentido à sua
dedicatória. Mantendo-se fiel ao seu bairro, o artista ultrapassa as fronteiras, não tanto
por ter compartilhado com João e Maria os rituais cotidianos do Guamá, louvado os
santos, participado das festas profanas, mas por colocar em cena a identidade que não se
limita ao bairro, mas estende-se à cidade e a todos os lugares nos quais se sobressaem: a
cultura popular, e a devoção religiosa mesclada às manifestações profanas.
Para Jocatos, o Círio é um momento de reflexão, faz parte da cultura do paraense.
Considera naturais as mudanças no ritual da procissão, que vêm ocorrendo ao longo dos
anos, pois acredita que as manifestações culturais não são estáticas, alteram-se com o tempo.
Em determinadas intervenções a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, impressa
na lata, permanece intacta e há uma associação mais direta com a própria procissão. Ainda
em 2001, Jocatos realiza duas intervenções, uma na calçada do MHEP, outra na Estação
das Docas (Fig. 12). Na primeira, o artista utilizou 1500 latas. Na segunda, com o irônico
título de Made in Maria, realiza a intervenção com 2.680 latas e mais dois containers. As
latas formam um cortejo, e se dirigem ao interior do container onde se encontra um altar.
O tema religioso integra-se à mobilidade e incerteza de um não-lugar. O container é
utilizado para transportar coisas, mercadorias, e não se pode esquecer que na região
portuária transitam navios, barcos e vários tipos de navegações. Trata-se de um lugar

4. Esta afirmativa foi publicada no O Liberal, no caderno Cartaz, em 07 de maio de 2001.

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de ir e vir, de trânsito constante. A expressão internacional “made in” identifica o lugar
de onde procede a mercadoria e simbolicamente refere-se ao universo santo de Maria
como Fátima, em Portugal, Guadalupe, no México, Aparecida, em São Paulo, lugares de fé
e onde se comercializam os produtos religiosos.
No mundo atual, o intenso fluxo de pessoas e coisas tendem a alterar rapidamente
os traços culturais de um lugar. Será que Made in Maria, ainda identifica a manifestação
religiosa que há tantos anos ocorre no Norte do país? A divulgação massiva pelos meios
eletrônicos, a constante e crescente presença de turistas, até que ponto descaracteriza o
ritual de celebração do Círio de Nazaré? As interrogações são muitas e a obra do artista
torna-se aberta, permitindo que questões artísticas, sociais e culturais emerjam.
No Arte Pará de 2006, Jocatos experimenta um novo espaço próximo ao rio,
que também está relacionado com o trânsito incessante de pessoas e mercadorias: o
Ver-o-Peso, um símbolo identitário da cidade, presente nos cartões postais, nas imagens
de pintores e fotógrafos, nas narrativas de escritores, na voz do poeta. O artista cria a
instalação Compartilhar, quando, em parceria com os feirantes, disponibiliza as latas para
ocuparem o Mercado de Ferro, as prateleiras, o ambiente dos vendedores de peixes.
Desta vez, o objeto impregna-se do cheiro forte, do pitiú, que ainda insiste em ficar,
mesmo depois da lavagem do mercado no final do dia.
Um ano antes, em 2005, quando recebe o Grande Prêmio no Arte Pará, o artista
propõe Transumância (Fig.13 e14), uma obra que mais uma vez tangencia o campo
da sociologia e da antropologia. Jocatos, com minúcia, transpõe para o Salão um altar e
o ambiente em que se encontrava na casa de uma moradora do bairro da Sacramenta5:

Fig 12: Intervenção/instalação Made in Maria, realizada na Estação das Docas, em 2001, com a utilização de dois
containers. Foto: Jocatos.

5. Bairro que pertence ao mesmo distrito do Guamá, onde mora Jocatos.

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Dona Orlandina Lima Oliveira. Em contrapartida, o artista instala no lugar do altar de
Dona Orlandina, outro por ele realizado. Desta forma, o que fazia parte do cotidiano
vai para o espaço da arte e o que era arte vai para o espaço do cotidiano. Com esta
ação, Paulo Herkenhoff (2005, p.15) considera que “[...] Jocatos ironiza o virtuosismo
da representação veraz através de minúcia transumância [...]. Sua dupla metáfora é a
procissão do Círio (migração periódica da Santa e dos seus fiéis) e o Arte Pará (montras
como migração periódica da arte)”.
O gesto, a dupla instalação promove a locomoção do próprio visitante que, para
ver a obra em sua completude, precisa transitar pelos dois lugares, a casa de Dona
Orlandina e o Museu Histórico do Estado do Pará, onde se encontra a mostra de arte, a
obra de Jocatos. Há uma preocupação com o lugar religioso e com o lugar da memória.
O hábito simples de homenagear os santos, colocando o altar na entrada da casa, ainda
persiste em alguns bairros. Mas, com a transumância cultural, o rebanho pode migrar
para outra religião, ou tomar outra atitude desprovida de religiosidade. Costumes
antigos podem desaparecer a qualquer momento. Com a recriação do altar no espaço
do museu, o artista permite que o altar de Dona Orlandina migre para a memória, na
qual ficará registrado o altar caseiro, construído para abençoar a família, agradecer as
graças alcançadas.
Atento à vida pulsante do bairro do Guamá, em 2008, quando é contemplado com a
Bolsa do Instituto de Artes do Pará, Jocatos retoma mais claramente a questão da memória.
Com o projeto Profissão, arte e vida: dos pés à cabeça, o artista preocupa-se em mapear as
profissões em extinção, como a de sapateiro e barbeiro. Constrói o seu trabalho a partir

Fig 13: Varanda da casa de Dona Ondina (Dina), onde se encontrava o altar. Foto: Jocatos.

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Fig 14: Reprodução exata da varanda da casa de Dona Orlandina (Dina), Transumância, instalação que foi o Grande
Prêmio do Arte Pará de 2005. Foto: Jocatos.

da parceria firmada com o Sr. Eutaciano (o sapateiro), que exerce sua função há 50 anos, e
Sr. José (o barbeiro), que pratica o seu ofício há 35 anos. Com os dois, negocia os objetos,
troca os instrumentos. O artista adota o seguinte procedimento: fica com material usado,
que traz os vestígios de quem os utilizou, e presenteia os dois profissionais com novos
instrumentos para ficarem no lugar daquele que agora lhe pertence. A idéia é reproduzir o
ambiente de trabalho do sapateiro e barbeiro, uma vez que ambos já pertencem à história
do bairro.
Na instalação criada a partir da reprodução do ambiente de trabalho dos dois
profissionais, pode-se perceber a estética que envolve o arranjo e as combinações dos
objetos cotidianos. São os próprios instrumentos de trabalho que adornam o ambiente
da barbearia e do quiosque onde se conserta sapatos. Jocatos, em sua obra, mistura as
diferentes estéticas, a que vem do sapateiro e do barbeiro com a das gravuras objetos,
realizadas a partir das latas.
Trata-se de um território de vizinhança e afetos, de um local no qual o próprio artista
se encontra, vive o dia a dia. O deslocamento de territórios, provocado pela troca de objetos
com os dois profissionais e com a reconfiguração dos ambientes, expositivo e de trabalho,
o artista reelabora o valor simbólico dos instrumentos, do ato de uso e de troca. Com esse
procedimento, a arte tangencia o campo social e da cultura. Situando-se no espaço micro de
um bairro, o artista extrapola as cercanias urbanas e passa a se localizar na cidade, no país,
inserindo-se no processo local-global.

69
Paes Loureiro, analisando a arte realizada por Jocatos, afirma que “[...] cada obra
adquire singela universalidade e a simbologia própria da arte. Sendo particularíssima em
sua temática, é universalíssima nas técnicas e no modo de construção formal” 6. A arte
proposta por Jocatos em um lugar específico, ganha universalidade, a obra passa a se
constituir com o material e o imaterial de uma pequena comunidade, o simbólico, no
entanto, vai muito além do território que delimita o bairro, o artista inscreve sua obra ao
mesmo tempo na história e no mundo contemporâneo.

6. Esta afirmativa consta do texto digitado de Paes Loureiro denominado João Carlos Torres da Silva: fragmentos do eterno,
entregue pelo artista.

70
Perfil de Jocatos

João Carlos Torres da Silva, Jocatos, nasceu em Belém do Pará em 1953.


Desde a infância mora no Guamá, bairro de onde retira grande parte
de suas referências artísticas. Designer, gravador, pintor, escultor e
educador, em geral utiliza como tema o cotidiano da periferia de Belém,
construindo imagens como a dos vendedores de açaí, picolé, raspa-
raspa, tacacá. Atento ao universo periférico cria gravuras expandidas
em diversos suportes, propondo instalações e ações públicas. Jocatos
vive e trabalha em Belém (PA).

Exposições Individuais

2004
Elf Galeria de arte – Belém (PA)

2003
Dans La grande salle Du CLAE - Marseill e França

2002
Val de Almeida Jr. Galeria de arte – São Paulo (SP)

2001
Capela do Palácio Lauro Sodré – MAP – Belém (PA)
Elf Galeria de Arte- Belém (PA)

2000
Espaço Cultural Yázigi - Vitória (ES)

1999
Galeria de Arte do CCBEU, Belém (PA)

1998
Galeria de Arte do SESC, em Macapá (AP)

1996
Elf Galeria de Arte, Belém (PA)
Galeria de Arte da UNAMA, Belém (PA)

1991
Galeria Theodoro Braga/CENTUR, Belém (PA)

1989
Espaço Cultural Petrobras, Rio de Janeiro (RJ)

1984
Galeria Theodoro Braga/CENTUR, Belém (PA)

Exposições Coletivas

2008
Profissão, Arte Vida: dos pés à cabeça, Fórum Landi, resultado da Bolsa de
Pesquisa do Instituto de Artes do Pará, Belém (PA)
Contigüidades, Museu Histórico do Estado do Pará (MHEP), Belém (PA)

2007
Bienal Náifs do Brasil, Entre Culturas, SESC, Piracicaba (SP)
2006
10º Bienal Nacional de Santos, Santos (SP)

2005
Arte Pará 2005, Belém (PA)
Cadre De L’Année do Brésil em France

2002
VII Bienal Internacional de Grabado, Centro Cultural Caixanova, Caixanova, Espanha

2001
Todos Nós, Associação dos Artistas Plásticos do Pará (AAPP), Galeria Theodoro Braga, Belém (PA)
I Bienal Internacional de Gravura do Douro, Câmara Municipal de Alijó, Alijó, Portugal

2000
I Mostra Internacional de Mini Gravura,Vitória (ES)
IX Salão Municipal de Artes Plásticas (SAMAP), Núcleo de Arte Contemporânea de João Pessoa
(PB)
XIV Encuentro de Mini Expresión - Universidade Panamá

1999
V Salão UNAMA de Pequenos Formatos, Belém (PA)
X Salão Latino-Americano de Artes Plásticas de Santa Maria, Santa Maria (RS)
Salão de Artes Plásticas Amazônia/99, Centro de Arte Chaminé – Manaus (AM)

1998
VIII Salão Latino-Americano de Artes Plásticas, de Santa Maria -, Santa Maria (RS)
30º Salão de Arte Contemporânea de Piracicaba, Piracicaba (SP)

1997
III Salão UNAMA de Pequenos Formatos, Belém (PA)
57º Salão Paranaense, Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Curitiba (PR)

1996
1º Salão de Artes Plásticas do SESC, Macapá (AP)

1994
III Salão Paraense de Arte Contemporânea (SPAC), Belém (PA)

1989
1º Salão Municipal de Agosto, Belém (PA)

1984
III Salão Arte Pará, Belém (PA)

1983
Bienal de São Paulo. Parque do Ibirapuera, São Paulo (SP)

Prêmios

2005
Grande Prêmio, Arte Pará 2005, Belém (PA)

2000
Prêmio Exposição Individual, I Mostra Internacional de Mini Gravura,Vitória (ES)
Grande Prêmio, IX Salão Municipal de Artes Plásticas (SAMAP), do Núcleo de Arte
Contemporânea de João Pessoa (PB)
1999
Prêmio Aquisição,V Salão UNAMA de Pequenos Formatos, Belém (PA)
1º Prêmio, X Salão Latino-Americano de Artes Plásticas de Santa Maria, Santa Maria (RS)
Grande Prêmio. Salão de Artes Plásticas Amazônia/99, Centro de Arte Chaminé, Manaus (AM)

1998
1º Prêmio,VIII Salão Latino-Americano de Artes Plásticas, de Santa Maria, Santa Maria (RS)
2º Prêmio, 30º Salão de Arte Contemporânea de Piracicaba, Piracicaba (SP)
Prêmio Aquisição, Exposição itinerante: Projeto Tempo Passado/Tempo Presente, Belém (PA), Manaus
(AM), Santos (SP), Rio de Janeiro (RJ), Almada, Portugal

1997
Prêmio Aquisição, III Salão UNAMA de Pequenos Formatos, Belém (PA)
2º Prêmio, 57º Salão Paranaense, Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Curitiba (PR)

1996
Grande Prêmio, 1º Salão de Artes Plásticas do SESC/Macapá (AP)

1994
Prêmio Aquisição, III Salão Paraense de Arte Contemporânea, Belém (PA)

1989
1º Prêmio (Gravura), 1º Salão Municipal de Agosto, Belém (PA)

1987
1º Prêmio (Gravura), Artista da capa Museu da UFPA, Belém(PA)

1986
1º Prêmio, Spala Editora, “Patrimônio Cultural da Humanidade, Brasília (DF)
4º Prêmio, III Salão Arte Pará, Belém (PA)

Obras em Acervos
Casa das Artes Plásticas “Miguel Dutra”, Piracicaba (SP)
Centro de Artes Chaminé, Manaus (AM)
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura-“Patrícia Galvão”(MAC), Santos (SP)
Casa da Cultura – Pinacoteca Municipal, Amparo (SP)
Coleccción de Mini Expresión-Patrimônio Cultural de La Universidad de Panamá
Embaixada do Chile – Sede da ONU, Washington (USA)
Fundação Curro Velho, Belém (PA)
Galeria UNAMA Graça Landeira, Belém (PA)
Museu do Estado do Pará (MEP), Belém (PA)
Museu de Arte de Belém (MABE), Belém (PA)
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) (RJ)
Museu de Arte Contemporânea do Paraná(MAC), Curitiba (PR)
Museu de Arte de Santa Catarina (MASC), Florianópolis (SC)
Museu de Artes de Santa Maria (MASM), Santa Maria (RS)
Museu de Arte Brasil-Estados Unidos (MABEU), Belém (PA)
Museu de Ate do Espírito Santo,Vitória (ES)
Museo de Arte Contemporânea - Universidad de Chile (MAC)
Museo de Belas Artes do Paraguai
NAC- Núcleo de Arte Contemporânea, João Pessoa (PB)
Núcleo de Gravura de Alijó - Câmara Municipal de Alijó, Portugal
Núcleo de Gravura de Évora - Museu de Évora, Portugal

Atelier
Trav. Dr. Liberato de Castro, 405. CEP: 66075-420 Belém – Pará – Brasil.
Telefones: (91) 3087.3444 / (91) 9986.6820
E-mail: jocatos@yahoo.com.br
Artejocato.blogspot.com
Ilha do Marajó. Foto: Lila Bemerguy/Kamara Kó.

Ilha do Marajó. Foto: Paula Sampaio/Kamara Kó.


“Ali onde minha memória se construiu, daquele
lugar mágico, híbrido, margeado turvo... surge o
sentido da busca, das idéias, da imaginação. [...]
o Marajó, não é somente um espaço geográfico,
mas um espaço afetivo”.
Lise Lobato

A produção artística de Lise Lobato é diversificada, inclui objetos, pinturas,


poesias, desenhos e instalações. O próprio corpo da artista serve de suporte, pois carrega
consigo a herança cultural deixada por seus antepassados, tatuados na pele, fragmentos
de memórias contidas nas linhas e formas traçadas ao longo de sua vida. Diferentes
formas expressivas que se cruzam e emergem da relação da artista com um lugar, não
apenas físico, como ela mesma se refere, mas principalmente afetivo: o Marajó.
A ilha do Marajó está localizada no estado do Pará, na foz do rio Amazonas.
É conhecida pela criação de búfalo e pela exuberante beleza natural, com muitas praias
e igarapés, além da culinária e artesanato locais. Outro fator que a torna peculiar é a
cerâmica indígena pré-histórica bastante encontrada na região.
Foi ali que Lise viveu parte de sua infância, percorrendo as águas do rio Arari,
dos lagos Arari e Guajarás, andando pelos campos da fazenda Guajarás – propriedade da
família localizada no município de Cachoeira do Arari –, pisando na terra, da qual afloram
pequenos cacos de cerâmica cobertos de linhas e formas, artefatos encontrados
na superfície do sítio arqueológico existente na fazenda, capazes de despertar o
interesse da criança atenta e curiosa que se mantém viva dentro dela até hoje.
Quando pequena, a mãe a levava à escolinha de pintura, em casa gostava de
observar as imagens contidas nos livros que formavam a tão querida biblioteca do pai;

Cachoeira do Arari. Foto: Lise Lobato.

77
fazia desenhos de plantas rasteiras, como a melissa, o junco, o mururé, a margarida, dos
peixes da região, como o pirarucu, o acari, o tamoatá, a traíra, e dos fragmentos cerâmicos
arqueológicos repletos de grafismos e apliques antropomorfos e zoomorfos
que se encontram aflorados da terra.
O lugar a conquistara desde então e ela o tomou para si. Rios, lagos, búfalos,
pássaros, vaqueiros que produziam suas próprias cordas em pequenos teares feitas de
couro de boi, pessoas que vivem ou viveram ali, deixando testemunhos e evidências de
sua existência.

Paisagens da ilha do Marajó. Fotos: Paula Sampaio/Kamara Kó.

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Superfície do sítio arqueológico Guajará. Fotos: Lise Lobato.

No final da década de 1990, Lise ingressa na universidade para cursar Educação


Artística, é quando inicia sua trajetória no campo da arte e este universo cultural e
afetivo passa a emergir em sua produção. O registro gráfico dos signos encontrados na
cerâmica arqueológica do sítio Guajará – grafismos e figuras antropozoomorfas
– aparecem nas pinturas que compuseram sua primeira exposição individual intitulada
Quarta Ocupação.

O sítio arqueológico Guajará, localizado na fazenda Guajarás, no município de Cachoeira


do Arari, ilha do Marajó, está inserido no primeiro momento de exploração em Marajó,
segundo Schaan (1996, p. 49), quando aconteceram escavações arqueológicas,
a partir das últimas décadas do século XIX até as décadas iniciais do século XX,
compreendendo aproximadamente setenta anos de pesquisas arqueológicas pouco
sistemáticas e isoladas.
Betty Meggers e Clifford Evans (apud SCHAAN, 1996, p. 51), em relatório publicado
em 1957, definem a ocupação pré-histórica na ilha do Marajó em cinco fases que
correspondem a novecentos anos de duração, de 400 a 1300 A.D., estando o sítio
Guajará datado da 4ª fase de ocupação, chamada de Fase Marajoara.

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A exposição, realizada em 2001, era composta por 18
telas de dimensões variadas, todas em monocromia branca
com texturas e volumes conseguidos por meio do uso de
tecido, linha, massa corrida, gaze, atadura, gesso, cola e tinta
(LOBATO, 2005, p. 63), materiais que formam relevos e abrem
incisões no branco da tela, assim como as incisões existentes
na cerâmica arqueológica observada pela artista.
Ao olhar ligeiro e desatento de um observador que
não conhece seu percurso, a referência da cerâmica indígena
nas pinturas de Lise pode não estar tão evidente, por isso, é
preciso não buscar o óbvio, como mostra a tela Sem título, de
2002, na qual os grafismos e as formas da cerâmica aparecem
Sem Título
reelaborados como cicatrizes em uma pele, marcas gravadas
Ano: 2002 na memória da artista e reveladas em sua obra.
Técnica: Mista sobre tela
Dimensões: 1,20 x 0,60 m
Acervo da artista

Sem Título
Ano: 2003
Técnica: Mista sobre tela
Dimensões: 50 x 50 cm
Acervo da artista

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Em 2002 realizou mais duas exposições individuais, intituladas Sob o Branco e O
Silêncio do Branco, nas quais a monocromia permanece norteando sua produção. Sobre o
assunto, a curadora de arte Lídia Souza (2002) comenta:

[...] branco de Lise [...] cheio de construções [...] em sendo pensamento


plasmado de reações criadoras complexas, exige atitude reflexiva pela
postura conceitual dos aspectos informacionais e autobiográficos
de alguns trabalhos, mas, que também permitem ponderações sobre
um possível neoconcretismo, tanto pela intencional apropriação
dos efeitos da luz ambiente produzindo sombras que projetam novas
formas a partir dos relevos, quanto pelos aspectos simbólicos da ação/
intuição que remetem a um tempo/espaço vivenciado pela artista [...]
“A presentidade da cor dá-se pela ausência dela mesma” e os vestígios
materiais, per si, elementos construtivos de desenhos originários de
assemblage, corroboram para superar um certo minimalismo
aparente, provocado pela monocromia.

Os volumes e alto-relevos presentes nas telas parecem cada vez mais querer ir
além do bidimensional. Na instalação O que tu guardas?, realizada em 2004, Lise apresenta
52 objetos elaborados a partir de pedaços de tecidos e linha. O branco mantém-se como
a cor imperante em sua produção, mas é possível notar sutis desenhos feitos com finos
traços pretos de signos da cerâmica marajoara que parecem por vezes se esconder, por
vezes se mostrar agregados a estas obras.
Os objetos que compõem essa instalação remontam a uma cena muito conhecida
por Lise Lobato. A artista conta que no Marajó costuma encontrar, vez por outra,
caminhando nos campos da região, áreas que foram escavadas, muitas vezes ilegalmente,
para retirada dos artefatos arqueológicos e que a imagem que se formava na terra algum
tempo após o término dessas escavações é a de buracos com várias camadas internas.
Na pintura Sem título, de 2003, é possível notar o aparecimento desses elementos com
formas ovais, dispostos em diferentes pontos da superfície da tela, que representam a
terra deflorada por pessoas sem formação profissional adequada que agem com o intuito
de saquear vestígios arqueológicos de grande valor para o patrimônio cultural da ilha.

Vale salientar que somente profissionais da arqueologia podem fazer escavações em


sítios arqueológicos e com a autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN, órgão federal que cria condições e fiscaliza para que as leis de proteção
ao patrimônio cultural sejam cumpridas.

A Lei Nº 3.924, de 26 de julho de 1961, protege os monumentos (sítios e coleções)


arqueológicos, históricos ou pré-históricos de qualquer natureza e todos os elementos que
neles se encontram, existentes no território nacional, considerando-os bens patrimoniais
da União. Essa lei diz ainda que será punido de acordo com as leis penais aquele cuja
atitude provoque a destruição ou mutilação deste patrimônio. (BRASIL, 1961)

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Obras, em detalhe e conjunto, que compuseram a instalação O que tu guardas?.
Dimensões: 15 x 10 cm cada. Fotos: Lise Lobato

Percebe-se, então, como os elementos culturais e visuais do lugar vivido


transfiguram-se em códigos do universo da artista. Nas palavras da curadora de arte
Marisa Mokarzel (2001), na produção de Lise:

[...] cheios e pequenos vazios dialogam com o relevo, com o signo


marajoara, trabalhado com sutileza. Suturas, reentrâncias e costuras
parecem bordar os vazios da cerâmica fragmentada, da dor cotidiana,
cerzida com pequenas perdas.

Por outro lado, a forma oval dos objetos que compõem a instalação em muito
remete à possível representação do órgão sexual feminino. Para a artista, inicialmente,
não houve intencionalidade em estabelecer essa semelhança formal, mas, para nós,
fruidores de sua obra, cabe buscar o que não está dito, suscitar questões, refletir sobre
o que está posto diante de nossos sentidos: o que guardam estes objetos? Seria algo
de valor ou talvez um segredo? Nogueira (2004, p. 2) diz que os objetos, por si só, são
contadores de histórias, funcionam como veículo de transmissão cultural e emocional.
A artista apresenta este conjunto de objetos com uma simples pergunta: O que
tu guardas? Seria esta pergunta tão simples assim de responder? O que você responderia?
A idéia de guardar algo remete ao ato de selecionar, de forma consciente ou espontânea,
coisas, objetos, fatos, momentos vividos que possuem relevância na vida de quem os
guarda. A memória do indivíduo é elaborada num processo de escolha das lembranças a
serem guardadas ao longo da vida.

Fazenda Guajarás. Fotos: Lise Lobato

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Lise expõe suas memórias e as ressignifica a partir da relação construída com
artefatos que testemunharam a existência de pessoas que viveram ali há centenas de
anos. Ela diz:“É uma memória arqueológica, uma arqueologia afetiva dos meus fragmentos
com fragmentos de outras vidas” (LOBATO, 2005, p. 75).
Essa busca da artista por escavar memórias acabou levando-a a mais um caminho
dentro de sua produção, foi ao remexer nos armários do pai, que ficavam na fazenda
em Cachoeira do Arari, que encontrou as facas produzidas por ele em vida. Em sua
arqueologia afetiva, Lise finda por se deparar com objetos cotidianos repletos das mais
diversas significações.
Os instrumentos cortantes criados com a função de auxiliar o trabalhador que
executa seu ofício, seja este qual for, ou simplesmente construídos para deleite de quem
os produz, ganham outra dimensão, transfiguram-se em objetos de arte. Nogueira (2004,
p. 2) afirma que: “Só os objetos transcendem a fronteira do tempo e do espaço. Uma
materialidade que é caracterizada pela permanência, mas não pela imobilidade. [...] um
mesmo objeto pode adquirir diversos significados em mais de um contexto ou lugar”. A
artista desloca as facas de seu ambiente de origem e as reapresenta ao mundo.

Instalação As Facas de Meu Pai expostas no Salão Arte Pará. Foto: Lise Lobato

Trata-se da instalação As Facas de Meu Pai composta por cento e seis facas
produzidas ao longo da vida do Sr. Adalberto, pai de Lise. A obra foi selecionada para o
Salão Arte Pará 2005 e, no ano seguinte, fez parte da exposição Manobras Radicais, no
Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo.
Para o curador do Salão Arte Pará neste ano, Paulo Herkenhoff (2005):

Uma leitura apressada [...] poderia conotar este conjunto de facas


à violência. No entanto, a aparência não constitui a essência desta
proposta. A coleção de facas do pai da artista Lise Lobato apresenta
muitas conotações. Entre a bainha e a agudeza da lâmina, a faca é
metáfora da saudade. Estas pertencem à ordem afetiva: a memória do
pai morto é contextualizada por um de seus prazeres. Ele fez estas
facas durante décadas. Cada faca tem sua história. É um documento
antropológico da vida no Marajó.

83
Objetos que compõem a memória individual e familiar da artista servem como
propulsores em seu processo de criação, porém não se reduzem a tal, são geradores de
outros questionamentos, outras interpretações. “Funcionarão estes como uma espécie
de reservatório das nossas memórias individuais ou colectivas? [...] Até que ponto são os
objectos manifestações de nossas identidades?” (NOGUEIRA, 2004, p. 1).
A instalação As Facas de Meu Pai conota a um saber/fazer comum aos moradores
do Marajó, refere-se ao patrimônio intelectual de um grupo social que tem em suas vidas
histórias como a do pai de Lise que, juntas, ajudam a construir a memória e a cultura
deste grupo e a compor suas identidades.
Da apropriação literal das facas pertencentes ao pai utilizadas como verdadeiros
ready-mades, Lise Lobato em sua produção artística, apropria-se também dos
fragmentos de cerâmica visíveis na superfície do sítio arqueológico Guajará, não apenas
em seus desenhos ou pinturas, mas de uma outra maneira, recriando-os.
No ano de 2006 é contemplada com a Bolsa de Pesquisa, Experimentação e
Criação Artística do Instituto de Arte do Pará e realiza a instalação Meu Quintal é do
Mundo formada por um vídeo e mais vinte objetos produzidos em cerâmica branca e
terracota.
Além dos fragmentos arqueológicos com grafismos, outro tipo de vestígio
cerâmico comumente visto pela artista à flor da terra são os apliques com formas
humanas e de animais. O que estes apliques representavam para a sociedade que os
produziu? Que função tinham? Enfeitar as bordas de um vaso ou uma tigela? Homenagear
um deus ou divindade? Decorar uma urna funerária?
É impossível ter certeza, mas a ciência que estuda estes e outros vestígios
deixados pelos seres humanos ao longo de sua existência, a arqueologia, busca entender
como estas pessoas viviam, quais eram seus costumes, como se organizavam em grupo,
como enterravam seus mortos, dentre outros aspectos.
Lise não é uma arqueóloga, ela é uma artista e procura entender esses artefatos
buscando as informações fornecidas pela arqueologia, mas principalmente, partindo da
construção de um olhar poético sobre estes vestígios.

Instalação Meu Quintal é do Mundo. Fotos: Paula Sampaio. Acervo da artista.

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O processo de criação da instalação inicia com o registro, ela fotografou e desenhou
esses apliques antropozoomorfos de dimensões diminutas, em média 4 cm e, em seguida,
os recriou, redimensionando-os para aproximadamente 35 cm de largura cada. Os vinte
objetos foram expostos em uma sala agrupados e dispostos na parede. Ao fundo, foi
projetado o vídeo composto por fotografias do percurso do Rio Arari, passando pelo
lago Arari e pela fazenda Guajarás, até a chegada ao sítio arqueológico Guajará e trechos
de poesias sobre o Marajó escritas pela artista.

Fragmentos de uma arqueologia afetiva nas águas mornas do Arari...


Águas que trouxeram e levaram mãos que moldam
como um naufrágio às avessas no meu quintal
a memória invadida pelo imaginário na superfície da terra preta
é o gesto de levantar as folhas... e ver

Lise Lobato

Proximidades da Fazenda Guajarás. Foto: Lise Lobato. Acervo da artista.

Uma questão que se faz pertinente é a preservação deste sítio arqueológico


e de como estes artefatos visíveis em abundância na superfície do mesmo estão
expostos às intempéries do Marajó, com seus períodos de chuvas e campos alagados
e períodos de seca, suscetíveis à destruição e desaparecimento. Esta tem sido uma das
preocupações de Lise e ela acredita que seu trabalho pode ser uma forma de manter
registrada essa memória, colaborando para a preservação de um patrimônio que não
pertence a ela ou à sua família, mas sim a todos os brasileiros.
O reconhecimento de si própria no patrimônio cultural dos lugares aos quais
pertence, a inquietação de buscar formas de valorização do mesmo e o sentimento
investigativo de sempre tentar conhecer um pouco mais sobre o mundo e as coisas que
estão ao seu redor foi o que a impulsionou ao estreitamento de sua relação com as águas
do Marajó e os seres que nela habitam.

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Foto: Lise Lobato Ilha do Marajó. Foto: Paula Sampaio/Kamara Kó.

Os desenhos de peixes feitos desde a infância agora adquirem um caráter mais


científico, são representações gráficas detalhadas de espécies encontradas nos rios e lagos
da ilha. Mas a representação simbólica destes rios e peixes, que são parte significativa na
alimentação do marajoara, não deixa de se fazer presente em sua obra.
Na exposição As Águas do Arari, realizada no Espaço Cultural Banco da Amazônia,
em 2008, é possível perceber dois momentos: uma parte, segundo a curadora da
exposição Marisa Mokarzel (2008), apresenta um tipo de livro parietal com 14 desenhos
de peixes de espécies diferentes feitos com pastel a óleo sobre papel, um inventário no
qual a divisão entre o desenho científico e o desenho artístico fica embaçada; por outro
lado, linhas aparecem dispostas no espaço da galeria, pintadas nas paredes e no chão,
entremeando palavras e peixes.

Exposição Nas Águas do Arari. Fotos: Lise Lobato.

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Exposição Nas Águas do Arari. Fotos: Lise Lobato.

Em seu percurso, Lise Lobato parte de trabalhos nos quais predominam volumes,
incisões e texturas sobre a tela das pinturas produzidas. Aos poucos, elementos figurativos
vão sendo agregados, figuras que remetem a representações humanas ou de animais na
cerâmica arqueológica tornam-se protagonistas e a artista, num percurso inverso, vai da
representação abstrata até a relação limítrofe entre o desenho científico e o artístico
dos peixes do Marajó, construindo uma poética permeada de memórias.

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Perfil de Lise Lobato

Lise Dacier Lobato nasceu em Belém do Pará em 1963. Artista


plástica e educadora, desenvolve pesquisas sobre aspectos da cultura
amazônica, tendo como referências para sua produção os rios, os
peixes, a cultura e a cerâmica arqueológica da Ilha do Marajó, no
estado do Pará. É formada em Educação Artística com Habilitação em
Desenho pela Universidade da Amazônia. Especialista em Semiótica e
Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará.

Exposições Individuais

2008
Nas Águas do Arari. Espaço Cultural do Banco da Amazônia, Belém
(PA)

2006
Meu Quintal é do Mundo. Espaço Cultural Casa das Onze Janelas,
Belém (PA)

2004
O que Tu Guardas? Galeria Municipal de Arte, Belém (PA)

2002
Sob o Branco. Espaço Cultural do SESC, Belém (PA)
O Silêncio do Branco. Galeria Theodoro Braga, CENTUR, Belém (PA)

2001
Quarta Ocupação. Espaço Cultural do SESC, Belém (PA) 

Exposições Coletivas

2010
Vive – Arte.Villafranca de los Barros, Espanha

2009
Vive – Arte.Villafranca de los Barros, Espanha

Artista convidada da XV Exposição Internacional de Artes Plásticas de


Vendas Novas, Portugal

Salão Arte Pará. Belém (PA)

2008
Artista convidada da XIV Exposição Internacional de Artes Plásticas de
Vendas Novas, Portugal

2007
I Salão Internacional de Artes Plásticas de São João da Madeira, Portugal
2006
Metavisão. Galeria Theodoro Braga, CENTUR, Belém (PA)
Manobras Radicais. Banco do Brasil, São Paulo (SP)

2005
XI Exposição Internacional de Artes Plásticas de Vendas Novas, Portugal
Salão Arte Pará. Belém (PA)

2003
XII Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira, Portugal
XI Salão Municipal de Artes Plásticas de João Pessoa (PB)
I Salão de Arte Rios das Ostras, Rio de Janeiro (RJ)
Da Cor do Sangue. Galeria Municipal de Arte, Belém (PA)

2002
Salão Arte Pará. Belém (PA)
IV Encontro dos Artistas Plásticos do Pará. Museu do Estado do Pará, Belém (PA)

2001
Salão Arte Pará. Belém (PA)
Extremos. Espaço Cultural do Banco da Amazônia, Belém (PA)

Prêmios e Bolsas
2008
Prêmio Banco da Amazônia de Artes Visuais, do Banco da Amazônia, Belém (PA)

2006
Bolsa de Pesquisa, Experimentação e Criação Artística do Instituto de Artes do Pará, Belém (PA)

2004
Prêmio Guaraciaba Nardez – III Bienal de Arte Contemporânea de Mato Grosso, Cuiabá (MT)

2002
Bolsa de Manutenção do Processo de Criação Artística do Instituto de Artes do Pará, Belém (PA)

Obras em Acervos
Espaço Cultural do SESC – PA
Espaço Cultural do Banco da Amazônia – PA
Acervo Museológico – SECULT/SIM – PA
Galeria de Arte Graça Landeira – UNAMA – PA
Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves – PA
Fundação Rios das Ostras de Cultura – RJ
Fundação de Cultura de João Pessoa – FUNJOPE – PB
Banco do Estado do Pará – PA
Museu de Arte de Belém – MABE – PA

Atelier
Av. Almirante Barroso, 71 – bloco A 702. São Brás.
CEP 66090-000 – Belém – Pará – Brasil
E-mail: lobatolise@yahoo.com.br
Fones: (91) 3246 7638 | 9117 2474
Patrimônio arquitetônico de Belém. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.
“Seria esta, enfim, a realidade da fotografia:
uma realidade moldável em sua produção,
fluida em sua recepção, plena de verdades
explícitas (análogas, sua realidade exterior)
e de segredos implícitos (sua história
particular, sua realidade interior), documental,
porém imaginária”.
Boris Kossoy

Mariano Klautau Filho cria cidades. Em suas fotografias ele as inventa. Recorta-as,
monta e desmonta, as reconstrói. Cidades escuras ou repletas de luzes, vazias, silenciosas,
acolhedoras, com habitantes, uns pacatos, solitários, outros atrevidos, despudorados,
vistas de longe, de fora, e também vistas de dentro, do interior das salas e quartos ou
pelas janelas e clarabóias que deixam a luz entrar.
Durante quase três décadas como fotógrafo, Mariano Klautau Filho tem estado
intimamente ligado à fotografia urbana. Ao longo de seu percurso vem construindo
diferentes abordagens sobre o tema e mantém um aspecto marcante em suas obras e
em sua postura como artista e professor: a relação com o patrimônio arquitetônico das
cidades que ele elege como cenário para suas propostas.

Vista aérea da cidade de Belém. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

93
Bairro Cidade Velha. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

Bairro Cidade Velha. Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.

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Belém, capital do estado do Pará, cidade onde nasceu e habita atualmente, foi
o ponto de partida para tais questionamentos. Fundada há quase quatrocentos anos,
com uma população de 1.424.124 habitantes (IBGE, 2008), hoje é a segunda cidade mais
populosa da região Norte.
Desde o começo de sua carreira, iniciada em 1980, Mariano esteve atuante no
cenário da fotografia em Belém. Começou a fotografar com a câmera que ganhou de
presente da mãe. Nesta década, participou dos grupos e movimentos embrionários de
criação da Associação FotoAtiva, integrou diversas exposições e projetos coletivos
e se graduou em Comunicação Social – Jornalismo, pela Universidade Federal do Pará.
Foi na Cidade Velha, bairro que abriga o surgimento da cidade de Belém, onde
Mariano começou a produzir algumas das imagens que anos mais tarde deram origem à
sua primeira exposição individual.
Considerado o centro histórico de Belém, é na Cidade Velha que se encontram
muitos prédios com características do período colonial. Localizam-se ali a primeira rua,
a catedral metropolitana, diversas igrejas, casarões, museus, praças, assim como o Forte
do Presépio, marco da fundação da cidade.
Paisagens da Janela, título da primeira mostra individual do artista realizada
em 1988, era composta por vinte e seis fotografias em preto e branco, imagens que,
semelhantemente às criadas pelo fotógrafo francês Eugène Atget, da cidade de Paris no
início do século XX, mostram ruas desertas e prédios antigos, sem a presença humana,
característica incoerente com a realidade das duas cidades no período fotografado.
Ambos recriam a cidade-objeto de seus interesses à maneira que lhes convém.
Cenas de Belém, que parecem fazer um vôo pela cidade sob céu claro, a luz
intensa do sol, enquadramentos amplos, chegando até o interior das casas com paisagens
vistas em contraluz, imagens repletas de detalhes da arquitetura e da história local que,
para além de seu valor estético, denunciam também a inquietação do artista em relação
a preservação do patrimônio arquitetônico ali representado.
A preocupação de Mariano nascera de suas andanças pelo bairro e das relações
perceptivas que estabelecera com a cidade. Para ele, é possível construir por meio
da percepção diferentes mapas da cidade, a noção de deslocamento no espaço, os
caminhos percorridos no dia-a-dia levam à elaboração de um mapa mental do lugar
vivido. Já as relações estabelecidas ao longo desses percursos podem gerar um outro
mapa, desta vez afetivo. Foi observando esta cidade e entendendo-a como memória para
além de sua concretude que o artista afirmou em entrevista sobre seu trabalho:

A situação da preservação do patrimônio histórico é a pior


possível. A perda da identidade vem como conseqüência das sobras
culturais. A exposição mostra o meu itinerário pelos interiores e
exteriores de Belém. Não é somente um registro documental. É,
antes de tudo, uma experimentação minha na linguagem fotográfica
(KLAUTAU FILHO, 1988).

95
Neste período, segundo Mokarzel (2009, p.4), a produção artística local ainda estava
voltada para a chamada visualidade amazônica que tinha como referência a exuberância
da paisagem natural e ribeirinha da região. Para Mariano é difícil ser um fotógrafo urbano
na Amazônia; sua fotografia trazia um recorte mais intimista da metrópole e passava a
compor junto com o trabalho de outros artistas uma outra Belém, de uma Amazônia
contemporânea e urbana.
No início da década de 1990, quatro fotógrafos, ao se reunirem para formar o
grupo Caixa de Pandora e realizar a primeira de seis exposições subsequentes, decidiram
adotar uma postura diferenciada em relação à imagem fotográfica. Formado por Cláudia
Leão, Flávia Mutran, Mariano Klautau Filho e Orlando Maneschy

[...] o Caixa de Pandora configura-se como uma vertente distinta


do que existia. Os componentes do grupo estavam comprometidos
com um universo fotográfico mais processual, muitas vezes subjetivo,
outras vezes preocupado com questões específicas da imagem, com a
cidade, a memória, o tempo (MOKARZEL, 2009, p. 6).

A obra de Mariano ganhou outras formas no trabalho com o grupo, a contaminação


em sua produção de outras linguagens tornou-se evidente. A fotografia migrou para o
suporte do vídeo, passando a dialogar com a literatura e o cinema, surgiram características
que permaneceram em suas fotografias, mesmo nas imagens produzidas individualmente.
O artista passou a construir narrativas e a criar personagens urbanos inventando um
universo ficcional em sua produção.
Na mostra Fotografia Contemporânea do Pará – Novas Visões, realizada em 1998, no
Rio de Janeiro e Niterói, com curadoria de Ângela Magalhães, Nadja Peregrino e Paulo
Máttar, da qual o grupo Caixa de Pandora participou, Mariano apresentou uma sequência
de fotografias intercalada por um poema do escritor paraense Max Martins intitulado
Coisa Nossa (ver box na página 98) e por uma das imagens em tamanho maior.
Ao observar as fotografias na ordem sequencial posta, é inevitável conduzir a
leitura a uma narrativa, surge um lugar com algumas pessoas, cenas aparecem uma após
a outra diante dos olhos, quadro a quadro perguntas e histórias vão sendo elaboradas.
“O que há por trás do olhar e da pose da personagem deste retrato? O que existe nas

Série Caixa de Pandora. Ano: 1998. Acervo do artista.

96
fachadas das casas, naquela janela semicerrada, [...] no movimento da rua que vejo nesta
vista fotográfica, enfim, que escapa à minha compreensão?” (KOSSOY, 2002, p. 57).
Percebe-se uma cidade repleta de arranha-céus, vista de dentro de um apartamento,
porém, a maneira como esta cidade foi apreendida pelo fotógrafo suscita em quem a vê a
ligeira impressão de estar lá, dentro da sala, observando as luzes da noite. Essa sensação
de ser projetado para o interior das imagens é reforçada quando o homem parcialmente
despido que surge ao lado de uma mulher distraída parece olhar de forma surpresa na
direção de quem observa a foto. Serão eles amantes? O que estão conversando? “[...] a
fotografia esconde dentro de si uma trama, um mistério” (KOSSOY, 2002, p. 57)
Há uma dinâmica nos acontecimentos; primeiro, cenas da cidade observada de
dentro do apartamento e, então, eles aparecem juntos, depois a mulher está sentada
sozinha, novamente os dois reaparecem e, por fim, ela permanece em pé, sozinha,
olhando algo. Na última foto, novamente a cidade agora vista de dentro de um carro em
movimento. Terá ele ido embora?
Não há uma única resposta. Nem mesmo uma única pergunta. Há brechas, espaços
negros deixados entre as cenas que funcionam como lacunas a serem preenchidas.
Pessoas que parecem ter saído de um filme ou de uma história em quadrinhos e estão ali
para viverem personagens de histórias possíveis. Para Boris Kossoy (2002, p. 38),

A realidade da fotografia não corresponde (necessariamente) à verdade


histórica, apenas ao registro expressivo da aparência... A realidade da
fotografia reside nas múltiplas interpretações, nas diferentes leituras
que cada receptor dela faz num dado momento [...]

Fotografando não mais apenas sua cidade natal, mas também outros centros
urbanos pelos quais transitava nos anos de 1990, Mariano continuou a desenvolver sua
produção também fora do grupo Caixa de Pandora. Dez anos depois de Paisagens na
Janela, realizou em São Paulo, cidade onde estava morando na época, em Belém e no ano
seguinte, em Curitiba, sua segunda exposição individual chamada Sincronicidades. Manteve
a opção por trabalhar com a fotografia em preto e branco e apresentou dezesseis
imagens que compunham, segundo ele, um ensaio sobre o ambiente urbano construído
a partir da paisagem de diversas cidades.

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Coisa nossa

Max Martins
Falavas do estranho e da hipnose
dos riscos na toalha

duma enigmática Elegia 2 de Lizst


magnética

E da gôndola fúnebre incendiando-se


que adivinhavas
sob a toalha
sob a música da música das palavras
- nosso hobby
nosso poema

Falavas de mim, eu
a te segurar em mim, minado
pelo inferno da linguagem

Ou a paixão
então
quase indizível na sua glória
tímida

Território de complexas relações sociais, culturais e econômicas, palco das


experiências humanas cotidianas, do fluxo diário de pessoas, histórias, lugares e objetos
que a compõem, a cidade se configura a partir da atuação dos que nela habitam e da forma
que, com ela, se relacionam. Retratar cidades é uma das modalidades mais recorrentes
no campo da fotografia desde o seu surgimento. No entanto, as formas de enxergar e
fotografar a urbe em muito diferem umas das outras. Do olhar contemplativo e documental
das fotografias urbanas realistas dos séculos XIX e XX, chega-se à contemporaneidade
de imagens sensoriais, caracterizadas “[...] pela disposição formal do espaço, das massas e
dos volumes.”, revelando “[...] a apreensão do local de embate do homem na busca de sua
identidade” (CHIODETTO, 2006, p. 2-3)
Além dos diferentes olhares sobre o espaço urbano ao longo da história,
segundo o jornalista e fotógrafo Eder Chiodetto (2008), toda cidade é composta pela
sua concretude e pelo imaginário. O que existe são cidades-memória. Logo, a cidade só
pode existir como uma narrativa, vivida e/ou imaginada. Há uma cidade dentro de cada
um de nós.

98
Sobre a exposição Sincronicidades, o pesquisador e crítico de fotografia Rubens
Fernandes Júnior (1998) afirma:

O fotógrafo paraense Mariano Klautau encarou o desafio de registrar


diferentes cidades, como uma possibilidade de compreensão do
desenho do espaço urbano como algo reconhecível e único. [...]
Mariano fotografa diferentes cidades, em diferentes tempos, para
descobrir que, na constante recriação de seus espaços, as similaridades
emergem como uma força estranha e invisível.

Série Sincronicidades. Ano: 1998. Acervo do artista.

Nos anos 2000, o fotógrafo inicia um extenso projeto intitulado Entre Duas
Memórias, composto de trabalhos de materialidades diferentes e que continua sendo
desenvolvido até hoje. Neste mesmo período surge paralelamente a série fotográfica
Matéria Memória, que marca o começo de sua incursão pelo colorido e o retorno às
questões da memória da cidade. As fotografias, apresentadas em dípticos horizontais
ou verticais, foram produzidas em cor e também em preto e branco, sendo estas
manipuladas em laboratório.
Percebe-se um novo olhar de Mariano sobre as questões tratadas em Paisagens
da Janela, sua primeira exposição, uma retomada da discussão sobre o patrimônio
arquitetônico e a memória da cidade, agora de forma expandida. Se porventura as
fotografias demonstravam resquícios de uma identidade específica das cidades, não
interessa mais identificar qual cidade está sendo retratada. A identidade do espaço
urbano se diluiu, o que resta é o ser urbanita imerso em uma fisionomia comum a todas
as cidades: a do desaparecimento da paisagem.

99
São fotografias que mostram lugares deteriorados pelo tempo, interiores de
casas, paredes que têm sua pintura descascada, portas e janelas fechadas por muros de
tijolo e cimento, personagens que transitam nessas paisagens – interiores e exteriores –
e as observam através de frestas de janelas, de dentro de si mesmas.
Na fotografia a seguir, da série Matéria Memória, um homem aparece ante uma
janela observando algo. A imagem levemente desfocada e intimista revela um momento da
vida privada, o compartimento da casa, talvez um quarto, é visto em perspectiva. Apesar
da semelhança cromática com a foto colocada ao lado, a relação que se estabelece entre
as duas pode ser tida como de extremo contraste. À direita, uma parede com as marcas
que delineiam a existência pretérita de uma casa, o indício da ausência.

Finisterra – Matéria Memória 2. Ano: 2002. Acervo do artista.

Mariano entende a fotografia como “[...] uma possibilidade de experiência com o


desmanche da matéria. Uma possibilidade também da permanência de algo sempre vago
como a memória.” (KLAUTAU FILHO, 2001, p. 6)
A série seguinte à Matéria Memória se chama Hoppe e mantém uma forte conexão
com a série anterior, tornando-se um desdobramento da primeira. O nome faz referência
ao estilo do pintor norte-americano Edward Hopper caracterizado por uma pintura de
realismo exacerbado que representa cenas que tratam do individualismo humano com
acabamento formal semelhante à fotografia.
Em Hoppe, Mariano se apropria de fragmentos de pinturas, vídeos e cenas de
filmes para formar os dípticos e trípticos da série. Constrói narrativas ainda mais
densas, nas quais o caráter ficcional se amplia na obra e os personagens tornam-se
mais marcantes, silenciosos, aparecem, segundo o artista, em um estado de suspensão
momentânea, descolados do tempo real.

100
Finisterra – Hoppe 1. Ano: 2004. Acervo do artista.

Em 2008, vinte anos após a primeira, e dez subsequentes à segunda exposição


individual, Mariano Klautau Filho realiza Finisterra, constituída pelas imagens que compõem
Matéria Memória e Hoppe. Montadas com um encadeamento narrativo, as fotografias
possibilitam diferentes recombinações sequenciais, valorizando o exercício de construção
ficcional do fruidor.

As imagens nasceram como diários visuais, captadas em lugares e


tempos diferentes, porém a partir de uma construção narrativa
proponho confrontar interno e externo, imaginação e matéria. Há uma
paisagem interna ligada a uma memória urbana e espacial. A articulação
de imagens diferentes entre si pretende criar uma tensão que pode
estar no espaço vago entre elas, no lugar que não está visível, mas que
pode insinuar-se ao espectador como imagem mental (KLAUTAU
FILHO, 2009).

Parte integrante do projeto Entre Duas Memórias, a instalação Entre é um dos


trabalhos da obra de Mariano com maior força simbólica. Formada por quatorze fotografias
frontais de portas cegas encontradas em diversos bairros de Belém, foi selecionada para
a Bienal de Havana, em Cuba, apresentada no Salão Arte Pará 2006 e na Bienal do Fim do
Mundo em Ushuaia, na Patagônia argentina.
A instalação Entre foi concebida
inicialmente a partir do convite de
participação do artista na Bienal de
Havana, em 2006. Impossibilitado de
apresentar o trabalho em Cuba, assim
como outros artistas brasileiros, devido
à falta de apoio financeiro, Mariano
expôs quatro imagens em São Paulo,
dentro de um prédio na avenida Prestes
Casarios em Belém com portas cegas.
Maia no mesmo período da bienal, como Foto: Miguel Chikaoka/Kamara Kó.
parte do projeto Território São Paulo,
organizado por treze coletivos paulistas
que também participariam da bienal.

101
Fotografias que compõem a instalação Entre. Acervo do artista.

Instalação Entre apresentada na ocupação Prestes Maia. Foto: Tina Vieira. Acervo do artista.

O lugar onde ocorreu a exposição paralela trata-se de uma imensa ocupação habitada
pelo Movimento dos Sem-Teto do Centro/MSTC. Lá, a instalação do artista paraense
ganhou “[...] um caráter político-social, afinal, a porta cimentada é a própria representação
do impedimento de não poder ter um lugar para morar” (KLAUTAU FILHO, 2007, p. 8).
Neste mesmo ano, Entre foi mostrada no Salão Arte Pará e adquiriu uma outra
dimensão semântica. Instalada no antigo necrotério, localizado no Mercado do Ver-o-Peso,
em Belém, as quatorze fotografias em tamanho quase real suscitaram a discussão acerca
do desenho urbano atual e do descaso com o patrimônio cultural da cidade, estabelecendo
“[...] um contraponto à idealização da paisagem, da cidade aberta que não existe mais, e
que está impedida literalmente de se abrir, ter sua passagem, seu fluxo, seu movimento”
(KLAUTAU FILHO, 2006).

102
Instalação Entre apresentada no antigo necrotério em Belém. Foto: Octávio Cardoso. Acervo do artista.

Instalação Entre apresentada no antigo necrotério em Belém. Foto: Octávio Cardoso. Acervo do artista.

103
Instalação Entre apresentada no presídio em Ushuaia. Foto:Val Sampaio. Acervo do artista.

Na Bienal do Fim do Mundo, mais um desdobramento foi possível ao expor a


instalação ao longo de dois corredores que levavam às celas de um presídio em Ushuaia. Mais
uma vez as portas cegas deixaram de lado a conotação mais explícita relativa ao patrimônio
arquitetônico de Belém, para constituir ligação com outros tipos de aprisionamentos sociais.
É nesse terreno de múltiplas significações que Mariano Klautau Filho firma sua
produção fotográfica, tendo como base as discussões e inquietações sobre memória
e paisagem urbana, construindo uma obra carregada de valor artístico e plena de
questionamentos.

104
Perfil de Mariano Klautau Filho

José Mariano Klautau de Araújo Filho nasceu em Belém, em 1964.


Fotógrafo, pesquisador e produtor cultural, atua em projetos sobre
memória e paisagem urbana. Integra o grupo Caixa de Pandora, com
Cláudia Leão e Orlando Maneschy. É formado em Comunicação
Social pela Universidade Federal do Pará. Mestre em Comunicação
e Semiótica pela PUC de São Paulo. Coordenador do projeto de
publicação e acervo Fotografia Contemporânea Paraense – Panorama
80/90 selecionado pelo programa Petrobras Artes Visuais em 2002.
Professor de fotografia na Universidade da Amazônia nos cursos
de Artes Visuais e Moda. Colaborador da Associação FotoAtiva, em
Belém onde coordena desde 2002 o Colóquio de Fotografia e Imagem,
realizado em parceria com Universidade Federal do Pará e Instituto
de Artes do Pará.

Exposições Individuais

2009
Finisterra. Fotoclub uruguaio, Montevidéu, Uruguai

2008/2009
Finisterra. Sala Valdir Sarubbi, Espaço Cultural Casa das Onze Janelas,
Belém (PA)

2008
Finisterra. Museu Histórico do Estado do Pará, Belém (PA)

1999
Sincronicidades. Museu da Fotografia, Solar do Barão, Curitiba (PR)

1998
Sincronicidades. Museu da Imagem e do Som, São Paulo (SP)
Sincronicidades. Galeria Fidanza, Belém (PA)

1988
Paisagens da Janela. Galeria Ângelus, Belém (PA)

Exposições Coletivas
2009
Ecuatorial. Sala José Merquior, Centro Cultural Brasil, México, Cidade
do México (DF)
Da Gênese Convulsiva. Micasa, São Paulo (SP)
Fotoativa Pará - Cartografias Contemporâneas. SESC Santana, São Paulo
(SP)
Realidades Imprecisas. SESC Pinheiros, São Paulo (SP)

2008
Finisterra_Carta Aérea. Instalação com Val Sampaio – Kunsthaus,
Wiesbaden, Alemanha
II FestFotoPoa. Festival Internacional de Fotografia, Porto Alegre (RS)
2007
Bienal del Fin Del Mundo. Ushuaia, Argentina.

2006
Veracidade. Museu de Arte Moderna, São Paulo (SP)
Salão Arte Pará. Intervenção Pública no Mercado do Ver-o-Peso, Belém (PA)
IX Bienal de Havana. Havana, Cuba
Desidentidad. Mostra de arte brasileira contemporânea, IVAM,Valência, Espanha
Caixa de Pandora. Laboratório das Artes, Casa das Onze Janelas, Belém (PA)

2005
Une Certaine Amazonie.Villes Fragiles, Mediatheque John Lennon, La Courneuve, Paris, França
La Collection Paiva. Théâtre de la photografie et de l’ image, Nice, França

2003
Ponto de Fuga. Área Livre, Galeria Marta Traba, Memorial da América Latina, São Paulo (SP)
Fotografia Contemporânea Paraense - Panorama 80/90. Casa das Onze Janelas, Belém (PA)
Fish Eye.Tactilebosch Project, Cardiff,Wales

2002
Noites Brancas. Sala Manoel Pastana, Museu do Estado do Pará, Belém (PA)

2001
Noites Brancas. Galeria do Museu de Arte Brasil-Estados Unidos, Belém (PA)

2000
Rumos Visuais. Itaú Cultural, São Paulo (SP)
Brasilianas: fotógrafos de Belém do Pará. Centro Português de Fotografia, Porto, Portugal
A Casa de Todos. Projeto Linha Imaginária, Museu Mineiro, Belo Horizonte (MG)

1999
Amazônia: O Olhar sem Fronteiras. Instituto Cultural Brasil-Alemanha, Berlim, Alemanha
Amazônia: O Olhar sem Fronteiras. Instituto Brasileiro-Equatoriano, Quito, Equador

1998
II Bienal Internacional de Fotografia da Cidade de Curitiba. Mostra Brasil, Curitiba (PR)
Fotografia Contemporânea do Pará - Novas Visões. Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ)
Fotografia Contemporânea do Pará - Novas Visões. FUNARTE, Rio de Janeiro (RJ)
Coletiva Fuji. Galeria Fuji, São Paulo (SP)

1997
II Salão de Fotografia do CCBEU. Galeria do CCBEU, Belém (PA)

1996
Fotos Brésil - O Brasil e a fotografia de autor. Espace Culturel Jorge Amado, Paris, França
Espaços Urbanos. Galeria da FUNARTE, Rio de Janeiro (RJ)
Caixa de Pandora. Liceu de Artes e Ofícios, Curitiba (PR)
Caixa de Pandora. Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais, Ouro Preto (MG)
1995
FotoAtiva 10 anos. Galeria da FUNARTE, Rio de Janeiro (RJ)

1994
Caixa de Pandora. Itaú Galeria, Brasília (DF)

1993
Caixa de Pandora. Galeria Theodoro Braga, CENTUR, Belém (PA)

Prêmios e Bolsas

2009
Bolsa Ipiranga de Fotografia, Fundação Ipiranga, Belém (PA)

2007
Grande Prêmio – Salão Arte Pará, Belém (PA)

2001
Grande Prêmio de Fotografia – Salão Arte Pará, Belém (PA)

Obras em Acervos
Fundação Biblioteca Nacional – RJ
Museu de Fotografia da Cidade de Curitiba
Museu do Estado do Pará
Museu de Arte Brasil-Estados Unidos
Coleção Milton Kanashiro
Museu de Arte Moderna de São Paulo
Coleção Joaquim Paiva

Atelier
Travessa Padre Prudêncio 334. Bairro da Campina.
CEP 66019-080 – Belém – Pará – Brasil
E-mail: marianokf@uol.com.br
Fones: (91) 3242 5124 | 8871 9521
Rodovia Transamazônica, Medicilândia (PA), 1994. Acervo: Paula Sampaio.
Paula Sampaio transita tão naturalmente por caminhos cheios de obstáculos, sem
ter ao certo onde vai pousar, que é como se tivesse certeza de um lugar acolhedor,
sempre à sua espera. Ao se aventurar em lugares desconhecidos, parece que a estrada
está entranhada na alma dessa fotógrafa andarilha.
Atualmente, Paula Sampaio é repórter fotográfica do jornal O Liberal, em Belém
(PA), paralelamente trabalha para diversas instituições e órgãos de imprensa como
fotojornalista, e continua desenvolvendo seus projetos de fotografia autoral.
A formação na área de Jornalismo exerce uma forte influência na produção
fotográfica de Paula Sampaio. Não obstante, é inegável que o fato de ter morado na
meninice nas rodovias Transamazônica e Belém-Brasília também influencie esse desejo
de percorrer e fotografar estradas e pessoas.
Um desses projetos autorais é o Antônios e Cândidas têm sonhos de sorte que Paula
Sampaio vem realizando desde 1990, nas rodovias: Transamazônica (BR 230) e Belém-
Brasília (BR 010), por meio do qual documenta as migrações na Amazônia.

A rodovia Transamazônica foi projetada no período do Governo Garrastazu Médici


(1969 – 1974), com a pretensão de ligar o Norte ao restante do Brasil. Hoje, considerada
a terceira maior rodovia do país, nasce com duas estradas paralelas partindo do oceano
atlântico: a BR 230 que começa em Cabedelo (PB) e a BR 232, que começa em Recife
(PE). Estas seguem paralelas até Picos (PI), onde se encontram e seguem para a Amazônia.
O trecho ainda em funcionamento vai até Lábrea (AM). No entanto, a estrada chegou a
ter outra parte aberta no estado do Acre, cerca de 80 km, entre o município de Mâncio
Lima e a comunidade de Boqueirão da Esperança, já na fronteira do Acre com o Peru,
que já não existe. O projeto, inaugurado com uma placa de bronze, numa clareira a 8 km
de Altamira, no estado do Pará, em 09 de outubro de 1970, tinha a intenção de construir
mais de cinco mil quilômetros de estrada, “[...] que cruzaria o País de leste para oeste,
partindo do Atlântico, ligando o Nordeste à Amazônia, desbravando a selva, interligando
os extremos navegáveis dos afluentes ao sul do rio Amazonas e atingindo a fronteira do
Estado do Acre com o Peru, onde as conexões de continuidade levariam até o oceano
Pacífico” (ADONIAS FILHO, 1973, p. 10). Mas, a obra ficou paralisada por mais de trinta
anos e a rodovia reduzida a uma estrada de terra vermelho-amarelada. Seus mais de
um milhão de habitantes vivenciam o desafio de suportar o ciclo anual de seis meses
de poeira e seis meses de lama, sem perder a esperança de desenvolvimento da região.
“Pesquisadores, colonos e representantes de movimentos sociais trabalham hoje juntos,
buscando inventar um futuro sustentável, que supere tanto o dogma de penetração e
integração da selva a qualquer custo, quanto a antiga convicção ambientalista que via na
presença humana profecia de catástrofe e nas estradas pavimentadas o vilão número um
da floresta” (CASTELFRANCHI, 2003).

111
Belém-Brasília, como é conhecida no trecho
que vai de Estreito (MA) a Belém (PA), é a
rodovia federal BR-010 que inicia na cidade
de Brasília (DF), passa pelos estados de
Goiás, Tocantins e Maranhão e termina em
Belém (PA). Mas, oficialmente é denominada
de Bernardo Sayão, em homenagem ao
engenheiro responsável que, não obstante,
não chegou a vê-la pronta, falecendo durante
sua construção, que iniciou no governo de
Juscelino Kubstchek e foi concluída em 1974.
Acervo: Paula Sampaio

Em 1990, a fotógrafa utilizou o mapa brasileiro de um livro didático para demarcar


suas andanças. Ali traçara o destino que já dura quase duas décadas – o de andar por
essas estradas.
Em suas fotografias surgem mulheres e homens que migraram de suas cidades
de origem ou de outros lugares para as localidades que se estendem ao longo dessas
estradas. Assim, vai colhendo as histórias de vida e registrando o cotidiano daqueles que
se aventuraram ao desconhecido em busca de uma vida mais digna, trabalho e moradia.
Mais que pessoas e seus cotidianos, Paula Sampaio captura por meio da lente de
sua máquina sonhos e vidas. Em sua humaníssima capacidade de compreender o outro,
entende que cada ser humano, ao longo da vida, constrói identidades e memórias, que
são recortes de sonhos, histórias de vidas. Portanto, o respeito por essas identidades e
memórias é determinante na sua maneira de conduzir-se por esses caminhos.
A memória coletiva tem
uma função essencial na sociedade,
pois conforme Halbwacs (2004), ela
contribui para a construção do sentido
de pertencimento entre grupos sociais
que acreditam ter um passado comum
e por esse motivo compartilham
memórias. Há, portanto, nessa relação
um sentimento de identificação entre
Documentos escritos e desenhados por moradores das os sujeitos de um grupo e deste com
rodovias. Acervo: Paula Sampaio.
outros grupos, num processo de
construção de identidades culturais.
Assim, Sampaio não tem a pretensão de escrever a história das pessoas, ao
contrário, prefere que elas mesmas a narrem e decidam quais são as imagens e objetos
que devem compor esses registros.

112
A narrativa de Antônio,
morador da rodovia
Tr a n s a m a z ô n i c a ,
recolhida pela fotógrafa
nos dá a dimensão da
relação entre homem
e lugar, o homem em
busca de seu território:
“A testemunha da terra
é a pedra [...] a pedra do
INCRA, ela é acreditada
porque ela é federal”.

Antônio Lopes, 65 anos, maranhense. Medicilândia (PA)


Rodovia Transamazônica (1990). Acervo: Paula Sampaio.

Francisco da Costa, 73 anos, paraense. Morador quilombola da localidade de Abacatal, em Ananindeua (PA), 2004. Narrativa
sobre a Rodovia Belém-Brasília.Acervo: Paula Sampaio.

A narrativa de Francisco da Costa sobre a construção da rodovia Belém-Brasília,


onde trabalhou e morou por algum tempo, coletada por Paula Sampaio quando fez a
documentação fotográfica para o projeto Terra de Negro, é contundente: “Nasci aqui no
Abacatal.Vivia aqui na comunidade, que só agora a gente sabe que é Quilombola. Naquele
tempo ninguém falava disso, a gente vivia isolado aqui dentro. Dessa Belém-Brasília eu sei
por que trabalhei nela. Apareceram aqui uns homens chamando a gente e eu fui. Derrubei
muita mata, ainda no lombo de burro, porque era o único jeito de andar por aqui, fincava
os picos de demarcação. Mas eles não davam nada pra gente, nem carteira assinada a
gente tinha. Aí eu desisti, voltei pra minha rocinha, mesmo, dava mais futuro”.

113
A fotógrafa faculta a voz a quem de direito e deixa que o espectador perceba e
compreenda a maneira como cada fotografado e fotografada vê a si mesmo e a si mesma.
Desta forma, apreende e retrata a visão pessoal de cada um, de cada uma, enfatizando
a interpretação que fazem de si mesmos e de si mesmas, dos fatos e do cotidiano das
localidades onde vivem.
Outro importante trabalho de Paula Sampaio é o ensaio Refúgio, que nasceu de
sua participação no projeto Terra de Negro, parceria entre o Programa Raízes e o Instituto
de Arte do Pará (IAP). Esse programa, cujo objetivo é valorizar e divulgar a cultura de
remanescentes de quilombos no Pará, registrou no período de 2003 a 2006, cerca de
400 grupos nos municípios de: Abaetetuba, Acará, Ananindeua, Baião, Mocajuba, Oeiras
do Pará e Santa Izabel.
De acordo com Rodrigues (2004):

O conceito tradicional de quilombos como reduto de negros fugidos,


não contempla a amplitude da luta, da resistência e das estratégias de
sobrevivência física e cultural encontradas pelas comunidades negras
remanescentes de quilombos no estado do Pará para construir e
reconstruir uma identidade étnica.

Conforme a autora, esse conceito atualmente contempla tanto a formação de


quilombos por escravos fugidos, como também aqueles que se firmaram em fazendas
abandonadas pelos senhores que se viam ameaçados pela criminalização da escravidão, e,
ainda, as terras ocupadas por herança deixada pelos senhores.

Dança Tradicional das mulheres de Bailique, Oeiras do Pará (PA), 2003.


Acervo: Paula Sampaio.

114
Na foto anterior a fotógrafa capturou a forte expressão dos rostos das mulheres,
remanescentes quilombolas, em uma de suas danças tradicionais. Um acessório do
vestuário dessas mulheres sobressai na fotografia – o turbante.
Como traje feminino, o turbante ou torço, denominado “pano-de-cabeça” no
linguajar dos terreiros de candomblé, faz referência direta ao continente africano.
Contudo, inúmeras camadas de significados e índices de procedência permeiam a história
desse acessório que faz parte da indumentária feminina, e também, masculina em algumas
culturas.
O torso pode assumir um caráter utilitário, servindo para apoiar balaios e
tabuleiros, ou, se utilizado na cozinha, para proteger os alimentos da possível queda de
cabelos, e ainda, os próprios cabelos do cheiro dos alimentos e do óleo das frituras.
No entanto, conforme Martini (2007, p. 47): “O turbante africano tampouco tinha
finalidade simplesmente utilitária”. Pesquisando em Griebel (1995 apud MARTINI, 2007,
p. 47), a autora encontra a referência de que a diversidade de usos do turbante servia
como forma de distinção e de identificação entre povos africanos ocidentais e que seu
uso se tornou popular por volta do século XVIII.
Na história do vestuário feminino brasileiro, o uso do turbante, embora muitas
vezes recebendo uma conotação exótica, advinda de interpretações eurocêntricas, faz
parte da formação da tradição da matriz afro-brasileira. Na luta pela legalização da terra
e proteção de seus territórios, os grupos quilombolas mergulham no passado em busca
de suas referências para emergirem no presente em sua resistência cultural. O turbante
é uma dessas referências que serve ao mesmo tempo para identificá-los e diferenciá-los.

Santa Izabel do Pará localiza-se a 38 km


da capital paraense e, segundo estimativa
(IBGE, 2008), sua população atualmente
é de aproximadamente 53.000 habitan-
tes. Seu patrimônio natural constitui-
se principalmente de uma cobertura
vegetal de floresta secundária, ou seja,
aquela que substituiu a floresta primária
que foi desmatada, e se recompôs natu-
ralmente; e o rio Caraparu onde há dois
balneários, Caraparu e Porto de Minas.
Destacam-se como patrimônio imate-
rial: a Festa das Flores, em maio; o Círio
de Nossa Senhora de Conceição de Itá,
no segundo domingo de maio; o Círio
de Santa Izabel, no primeiro domingo de
julho, dentre outros. Duas localidades
desse município são reconhecidas como
territórios quilombolas: Santa Izabel de
Macapazinho e Boa Vista do Itá.
Localidade Santa Izabel de Macapazinho, Santa
Izabel (PA), 2004. Acervo: Paula Sampaio.

115
Fizemos um recorte no ensaio Refúgios para apresentar e aprofundar um pouco
mais a compreensão do trabalho de Paula Sampaio sobre os grupos quilombolas que
registrou. Os municípios escolhidos foram Santa Izabel do Pará e Ananindeua.
Santa Izabel de Macapazinho, ou apenas Macapazinho como é conhecida, ocupa
uma área de 68,7834 hectares, onde vivem 33 famílias. Conforme informações do Instituto
de Terras do Pará (TRECCANI, 2008), o grupo recebeu título da terra em 13 de maio de
2008. Na busca pelo título da terra esses grupos se organizaram e aos poucos retomam,
criam e recriam sua cultura. Boa Vista do Itá é uma área onde atualmente habitam cerca
de 30 famílias.

Localidade Santa Izabel de Macapazinho, Santa Izabel (PA), 2004. Acervo: Paula Sampaio.

Segundo Amândio de Deus Santos e Abílio Santos (apud RODRIGUES, 2004),


Abacatal localiza-se no município de Ananindeua, região metropolitana de Belém, onde
vivem 63 famílias numa área aproximada de 317,93 hectares, titulada em 13 de maio de
1999, conforme dados do Iterpa. Contudo, em 2003 o Iterpa abriu novo processo de
regularização para mais uma parte da área, pois consta que o legado do Conde equivale
a 2100 hectares e não apenas aqueles hectares já legalizados.

O termo Ananindeua é uma derivação do nome de uma árvore que existia


abundantemente às margens de um igarapé. No início, sua área pertencia a Belém.
Seu povoamento se intensificou com a construção da estação da Estrada de Ferro,
e foi reconhecida como freguesia, posteriormente, como Distrito de Belém. Com
o Decreto-lei Estadual Nº 4.505, de 30 de dezembro de 1943, promulgado pelo
Interventor Federal Magalhães Barata, foi criado o município de Ananindeua, cuja
instalação se deu em 3 de janeiro de 1944 (GOVERNO DO PARÁ, 2009).

116
A história de Abacatal começa com o Engenho do Uriboca, propriedade do Conde
Coma Mello, localizado às margens do igarapé Uriboquinha, município de Ananindeua.
Contam os atuais moradores, que o Conde deixou essas terras como herança para as
três filhas que teve com a escrava Olímpia.
As filhas do Conde Mello com Olímpia, que se chamavam Maria do Ó Rosa
de Moraes, Maria Filistina Barbosa e Maria Margarida Rodrigues da Costa ficaram
conhecidas como as “Três Marias”, das quais muitos moradores de Abacatal dizem ser
seus descendentes, e, portanto, os verdadeiros herdeiros dessas terras que, apesar de
legalizada em 1710, conforme relato de Raimundo Cardoso (apud RODRIGUES, 2004), foi
necessário que estes lutassem muito por sua titulação, pois o documento de legalização
se perdeu.
Os moradores contam também que nos anos 1998 e 1999, o genro de um dos
moradores se denominou único titular das terras e passou a cobrar uma taxa sobre a
renda dos outros moradores. Depois passou a impedir que vendessem os produtos que
cultivavam no local, e, por último, vendeu as terras para uma empresa. Nesse momento
a luta tornou-se mais acirrada na tentativa de impedir que as casas fossem derrubadas.
Porém, muitas residências, e até a escola, vieram ao chão.
“Caminho das Pedras” é uma referência na memória coletiva dos moradores de
Abacatal. Eles contam que antigamente, como não havia estradas, a ida e a vinda de Belém
eram feitas de barco, saindo e chegando pelo igarapé Uriboquinha. Para não sujar os pés
de lama o Conde mandou que os escravos forrassem com pedras o caminho entre as
margens do igarapé e sua casa.
Para os atuais moradores, o “Caminho das Pedras” é um dado concreto da
história local, um bem que precisa ser protegido, por isso, recentemente reconstruíram
uma parte desse caminho que devido ao tempo e ao uso indevido de algumas pessoas,
encontrava-se em péssimo estado de conservação.
Para sobreviverem, as famílias de Abacatal exercem várias atividades econômicas,
entre elas, a produção de carvão e a agricultura de subsistência, cujos derivados,
principalmente da mandioca, polpas de frutas e carvão são vendidos em feiras próximas.
Como afirma Herkenhoff (2006, p. 143):

Paula Sampaio vê, realizando documentação fotográfica dos quilombolas,


sua individualidade, emoções e vida comunitária. Na sociedade nacional,
não têm direito a um rosto e a tudo que converte o indivíduo em
cidadão. Isolados na selva, mais do que interpretação, ganham uma voz
possível e memória visual. Sampaio constitui índices do abandono social
e da ausência de representação política dessas comunidades [...].

O ensaio Nós faz parte também da produção autoral de Paula Sampaio. Nesta
série, homens e mulheres apresentam-se com seus rostos ocultados e confundidos com
elementos da natureza ou com outras “coisas do mundo”, termo usado pela fotógrafa.

117
118
Série Nós. Santa Izabel (PA), 2004. Acervo: Paula Sampaio.

Nessas imagens tudo se integra: ser humano, sua intervenção no mundo e a


natureza. Nelas, Paula Sampaio multiplica subjetividades possibilitando outras maneiras
de identificação humana. Aparentemente sem face, nas fotografias dessas pessoas a
identidade humana parece emanar das coisas com as quais convive.
Essas imagens comportam-se como espectros visuais, lembrando ao observador
que a identidade é móvel, pois se constrói e reconstrói cotidianamente influenciando e
sendo influenciada pelas diferentes coisas, vidas e fatos com os quais o ser humano toma
contato. Para Canevacci (1996, p. 44): “O duplo processo de localização e globalização
da cultura permite representar nós mesmos, nossa identidade, como pertencente ao
mesmo tempo e no mesmo espaço a vozes diferentes e contrastantes”.
Nesta travessia em busca da essência humana, a fotógrafa constrói uma espécie
de mapa polissêmico dos fluxos culturais de ribeirinhos, imigrantes, quilombolas. É a
natureza humana que interessa quando adentra florestas e segue estrada a fora, até um
dia encontrar o mar. O turbante, a veia que salta de um braço musculoso, uma igrejinha
ao fundo, são índices de muitos significados para a leitura do espectador.

Série Nós, 2003. Acervo: Paula Sampaio. 119


Praia de Miramar com favela e porto Cabedelo, onde inicia a rodovia
Transamazônica, Cabedelo (PB), 2009. Acervo: Paula Sampaio.

Folhas Impressas é outro importante projeto de Paula Sampaio. Composto de


um conjunto de ações realizadas no Centro Histórico de Belém (PA), iniciou em 2006,
com o principal objetivo de: “[...] documentar os vínculos simbólicos de personagens
anônimos com a cidade, por meio de imagens e histórias orais, a partir da memória de
quem vive o movimento da história cotidiana de Belém: os habitantes e frequentadores
de sítios urbanos que pertencem ao processo inicial de expansão urbana da capital do
Pará” (SAMPAIO, 2007).
Assim, Folhas Impressas propõe-se a editar, imprimir e distribuir jornais tabloides,
contendo imagens e histórias acerca do cotidiano de grupos sociais específicos, que
estejam relacionados com os processos iniciais de colonização, ocupação e expansão
urbana de Belém (SAMPAIO, 2007).
O primeiro tabloide produzido ainda em 2006 foi a Folha do Ver-o-Peso, que teve
como foco os trabalhadores do Complexo do Mercado do Ver-o-Peso, em Belém (PA), e
apoio da Fundação Romulo Maiorana, integrando o projeto de curadoria do 25º Salão
Arte Pará.
O segundo tabloide, denominado Folha da Campina foi produzido em 2007 e
subsidiado pela Bolsa Ipiranga de Artes Visuais. Esse segundo jornal compôs um projeto
mais amplo intitulado No Porão cuja proposta consistiu na produção do jornal para circular
no segundo bairro mais antigo de Belém, localizado no centro histórico de Belém, e na
realização de uma exposição no porão de sua residência.

120
Para Castro (2007, p. 3): “Podemos
compreender o bairro a partir do que
seu nome evoca. A Campina projeta
o velho bairro da Cidade como seu
antípoda. Belém foi dicotômica no
século XVII. A Cidade era segura,
fechada e absoluta. A Campina era
o espaço a conquistar, a expansão a
fazer, o espaço livre para o comércio,
a feira, a troca e o encontro com o
diferente. A Cidade era a soberba
dos conquistadores e a Campina a
humildade do desbravamento, da
exploração, do medo da mata e de
sua escuridão. A Cidade era positiva,
sensata, centrada. A Campina era
perdição, conquista, aventura”. Em
outro ponto do seu texto, Castro
(2007, p.3) continua: “Quando a
O Complexo do Ver-o-Peso compõe- antiga Campina transformou-se
se, além da feira que acontece todas em Comércio e a nova Campina se
as manhãs, em Belém, onde são espraiou sobre essas novas terras,
comercializados produtos diversos: abriu-se, na morfologia urbana de
frutas, legumes, ervas medicinais, Belém, como uma zona transitória,
artesanato, amuletos, dentre outros, um espaço tangencialmente de
de obras arquitetônicas imponentes fronteira, dado a toda sorte de
como: o Mercado de Ferro (mercado ruptura social. É essa nova Campina
de peixe), com suas quatro torres em que passou a abrigar a zona
escamas feitas em zinco, projetado por meretrícia e boêmia, o comércio
Henrique La Rocque e fabricado por não-convencional e as primeiras
uma empresa estrangeira, em 1901; o escolas de samba de Belém”.
Mercado Municipal de Carne; o Solar
da Beira, onde funcionava o posto de
fiscalização e tributos, atualmente
transformado em espaço cultural; a
Praça do relógio; a Praça dos Velames
e o Palacete Bolonha. (COELHO;
MORAES, 1996). Um espaço de sabores,
cheiros e saberes diversos que atrai o
olhar curioso do turista e encanta a
todos, como nos belos versos de José
Ildone:

“Se mandassem pesar


o peso que a vida tem
eu passaria minha vida
a ver o peso em Belém”.

121
O tabloide veiculou as histórias dos moradores e frequentadores do bairro da
Campina, além de imagens produzidas pela fotógrafa e artigos assinados por pessoas
convidadas (Cláudia Leão, Fábio Castro, Janice Lima, Mariano Klautau Filho, Regina
Maneschy e Rose Silveira), tratando de questões relacionadas com a memória, o
patrimônio cultural e as representações sociais.
Para Sampaio (2007) essas imagens, histórias e artigos “[...] nos possibilitam refletir
sobre esse território urbano devastado pelo descaso público e a violência cotidiana. Mas
que, apesar de tudo, teima em existir, pulsando em quem e no que resistiu aqui”.
O projeto iniciou com o levantamento das narrativas orais acerca das memórias do
bairro e histórias de vida dos freqüentadores e moradores do bairro da Campina. Depois
de expor a proposta às pessoas, Paula Sampaio as convidava para serem fotografadas no
porão 619 da Travessa Frutuoso Guimarães. E para isto solicitava que levassem objetos
com os quais gostariam de ser fotografadas.

Acervos das famílias na exposição. Retratos de Mary


Blanca e Francisco Sá. Acervo: Paula Sampaio.

Assim, numa espécie de cartografia da cultura material do bairro, foram surgindo


os mais diferentes objetos, como fotografias antigas, jarros de flores, relógios de parede,
baús e outros móveis, véus e outras peças de indumentária que compunham cenários e
figurinos para as fotografias e posteriormente para a exposição. Esses objetos imprimiram
em todo o processo, memórias e traços das identidades de seus donos, somando a essa
cultura material a imaterialidade dos sentimentos, das emoções evocadas pelas lembranças.

122
Os artefatos, que também podemos chamar de cultura material, têm essa capacidade
de revelar traços de nossas identidades e de representar nossas memórias, talvez, por isso
mesmo, tenhamos uma relação emocional com os objetos que nos pertencem. O fato de
serem resultado da criação intelectual e do trabalho criativo do ser humano faz com que
estes funcionem como mediadores das relações humanas (NOGUEIRA, 2004).
A possibilidade que os objetos têm de transpor as fronteiras do tempo e do espaço
torna-os móveis e, ao mesmo tempo, permanentes, pois estes circulam nas sociedades
adquirindo diversos significados (carga simbólica agregada) em mais de um contexto ou
lugar ao longo de um tempo impreciso de duração, podendo servir como fontes primárias
de conhecimento, portanto, evidências históricas.
Mas é evidente que Paula Sampaio,
ao propor todo esse processo, reconhece
a importantíssima função da memória
coletiva em nossa sociedade, propondo o
compartilhamento de lembranças e fazendo
aflorar o sentido de pertencimento nos
moradores e frequentadores do bairro da
Campina. A fotógrafa sabe que a memória
coletiva garante o sentimento de identidade
do indivíduo e esta faz parte de uma memória
compartilhada, além do campo histórico, no
campo simbólico.
Assim, Sampaio nos faz lembrar como
Kramer (1993, p.48), que “[...] a ameaça que
pesa sobre a humanidade é a da perda da
memória, é a do esquecimento administrado
Livro de assinaturas, cartas, bilhetes, delicadezas
em um mundo administrado, que faz com que recebidas da comunidade da Campina durante o
período de realização do projeto. Acervo: Paula
os vencidos de hoje não mais se lembrem da Sampaio.
história de ontem”.
Para realizar a exposição Sampaio precisou fazer uma reforma no porão de sua casa,
preparando-o para receber as fotografias e outros objetos, acervos das famílias do bairro
da Campina, que participaram intensamente de todas as etapas, inclusive da montagem e
manutenção da mostra, num verdadeiro esforço e entusiasmo coletivo.
A exposição ganhou um aspecto rizomático, ou seja, a cada dia ela se apresentava
de um jeito. Os moradores iam lá e trocavam os objetos e fotos, pois uma história puxava
outra num processo cartográfico de memórias, em que um objeto evocava a lembrança de
outro, a fotografia de uma personagem exigia a presença de outro.

123
A exposição montada no Porão.
Acervo: Paula Sampaio.

O conceito de rizoma, neste caso, diz respeito às ramificações proporcionadas na


exposição, e ainda, ao reconhecimento das multiplicidades e dos movimentos provocados e
evocados pela memória. Conforme Deleuze; Guattari (1995, p.16):“Um rizoma não cessaria
de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes,
às ciências, às lutas sociais”.
Para um futuro próximo, Paula Sampaio já projeta novas ações do Folhas Impressas,
a realização da Folha da Cidade e da Folha do Reduto, além de oficinas de educação
patrimonial para crianças das áreas abrangidas pelo projeto.
Assim, em sua extensa caminhada Paula Sampaio reacende narrativas, captura
imagens, e ao mesmo tempo, semeia uma perspectiva histórica polifônica e polissêmica.
São muitas as personagens dessa história, e cada uma apresenta sua visão de mundo,
escolhe os signos de suas memórias, e a fotógrafa como catalisadora dessas narrativas e
imagens recusa-se ao esquecimento, provoca-nos à memória, que a sociedade globalizada
em sua pressa e sede de produzir consumo teima em apagar todos os dias.

124
Perfil de Paula Sampaio

Paula Gomes Sampaio nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1965.Veio


para a Amazônia ainda menina e vive em Belém (PA), desde 1982. É
graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela
Universidade Federal do Pará (UFPA) e especialista em Comunicação
e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG). Frequentou as oficinas da Fotoativa e começou a trabalhar
com fotografia profissionalmente em 1987.

Exposições Individuais

2005/2006
Antônios e Cândidas têm Sonhos de Sorte. Galerias da FNAC. São Paulo,
Brasília e Rio de Janeiro

2005
Une Certaine Amazonie. Centre de Promotion du Livre de Jeunesse et
Fotoativa. Bibkiothèque Lois Aragon e Jules Vallès. França

Exposições Coletivas

2008
Arte pela Amazônia. Fundação Bienal de São Paulo. Pavilhão Cicillio
Matarazzo, São Paulo (SP)
Contigüidades. Museu Histórico do Estado do Pará, Belém (PA)
Brazilian Photographers Exhibition (The Photographic Society of Japão),
Japão

2006
Bienal Internacional de Artes Visuais, Liège (Bélgica)
Manobras Radicais. Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo (SP)
XV Salão Arte Pará. Fundação Rômulo Maiorana, Belém (PA). Convidada

2005
Amrik – Presença Árabe na América do Sul. Ministério das Relações
Exteriores. Brasília e São Paulo (Brasil); Quito (Equador); New York
(EUA)

2003
Fotografia Contemporânea Paraense – Panorama 80/90. Espaço Cultural
Casa das Onze Janelas. Petrobras; Governo do Estado do Pará (Secult);
Associação Amigos dos Museus do Pará, Belém (PA)

2002
Humanity Photo Award’s. Beijin (China)
XXI Salão Arte Pará. Tema: Mestres Modernistas: Poéticas da Forma e
da Cor. Belém (PA) Convidada

2000
Brasiliana. Centro Português de Fotografia. Cidade do Porto (Portugal)
Brasil – 100 fotógrafos retratam o cotidiano do país em 24 horas. Museu
da Imagem e do Som. São Paulo (SP)

1999
Amazônia, o olhar sem fronteiras, Funarte/Secult, no Instituto Cultural
Brasileiro em Berlim (Alemanha) e Instituto Brasileiro Equatoriano
de Cultura em Quito (Equador)
1998
Los Derechos Humanos de las Mujeres y contra ala Violência – Tafos. Galeria da Sede das Nações
Unidas. New York (EUA) e Quito (Equador)
Amazônicas – Instituto Cultural Itaú, São Paulo (SP)
II Fotonorte, Amazônia, o olhar sem fronteiras, Funarte/SECULT, Museu Histórico do Estado do
Pará

1997
Visyons – The Unicef House Exhibition Gallery, New York, Germany e Greece

1996
XV Salão Arte Pará – Fundação Rômulo Maiorana. Belém (PA). Convidada
Novas Travessias: Recent Photografic Art From Brazil. The Photographer’s Gallery. Londres, Inglaterra
Fotos Brésil Recent Photografic Art From Brazil. Espaço Jorge Amado da Embaixada do Brasil em Paris
e na Galeris Elysée, em Lyon – França

1995
III Salão de Arte Fotográfica. Galeria Canizares, Salvador (BA)
Fotoativa 10 Anos. Galeria Funarte, Rio de Janeiro (RJ)
Com Ojos de Mujer – IV Conferência Mundial da Mulher, Beijin – China
Congresso de Imprensa Católica em Grauz, Áustria

1994
Novos Fotógrafos – Fundação Cultural de Curitiba (PR)

1993
Fotografia Brasileira Contemporânea – Década de 50 a 90. SESC Pompéia, São Paulo (SP)

Prêmios

2008
Prêmio Secult de Fotografia-Primeiro lugar. Secretaria de Cultura do Estado (PA)

2006
Prêmio Porto Seguro Brasil de Fotografia para a série “Nós”. São Paulo (SP)

2003
Prêmio Jornalista Amigo da Criança (ANDI/FENAJ). Brasília (DF)

1997
Mother Jones Internacional Fund for Documentary Photography para o Projeto “Fronteiras”
(Mother Jones Awards), EUA

1996
Concurso Internacional “Imagens do Futuro: Crianças e Adolescentes da América Latina”,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul em parceria com a Unicef. 2º Lugar

1994
XIII Salão Arte Pará. Fundação Rômulo Maiorana, Belém (PA). Prêmio Aquisição

1992
Concurso Nacional de Reportagens e Fotografias. Ministério da Saúde/FENAJ, Brasília (DF). 1º
Lugar na categoria Fotografia.
Distinções

2008
Prêmio Rodrigo Melo de Andrade Franco. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN). (Categoria Salvaguarda de Bens de Natureza Imaterial), Projeto “Folhas Impressas”.
Finalista. Certificado de Classificação em nível regional, Brasília (DF)

2007/2008
Prêmio Conrado Wessel. Finalista na Categoria Ensaio Fotográfico, São Paulo (SP)

1998
III Prêmio Nacional de Fotografia, Funarte, Rio de Janeiro (RJ). Menção Honrosa para o Projeto
“Fronteiras”
“Humanity Photo Award’s 98”, Beijin (China). Menção Honrosa

1995
II Salão FINEP de Fotojornalismo, Rio de Janeiro (RJ). Menção Honrosa

1993
Salão Nacional de Fotografias – Racismo e Discriminação. Instituto Marc Chagall, Porto Alegre
(RS) – Menção Honrosa

Bolsas de Pesquisa e Arte (projetos autorais premiados)

2008/2009
Projeto No início foi o mar. Bolsa de estímulo à criação artística-fotográfica. Funarte, Rio de Janeiro
(RJ). Em curso

2007
Projeto No Porão. Bolsa Ipiranga de Artes Visuais, Belém (PA)

2004
Projeto Antônios e Cândidas têm sonhos de sorte – Fragmentos do cotidiano. Bolsa Vitae de Pesquisa
em Arte. Fundação Vitae, São Paulo (SP)

1993
Projeto Transamazônica: a fronteira do sonho. IV Prêmio Marc Ferrez de Fotografia Funarte, Rio
de Janeiro (RJ)

Obras em Acervos
Museu de Arte Moderna (MAM), São Paulo (SP)
Museu de Arte de São Paulo (MASP), Coleção PIRELLI, São Paulo (SP)
Fundação Biblioteca Nacional de Arte e Cultura, Rio de Janeiro (RJ)
Fotoativa. Belém (PA)
Ministério das Relações Exteriores/Itamaraty, Brasília (DF)
Banco de dados Itaú Cultural, São Paulo (SP)
Núcleo Amigos da Fotografia (NAFOTO), São Paulo (SP)
Coleção Joaquim Paiva

Contato
carissimaps@gmail.com
Uma proposta é sempre uma aposta em algo que se acredita, mas sua característica
primordial é a flexibilidade para as discordâncias, mudanças e complementações.Tomando
esse princípio como referência, o projeto Rios de Terras e Águas: navegar é preciso se propôs
a pesquisar a produção e o processo de criação de seis artistas paraenses, e apresenta,
também, uma possibilidade de ensino e aprendizagem sobre esses artistas e sua produção,
relacionada com o contexto cultural no qual se movem e buscam referências.
O acesso aos resultados das pesquisas, na maioria dos casos, fica limitado ao
mundo acadêmico e não chega a importantes segmentos, como a educação escolarizada,
por exemplo. O que nos estimulou a realização deste projeto foi essa lacuna no ensino
de arte da educação básica, pois foi observado que a maioria dos professores não
incorpora a arte contemporânea aos seus projetos de ensino, assim como, a arte e a
cultura produzidas na própria região ainda são menos presentes nesses programas.
Os conhecimentos dos povos tradicionais, como os grupos quilombolas, indígenas,
ribeirinhos e outros, também são raramente abordados, e o fato é que o paraense não
tem tido durante a vida escolar a oportunidade de conhecer a cultura e a arte produzidas
no seu estado.
Portanto, como proposta educativa contextualizada, esta se fundamenta na
descentralização da perspectiva eminentemente universalista, deslocando-se para temas
e questões que hoje pedem atenção urgente da sociedade, como as questões de gênero,
quilombola e outras relativas à diversidade cultural, em busca do reconhecimento e
respeito às diferenças.
Considerando que os seis artistas escolhidos: Armando Queiroz, Elieni Tenório,
Jocatos, Lise Lobato, Mariano Klautau Filho e Paula Sampaio têm em comum na produção
de seus trabalhos referências significativas desse universo cultural, esta proposta
transversaliza assuntos tais como: identidades culturais, memória coletiva,
patrimônio cultural, diversidade cultural, sem, contudo, deixar de levar em
consideração os aspectos inerentes à própria arte.
Dois desses artistas, Paula Sampaio e Mariano Klautau Filho, trabalham com a
fotografia. Respeitadas as características de produção de cada um, a técnica apurada
e a pesquisa autoral são marcantes em seus percursos. De Paula Sampaio recortamos
um tema para trabalhar com maior profundidade: os grupos quilombolas, sua luta pela
titulação da terra e busca identitária. Na obra de Mariano Klautau Filho pinçamos os
ensaios que têm como tema o patrimônio arquitetônico de Belém, representado nas
portas e janelas que vão sendo fechadas, cegadas pela sociedade que paulatinamente vai
apagando seu patrimônio.
Jocatos e Elieni Tenório vêm de uma trajetória marcada pelo ato de plasmar;
o primeiro na gravura e a segunda na pintura, e, sem abandonar totalmente esses
processos, transitam atualmente pelo universo dos objetos e instalações. Da obra de
Jocatos selecionamos algumas que tratam do tema “Círio de Nazaré”, essa celebração

130
que faz parte do calendário e da alma paraense. Jocatos pesquisa materiais corriqueiros
que viram suportes para a obra ou a própria obra. As latas de manteiga da marca “Nossa
Senhora de Nazaré” entraram na relação que vem estabelecendo com o Círio de Nazaré.
No trabalho de Elieni o interesse centralizou-se no tema principal de sua obra: o universo
feminino e o tratamento plástico/visual que marca o seu processo.
A cultura pré-histórica marajoara vem sendo o motivo da pesquisa artística de
Lise Lobato, que faz em sua obra referência à cerâmica arqueológica encontrada no
Marajó.
De Armando Queiroz foi escolhido o trabalho que vem realizando com o
miriti, em parceria com os artesãos de Abaetetuba; trata-se de um discurso visual que
dessacraliza a arte e desmancha as fronteiras entre esta e o artesanato.
Além dos textos apresentados na primeira parte deste livro e o documentário
em formato digital (DVD), compõe a proposta educativa a seguir uma galeria imagética
formada de 12 pranchas contendo: imagens de obras dos artistas, do contexto cultural
de sua produção, e pequenos textos e poesias de outros autores no verso para suscitar
outras leituras intertextuais.
O objetivo é proporcionar a(o) professor(a) de arte, a(o) educador(a) de espaços
culturais e de associações comunitárias: a formação de um acervo de imagens, narrativas
orais e artigos escritos, elaborados pelas pesquisadoras e com a ativa participação das
artistas e dos artistas acerca de sua produção e da cultura paraense, de modo a ampliar
as possibilidades de inserção da arte contemporânea paraense e da cultura local nos
processos educacionais.
Deste modo, as propostas que seguem são sugestões que cada educador(a) pode se
apropriar, ampliar e adequar à realidade de sua sala de aula e às suas turmas.

131
Proposta 1
Figuras antropomórficas e retratos
Exercício intertextual com as obras de Paula Sampaio e de Lise Lobato

As figuras antropomórficas são recorrentes nos vestígios arqueológicos


encontrados no Pará. Elas podem ser observadas, por exemplo, nas cerâmicas tapajônica
e marajoara, e, também, nos sítios arqueológicos com arte rupestre de Monte Alegre,
Alenquer, Prainha e de outros municípios paraenses.

Essas manifestações gráficas, presentes nos cinco continentes, têm


suas origens há mais de 30.000 anos e algumas são mundialmente
conhecidas, como pinturas das grutas de Altamira, na Espanha, e
Lauscaux, na França. (PEREIRA, 1999, p.12)

A necessidade que o ser humano tem de se expressar apontada por Paulo Freire
(2001) parece unir-se então à necessidade de se representar teorizada por Tomaz Tadeu
da Silva (2007). Juntas, essas duas necessidades humanas impulsionam o ser humano a se
expressar gráfica e visualmente, criando figuras representativas de sua imagem.
Se o homem pré-histórico já criava figuras à sua imagem, podemos observar ao
longo da história da arte que a figura humana também é um tema recorrente. Entre o
final da Idade Média e o século XVII a arte retratista se emancipa. É a partir do século
XV que, além dos príncipes, alto clero e nobreza, outros grupos sociais passam a ser
retratados, como os comerciantes, os artesãos e os artistas.
Desenvolvem-se vários tipos de retratos, o de “casais”, o de “família”, o de “corpo
inteiro”, em geral reservado aos príncipes ou a nobreza; o “retrato individual”, que tinha
como função retratar figuras públicas, marcando sua posição social, enquanto o “retrato
em grupo” simbolizava a posição social de órgãos coletivos como guildas e associações
comerciais (Schneider, 1997).
Na arte moderna, Pablo Picasso, Vincent Van Gogh, Ismael Nery e Tarsila do
Amaral, só para citar alguns artistas, pintaram retratos e autorretratos. Sendo assim, o
retrato é uma fonte de representações simbólicas sobre os indivíduos, que acontece de
acordo com a proposta do artista, ou seja, sobre a maneira como propõe apresentar o
retratado em seu contexto.
Lise Lobato presentifica suas memórias de infância fazendo referências em sua
obra às figuras antropomórficas que se apresentam nos vestígios arqueológicos do
Marajó (Prancha 1). O arquipélago do Marajó (Prancha 2), lugar onde a artista nasceu
e passou sua infância, é o seu celeiro de memórias afetivas, com suas paisagens, sítios
arqueológicos e convivência com a natureza.

132
Prancha 1

Prancha 2

133
Prancha 3

134
Como vimos no texto sobre o trabalho de Paula Sampaio, as pessoas fotografadas
na série Nós têm a face ocultada por “coisas do mundo”. Na prancha 3 vemos a imagem
de um homem de costas. Da cintura para baixo, este se confunde com o tronco cortado
de uma árvore. Homem e natureza encontram-se perfeitamente ligados como se um
fosse extensão do outro. O que temos nessa imagem é uma reapresentação, uma efígie:
homem-natureza.
Com base neste pequeno texto, nos artigos sobre Lise Lobato e Paula Sampaio,
e nas pranchas 1, 2 e 3 o(a) educador(a) pode realizar com os(as) estudantes ou
participantes de seu projeto, as ações a seguir.

Leituras intertextuais

Proponha aos estudantes que observem atentamente as imagens das pranchas


1, 2 e 3 e dialogue com eles(as) sobre os seguintes aspectos e outros que considerar
pertinentes aos propósitos de sua aula.

Conteúdos e valores simbólicos presentes nas imagens, considerando as questões


relativas à diversidade cultural brasileira, memória e identidade cultural;

As relações entre a imagem fotográfica e o assunto fotografado, pois é importante


que a fotografia seja compreendida não apenas como registro, ou seja, como cópia da
realidade, mas também como forma de expressão pessoal do artista e da artista;

As necessidades humanas de expressão e representação;

As linguagens plásticas e a linguagem da fotografia.

135
Exercitando processos de criação artística

Exercício 1: O ser humano: identidades culturais em construção

A identidade, conforme Ortiz (2003) se constrói com as singularidades (o que é interior


ao indivíduo, ao objeto ou ao grupo social), porém, na comparação com as diferenças (o
que é exterior ao indivíduo, ao objeto ou ao grupo social).As identidades culturais pós-
modernas são consideradas por Hall (1997): móveis, fragmentadas, descentralizadas,
plurais, se constroem e reconstroem a cada dia, no contato com outras identidades.
“O duplo processo de localização e globalização da cultura permite representar nós
mesmos, nossa identidade, como pertencente ao mesmo tempo e no mesmo espaço a
vozes diferentes e contrastantes” (CANEVACCI, 1996, p.44).

1. Solicite aos estudantes e às estudantes que componham um retrato de si mesmos,


em seu contexto familiar, ou seja, que organizem o contexto da imagem que
vão produzir, com pessoas, objetos, espaços, dentre outros. É importante que
primeiro pensem como vai ser o retrato, e façam um esboço da sua composição.

2. Proponha o uso de uma linguagem visual (desenho, pintura, gravura, escultura,


fotografia) já trabalhada com a turma e de técnicas (colagem, mista, dentre outras)
para as quais tenha material disponível.

3. Peça-lhes que componham outro retrato em que a face esteja ocultada por um
objeto ou elemento da natureza que represente seu modo de viver, de entender
e conviver com a natureza e outras coisas do cotidiano.

4. Reúna os resultados e os exponha na sala para em seguida promover o diálogo


sobre o exercício.

5. Solicite que cada estudante apresente seus exercícios, comparando os resultados


do item 1 com o item 3, falando de suas escolhas, técnicas utilizadas e significados
atribuídos.

6. Intervenha sempre que achar necessário, para relembrar os conceitos de


identidade, memória e diversidade cultural, um assunto ou outro aspecto que
considerar importante. Procure enfatizar a concepção de identidade cultural para
perceber se a compreenderam nos processos realizados.

136
Exercício 2: Como o futuro nos decifraria?

1. A partir da observação e conversa sobre as pranchas (1, 2 e 3), mostre outras


imagens representativas do homem e da mulher contemporâneos em seu
ambiente e se relacionando com a sua cultura (por exemplo, danças, meios de
transportes, instrumentos de trabalho, celebrações, lugares de convivência etc.).
Mostre também imagens de sítios arqueológicos e converse com a turma sobre
o assunto.

2. Solicite aos estudantes e às estudantes que se imaginem sendo um arqueólogo


ou arqueóloga vivendo no ano 20.000. Peça-lhes para elaborarem uma lista de
vestígios que provavelmente encontrariam num sítio arqueológico datado de 2009.
A lista abaixo pode ser preenchida para facilitar a visualização dos resultados.

Objeto ou outra Local onde foi Data em que foi Material de que
evidência encontrado achado é feito

3. Peça para desenharem em uma folha de cartolina o ambiente em que esses


objetos ou outras evidências seriam encontrados. Elabore junto com os (as)
estudantes as hipóteses acerca daquela época e de como viveram os usuários
desses vestígios.

4. Solicite que cada participante do grupo escolha um dos objetos listados e o


recriem por meio do desenho e da pintura, usando, se possível, papel tamanho
A-3.

5. Reúna os resultados e os exponha na sala para em seguida promover o diálogo


sobre o exercício.

137
Proposta 2
O gênero feminino na cultura e na arte
Exercício intertextual com as obras de Elieni Tenório e de Paula Sampaio

Na obra de Elieni Tenório observamos que o universo feminino é um tema


fundamental. A artista permite-nos várias interpretações e, ao mesmo tempo, dialogar
sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea. Um dos aspectos em evidência
na obra de Elieni é a emancipação feminina na construção de uma nova moral sexual
(Prancha 4).
No trabalho de Paula Sampaio observa-se preponderantemente a mulher
representada em seu contexto sociocultural (Prancha 5). A mulher é retratada com
acessórios escolhidos por ela mesma, como turbantes, véus e outros elementos
representativos do seu modo de vida e da sua cultura.
Na arte moderna brasileira,Tarsila do Amaral, ao pintar a obra intitulada A Negra,
rompeu com a forma estereotipada dos artistas europeus de representar as mulheres
negras com sensualidade exótica.
Portanto, esse e outros aspectos são relevantes no debate e na compreensão
acerca de como a mulher é representada na arte.

Leituras intertextuais

É importante que o(a) educador(a) deixe que a turma primeiro observe as


imagens. Depois do processo de observação das pranchas 4 e 5 da Galeria de Imagens,
inicie o diálogo sobre as mesmas. É fundamental que os estudantes e as estudantes
tenham liberdade para comentar e indagar sobre o que estão percebendo nas imagens.
Alguns aspectos que podem ser tratados nesse diálogo:

As histórias de vida das duas artistas oferecem subsídios para a compreensão da sua
arte. Solicite à turma que identifique nas imagens, informações da vida das artistas, que
se relacionam com suas referidas obras.

Mostre imagens de outros artistas (homens e mulheres) que retratem a mulher e


dialogue sobre os aspectos relacionados ao gênero feminino. Você pode indagar, por
exemplo, como cada artista mulher e como cada artista homem representa a mulher
nessas imagens.

Estabeleça um diálogo sobre as linguagens e técnicas utilizadas por Paula Sampaio e


Elieni Tenório sobre os temas e os contextos sociais, políticos e culturais da obra de
cada uma, bem como as relações entre as mesmas, destacando a cultura dos grupos
quilombolas.

138
Prancha 4

Prancha 5

139
Exercitando processos de criação artística

Para exercitar processos de criação com a turma, você pode lançar mão de uma
das técnicas utilizadas pelas artistas e depois orientá-la sobre como proceder solicite a
produção de um exercício.
Por exemplo, sobre o diálogo estabelecido acerca da questão de gênero, é
interessante solicitar que a turma observe a mulher contemporânea, como ela vive, se
comporta perante a sociedade, em que trabalha, seu cotidiano e como se veste.
A partir desse diálogo, realize as seguintes ações, para as quais os(as) estudantes
e o(a) professor(a) deverão eleger e providenciar os materiais necessários, ou seja, o
planejamento deve ser feito com a turma para que os estudantes e as estudantes tenham
a oportunidade de fazer escolhas e de selecionar materiais disponíveis em suas próprias
casas, como retalhos de tecidos e sobras de aviamentos: botões, linhas, rendas, entretelas
e muitos outros.
Materiais como: cola branca, papelão, tesoura dentre outros, também serão
necessários. Ao lançar mão de materiais descartados, o(a) professor(a) deverá suscitar o
debate sobre consumo, moda e meio ambiente.

Exercício 1: Vestuário feminino como elemento cultural em épocas diversas

1. Peça à turma que componha um exercício, por meio da técnica escolhida, que
represente a mulher contemporânea;

2. Em seguida, solicite que observe vestuários femininos de diferentes épocas no


Brasil, por exemplo, nos anos 1950, nos anos 1970 e nos anos 2000. Indague: há
diferenças nesses vestuários? Quais? Qual o contexto social, histórico, cultural
e político desses períodos e quais relações podem ser estabelecidas com os
vestuários femininos dessas épocas? Esteticamente, como se compõe o vestuário
feminino de cada período e que relações se estabelecem com o contexto
sociocultural e político de cada época?

3. Proponha a criação de composições que representem cenas do cotidiano


e reflitam os hábitos e vestuários femininos desses períodos. Os resultados
devem ser expostos e apresentados pelos estudantes e pelas estudantes. O (a)
professor(a) deve provocar um diálogo sobre o exercício.

140
Exercício 2: Vestuário feminino em diferentes contextos sociais e culturais

1. Peça aos estudantes e às estudantes para observarem em diversas imagens como


as mulheres se vestem em diferentes culturas, em que trabalham e como é o seu
cotidiano no grupo social: indígena (de diferentes etnias: Kaiapó, Xikrin, Waiana,
entre outras), quilombola, ribeirinho, bairros periféricos e bairros onde moram
pessoas abastadas etc.

2. Organize a turma em grupos de até três estudantes e solicite que façam uma
pesquisa sobre o papel da mulher nesses grupos sociais. Se não for possível visitá-
los, peça que pesquisem na internet, livros, revistas, jornais e outros meios.

3. Cada equipe deverá fazer um painel com imagens recortadas de revistas, retiradas
da internet ou desenhadas por eles, sobre os diversos aspectos do cotidiano da
mulher nessas etnias ou grupos sociais.

4. Exponha os resultados na sala e solicite que cada grupo apresente o seu trabalho.
Provoque um diálogo com a turma sobre diversidade cultural e respeito às
diferenças.

Exercício 3: Instalação sobre o tema “Gênero Feminino (Identidade e Alteridade)”

1. Disponha folhas de papel Kraft ou de embrulho liso (sem estampas ou desenhos)


no chão da sala, conforme o número representativo da metade dos estudantes
da turma. Divida a turma em duplas e entregue a cada dupla uma caneta hidrocor
(qualquer cor) ou pincel atômico.

2. Oriente para escolherem uma pessoa da dupla para se deitar sobre o papel em
uma posição ou pose por ela escolhida. O(a) outro(a) estudante deverá desenhar
com a caneta o contorno do(da) primeiro(a). Quando este grupo acabar, peça
para inverterem os papéis entregando-lhes outra folha de papel para que o
contorno do(da) outro(a) participante seja desenhado. O tamanho da sala ou do
espaço necessário para este exercício depende do número de estudantes.

3. Elabore uma lista contendo os nomes de diversos grupos étnicos ou sociais:


indígena (Kaiapó, Xikrin, Waiana, entre outros), quilombola, ribeirinho, bairros
periféricos e bairros onde moram pessoas abastadas, dentre outras, conforme as
imagens que você utilizou no exercício 2 desta proposta. Sorteie um grupo ou
etnia para cada dupla, entregando-lhes pequenos textos e imagens sobre esses
grupos.

4. Após a leitura e observação das imagens, peça aos estudantes que componham,
por meio do desenho, da pintura e da colagem de recortes de revistas, folhas secas
descartadas da natureza, pedaços de tecidos e outros, a indumentária (roupas,
acessórios e outros objetos) da imagem formada pelo seu corpo no papel. Cada
um terá a tarefa de transformar esse esboço em uma figura feminina conforme a
indumentária da cultura à qual faz parte.

141
5. Em seguida, peça para recortarem as imagens das mulheres sem danificarem a
parte de fora do contorno.

6. Proponha à turma que planeje e execute uma instalação. Para isto vocês deverão
escolher e preparar minuciosamente o espaço para a mesma (a Prancha 6 é um
exemplo de instalação).

7. Se possível, reserve na escola duas salas conjugadas, salas vizinhas que tenham
entre si uma porta de comunicação. Na primeira sala monte com a turma a
primeira parte da instalação, colando as partes de fora do contorno, formando
várias paredes, de modo que para entrar na outra sala o público tenha que entrar
pelas aberturas deixadas pelos contornos dos corpos dos estudantes e das
estudantes.

8. Na sala seguinte vocês vão montar a segunda parte da instalação, pendurando


as imagens das mulheres no teto, prendendo-as no chão, e ligando-as por meio
de fios de nylon, de modo que para observar as imagens o público tenha que
contorná-las ao andar pela sala.

9. Promova um encontro com todas as turmas da escola e outros(as) convidados(as)


para participarem da instalação e de um bate-papo com os(as) estudantes sobre
sua produção e resultados.

Neste exercício, além de compreenderem as concepções de identidade alteridade,


memória, patrimônio e diversidade cultural, é essencial instigá-los a se portarem como
criadores de situações poéticas, tomando como referência o universo das obras das
artistas, e construtores de um ambiente (instalação) que provoque a percepção e a
elaboração de sentidos diversos.

142
Prancha 6

143
Proposta 3
A cidade como patrimônio cultural
Exercício intertextual com as obras de Mariano Klautau Filho,
Armando Queiroz e Jocatos

A cidade é o espaço/território onde a vida da sociedade pulsa em sua dinâmica


cotidiana. A cidade vive em constante transformação e os resultados parciais são feitos
de rotinas diárias construídas coletivamente.
As diversas ações dos seus habitantes como o lazer, o trabalho e a convivência
vão deixando marcas no mapa da cidade. Como afirma Magnani (2004, p. 3): “O resultado
é um desenho bastante particular e que se sobrepõe ao desenho oficial da cidade: às
vezes rompe com ele, outras vezes o segue, outras ainda não tem alternativa senão
adequar-se”.
Há, portanto, nesse contexto, um confronto entre o velho e o novo, em que
a questão principal é: como continuar os processos de modernização e mudanças
progressivas das cidades preservando o seu patrimônio histórico e arquitetônico?
Mariano Klautau Filho, em suas fotografias, chama a atenção para as transformações
citadinas e para o descaso público relativo a esse patrimônio.
Jocatos e Armando Queiroz atentam para o patrimônio imaterial da cidade. O
primeiro, com as imagens de Nossa Senhora de Nazaré, numa alusão ao Círio de Nazaré
como manifestação cultural e religiosa que transforma Belém durante o mês de outubro.
O segundo, com o frágil artesanato de miriti que colore as ruas da cidade, atravessa
mundos e vai depositar esses objetos, agora ampliados, num jardim de Paris.

144
Leituras intertextuais

1. Dialogue com a turma sobre a cidade onde vocês vivem.

2. Mostre as pranchas 7, 8, 9, 10 11 e 12 e converse sobre os bens materiais, imateriais


(saberes, celebrações, formas de expressão e lugares) e naturais que compõem a
cidade, sobre as mudanças que nela ocorrem.Você pode usar o roteiro do quadro
abaixo ou criar outro que considerar mais adequado.

Como são as ruas da cidade? Asfaltadas? Limpas? Sujas? Arborizadas?


Quais são os meios de transporte mais utilizados? Barco? Carro? Moto? Bicicleta?
Como são as moradias? São feitas de madeira? Alvenaria? Taipa?
Que elementos da natureza estão integrados à cidade? Igarapés? Árvores? Animais?
Bosques? Rios?
Que prédios públicos existem na cidade? Hospital? Posto de Saúde? Lojas? Bancos?
Prefeitura? Açougues? Feiras? Supermercados? Salões de beleza?
Que equipamentos de esporte e lazer existem na cidade? Praças? Campos de futebol?
Salões de Festas? Piscinas? Clubes? Teatros? Cinemas? Quadras de esportes?
Que manifestações culturais e religiosas acontecem? Quadra junina? Celebrações
Natalinas? Desfile de Escolas de Samba? Procissões? Festas comemorativas de
produção agrícola?

3. Utilize a prancha 12 para dialogar sobre as diversas possibilidades de significação


de uma mesma obra, levando em consideração as três diferentes montagens da
instalação Entre e sua relação de construção simbólica a partir do contexto no qual
se inserem, conforme aborda Simone Moura no artigo sobre o artista neste livro.

Prancha 12
145
Exercitando processos de criação artística

Exercício 1: As cidades e seus bens naturais, materiais e imateriais

1. Organize grupos de até três estudantes e peça-lhes que elaborem uma lista para
cada tipo de bem (natural, material e imaterial) com base na conversa anterior.

2. Cada grupo deverá escolher um lugar perto de casa que ache bem cuidado e
bonito. Solicite aos grupos que o desenhem com detalhes e o pintem. Em seguida
peça-lhes que escolham um lugar com problemas de degradação, poluição ou
destruição para que o desenhem e o pintem também.

3. Exponha os resultados nas paredes da sala e dialogue sobre os problemas de


degradação ambiental e depredação do patrimônio cultural na cidade onde vivem.
Não esqueça de relacionar o diálogo com a imagem da Prancha 7.

4. Peça a cada grupo para elaborar uma proposta de solução para a área que está
com problemas de degradação. Essa proposta deverá ser apresentada ao longo
de uma carta escrita por eles às autoridades competentes do município, a fim de
mostrar as vantagens de um lugar bem cuidado, assim como os prejuízos causados
à sociedade, em muitos casos, repleta de lugares degradados. Peça que narrem
fatos ocorridos em seu cotidiano que revelem essas situações. Coloque junto
com a carta as pinturas e os desenhos produzidos e encaminhe-os à direção da
escola e outras autoridades.

OBS: Este exercício foi inspirado na proposta Desenhando e sonhando cidades do Caderno de Estudos do
Professor Abre as asas sobre nós, Projeto Arte BR (INSTITUTO ARTE NA ESCOLA).

Prancha 7

146
Sobre o brinquedo de miriti como expressão cultural

Nas atuais políticas públicas brasileiras para a cultura foi criado um instrumento
para promover o reconhecimento e a valorização do patrimônio cultural imaterial: o
Registro do Patrimônio Cultural Imaterial. O pedido de Registro pode ser feito por
instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, Secretarias de Estado e Municípios,
comunidades e associações civis.
Além da continuidade do uso dos Livros de Tombo instituídos anteriormente no
Decreto-Lei Nº. 25 (BRASIL, 1937), que registram os bens móveis e imóveis considerados
patrimônio histórico e artístico nacional pelo Decreto Federal Nº. 3.551 (BRASIL,
2000), foram criados os Livros de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, que
passam a registrar: Saberes (conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano
das comunidades, como, por exemplo, cestaria, arte plumária, cerâmica, redes, e outros);
Celebrações (rituais e festas relativos à vivência coletiva do trabalho, da religiosidade,
do entretenimento e de outras práticas da vida social, como, por exemplo, rituais de
nascimento, funerários, festa do milho e outros); Formas de Expressão (manifestações
literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas, como, por exemplo, pintura corporal, danças,
cantos); Lugares (mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram
e reproduzem práticas culturais coletivas, como, por exemplo, capelas, terreiros, lugares de
pesca, feiras, mercados).
O brinquedo de miriti, se o pensarrmos apenas como resultado do trabalho do
artesão, apresenta aspectos plásticos e lúdicos, podendo ser considerado uma forma
de expressão, um bem de ordem emocional, pelo conteúdo e valor simbólicos a ele
atribuídos.
Contudo, se observarmos o seu processo de elaboração, desde a forma de tratar
a matéria-prima, a criação e formas de manejar as ferramentas de trabalho e finalmente
elaborar os brinquedos, podemos considerá-lo um saber, um bem de ordem intelectual.

Exercício 2: Saberes e fazeres do meu bairro

1. Selecione algumas imagens de pessoas em seus ofícios, por exemplo: o artesão,


o marceneiro, a costureira, o engraxate, o produtor de farinha, o sapateiro, a
tacacazeira, dentre outros. Mostre essas imagens à turma falando sobre os saberes
intrínsecos a estes fazeres: o domínio das técnicas utilizadas, o conhecimento da
construção e utilização das ferramentas. Converse sobre o fato de hoje os saberes
serem considerados patrimônio imaterial e como podem ser inseridos no Livro
de Registro dos Saberes conforme os critérios estabelecidos pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

147
2. Solicite que eles pesquisem sobre esses fazeres e saberes entrevistando pessoas
no próprio bairro. Forneça um pequeno roteiro com as seguintes perguntas e
oriente-os a fazer a entrevista. Se possível peça que fotografem a pessoa exercendo
o ofício juntamente com os seus instrumentos e os resultados do trabalho.

Como é o seu nome?


Quando você iniciou este ofício? Quem lhe ensinou? Foi difícil aprender?
O que você mudou neste ofício desde quando você iniciou até hoje?
Como você adquire as suas ferramentas de trabalho? Você as compra ou as faz?
Se você as faz, como elas são feitas? Que materiais usa para fazê-los? Quais são as
principais ferramentas e para que servem?
Como você acha que vai ser o seu ofício daqui a alguns anos?

3. Monte um painel com os resultados trazidos pelos(as) estudantes e discuta com


eles(as) sobre os principais conteúdos abordados. Na conversa, relacione com o
processo de produção dos brinquedos de miriti e suas diferentes funções: como
artesanato, brinquedo e souvenir/lembrança do Círio de Nazaré (ver Prancha 8) e
como objeto de arte (ver Prancha 9). Estabeleça relações, também, com a pesquisa
do artista Jocatos sobre os personagens que exercem esses ofícios no bairro do
Guamá, conforme aborda Marisa Mokarzel no artigo sobre o artista neste livro.
Para tornar esse momento mais marcante, convide os (as) entrevistados (as) para
verem o resultado da pesquisa e para um bate-papo sobre seus saberes e fazeres.

Prancha 9

148
Prancha 8

149
Sobre o Círio de Nazaré como celebração religiosa e manifestação cultural

Para o antropólogo Isidoro Alves (2005, p. 65):

O Círio é uma grande procissão, certamente a maior procissão do


Brasil. É um evento que festeja Nossa Senhora de Nazaré, a padroeira
dos paraenses. Na verdade, o Círio é um grande ritual, com todos os
elementos pertinentes a um ritual coletivo no qual não só se festeja a
santa. É um momento essencial no calendário simbólico dos paraenses
em que está em foco sua identidade, seus valores e o sistema cultural
no qual adquire amplo significado.

Exercício 3: Celebrações como patrimônio imaterial

1. Escolha uma celebração, ritual ou outro tipo de manifestação cultural que reúna
em sua cidade muitas pessoas. Converse com os(as) estudantes sobre o assunto,
procurando extrair deles(as) informações sobre quando e onde acontece, quem
participa, como é a preparação, quais as indumentárias usadas, quais as comidas e
bebidas consumidas neste período, quanto tempo dura e o que é celebrado. No
diálogo, relacione com a celebração do Círio de Nazaré (ver Prancha 10).

2. Oriente os(as) estudantes a criarem, por meio do desenho e tendo como suporte
o papel cartão ou Kraft de boa gramatura, um personagem dessa manifestação
para em seguida recortá-lo. Usando jornais, revistas, retalhos de tecido, tesoura
e cola, peça-lhes que produzam a indumentária e os adereços para acrescentar
a esse personagem. Posteriormente peça-lhes para recortá-los e colá-los nos
respectivos personagens. Solicite que colem no verso do personagem uma vareta
de madeira (palito de churrasco) com aproximadamente vinte centímetros,
possibilitando segurá-lo com uma das mãos.

3. Divida a turma em dois grupos. Um deles vai elaborar um cenário representando


o local dessa manifestação e o outro irá preparar uma cena que represente um
momento dessa manifestação.

4. A apresentação poderá ser feita para as outras turmas da escola e convidados.

5. Ao final da apresentação, estabelecer um diálogo entre os participantes e os


espectadores sobre a manifestação escolhida e o Círio de Nazaré, relembrando
o conceito de patrimônio imaterial e como este se relaciona com a arte paraense;
para isso, utilize as Pranchas 8, 9, 10 e 11.

150
Prancha 11

Prancha 10

151
Sobre a linguagem fotográfica

Sobre a fotografia é importante ressaltar que esta não é apenas o registro literal
das imagens percebido pelo olho humano, mas, principalmente, daquilo que o fotógrafo
deseja representar. A representação fotográfica permite ao fotógrafo perceber um
determinado assunto e escolher o quê, quando e como fotografar.
O modo particular de perceber, escolher e capturar a imagem é que vai determinar
se a foto produzida exerce no observador as funções sociais teorizadas por Barthes
(1984, p. 48-49) de “[...] informar, representar, surpreender, fazer significar, dar vontade”.
E, conforme o autor é papel do observador reconhecê-la com maior ou menor prazer.
Entretanto, a qualidade da leitura que o(a) observador(a) pode fazer de uma
fotografia é determinada também pelo conhecimento que este ou esta tenha da linguagem
fotográfica. Para qualificar as leituras de imagens fotográficas dos(das) estudantes, é
fundamental que o(a) professor(a) trabalhe com estes ou estas os principais elementos
da linguagem fotográfica. O quadro abaixo e os exercícios seguintes poderão ajudar
nesse sentido.

Principais elementos da linguagem fotográfica:

1) Plano – é o enquadramento resultante do distanciamento da câmera em relação ao


objeto fotografado. Os planos variam, e, em geral, são definidos preponderantemente
pelo equilíbrio dos elementos que compõem o quadro do que por suas medidas
formais exatas. Tipos de Planos: Grandes Planos Gerais (GPG), Planos Gerais
(PG), Planos Médios (PM), Primeiro Plano (PP), e Plano de Detalhe (PD).
2) Foco – diz respeito à nitidez. Pode está relacionado com: o diferencial (quando
conseguimos diferenciar um elemento da fotografia em relação aos demais,
selecionando-o como ponto de maior nitidez dentro do quadro); desfoque;
profundidade de campo (diferença entre os pontos próximos e distantes
presentes num foco aceito como nítido na fotografia. A profundidade de campo varia
com a abertura da lente, com a distância entre a câmera e o objeto).
3) Movimento – são os efeitos técnicos e a posição e disposição dos objetos
fotografados.
4) Forma – abrange a organização dos objetos no espaço.
5) Ângulo – resulta da posição da máquina.
6) Cor – é cada matiz, observada na imagem fotográfica.
7) Textura – impressão visual que sugere a idéia de substância, densidade e tato.
8) Iluminação – luzes e sombras.
9) Distorções – efeitos provocados por reações óticas ou químicas.
10) Perspectiva – ilusão tridimensional provocada pela organização das linhas numa
superfície bidimensional.
11) Composição – disposição visual dos elementos.
12) Equilíbrio – interação contrabalançada dos componentes visuais.

OBS: Este quadro foi transposto do Material de Apoio Educativo para o Trabalho do professor
com Arte. Núcleo de Educação. XXIV Bienal de São Paulo (1998).

152
Experimente com seus alunos visualizar na Prancha 7 os principais elementos da
linguagem fotográfica. Para isto, use o recurso da Janela Fotográfica que segue.

Exercício 4: Janela fotográfica

1. Faça uma explanação objetiva sobre o que é o enquadramento na fotografia, exemplificando


com algumas imagens.

2. Oriente os(as) estudantes a elaborarem suas próprias janelas em papel Kraft ou papel
cartão.

3. Proponha que escolham imagens e exercitem o enquadramento nas mesmas. Chame a


atenção dos(das) estudantes para que observem o que ficou dentro e o que ficou fora
do enquadramento. Discuta com eles e elas as escolhas que estão fazendo em relação à
imagem, ao proporem novos enquadramentos.

Grande Plano Geral – GPG Primeiro Plano - PP

Plano Geral – PG Plano Médio - PM

153
4. Organize o grupo em equipes de dois ou três estudantes e oriente-os a criarem cenas
para exercitarem a visualização do enquadramento com a janela fotográfica. Peça que
discutam entre si as escolhas de enquadramento.

5. Faça uma avaliação sucinta com os(as) estudantes procurando perceber o que eles e
elas apreenderam durante a experiência. Complemente, lembrando que o fotógrafo ou a
fotógrafa quando vai fazer uma foto, seleciona aquilo que quer fotografar.

Exercício 5: Um diário da cidade

1. Divida a turma em grupos de até três estudantes e peça-lhes para observarem a cidade
durante uma semana, fotografando situações, manifestações culturais, religiosas e fazendo
anotações sobre o que ocorreu, com data e descrição dos lugares onde estas aconteceram.
Se não for possível fotografar solicite que desenhem.

2. Ao retornarem com os resultados, prepare com eles e elas o diário, organizando-o por
assuntos, como: problemas ambientais, manifestações culturais, patrimônio arquitetônico,
etc. Insira imagens, trechos de textos de aspectos relevantes produzidos nos outros
exercícios realizados.

OBS: Este exercício foi inspirado na proposta Um diário da cidade do Caderno de Estudos do Professor
Abre as asas sobre nós, Projeto Arte BR (INSTITUTO ARTE NA ESCOLA).

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158
Glossário

Alteridade – capacidade que um indivíduo tem de reconhecer as semelhanças e


diferenças (culturais, religiosas, físicas, econômicas, dentre outras) de um outro indivíduo
em relação à si mesmo e respeitá-las.

Ambivalência – característica de uma situação, imagem, objeto, frase que apresenta


dois aspectos ou dois valores diferentes ou mesmo opostos.

Andarilha – aquela que anda muito.

Antropomórficas – que possuem formas semelhantes às humanas; antropomorfas.

Antropozoomorfas – que possuem formas semelhantes à humana e à de animais


não racionais.

Apliques – são formas antropomorfas, zoomorfas, de plantas, dentre outras, feitas em


argila e aplicadas antes da queima em vasilhames e outros objetos.

Artefato – todo e qualquer objeto produzido pelo ser humano, para ser usado como
ferramenta, utensílio, adorno etc.

Arqueólogo – profissional da arqueologia.

Arte Rupestre – é a denominação genérica dada aos desenhos elaborados na


superfície de rochas existentes a céu aberto ou em cavernas, através das técnicas de
pintura ou gravação.

Assemblage – designa obras de arte que são criadas com fragmentos de vários tipos
de materiais, inclusive lixo doméstico. Este termo também já foi utilizado para definir
algumas fotomontagens e instalações que eram formadas pela aglomeração de materiais.

Associação FotoAtiva – Associação instituída no início dos anos 1980, como espaço
dedicado à formação na área da fotografia, tendo à frente, desde a sua criação, o fotógrafo
Miguel Chikaoka.

Bastidor – tipo de caixilho de madeira composto de dois aros, normalmente de forma


circular, que serve para esticar e prender o tecido para ser bordado.

Brinquedo de miriti – brinquedo colorido feito pelos artesãos de Abaetetuba, cuja


matéria-prima é a polpa que existe na tala do braço que segura as folhas da palmeira do
miriti, conhecida como miritizeiro.

Círio de Nossa Senhora de Nazaré – manifestação religiosa que ocorre em vários


municípios do Pará, mas em Belém congrega o maior número de pessoas e não se limita
ao segundo domingo de outubro, iniciando antes com a peregrinação da imagem da santa
por inúmeros lares. Entre as outras manifestações que antecedem a grande procissão
encontra-se o Círio Fluvial e a trasladação da imagem de Nossa Senhora de Nazaré para

159
a Igreja da Sé de onde sairá no dia seguinte dando início ao Círio.Antes também ocorrem
as manifestações profanas do Auto do Círio, a Festa da Chiquita e a Feira do Miriti que
se prolonga até alguns dias depois da procissão. Durante todo o período que se estende
até quinze dias após o Círio, há um arraial, situado próximo à Basílica de Nazaré.

Contraluz – é o efeito de fotografar um assunto no sentido oposto ao da luz, enfatizando


as formas e aumentando o contraste da imagem.

Cerâmica – objeto feito de argila e posteriormente cozido.


Cultura popular – expressão que não possui um significado preciso e adquire
diferentes significações conforme esteja relacionada à cultura folclórica, à cultura de
massa ou em oposição à “alta cultura”.

Curadoria – é o trabalho exercido pelo profissional da área de arte, cujo papel é pensar
e eleger o conceito e os critérios a serem utilizados na produção de uma exposição
de Arte. Com base nesses aspectos, o curador ou a curadora cria um texto visual ao
selecionar e organizar as obras, os textos e o ambiente da exposição.

Debrum – fita que se costura dobrada sobre a orla de um tecido para guarnecê-lo ou
segurar-lhe a trama.

Díptico/tríptico/políptico – em geral, quando se tem pintura, gravura, fotografia ou


outra técnica artística formada pela sequência, por exemplo, de dois quadros, denominamos
de díptico, por três de tríptico e por mais três denominamos de políptico.

Diversidade cultural – o conceito de diversidade cultural adotado pelas atuais


políticas públicas brasileiras e pela Unesco (2005) diz respeito à variedade de expressões e
manifestações culturais construídas e em construção pelos grupos e sociedades.

Efígie – representação plástica da imagem de uma pessoa real ou simbólica (especialmente


em vulto ou relevo).

Escavação – processo utilizado como parte da pesquisa em arqueologia, que visa conhecer
a ocupação humana num determinado local, denominado sítio arqueológico, através da
retirada sistemática do solo com objetivo de estudar os vestígios ali conservados.

Espectro – figura imaterial, real ou imaginária que povoa o pensamento.

Estação das Docas – complexo turístico e cultural localizado na região portuária


de Belém, formada por uma série de galpões, nos quais se encontram restaurantes,
sorveteria, banca de revista, lojas e um teatro/cinema. A Estação das Docas é muito
frequentada por turistas e pela população de Belém.

Ex-líbris – expressão latina que serve para designar uma pequena imagem carimbada,
colada ou impressa em um livro para identificar a propriedade do mesmo. Encontra-
se, em geral, na contracapa ou folha de rosto. A inscrição é formada por um logotipo,
brasão, monograma ou desenho que pode trazer a palavra ex-líbris seguida do nome do
proprietário.

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Fotografia autoral – é a fotografia que representa a expressão pessoal do fotógrafo.
Neste caso, o autor não precisa se preocupar como no fotojornalismo, com a objetividade
do registro de fatos, ou como na fotografia publicitária, com a sua utilidade.

Fotografia urbana – denominação adotada no Brasil para o que os americanos e


europeus chamam de street photography, fotografias produzidas pelos fotógrafos que
percorrem as ruas de uma determinada cidade em busca de aspectos diversos da vida
cotidiana. Sua preocupação maior é oferecer uma visão pessoal, subjetiva sobre a vida na
cidade.

Fotojornalista – profissional que se dedica a produzir fotografias de interesse


jornalístico, ou seja, que em geral registra fatos procurando oferecer uma visão objetiva
e o mais informativa possível sobre o mesmo.

Fruidor – é aquele que pode desfrutar prazerosamente algo. No caso da obra de arte,
é o espectador que se encontra diante da obra, desfrutando uma relação mais próxima
com a arte, de usufruto e prazer.

Girândola – suporte de miriti, em formato de cruz, que o vendedor apoia nos ombros e
com ele percorre a cidade durante as festividades do Círio de Nazaré. A girândola ao ficar
repleta de variados brinquedos, parece mais um buquê de diferentes cores.

Grafismo – quando relacionado à cerâmica arqueológica refere-se aos padrões


decorativos que representam formas humanas, de animais, de plantas ou apenas linhas e
formas chamadas grafismos puros.

Gravura – técnica artística de reprodução que permite multiplicar a imagem de acordo


com as cópias tiradas a partir de uma matriz. A xilogravura é a mais antiga técnica que
tem como matriz a madeira, na qual os artistas gravam a imagem que querem imprimir.
Na gravura em metal as matrizes costumam ser de placas de cobre, zinco ou latão. Usa-
se a incisão direta ou banhos de ácido. As técnicas em metal mais usuais são: Água-forte,
água-tinta e ponta seca. Na litografia usa-se a pedra como matriz. Desenha-se a imagem
sobre a pedra com material gorduroso, aplicando-se depois o ácido para o desenho ser
gravado e posteriormente impresso no papel. Existem outros processos de gravura mais
recentes como a serigrafia e a gravura digital. Há ainda processos contemporâneos que
questionam os princípios da gravura enquanto meio de reprodução. Estes novos processos
muitas vezes ocorrem sem a utilização de matrizes tradicionais, ou que acontecem no
próprio espaço expositivo, sendo efêmeros, sujeitos ao desaparecimento com o término
da exposição.

Identidade cultural – o conceito de identidade comumente conhecido está


relacionado ao conjunto de singularidades de um indivíduo, ou objeto, ou grupo social,
que o torna diferente dos outros; e também ao conjunto de características que possibilita
esse indivíduo, ou objeto, ou grupo social ser reconhecido ao longo de sua existência
como o mesmo.

Incisão – técnica de decoração em que se usa uma ferramenta de ponta aguda para
riscar a argila e produzir o desenho na cerâmica.

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Instalação – manifestação artística que tem como diretriz um conceito e caracteriza-se
pela inserção no ambiente, de uma obra composta por vários elementos, sendo possível
utilizar diferentes linguagens e suportes.

Intertextuais – leituras que permitem estabelecer relações entre textos diferentes.


Neste caso, as imagens estão sendo tratadas como textos visuais a serem lidos.

Maniçoba – comida semelhante à feijoada, que em vez do feijão é feita com a maniva,
folha da mandioca e cozida durante vários dias, também servida no almoço do Círio.
Assemelha-se à feijoada porque à maniva cozida são adicionados diversos ingredientes
comuns à feijoada, como: chouriço, linguiça, paio, charque, orelha e pé de porco.

Memória coletiva – memória é a capacidade que o ser humano tem de selecionar


fatos e lembranças do passado, interpretá-los e retê-los por algum tempo. A memória
coletiva possui uma função muito importante na sociedade, pois ela contribui para o
sentimento de pertencimento a um grupo do passado comum que compartilha memórias.
A memória coletiva garante o sentimento de identidade do indivíduo que faz parte de
uma memória compartilhada, no campo histórico e no campo simbólico. A memória é
uma interpretação do passado feita no presente.

Minimalismo – termo que designa um movimento artístico que surgiu na década de


1950 e expandiu-se nos Estados Unidos, fazendo uso de formas geométricas na pintura
e, principalmente, em formas tridimensionais, explorando peças simples com repetições
que mantinham uma estreita relação com o espaço em que se encontravam expostas.

Não-lugar – termo utilizado por Augé (2001) para designar lugares de passagem nos
quais há grande circulação de coisas e pessoas.

Neoconcretismo – movimento brasileiro do final da década de 1950, que vaise opor


ao concretismo originariamente formado pelos grupos Frente (Rio de Janeiro) e Ruptura
(São Paulo), que propunham uma arte abstrata de base racionalista e construtivista. Os
neoconcretos negam os princípios concretistas e marcam as divergências entre Rio e São
Paulo. O grupo carioca se opõe a ortodoxia construtiva e defendem a experimentação
de caráter mais livre e subjetivo.

Patrimônio cultural – a atual Constituição brasileira define patrimônio cultural


como o conjunto de bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou
em conjunto, portadores de referência à identidade, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os
modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras,
objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Percepção – é o ato de conhecer o mundo, objetos e pessoas à nossa volta por meio
dos sentidos (audição, visão, gustação, tato e olfato) e da noção de tempo e espaço.

Pitiú – termo próprio da Amazônia para designar o odor forte que neste caso vem do
peixe.

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Plasmar – dar a forma; modelar.

Polifônica – formada de vários sons; relativa a diversas vozes.

Polissêmico – formado de vários signos.

Porta cega – termo utilizado para designar portas vedadas com cimento ou outro
material, normalmente encontradas em imóveis desabitados e degradados, para evitar a
entrada nos mesmo.

Ready-made – nome com o qual Marcel Duchamp designou os objetos que retirou
do campo da indústria e os colocou no campo da arte. O primeiro dos ready-made foi
uma roda de bicicleta sobre um banco. Na classificação de Duchamp existe o “semi ready-
made”. O objeto em que o artista realiza alguma interferência; o ready-made puro, em que
o objeto apresenta-se tal como é, como veio da fábrica; e, finalmente o objet trouvé, que
seria um objeto proveniente de uma escolha estética, diferenciando-se do ready-made,
escolhido por acaso e não por exercício de gosto.

Rizomático – este termo é derivado da palavra Rizoma, que na Botânica refere-se à


estrutura de algumas plantas, cujos brotos podem se ramificar a partir de qualquer ponto
do seu corpus e não necessariamente da raiz, podendo se transformar em um bulbo ou
tubérculo. Esse tipo de estrutura serve para exemplificar um sistema epistemológico
em que não há raízes, ou seja, proposições ou inferências mais fundamentais que outras,
capazes de se ramificar conforme dicotomias estritas.

Ruge-ruge – barulho produzido por qualquer coisa que range ou roça; ruídos
produzidos por roupas que roçam ou se arrastam pelo chão.

Séries fotográficas – conjuntos de imagens fotográficas que possuem semelhanças


temáticas e/ou estruturais de um mesmo autor e que são determinadas como tal.

Sítio arqueológico – local onde é encontrada significativa quantidade de vestígios


arqueológicos, que podem fornecer informações sobre: como viveram outros povos,
quais eram as suas atividades cotidianas, os tipos de alimentação e habitação, dentre
muitas outras informações que a arqueologia pesquisa.

Suporte – é a base que recebe a intervenção do artista: papel, tecido, madeira e muitos
outros.

Sutura – operação que consiste na junção e costura das duas partes de uma ferida
aberta. No texto sobre Elieni Tenório, essa palavra é usada metaforicamente.

Transumância – palavra que pode significar migração, entrada e saída de indivíduos


de um lugar, em busca de melhores condições de vida. Deslocamento periódico de um
rebanho.

Terra preta – tipo de solo de cor escura, formado ao longo do tempo devido à ação
humana e onde se encontram sinais da cultura e das atividades exercidas pelos nossos
antepassados.

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Tucupi – líquido amarelo proveniente da mandioca, no qual o pato é servido no almoço
do Círio e, em geral, nos dias de festas.

Turbante – pano ou lenço enrolado na cabeça.

Urna funerária – vasilha de cerâmica utilizada por determinados grupos indígenas


para enterramentos de seus mortos.

Voyeur – alguém que assiste para a sua satisfação e prazer, e sem ser visto, a uma cena
erótica; atitude daquele que observa algo que lhe dá prazer, sem ser visto.

Xilogravura – técnica artística que se realiza pelo ato de gravar. O desenho é feito
por meio da incisão em uma superfície de madeira, com um instrumento chamado goiva.
Em seguida, usa-se um pequeno rolo de pintura para passar a tinta sobre a madeira, não
dando tempo para que a mesma seque, e então, imprime-se a madeira sobre o papel.

Zoomorfa – que possui forma semelhante às formas de animais.

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PATROCÍNIO

REALIZAÇÃO
Prancha 6: Detalhe da instalação Sobre a Pele, de Elieni Tenório.
Foto: Marco Antônio Serrão.
Acervo: Elieni Tenório.
Olha lá
Vai passando
A procissão se arrastando
Que nem cobra
Pelo chão
As pessoas
Que nela vão passando
Acreditam nas coisas
Lá do céu
As mulheres cantando
Tiram versos
Os homens escutando
Tiram o chapéu
Gilberto Gil

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