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Josué DE CasTRO DOCUMENTARIO DO NORDESTE Parvacro og “OLIVIO MONTENEGRO ILUSTAQOES DE DAREL 3a EDIGHO EDITORA BRASILIENSE Sio PavLo 1965 ‘UA ARKO DI ITAPPTININGA, #9 «18> AND, -CAIKA POSTAL sau © so PAULO ~ BRASIL aa " também da grande amizade entre os dois. Didriamente, Chico, voltando da pescaria altn noite, vinka ao mocambo de’ Cosme Aividir os peixes e conversar. Em troca recebia da velha To- tonha farina, verdura, fruta e pao duro, géneros meio pas. sados que ot quitandeiros © padeiros davam de esmola velha no fim da feira, mas que permitiam que alta madrugada eassem juntos os trés comentando alegremente as novidades do dia. Depois vinha Chico tomar o seu banho na maré e antes que 0 sol viesse bater sdbre o seu rosto deformado éle se escondia na sua latada para dormir ¢ para esquecer. Cosme, que tinha dormido com as galinhas ao escurecer até a hora da cei, esperava de olhos impacientes a chegada do dia para Pescar impresses: “— Estard chovendo? La vai o padeire de guarda-sol aberto. .. a cozinheira da casa de seu Neco parece ‘que hoje se atrasou e vai agora numa carreira doida. ..” cuiek 2d? eto, pobre, Tinitado, era ése de Cosine @ do ico, mas de uma grande ligao de solidariedade humana. Quase de felicidad herbiea dentro do maior dos Infortinioy, A SECA [cxconsce wma das margens do riacho séco Juvéncio cava © chiio de pedra da virzea esturricada. Procura com fansiedade alguma raiz de macaxeira ou alguma batata mir- twda que, por acaso, tenha ficado da éltima safra de sua eul- turn do vazante, Em timo déle se estende, parada © morta, 4 planiclo descampada de uma vastidio que assusta e que prime, A sea maton tudo, Secou tdda a dgua e tdda a vida da ‘0 Juvincio, diante déste espeticulo desolador, sente também secar dentro déle a dikima gota de esperanga. Levantando a vista cansada para 0 lado do poente, vé que © sol esti. prestes a se esconder e isto the aumenta a angéstia do maneira impressionante. Seu coragio cresce e endurece dentro da sua carne como se fosse de pedra. Pesa-lhe de tal maneira que Ihe dé um desejo imperioso de deitar 0 corpo pesado naquela terra dura e de adormecer para nunca mais acordar. Mas Juvéncio lembra-se da familia — da mulher que espera qualquer coisa para comer e do filhinho doente estirado num jirau de varas — e por isto reage contra a de- pressio tremenda. Nao encontrando nada que colhér no seu rogado devastado, éle dirige-se para os lajedos préximos — locos descomunais de granitos que afloram & superficie do solo como se fdssem os 0550s da prépria terra que tivessem rompido a sua pele magra — e af tirando 0 seu facto afiado corta com golpes certeiros alguns galhos de xiquexique. Com habilidade tira-Ihes os espinhos, faz um pequeno feixe com as varas do cacto ¢ marcha para casa para assar a planta scl- vagem e enganar por mais um dia a sensagio de fome. 45, Pelo caminho dspero e pedregoso, as solas de suas alper- catas vio batendo no chio como u'a matraca e pensamentos trigicos comegam também a matraquear a sua cabeca dolo- rida: Quando acabari esta séca terrivel? Qual acabaré pri- meiro:'a séea ou a sua familia? Que seri melhor: morrer de fome e de séde na sua prépria terra ou emigrar para morrer de fadiga e de vergonha na terra dos outros? Como uma fita empoeirada, 0 caminho se vai desenrolando para a horda do vale, onde uma colina se levanta picada pelas hastes dos mar. meleiros secos. De vez em quando surge 4 beira da estrada sca uma cruz de madeira marcando ponto onde um retiranto tombou morto de fome e de cansago. Juvéncio se benze, le- vanta com respeito o chapéu de couro diante da cruz fineada no cho ¢ continua mergulhado em seus pensamentos tristes. Chegado ao alto da colina, le divisa ao longe a sua casinha de taipa perdida no meio do patio deserto. A imagem familiar desperta-lhe lembrangas dos bons tempos de inverno e de far- tura, Dos bons tempos em que de volta do trabalho diério Gle avistava déste ponto, no pitio coberto de relva, a mancha viva e inquieta do seu filhinho brincando ao sol. Nesses dias distantes a imagem do filho divisada ao longe The enchia a alma de uma ternura imensa e de um dnimo névo para viver © por isso éle apressava o passo para sentir aquela mancha mével crescendo sempre aos seus olhos até tocar nos seus bbragos © se deixar apertar contra 0 seu peito. Mas hoje a pobre crianca esti no seu leito morrendo de fome com as en- tranhas roidas pelas comidas brabas que foi obrigada a comer para aplacar sua fome devoradora. Juvéncio relembra como aquéle corpinho que hoje se desfaz ao calor da febre se tinha desenvolvido dia a dia, intumescendo-se de vida ao contacto criador do seio materno, Lembra-se das horas tranqiilas dos fins de tarde, quando a erianga mamava até adormecer e éle olhando entemecido 0 quadro da mulher com o seio 4 mostra amamentando o filho evocava imagens — que Deus 0 perdoasse — de cromos coloridos da Virgem Maria e do Menino Deus Antes de chegar em casa ja 0 sol se pds de todo e um clarao de brasa de um vermelho violento reverbera no hori- zonte ensangtientando a paisagem desolada. Juvéncio sente 46 Fig, 8 — A Séca om Otho de Devs que,nsta hora do tl ‘terra em tmo parece crescer icando vazia e grande le 56, Sente uma sol infinite. Entrando em oui Jogo pelo filho e a mulher The responde aflita: eesti: queimando de fet fe morrendo de side, Ped Agua o tempo todo mas nao tenb nem mais uma gota part Ihe dar, Acabou téda”. Javéncio, largando sObre a mesa o chapéu de couro © o fete de varas de xiguesiqu, apanha um pote ¢ toma sair ‘em busca de agua. jue de pedra do lajedo que guarda Agua das chuvas ha muito que secou. A cacimba do Kincho Fando que fornecia uma figua salobra e pessda, foi bairando sempre durante a sea com a passagem dos retirantes, trans- formando-se em pouco tempo num buraco escuro, tendo Ié no fundo apenas um pouco de areia molhada que era preciso vane ee oremar com pactncn par Gar wm pouco Tags. E depois a cacimba deu na pedra, E a pedra nem espre- endo... Por isto éle vai direto a0 pé da serra onde hi urna fonte natural — tiltima esperanga de encontrar um pouco gua nesta terra abrasada, Sio trés Kéguas batidas de caminhada fe quando o sertanejo lé chega estropiado ¢ ofegante encontra tudo séco. Os retirantes em filas interminiveis tinham chu- pado até a iiltima géta d’égua. Tinham espezinhado tudo: fesboroado a terra ¢ matado a fonte, Sedento desesperado, Juvéncio resolve entio correr até & casa do seu compadre Joca Salgado, que fica naquela zona, para The pedir um copo Agua para matar a séde do seu filhinho doente. Bate & porta da casa do Joca ¢ a porta se abre por si. Entra e nfo encontra ninguém, Compreende logo que a familia tinha descido téda com 0s retirantes, Riseando um fésforo corre & cozinha e af vé 0 pote diégua encostado no canto da parede com a béca para baixo.,. Juvéncio neste momento sente um apérto ter- Hivel na garganta e sente a bilca ainda mais séca como se a séde desadorada quisesse estranguli-lo duma vez ee cna ds catferes a casa abandonada Spars peal ‘eampinas desertas decidido também a emigrar. A largar hoje mesmo essa terra amaldicoada. ‘Terra onde um homem tra- alha todo santo dia ¢ no fim vé o seu filho morrendo sem ‘uma gota d'agua para matar a séde, No esfdrgo desmedido aT da marcha através dos tabuleiros ainda aquecides do calor do dia, o sertanejo fica coberto de suor ¢ ao passar sua mio calosa sbbre os cabelos ensopados, pensa na alegria imensa que Ihe daria uma chuvarada forte — uma daquelas chuvaradas tre- mendas que as vézes desabam imprevistamente no sertio — ¢ que Ihe encharcasse a roupa téda, 0 corpo todo, até & medula dos 0ss0s, O seu desejo é tio grande — a séde tio intensa ¢ ‘a angistia tio profunda que éle chega a ter alucinagies @ por duas ou trés vézes que o suor The escorre na fronte © Juvéncio, perturbado, estende a mio no ar transparente da noite para ver se nao estaré, mesmo chovendo... Entra em casa, como ‘um alucinado e grita num fmpeto incontido de violencia: = “Maria, junta os trens, embrulha bem 0 menino, que vamo- nos embora jé desta terra amaldigonda. Vamos descer para © brejo onde havera sempre Agua para dar de beber ao Joio- zinho...” E a mulher, que estava sentada & mesa de fantar, com os olhos fitos nas varas de xiquexique © 0 queixo magro afundado na mio crispada, respondeucthe com uma sada e distante como se falasse de outro mundo: adianta mais égua... 0 pobrezinho ji morren, ..” Juvéncio estremece sob a violencia do golpe tremendo que The dissipa tédas as alucinagées € sente uma fOrca ter rivel — a forga do édio ¢ da revolta — invadindo-lhe 0 corpo todo da cabeca aos pés. Entra no quarto ¢ por um momento = momento de terrivel e prodigiose lucidez, durante 0 qual desfilam por sua cabeca imagens de quase téda a sua vida — le contempla o filho morto: um feixe de ossos enrolado numa colcha de retalhos com uns olhos muito claros e muito aber- tos, 0s glébulos vidrados ¢ secos, sobre os quais a chama de uma vela acesa faz perpassar sombras muito leves. Depois desvia a vista e olha a janela aberta para 0 pitio da fazenda ‘como um buraco enorme dandb para o infinite. Marcha até fa borda déste infinito e levantando para 0 eéu trangiiilo 0 rosto crispado ¢ duro como o rosto de um cangaceiro, Ju- véncio diz num tom de voz ameagador falando a, Deus pela primeira vez em sua vida sem antes se benzer: “Uma coisa dessas vossemecd nio vé agora; quando a gente faz um pe- alo adste tumatoho eati tom’ xn allo assim em cima da 43, onto.” I as suas mios brutas e trémulas tentam delimitar no fix 0 contémo de um élho imenso do tamanho de uma melancia.

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