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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE NACIONAL DE DIREITO


DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO I

PEDRO HENRIQUE CAMPELLO GOUVEIA

Conflito entre norma interna brasileira e tratado internacional: Ext 1362 / DF Extradição
e imprescritibilidade de crimes contra a humanidade
Em novembro de 2016, foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro, o
pedido de extradição de Salvador Siciliano, argentino, solicitado devido a crimes praticados
entre 1973 e 1975 de associação criminosa, sequestro qualificado e homicídio qualificado,
todos típicos de acordo com a legislação penal brasileira (art.288; art.148 §2º; art.121 §2º, do
Código Penal, respectivamente).
Em uma primeira análise vale ressaltar o contexto geopolítico argentino e global no
período da consumação dos crimes, caracterizado pela instabilidade política na Argentina
com a queda e ascensão de regimes ditatoriais fundamentados no militarismo e no
afastamento aos direitos humanos. Não apenas a Argentina, porém a América Latina, como
um todo, foi marcada pela pressão de regimes autoritários, fomentada pelos Estados Unidos
dada a narrativa anticomunista na conjuntura da Guerra Fria, exemplificada em ações como a
Operação Condor, que visava a destituição de líderes políticos que desviavam da ideologia
norte americana.
Nessa perspectiva, sob a ótica de não anistia àqueles que praticaram delitos de
lesa-humanidade, a República Argentina solicitou ao Brasil a extradição de Salvador
Siciliano, que haveria integrado o grupo terrorista de extrema direita Triple A. No entanto,
constrói-se um debate acerca da legitimidade da extradição, uma vez que, de acordo com a
legislação brasileira, os crimes imputados ao extraditando já estão, indubitavelmente,
prescritos, segundo o art. 109, I do Código Penal. No entanto, debate-se se este não seria o
uso de uma lei interna para justificar o não cumprimento de um tratado - neste caso o Tratado
de Extradição entre o Brasil e a Argentina -, o que violaria o artigo 27 da Convenção de
Viena do Direito dos Tratados. Dessa forma, a divergência fundamenta-se na
imprescritibilidade de crimes contra a humanidade, uma vez que tratados e leis internas
tangenciam o tema sob perspectivas divergentes.
O Brasil não subscreveu, nem aderiu, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos
Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, dessa forma apenas leis internas
poderiam versar sobre a prescritibilidade penal, nesse sentido mesmo os crimes ferindo jus
cogens podem ser prescritos, de acordo com o já mencionado art. 109, I do Código Penal
brasileiro. Em contrapartida, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional,
internalizado à legislação brasileira em 2002, prevê a imprescritibilidade em seu artigo 29.
No entanto, debate-se a sua possibilidade de retroação uma vez que os delitos foram iniciados
e consumados ainda antes da abertura para assinatura do Estatuto de Roma em 1998, sendo
assim dúbio a legitimidade da sua retroação em prejuízo ao réu.
Em paralelo, analisa-se o Tratado de Extradição entre Brasil e a Argentina, que estaria
sendo violado em caso de indeferimento da extradição, se esta fosse justificada pela
legislação interna brasileira, uma vez que iria em confronto a Convenção de Viena sobre o
direito dos tratados, a qual já foi internalizada com reservas ao direito brasileiro. Entretanto,
está previsto no artigo III, C do Tratado de Extradição a não concessão em caso de prescrição
da ação ou da pena. Nessa linha de argumentação ainda é abordado o Estatuto do Estrangeiro
- revogado em 2017 pela Lei de Migrações -, que no seu artigo 77, VI também aponta a não
concessão de extradição caso extinta a punibilidade pela legislação brasileira ou pelo Estado
requerente.
O ministro Ricardo Lewandowski, inicia seu voto evidenciando a necessidade de se
debater a imprescritibilidade de crimes lesa-humanidade. Aponta, também, a previsão
constitucional de crimes imprescritíveis previstas no art 5º, XLII e XLIV, decorrente das jus
cogens, sendo o segundo próximo dos delitos imputados ao extraditando, e o art 4º, II e VIII
que indicam como princípios das relações internacionais brasileiras a prevalência dos direitos
humanos e o repúdio ao terrorismo e ao racismo. Dentre demais defesas, o ministro aborda
que a prescrição de crimes está prevista no Brasil em lei ordinária, não podendo confrontar
normas que por força de tratados que versam sobre direitos humanos, que assumiram caráter
constitucional. Com isso conclui seu voto reafirmando a submissão ao Tribunal Penal
Internacional, deferindo a extradição.
Em seu voto, o ministro Edson Fachin divide em tópicos sua análise, fazendo uma
análise tanto dos tratados e convenções, como da legislação interna brasileira à legislação
interna argentina. Apresenta como relevantes pontos a Corte Interamericana dos Direitos
Humanos, a qual é vinculante ao direito brasileiro e que reconheceu múltiplas vezes
inadmissível a prescrição de crimes contra graves violações dos direitos humanos. Além
disso, segue a lógica apresentada pelo ministro Lewandowski ao abordar o artigo 5º da
Constituição Federal, e ainda aponta que a doutrina nacional tem apresentado tendência de
atribuir aos tratados o status normativo constitucional, citando os professores como Antônio
Augusto Cançado Trindade, Flávia Piovesan, Celso Lafer, Valério Mazzuoli e André de
Carvalho Ramos.
Em contrapartida, Gilmar Mendes inicia seu voto retomando o ponto central de
controvérsia a respeito da prescrição. O ministro clarifica que não possui caráter vinculante à
legislação brasileira a denominação argentina de crimes que lesam contra a humanidade,
cabendo ao próprio Poder Judiciário avaliar a solicitação de extradição por Estado
estrangeiro, como apontado no art.102 g) da Constituição Federal. Além disso, retoma os
tratados de extradição entre Brasil e Argentina e o Acordo de Extradição entre países
membros do Mercosul em que ambos versam sobre a verificação do direito interno a respeito
da dupla punibilidade, e a não violação da CVDT pois fundamenta a não deferência da
extradição pela referência dos tratados que vedam a dupla punibilidade, que caso ocorresse
iria ferir o princípio do ne bis in idem, basilar no direito penal, e a prescritibilidade. Desse
modo, conclui seu voto afirmando que assumir a premissa de crime contra humanidade
argentina, afastando demais princípios, colocaria o Brasil em um papel submisso nas relações
internacionais, e vota pelo indeferimento da extradição.
O Supremo Tribunal Federal Brasileiro decidiu que não seria deferida a extradição de
Salvador Siciliano, fundamentado que a qualificação dos crimes não afastaria a sua
punibilidade de acordo com o versado no Tratado de Extradição entre Brasil e Argentina, e
pelo fato do Brasil integrar a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e
dos Crimes contra a Humanidade, caberia a legislação interna abordar a prescritibilidade ou
não da pretensão estatal de punir. Conclui-se portanto, que o indeferimento também não fere
a CVDT por fundamentar-se no tratado bilateral entre os países, e não em uma lei interna.
Bibliografia:

https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur372796/false

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748042903

https://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/portalStfCooperacao_pt_br/anex
o/ACORDOS_ARGENTINA/TratadodeExtradioBrasileArgentinaDecreto62.979de1968inteir
oteor.pdf

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/508142/000986045.pdf

https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/14692805

https://arquivo.fmu.br/prodisc/direito/rdr.pdf

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