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dp) aKe)v7AN a Luciane Munhoz de Omena Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) Capitulo 1 ASPECTOS LEGAIS DOMUINDO FUNERARIOROMANO® José Remesal-Rodriguex A evolucao do estudo da Antiguidade levou-nos a dividir 0 co- nhecimento de modo excessivo, j4 que muitos aspectos sao estu- dados em uma s6 “disciplina”, esquecendo-se que a vida é, em si, indivisivel, e que nds s6 a observamos pot distintos aspectos. Mas, ao isolar algum deles, corremos 0 risco de perder uma perspectiva global, a que nos ajuda a compreender um fendmeno histérico. Gostaria de fazer minhas as palavras de M. Rostovzeff (1922; cf. Rodriguez, 1992), ou as de Kaser (1978: 89), para chamar a atenc’o sobre a necessidade de saber inter-relacionar fontes lite- rarias e arqueoldgicas, como Rostovtzeff faz, e fontes literarias, epigraficas e juridicas como Kaser quer. Em iltima instancia, o que reclamo é a necessidade de abordar qualquer tema, desde todas as perspectivas possiveis. No entanto, o titulo do meu artigo trai-me 4 primeira vista. Espero que nao seja assim. Pretendo, em um congresso de “ar- quedlogos”, chamar a atencio sobre a necessidade que 0 arqueé- logo tem de estar inclinado a outras fontes. Sirva-me de exemplo a famosa questao, para os juristas, da actio aquae pluniae arcendae, que, raras vezes, se fixaram na realidade arqueologica e, 4 inversa, arquedlogos, ocasionalmente, se perguntatam por esta questao 6. Artigo foi publicado em: Rodriguez, José Remesal. Aspectos legales del mundo funerario romano. Vaquerizo, D. Espacios y usos funerarios en ef Occidente Romano. Uni- versidad de Cordoba: Cordoba, 2002. O artigo € produto de investigacio dentro do projeto BHA 2000-731 da DGICYT. Dada a relevincia do trabalho, © artigo foi traduzido do castelhano ao portugués por Rosario Aparicio Lépez e revisado Por Luciane Munhoz de Omena e Pedro Paulo A. Funari 25 tect | Td Luciane Munhoz de Omena Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) juridica na hora de entender e propor restituicdes de telhados, ou decursos de esgoto.” A respeito do estudo do mundo funeratio romano, é palpavel a atomizacao da investigacao, particularmente notavel entre os estudos juridicos e arqueolégicos;* por esta razao, gostaria de cha- mar a aten¢ao sobre uma série de questées legais que, actedito, seriam tteis tanto ao “arquedlogo” 4 hora de compreender o que escava, como ao “jurista” 4 hora de ver plasmado na tealidade o que seus textos dizem. Remito as obras citadas na bibliografia para a compreensio dos aspectos jutidicos relativos ao mundo funerario, em particular aos trabalhos de Kaset e De Visscher.’ 7. Em D. 39.3.4.0, recolhe a opiniio de Labedn, jurista da época de Augusto, que se um sepulcro cria problemas com agua de chuva para 0 izinho, o responsavel € © construtor ¢ se o sepulcro se desmonta por esta causa nao se considera violagio de sepultura. 8. Bastaria citar de novo a obra de Kaser, que nao presta nenhuma atencio aos estu- dos arqueolégicos ou a de H. Von Hesberg, Romische Grabbauten Darmstadt 1992, j4 que no considera os aspectos legais, determinantes na construgio de um prédi 9. M. Kaser, op. cit. Visscher, Le droit des tombeaus romains, com a extensa biblio- grafia recolhida nestas obras. Veja-se também aos trabalhos de Johnston, Prohibi- tions and Perpetuities: family settlements in Roman Law. ZS 102, 1985, 220-290. Idem, The roman Law of Trust Oxford 1988. As fontes epigrificas foram recolhidas por Dessau em ILS e também em Arangio-Ruiz, Negotia FIRA, III. 1943. H. v. Hesberg und P. Zanker (Hrsg.) Rérischen Graberstrassen. Miinchen 1987 (para o nos- so propésito vejam-se os trabalhos neste volume de Eck, Ravische Grabinschifien Anssage- absicht und Anssagefabigheit in funeraren Kontext. pp. 61- 83; Baldasarre, La necropoli delllcola Sacra (Porto.) pp. 125-138. Ortalli, La via dei sepolei di Sarsina. Aspetti funzjonali, formali ¢ sociali. pp. 155-182). Calore, “Aspetti guitidici del testamento di un gallo dei lingoni” In: Le Bohec (Ed.). Le testament di lingon. Collection du Centre d'Etudes Romaines et Gallo-romaines. Abascal Palazén, A morte em Roma: fontes, legislacio e evidéncias arqueolégicas. In: Vaquerizo Gil (Coord.). Arqueolagia de Ja muerte. Metodologia_y perspectivas actuales, 205-246. Engels, Funernm Sepulerorumgue Magnificentia. Begriignis und Grabluxusgesetze in der Griechis-Rimichen Welt. Para os do- cumentos hispanicos veja-se D’Ors, Epigrafia juridica de la Espaiia Romana. L6- pez Melero; Stylow, Una pena sepulcral a favor de la res publica Aiungitanorum. Espacio, Tiempo y Forma, 219-253. Vaquerizo Gil (Coord.), Funns cordobensiun. Cos- tnmbres funerarias en la Cérdoba romana. com extensa bibliografia. 26 Praticas Funerdrias no Mediterraneo Romano E preciso considerar que as formas juridicas constituem a fixacio de determinados elementos da vida social, uma vez que sempre esto em mutacao, mais ou menos rapida. Quando a mu- taco é lenta, apenas ha conflito entre legalidade e vida social, quando a mutacio é rapida, a formulagio legal esta sempre atra- sada em relacio 4 realidade social, algumas vezes sem conflito, : porque a sociedade vai encontrando resquicios de adaptagio e reinterpretacio das velhas leis (cf. Arpon, 1997). O mundo romano imperial englobou uma multidio de povos, em um diverso estado de evolucio social e com crengas variadas. No entanto, 0 mundo romano imperial foi capaz de criar uma sé- tie de elementos de coesio social entre tantos povos distintos que, neste caso, cabe destacar a difusio de um direito privilegiado, o di- reito romano, e uma forma de aculturagio religiosa, que permitiu difundir as ideais do além-timulo dos romanos, ou, pelo menos, as formas sociais de representar essas ideias do além-timulo. ‘Trés elementos sociais intervém, na minha opiniao, na con- frontacio entre o direito — realidade social fixada — e a sociedade em evolugio: a diversidade de culturas que se estendeu o direito romano; a distingio econémico-social entre os distintos setores da sociedade e a difusio do grau de romanizagio dos povos ou personagens. Sem esquecer a complexa e inescrutavel rede de interesses pessoais de quem, em todo momento, queria valer-se do direito ou rejeita-lo. A visio romana da morte carecia de uma definida perspec- tiva do além-timulo, um individuo, para sobreviver como tal, _ fecessitava que alguém recordasse sua existéncia, que rendesse ~ culto ao seu mumen e ao seu nomen. Quando eta esquecido, sua in- dividualidade desaparecia e a alma do individuo passava a formar parte de uma massa indefinida, os di inferi, os manes, pois, como -Propomos, os romanos acreditavam que os mortos podiam ser Perniciosos a0 homem. A unica forma de sobreviver dentro da ‘Mentalidade romana era que alguém 0 recordasse: memoria aeter- na, Dai o individuo precisava perdurar a sua existéncia. A unica 27 Luciane Munhoz de Omena Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) garantia para isso eta deixar atras de si um nticleo de pessoas que © recordassem, por meio da familia, por meio de um determina- do coletivo, por meio de um conjunto da sociedade (cf. Cumont, 1942 e 1949; Toynbee, 1971; Prieur, 1991). Na mentalidade romana, o direito sepulcral esta além do direi- to civil, € um direito sacto e 0 sacto pata os romanos era sindnimo de inviolavel e de eterno. Como se resume em D. 11.7.43, a razao a favor da religiao é suprema. Portanto, a vontade de um defunto se transforma em uma dex sacra, que é uma dex : privata, sem nenhu- ma validade no direito civil, mas situada por acima dele. Pot isso, um testamento que considera a vontade de um defunto, adquire igualmente esta prerrogativa de sacralidade."” Por outra parte, o sagrado nao podia ser propriedade de um humano (D. 1.8.6.2) e, quando o regulava, estava submetido ao direito pontifical. A tum- ba era um /ocns religiosus. Bastava enterrar um cadaver em um es- Paco para converté-lo em sagrado, como se resume em D. 1.8.6.4. Claro, estas abstratas construgdes ideolégicas chocavam, com frequéncia, com o desenvolvimento da vida quotidiana. A possibilidade de que alguém enterrasse um defunto em qualquer lugar e, convertesse em area sacra, podia criar mais de um confli- to. Aqui intervinha o direito civil, a medida que se podia regular © uso de um local sacro, sempre que nao afetasse 0 diteito pon- tifical. Assim, quem enterrava um cadaver em um lugar alheio, sem a autorizacio do dono, estava obrigado a desenterra-lo; no entanto, o dono do terreno nao podia desenterra-lo se nao tives- se a autorizacao dos pontifices ou do Principe (D. 11.7.7.8.0). Esse texto demonstra a complexidade a que estamos nos teferindo: se um desconhecido enterrava um cadaver na pro- Priedade de outro, obrigava o dono a um complexo processo € 10. D. 281.1: Testamentum est uoluntatis nostrae insta sententia de eo, quod quis post mortem suam feri uelit. Ame- loti, Id Testamento romano I. Le forme classiche di testamento. Migliar- di Zingale, I Testamenti romani nei papiri e nelle tavolette d'Egitte. ‘Tellegen, The Roman Law of Succession in the Letters of Pliny the Younger I. Studia Amstelodamensia ad “pigraphicam ius antiquum et papyrologicam pertinentia XX\. 28 Priticas Funerdrias no Mediterraneo Romano s para exumar o cadaver. Claro que bastava a autorizacio a weriori do dono para que o lugar adquirisse o carater de sacro (D. 1.8.6.4). Mas isso gerava de imediato uma série de condigdes - de direito civil: servidio de passo até a tumba, o iver ad sepulerum. Mas como as intengdes humanas sio muito complexas, o legislador ja previu que alguém que no quisesse atrapalhar um “deus inferior” e se, em principio, nao Ihe causasse grandes pro- blemas em sua propriedade a existéncia de uma “tumba des- conhecida”, podia terminar esquecendo-se dela. Mais tarde, o “enterrador desconhecido” podia aparecer e reclamar 0 uso da teferida tumba. Para salvar-se deste obstaculo legal, bem como desta possibilidade de abuso do direito prévio do sujeito, em fungio da ocupagio continuada ilegal, nio gerava, segundo © legislador, direito de sepultura para quem nio o tivesse o 11.8.4.0); ademais, se mantinha a obrigacao para o enterrador “fraudulento” de desenterrar o cadaver (D. 1.7.7.0) e, de fato, fechava-se o caminho para quem, com perversas intengdes, qui- sesse se beneficiar da sacralidade de uma tumba e do medo que pudesse despertar em outro um deus inferior. Pode © arquedlogo encontrar testemunho destas situacdes? Talvez algumas das tumbas que interpretamos como “violadas” se- jam tumbas “abusivas”, que, no seu dia, alguém obrigou a trasladar. Assim, embora o direito pontifical permitisse a qualquer um converter um lugar em sacro pelo fato de enterrar um cadaver, a organizacao social exigia que o enterramento se produzisse Somente em um lugar autorizado. Inclusive um vizinho podia denunciar a construcio de uma sepultura proxima da sua casa; Porém, se a edificagao tivesse sido finalizada ja niio poderia pro- funciar-se, a menos que a obra envolvesse atos de violéncia (D. 11.8.3.0). Mas, se nessa tumba tivesse sido enterrado alguém, de modo algum, se podia impedir a continuagio de sua construcio. Neste caso, eram os pontifices quem deviam determinar de que modo continuaria a edificagao (D. 1.8.5.0). 29 Luciane Munhoz de Omena Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) Se alguém era enterrado temporariamente em um lugar, o lo- cal nao se convertia em sacro (D. 11.7.4.0). Se um cadaver fosse enterrado em varios espacos, se transformava em sacro sé a atea onde estava enterrada a cabega (D. 11.7.4.2). Para um romano eta sagrada tanto a tumba de um cidadao, como a de um esctavo, que era uma posse do cidadao, entretan- to, nao a de um inimigo (D. 47.12.1.11). Deste modo, destruit as necropoles de uma cidade inimiga assedia da podia produzir um grande efeito psicolégico nos sitiados. Porém, nao devia criar ne- nhum problema nem moral nem teligioso ao sitiador romano; no entanto, o romano sabia defender-se também deste problema se era ele o sitiado: a terra ocupada pelo inimigo perdia, enquanto esti- vesse apropriada, seu carater de sagrada ou religiosa (D. 11.7.36.0). Esta liberdade para importunar os deuses infernais do inimi- go talvez possa explicar ao atquedlogo o fato de que, as vezes, em uma especifica necrépole, se aprecie a reutilizacio sistema- tica, em um dado periodo, de materiais de um periodo anterior, procedentes, provavelmente, da destruicao sistematica da nect6- pole por inimigos. Ao longo do império romano a jurisprudéncia foi capaz de distinguir, de forma clara, entre o que podia definir-se como sa- cro, ou nao, em relacao a um enterramento, mediante a distingao entre os conceitos de sepulcro e monumento: Sepulerum est ubi corpus ossave hominis condita sunt. Celsus autem dit: non totus qui sepultu- rae destinatus est. Monumentum est quod memoriae servandae gratia existat (D. 11.7.2.5-6). Sacto é, pois, s6 o lugar exato onde repousam os restos, o restante, seja grande ou pequena a tumba, é sé um teste- munho destinado a conservar a memoria do defunto. Tal distin- ¢40, como logo veremos, tem um grande significado econdmico. Assim, pois, o primeito problema na vida cotidiana ante a existéncia de um defunto, era encontrar um lugar “legal” onde enterra-lo. Quem possuia terras podia se enterrar na sua proprie- dade, e disso séo testemunhas os monumentos sepulcrais disse- 30 Priticas Funerdrias no Mediterraneo Romano minados pelos campos.'' Quem vivia em uma cidade e queria enterrar-se em uma das necr6poles da cidade tinha que adquirir o terreno. A epigrafia demonstra que as cidades concederam lu- gares publicos para sepultar seus notaveis cidadios.’* Se sacro é s6 o lugar onde esta depositado um cadaver, nao é sacro nem um cenotafio nem um monumento sepulcral no qual ainda nao foi enterrado ninguém. Por isso, um monumen- to construido, mas nao ocupado, pode ser objeto de venda. O Digesto faz patente (D. 17.2. 52.7) que existiam sociedades fune- ririas dedicadas a construir tumbas para a venda. Tanto o arque- logo como o epigrafista deveriam levar isto em consideracio. O arquedlogo deveria ter ciéncia de que é possivel que os progra- mas decorativos de uma tumba nao obedecessem ao desejo do proprietario da tumba, sendo a um gosto generalizado difundido pelos contratistas, que colocam no mercado um determinado produto. Em particular se, como veremos, um prédio funerdrio podia ser cedido ou vendido em parte. Assim, acredito que poderiam interpretar-se alguns mo- numentos da necrépole de Isola Sacra.'* Sabemos, pois, que a construgao dos monumentos e de suas fachadas, em edificio pré-construido, indicavam a inclusio a posterior’ de inscrigdes e realces relativos aos oficios dos compradores. Na necropole de 11. Novamente o direito nos mostra que vida social era mais complexa do que podemos perceber por meio dos restos materiais. Porque quem tinha apenas a nua Propriedade ou 0 usufruto de um lugar nao podia enterrar ninguém li (se faz uma excecio com 0 cadaver que legou o usufruto, se nao hover nenhum lugar melhor onde enterri-lo), também no podia enterrar-se em um lugar submetido a servidio sem 0 consentimento do titular da servidao (D. 11.7.2.7-8) 12. Os testemunhos epigrificos sio muito abundantes. Refiro-me 4 obra de Wes- ch-Klein, Funuspublicum. Eine Studiesuroffentlichen Beisetzding und Gewibrang von Ebren- ribern in Rom und den Westprovingen, (Habes, 14). Também temos depoimentos de individuos que legam um espago para constituir uma necr6pole em favor dos ci- dadiios menos pudentes (Desau ILS .7846) (¢f. J. Ortalli. Artigo citado na nota 5). 13. Calza, La necropoli del porto di Roma nell'sola sacra. ‘Vhylander, Inscriptions du Port ’Ostie, Baldassare (cf. articulo cit. Nota 5). 31: Luciane Munhoz de Omena Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) Isola Sacra temos uma grande quantidade de documentos epigra- ficos que demonstram que, inclusive, alguns destes monumentos foram vendidos em parte por seus donos. Um dos casos mais significativos é 0 da tumba 94, uma tal Valeria Trophima vende parte da tumba para um Ewhodus, servo do Imperador, uma outta parte para outto servo imperial, Tro- phimus, e outta parte para um tal C. Galeestins Helius que, por sua vez, exige de sua vendedora a compra de /ocus purus ainda nio ocupado por nenhum enterramento, condi¢ao juridica necessa- tia para que se pudesse vender esta parte da tumba. Dos outros compradores, interessa-me ressaltar que eram servos imperiais, so para assinalar que em uma mesma tumba podiam ser enterra- das pessoas em condigao social diversa, embora nao entrasse na discussio de como um esctavo podia comprar uma tumba para si e sua companheira... ef /ibertis libertabusque eius posterique eorum, como reza a formula sepulcral da sua inscri¢ao.'* Interessante também é © caso da tumba 75/76. Em princi- pio, trés personagens: M Cocceius Duphnus, M. Antonius Agathias M. Ulpius Domitins construiram em conjunto um recinto de qua- renta pés de lado (12 x 12m). A morte de Cowceius Daphus, M. An- tonius Agathias ficou com um tetco do monumento, fazendo um muro divisério e abrindo uma nova porta no muro frontal para poder aceder a sua porcio. Dado que o monumento se encontra telativamente bem conservado € possivel que o “atquedlogo” intuisse a existéncia destas duas fases construtivas. O “epigra- fista”, dado que a inscti¢ao se conserva, pode nos informar os nomes das personagens vinculadas com esta tumba. O “jurista”, gracas a inscricao, também pode indicar que se estabeleceu uma sociedade pata a construcao da tumba, que se dissolveu com a morte de um dos sécios. O “historiador” € capaz de compreender todo 0 processo: trés personagens, pertencentes a trés familias diversas, dois deles 14. Ibidem, 282 pl. XXX.5; Thylander, op. cit. A 96; A 124; A 251. 32 Praticas Funerarias no Mediterrineo Romano aphnus ¢ Agathias segutamente de origem liberta por seus cogno- na gtegos (€ dificil assegurar a origem social do tetceiro, inclu- ve poderia tratar-se de um liberto, ou descendente de um liber- to, do Imperador Trajano, como o M. Cocceius Daphnus poderia ser o descendente de um liberto do Imperador Nerva)'> consti- tuem uma sociedade para construir uma tumba. Nao sabemos _ se o solar da tumba pertencia a algum deles ou se tiveram que adquiti-lo ao constituirt a sociedade. Tampouco sabemos se cada _ s6cio contribuiu sé com capital ou se algum deles auxiliou com _ trabalho ou aportando o terreno da tumba; 0 que é patente é que Antonius Agathias eta ptoprictario de um tergo e que os outros sécios também o eram, provavelmente, na mesma proporcao. Morto um deles, neste caso Daphnus, dissolveu-se a sociedade como era norma no direito romano (D. 17.2.59.0). Agathias re- cebeu seu ter¢o e€ o individualizou, dividindo 0 espacgo da tumba com um muto e fazendo uma nova porta. Os outros dois ter- Gos ficarain unidos, o que significa que U/pins Domitius herdou a parte do terceito s6cio, Cocceius Daphnhus, 0 s6cio pré-morto, ou que ele e os herdeiros de Daphnus criaram uma sociedade nova. Actedito que fica claro que s6 a andlise de todas as perspectivas é © que nos permite compreender o significado de um fato histori- 0, cuja interpretacao, vista somente por um tinico tipo de fonte, levando-se em consideracio as distintas bases documentais as ~ quais temos acesso, seria muito limitada. i Outro exemplo, procedente também da necrdpole de Lso/a _ Sacra, serve para ilustrar esta necessidade de combinar toda nos- sa informagao: ja Calza advertiu que a tumba 89 havia sido cons- truida aproveitando o espaco existente entre as tumbas 88 e 90, __ tumbas gémeas.'* Adverte que na tumba 90 encontrou-se én situ 15. Claro que os nossos personagens podem nio ter nada a ver com os membros _ da familia imperial, se me atrevo a fazer esta proposta é porque, como sabemos, na Recrépole de Isola Sacra aparecem também servos do imperador (vide supra). 16. Calza op. cit. 348-354, Se tio semelhantes sio as tumbas 88 ¢ 90 seriam um €xemplo de tumbas construidas por um “construtor” para sua posterior venda. 33 Luciane Munhoz de Omena Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) um selo em um tijolo datado entre 123 e 126 d.C. e da tumba 89 diz... 8 di epoca pinttosto tarda e roxxa (III secolo). Calza nfo se questionou sobre a dificuldade juridica que su- poe que uma tumba fechasse 0 caminho para outras duas. Por sorte, temos a inscri¢io da tumba 90 que, de fato, explica bem o caso; a tumba foi construida por Messia Candida, para seu esposo, para si e para seus libertos e descendentes. .. /ocus concessus ap (sic) Gavinis II Chresimo et Exntycho et ap (sic) Antonis II Inliano et Pohone ... Quer dizer, 0 espaco existente entre ambas as tumbas pertencia a quatro individuos de duas diferentes familias, que concordaram em conceder este espaco a Messia Candida, mas eles mesmos nao podiam fechar seu proprio passo para suas respectivas tumbas familiares, por isso, a inscrigio conclui consentindo... itu ambitu intritum liberum, entrada e passo livre, entende-se isto para as tum- bas de quem havia permitido a construgio desta nova tumba. Sabemos que a tumba 88 pertencia a familia dos Antoni, gra- cas ao achado de uma inscricgfo dedicada por seus filhos a M. Antonius Hermetis e sua esposa Iulia C(ai) Filia) Quinta.” Enquanto a tumba 90 pertenceu aos Gabinii, sendo seus primeiros proprie- trios P. Gabinius Longinus e sua esposa Annia Epictesis, para quem também dedica uma inscricio Aunia Ionive.'* No recinto antepos- to 4 tumba, no entanto, enterrou-se um liberto imperial: T. Mavins Felix, que estava enterrado em um sarcéfago construido pouco depois do momento fundacional da tumba, segundo Calza. Ou- tra inscricio encontrada na tumba, pertencente a uma segunda fase, mostra que dois membros da familia Amnia, Vitalis e Deca, junto com uma tal Aperella Hieronide, de quem nio sabemos como adquiriu direitos desta tumba, talvez por matriménio com um Annis, concedem um lugar de enterramento a L. Cavcilius Vie- tor, para sua esposa Caecilia Higiaer e para seus libertos. Comenta 17. O fato de que figure a filiagio da esposa, mas niio a de Antonius Hermetis mani- festa que 0 marido era de condigio liberta, conforme indica seu mesmo cognomen. 18. Observa-se a formagio do nome do filho vario, que recebe como cognomen um derivado do nomen da mie, ¢ a da filha, que porta 0 nomen da mie e niio do pai 34 Praticas Funerarias no Mediterraneo Romano Calza: Liiscrizione ci da um esempio chiaro del sucedersi delle tombe. Lem- bremos que 0 sepulerum nao podia ser objeto de doagio ou ven- da, mas se 0 monumentum ou parte de um monumento ainda nao ocupado. Por isso, Caecilius Victor assinala na sua inscti¢ao que lhe foi doado um pavimentum purum virgin(is) monumenti huins, um lugar no qual ainda nao se depositou nenhum cadaver, onde ele, nas suas expensas, construiu sarcophaga nova. Nao é uma apteciacao exagerada esta que fazemos a citacao de Calza, porque ao falar de uma tumba no mundo romano €¢ preciso distinguit a parte sacra da nao sacra da tumba. Doado ou vendido s6 podia ser o lugar da tumba onde nao tivesse um enterramento anterior. Um lugar sacro podia ser violado de muitas formas, por exemplo, cobrindo uma tumba com terta (D. 43.24.15.2) ou se alguém edificasse o beiral de um telhado de forma que cobrisse a tumba (D. 43.24.22.4)."” Como sacto era s6 o lugar da deposi- cao, quem danificasse 0 monumento ou as estatuas que 0 deco- m incorria em uma injuria, mas nao em uma violagao (D. ras 47.10.27.0). Naturalmente, quem repara um monumento sem alterat o lugar sacto nao comete violacao. Mas também era con- siderado outro tipo de desrespeito, 0 que poderiamos chamar violacéo moral, a que cometia o herdeito que enterrasse alguém em uma tumba contra a vontade do testador (D. 47.12.2.11). Produziam-se também violag6es involuntarias, como aquele que arava um campo no qual existissem tumbas abandonadas e es- quecidas. Neste caso, o fisco exigia que fosse entregue a metade dos tesouros enconttados (D. 49.14.3.10). A violagao de um sepulcto levava, pata as pessoas de con- dicao humilde, 4 pena de morte, enquanto que os de melhor condicao social eram condenados ao destetto ou as minas. Os deportados deviam ser enterrados no lugar da deportagio, con- denando-os ao esquecimento, ja que a tumba estaria distante de 19. Dado que o arqucdlogo tera que manter presente & hora de propor as anilises do telhado de um prédio muito préximo de uma tumba. 35: Luciane Munhoz de Omena Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) seus familiares.” Qualquer pessoa podia exercer uma acio ju- dicial contra a violagio de um sepulcro, em primeiro lugar 0 herdeiro da tumba (D. 47.12.1.11). As inscricdes demonstram que o defunto protegia seu monumento fazendo participes do beneficio da multa ao colégio sacerdotal, ao fisco, ou a uma cor- poragao, com a esperanca de que estes exercessem a ago em espera do beneficio econémico da multa. Um enterro acarretava gastos. Era obrigacio do pai enterrar o filho e do herdeiro o testador, mas se alguém, sem ser o herdei- ro, tomasse como responsabilidade o enterro podia exigir ser res- sarcido dos gastos (D. 11.7.12.3). Nesse sentido, incluiam-se aos gastos, com o cadaver no momento do enterro, investimentos, como, por exemplo, unguentos, prego da sepultura, impostos, se for 0 caso, entre outros (D. 11.7.37.0); estas despesas se dedu- zem sempre da heranga (D. 11.7.45.0), devido a isso, um herdeiro obrigado a construir um monumento por um valor determinado podia deduzir do prego fixado ou cinco por cento, valor do im- posto da vigesima hereditatis. Mas era socialmente elegante construir pelo valor total mencionado, fazendo inscrever no monumento a formula... sine ulla dedutione XX hereditatis. Se alguém recebesse um legado com a condigio de construir uma tumba, reduzia-se parte do seu legado na quantia fixada para a tumba (D. 35.2.1.19). Nem todas as pessoas eram enterradas nas Areas sepulcrais definidas, j4 que as tumbas situadas em propriedades particulares expunham problemas entre os sucessivos proprietarios do fundo € as pessoas com os direitos sobre a tumba. Em primeiro lugar, nao se podia dividir por heranga os lugares religiosos, porque, como ja disse, estavam para além do direito civil (D. 10.2.30.0). No caso da fragmentac’o da propriedade na qual estava situada a tumba, todos os possiveis donos deviam consentir antes que um deles concedesse 0 direito de sepultura a uma outra pessoa (D. 20. Claro que suas familias podiam construir um mausoléu onde lembra-lo. 36 Praticas Funerarias no Mediterraneo Romano 11.7.41.0), a0 mesmo tempo, em um prédio um dos proprietarios nao podia, por si mesmo, constituir um lugar sacro (D. 10.3.6.6). O vendedor de um fundus podia fazé-lo com a condi¢ao de reservar-se um lugar pata a sepultura (D. 11.7.10.0). Se alguém dispusesse de varios prédios, legado a usufruto, € 0 herdeiro quer enterta-lo em um deles, 0 usuftutuatio tem direito a uma com- pensacao (D. 11.7.46.0). E esta uma demonstracio a mais dos as- pectos e problemas que o estudioso do mundo funeratio roma- no tem que ter ptesente, ainda sabendo que dificilmente teremos informacio concteta por meio de restos arqueoldgicos, a menos que medeie uma inscri¢ao. Outtos aspectos podem ter um te- flexo arqueolégico mais patente, como, pot exemplo, a constru- cao de tumbas junto aos caminhos publicos evitava situagdes conflituosas futuras, pois o vendedor de um fundo que tivesse uma tumba teria que se reservat 0 diteito do iter ad sepulerum, 0 caminho de acesso2! Como a propriedade do prédio e da tumba podia passar por maos muito distintas, 0 direito a passo era uma serventia sempre exigivel ao proprietario do prédio; isso sim, em troca do pagamento do prego justo do espago ocupado pelo ca- minho (D. 11.7.12.0) e este direito nao se perdia por desuso (D. 8.6.4.0). Mas, em se tratando de uma tumba unipessoal, na que nao fosse se entertar a ninguém mais no futuro, eta ainda neces- sario fazer constat na compra-venda que o vendedor reservava- -se o direito de caminho; caso contratio, nao poderia estabelecet uma setvidao predial no futuro (D. 19.1.53.1). Uma tumba situ- ada no meio de um prédio, embora se destruisse por efeitos do tempo ou do abandono, seguia sendo um lugar sacto e, pottanto, necessariamente excluido de qualquer operacao de compra-ven- da; nao era assim com os terrenos vinculados 4 tumba, como hortas ou jardins, que deviam ser excluidos da venda, se nao passavam para a propriedade do comprador (D. 18.1.73.0-1). Ao i 21. Capogrossi Colognesi, La struttura della propieta e la formazione dei “iura praedio- rum” nelleta repubblicana Il, pp. 241-248. Corbino. Ricerche sulla configurasjone originaria delle serviti 37 Luciane Munhoz de Omena Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) que nos parece, os que se ocupam de Arqueologia da Paisagem e dos estudos sobre o territério deveriam estar interessados nesses aspectos. Quando no meio dos campos encontramos, hoje em dia, s6 os restos monumentais do sepulerum, mas nio do conjunto de prédios que podiam acompanhi-lo, devemos entender que estes podiam ser reutilizados, transformados ou demolidos pelo novo proprietirio do prédio. Para a mentalidade romana, insisto, a alma individual de um defunto permanecia como tal enquanto alguém o lembrasse ¢ praticasse os ritos anuais estabelecidos. As tumbas individuais, cujo lugar sacro devia estar indicado de alguma forma, um sim- ples amontoamento de pedras, uma estela de pedra ou madeira, um grande fragmento de anfora ou um grande monumento, cor- tiam o risco de serem esquecidas de imediato, porque a sobrevi- véncia de descendentes diretos do defunto era pouco segura. A inscricio sobre uma tumba com as indicagGes de hic situs est 0 sit “bi terra levis induz 0 caminhante que, ao ler 0 nome do defun- to e as formulas, passassem a evocar o defunto e, dessa forma, sua lembranga. Evitava-se que o defunto esquecido passasse a formar parte dessa massa, estranha e desconhecida para os ro- manos, dos dii inferi, como a formula sepulcral faz patente / rago praeteriens dicas sit tibi terra levis. Contra esse ato de esquecer, a unica solugao era encontrar formas associativas, construindo tumbas comuns, como os ¢0- Jumbaria, bem como a manutengio do culto aos wanes dos mem- bros defuntos pelo col/kginm. Quem dispusesse de recursos po- dia construir duas formas de sepulcros coletivos: os sepulcros familiares, os que alguém construiu para si e para sua familia e os sepulcros herdados, os que alguém destinou para ele e seus herdeiros (D. 11.7.5.0). A primeira vista, poderia se perguntar o que significa esta definicio terminoldgica, aparentemente sem sentido: onde esta a diferenga entre “familia” e “herdeiros”? Epigraficamente a di- ferenca é simples, basta uma letra s6 em um cimulo de abre- 38 Praticas Funerarias no Mediterraneo Romano viaturas: H(oc) M(onumentum) H(eredes) N(on) S(equitur) 0 H(oc) M(onumentum) H(eredes) S(equitur).” O sepulcro de “familia” sig- nifica que alguém tem a esperanga de ter um herdeiro direto, um filho que tendo seu mesmo sangue e seu mesmo women adore e pratique os cultos do nwmen familiae. Um sepulcro hereditario significa que alguém carece de um descendente direto e que, para manter 0 culto ao wmen familiar, ao nome da familia, precisa ou adotar alguém que, ao mesmo tempo, adote o nome da familia, ou considere membros da sua familia seus libertos, que portam o mesmo nome do patrao e, em consequéncia, terao que venerat ao mesmo umen. Em D. 11.7.6.0 temos uma demonstracao do desacordo en- tre formas juridicas e formas sociais, pois se reconhece que, em ambos os tipos de sepulctos, podem ser enterrados qualquer um dos descendentes, sem importar grau ou sexo. O ultimo ponto deste paragrafo faz uma excecao: Os libertos no poderio nem ser sepultados nem enterrar aos outros, se nao fossem herdeiros do patrono, embora alguns tivessem posto na inscrigéo que fixeram aquele monumento para eles ¢ para seus liber- tos. Neste sentido se pronunciou Papiniano, e isto mesmo foi disposto reiteradas veres.> Numerosas sao as inscrigdes de tumbas de personagens de origem liberta, nas quais aparece a formula vedada pela lei para Petsonagens desta condic¢ao social: ef ibertis libertabusque posterisque corum, diz na inscrigao secundaria da tumba 90 da Iso/a Sacra, antes teferida. O texto do Digesto, attibuido a Ulpiano, demonstra que a ptincipio do século III d.C. fazia muito que nao se cumptia esta 22. Garcia Valdecasas, A formula H.M.H.NSS. nas fontes epigraficas romanas (Contribuicio a historia dos sepulcros familiares hereditario Direito Romano). Annério de Historia del Derecho atiol 5. 1928, 5-82. 23. ‘Traducio de D’Ors et al. E/ Digesto de Justiniano. O sublinhado é nosso. Papi- hiano foi um dos grandes juristas da época severiana, assassinado em 213 d.C. por no justificar 0 assassinato de Geta. 39 Luciane Munhoz de Omena Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) disposigao, ja que havia sido necessario edita-la reiteradas vezes.* Nao se cumpria uma lei emanada de uma sociedade estamentaria, que afetava algo que diz respeito a todos os individuos por igual, o afa de sobrevivéncia, a necessidade de serem lembrados para subsistir como uma alma individual. Por isso, quem legalmente nao tinha direito a estabelecer um lago de sucessio tentava de ma- neira continua, inscrevendo nas suas tumbas uma formula que, em principio, era garantia de um direito que nfo lhes correspondia. Mas confiar a Piefas dos possiveis descendentes tanto traba- lho e afinco era tarefa pouco segura. Assinalei que no Digesto se distingue bem entre sepulerum e monumenum. Em principio esta distingéo nao era tio patente nem tinha graves repercussdes. Porém, aos poucos, para assegurar a conservacio do culto fu- nerdrio surgiu a ideia de vincular 0 culto funerdrio 4 exploracio econdémica da tumba. Isto consistia em vincular 4 tumba espacos agricolas grandes ou inclusive algumas atividades econdmicas ptecisas, para que os libertos de um cidadao, vivendo economi- camente do terreno alheio a tumba, mantivessem 0 culto ao n- men da familia. Tinha isto outra vantagem para o testador e seus herdeiros, os lugares sagrados, como ja repeti em varias ocasides, estavam fora do direito civil e, portanto, nio pagavam impostos. O abuso chegou a tal grau que até Trajano* teve que estabelecer claramente a diferenca entre sepultura e suas dependéncias, que é 0 que reflete a distingao entre sepulerum e monumentum. A formula mais comum durante 0 alto império romano de manter vivo o culto familiar, naturalmente daqueles que dispu- nham de recursos, era conceder aos seus libertos uma porcao de terra com a condigio ...ne de nomine familiae exeat..., que 0 prédio seja herdado sempre por alguém que leve o mesmo somen do tes- tador, de modo que seja sempre obrigado a comemorar os ritos em homenagem do mesmo sumen. No Digesto encontramos va- 24, 25. Gnomon do Deus Logos, Cap. I. ta proibicao é também reiterada em C. 3.4.4.6. 40 Praticas Funerarias no Mediterraneo Romano tios casos em que um grupo de conliberti, herdeitos de uma porcio de terra do seu patrao, pleiteiam contra uma conliberta, porque ao se casar sai do nomen familiae e, a partir desse momento integra- -se em uma outra familia com a que contrai novos compromissos “ teligiosos (D. 29.3.5; D. 31.77.28). De novo, aspectos juridicos _ que podem ajudar a entender a Arqueologia da paisagem: exis- _ téncia de parcelas, mais ou menos extensas, dentro de um prédio, cedidas aos libertos para que mantivessem o culto familiar. Este sistema de vincular uma propriedade e seus rendimen- tos ao setvi¢o do culto funeratio foi, para os romanos do século TI d.C., o sistema que parecia ter mais garantias de sobrevivéncia, para além dos lagos de sangue. No entanto, do ponto de vista legal, isto criava intimeras dificuldades, porque o sistema de fun- dagGes nao tinha garantias juridicas e porque no direito romano nao se podia deixar nada em heranga as persanae incerta.” No en- tanto, é patente que o direito romano, dentre seu formalismo, tenha encontrado formulas para se adaptar. A melhor prova de como foi se adaptando formas e formulas para adequar a necessidade de supervivéncia as normas sociais e juridicas, acredito que se encontram no conhecido “Testamento do fingao’®’, ao qual tenho dedicado outro trabalho. Este conhecido documento, que na realidade deveria ser chamado “ato juridico de tiltima vontade do testamento do lingao”, representa, na minha opiniao, a forma mais tefinada de fazer coincidir a interesse social, reali- dade juridica ¢ a vantagem pessoal de sobrevivéncia. O “Zingao encontrou uma formula para superar o limite que, no diteito ro- mano, tinha o fideicomisso confiado aos libettos, que se extinguia no momento em que o tltimo deles ficava sem descendéncia (D. 31.32.27); pata isso, legou uma extensao de terra, de acordo com a cidade de Andemantunum, capital dos lingdes, para seus libertos €a todos aqueles que, no futuro, concordassem em pagar uma 26. Torrent, Fideicomissum familiae relictum. 27. Um membro da tribo dos Aingvones. 41 Luciane Munhoz de Omena Pedro Paulo A. Funari (Orgs.) Pequena quantidade pelo arrendamento da parcela ocupada, e a condi¢ao de que participassem nas festas a serem celebradas a sua memoria; festas que se subvencionavam com o dinheiro aportado com as quotas de aluguel.* Temos ainda no mundo romano outra formula para tentar manter a lembranga de uma pessoa entre seus concidadios iv per- petuum. as atividades evergéticas. Na minha opiniio, deveriamos distinguir as atividades evergéticas em trés categorias: as que sio consequéncia de uma poilicitatio, de uma promessa, geralmente fei- ta em momentos de concorréncia politica para obter algum cargo municipal. As agGes evergéticas concretas realizadas em um mo- mento determinado, para além da luta imediata pelo poder. E 0 que eu chamaria aces evergéticas “prolongadas”, estas, em minha opinido, tem quase sempre um carter funeririo, porquanto con- sistem em atribuir fundos para que repetidamente, én perpetnum, sejam celebrados atos em memoria do evergeta. Gostaria de res- saltar este aspecto, pois, embora estas acdes tenham um resultado evergético, nao nasceram como tal, nasceram pela necessidade de conseguir que alguns, e quanto mais numeroso fosse o grupo me- Ihor, embora nao fossem de familia, lembrassem in perpeluum a personagem que tinha meios econémicos suficientes como para vincular a um grupo social est4 lembranga em troca de alzum be- neficio. Que os decurides de uma cidade recebessem uma vez por ano uma refeicao nao resolvia seus problemas alimenticios quoti- dianos, mas sim, obrigava-lhes a manter a lembranga do evergeta. Ja Plinio, o Jovem, fez patentes as limitagSes que tinham es- tas fundagées, do ponto de vista juridico, e 0 quio rapido eram esquecidas, sobretudo, se o que era legado fosse um capital posto 4 disposicdo do municipio para que, com os juros gerados pelo capital, fossem celebradas as festas in memoriam do evergeta.” A 28. Remesal Rodriguez, “In perpetuum dicitu’”. Un modelo de fundacién en el impé- rio romano Gerién 13. 1995, 99-126. 29. Plin. Eip.7, 18. Sobre as fundacdes no Império Romano veja-se Laum, Siiftungen in der gyiechischenund rémis-chen Antike. Le Bras, Les fondations priveés du Haut Empire, 42 Praticas Funerarias no Mediterraneo Romano solucio proposta por Plinio, o Jovem foi vincular um patriménio imdvel, geralmente fazendas, ao culto funeratio, do qual temos abundantes exemplos no Digesto e na epigrafia.” Mas também Plinio, o Jovem, por boca de Frontino, eviden- cia a impossibilidade de deixar, in perpetuum, uma lembranga ma- terial da existéncia do individuo: ...impensa monumenti supervacna est: memoria nostra durabit si vita meruimus (Plin. Ep. 9, 19,6). Referéncias _ ABASCAL PALAZON, J. M. La muerte en Roma: Fuentes, legis- __lacion y evidencia arqueologica. In: VAQUERIZO GIL, D. (Co- ord.). Arqueologia de la muerte. Metodologia y perspectivas actuales, Cordoba: Disputacion de Cordoba, 1991, p. 205-246. AMELOTTI, M. Il Testamento romano I. Le forme classiche di testamento. Firenze: Giappichelli, 1966. ARANGIO-RUIZ, V. Fontes iuris Romani antejustiniani. Tome II] - Negotia. Florence: Barbera, 1943. BALDASSARRE, I. 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