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Christopher Hill UNIMEP TECA ' A Biblia inglesa e as revolugoes do século XVII Traducdo de Cynthia Marques q \\ wh \ CIVILIZACAO BRASILEIRA Rio de Janeiro 2003 | Uma cultura biblica Nossos santos priores[diziam as palavras de Deus} causaram insurreigées © ensinaram 20 povo a desobedigncia, (..) e levaram-no a rebelar-s¢ con- tra os Principes, e 0 levaram & mediocridade e a desatar-se os bens uns aos outros. ‘William Tyndale, The Obedience ofa Christian Man (1528), em Doctrinal Treatises (org. H. Walter, Parker Soc., Cambridge U. B, 1848), p. 163. A Biblia; Eis o Livro. O verdadeiro Livro, O Livro dos Livros; Onde a verdade buscar Para onde o olhar se voltar E se com tal retidao agires Jamais de melhor luz precisards E mesmo na Escuridio caminharés O Ministério santo de Deus em Assembléia Esta luz ao homem revelou Ea todos ordenou Para que na boa ou mé sorte Todos conhegam E Dele jamais se esquegam Porque é 0 Livro de Deus © qué sem Ele eu poderia? O qué eu saberia? Christopher Harvey, Complete Poems (org, A. B. Grosart, 1874), pp. 19- 21. Bste poema foi publicado, pela primeira vez, em 1640, 23 CHRISTOPHER HiLL Ricardo, duque de Glocester — Eu suspiro, com um trecho da Escritura, Digo que Deus nos pede o bem em troca do m: e-assim ev visto a vilania Com farrapos que arranco a propria Biblia. William Shakespeare, Ricardo II, 1° Ato, cena 3! Ahistéria € contada como um didlogo entre um lendario historiador da eco- nomia, Jack Fisher, ¢ 0 inoportuno aluno que o pressionava para que lhe desse uma lista de leituras sobre a histéria econdmica da Inglaterra nos sécu- los XVI ¢ XVIL Ele Ihe respondeu: “Se vocé realmente deseia compreender este perfodo, v4 para casa e leia a Biblia."? Tal conselho ¢, sem diivida, espe- cialmente adequado para historiadores da economia, mas também tem «ua relevancia para os historiadores da politica e da literatura, A Biblia teve um Papel central em toda a vida da sociedade: nds nos arriscamos ao ignoré-la. A Biblia é um livro enorme, ¢ entendi a maioria dos inumerdveis comen. tirios biblicos feitos naquele perfodo, como pude constatar, parecem ser tio longos quanto a prépria Biblia. Nao posso afirmar que tenka lido cada pala- vra de todos eles. Este livro focaliza certas éreas nas quais a Biblia teve uma influéncia direta, ja que, entio, ela eta determinante em assuintos que nao se referiam — como acontece nos tempos modernos — ao émbito estritamente religioso. Mais do que uma monografia, é na verdade uma coletanea de en. saios. Meu objetivo é analisar o impacto que a Biblia exerceu sobre a socie- dade do século XVII— a sua utilizacéo com propésitos politicos ou de outra natureza € seus efeitos sobre a literatura, a teoria politica, as relacées sociais, @ agricultura ¢ a colonizagéo, entre outras tantas 4reas, © vernéculo da Biblia tornou-se uma instituigao na Inglaterra dos Tudor — a base de uma autoridade monérquica da independéncia protestante na Inglaterra, o livro da moralidade e da submissao social, Sua centralidade, fornou-a um campo de batalha entre varias ideologias — nacionalismo in. B8lés contra catolicismo romano, episcopado contra presbiterianismo ¢ see. 24 A BIBLIA INGLESA E AS REVOLUGOES DO SécULO XVII tarismo. A sociedade estava agitada € esperava-se que a Biblia oferecesse so lugdes para os problemas que a assolavam. A tradugio da Biblia para o inglés tornou-a acessivel a grupos sociais novos e mais amplos, incluindo artesios e mulheres, que liam sobre seus proprios problemas ¢ possiveis solugdes no texto sagrado. Conseqiientemente, ao analisar este livro, estou lidando nao apenas com “fatos”, mas também com opinides ¢ crengas. Assim, nao hesitei em utilizar evidéncias literérias para a narrativa destas opinides e crengas. Tais evidéncias variam muito, e devem ser avaliadas criticamente, 0 que nao impede que sua existéncia seja um fato. A Biblia esté longe de ser monolitica. Ao contrtio, seus cinones foram erguidos 2o longo de varios séculos e incorporam idéias ¢ atitudes diferentes , As vezes, conflitantes. Os primeiros dois capitulos do Génesis contam duas historias diferentes da criagao e queda do homem, o que colocou A provaa engenhosidade erudita em conciliar ambas as teorias; os livros de Moisés no foram escritos por Moisés, como foi demonstrado por Thomas Hobbes no século XVII,’ nem og Salmos de Davi sio de fato de Davi. A profecia de Isaias €uma coleténea de trabalhos de pelo menos trés poetas. O texto € um pa- limpsesto que foi exaustivamente escrito ¢ reescrito de tantas maneiras que 98 estudiosos modernos encontram grande dificuldade em ordené-las. A reedigao do que conhecemos como Antigo Testamento quase certamente reflete os conflitos politico-sociais que existiam entre os Filhos de Israel; tal canone foi estabelecido pelo clero judaico. O préprio texto mostra que os profetas ¢ reis freqiientemente discordavam, ¢ o tributo atributdo pela Biblia a0s governantes individualmente espelha o valor que lhes é dado pelos edi- tores ligados a Igreja! A narrativa contida no Novo Testamento é o produto de uma convulsao social. © cénone, como jé sabemos, foi o produto final de acirradas contro- vérsias sobre o que era “herético” e, portanto, “apécrifo”, e o que era orto- doxo. Este cAnone evoluiu ao longo dos séculos & medida que as doutrinas originais do cristianismo foram adaptadas, inicialmente no perfodo greco- romano do mundo gentio ¢, posteriormente, quando foi considerada reli- sido oficial do Império Romano. As decisées tomadas quanto ao que deveria ser inclufdo e excluido foram penosas ¢ algumas vezes sangrentas, As con- cessées foram inevitéveis. Sera que a Epistola radical atribuida a Jaime deve- 25 . CHRISTOPHER HILL tia fazer parte do canone? E quanto a explosiva Revelagdo de Sao Jodo, 0 Divino? A unidade dos dois Testamentos foi cuidadosamente elaborada por tedlogos da Idade Média, trabalhando com seus palimpsestos. A Biblia podia significar coisas diferentes para pessoas diferentes em di- ferentes épocas ¢ circunstancias. Era um enorme quebra-cabeca a partir do qual qualquer coisa pudesse ser delineada, Hé algumas poucas idéias que nfo encontram apoio no texto biblico. Muitas delas podem ser lidas apenas nas entrelinhas. Quando Lutero desafiou a autoridade da Igreja Romana para que definisse suas doutrinas e produzisse a sua prépria tradugdo vernacular, cle teve de aceitar que “o Evangelho nao pode ser verdadeiramente pregado sem ofensas ¢ tumultos". “A Palavra de Deus existe, em qualquer situacéo, Para mudar ¢ renovar o mundo.”* O resultado foi desacordo e fragmenta. $40. Luteranos contra zwinglianos ¢ calvinistas, anabatistas e libertinos contra tudo que era respeitavel—cada grupo de heréticos acreditava ter encontrado justficativa para suas posicdes no texto sagrado, e quase todos proclama- vam a sua indiscutivel autoridade na interpretacdo da Biblia. Uma coisa € a Biblia em uma sociedade estvel, onde existe um mecanise mo aceito para o controle de sua interpretacao. O controle jamais foi com- pleto em nenhum periodo, ¢ certamente menos ainda depois do transtorno dia Reforma e da tradueao das Escrituras a partir de uma lingua que apenas alguns eruditos conseguiam ler e entender para outra que podia ser lida por qualquer alfabetizado, e compreendida por todos aqueles que ouvissem sua Ieitura em voz alta. Algumas heresias da Idade Média — freqiientemente baseadas em tradugdes néo autorizadas da Biblia — conseguiram sobreviver Porque se associaram a unidades politicas que estabeleceram uma precéria continuidade: waldensianos, hussitas ¢ lolardos na Inglaterra, Henrique VIII preocupava-se principalmente em assegurar a independén- cia politica da Inglaterra em relagao ao papado quando autorizou a traducéo da Biblia para o inglés. Depois do trauma do reinado de Mary, algo parecido com um consenso parece ter existido sob 0 governo de Elizabeth, Mas no turbilhdo do século XVII, a Biblia tornou-se uma espada que servia para di- Vidi, ou um arsenal do qual todos os partidos retiravam armas para satisfa- et as suas necessidades. E que arsenal! A grande vantagem da Biblia é que cla podia ser citada em defesa de questées heterodoxas ou impopulares. Os 26 " “= A BIBLIA INGLESA E AS REVOLUCOES DO SECULO XVII classicos gregos ¢ romanos também foram, algumas vezes, citados para cau- sar este mesmo efeito, porque eles eram reconhecidos como autoridades impecéveis, dificeis de refutar e As quais nao era s4bio rejeitar. Mas o conhe- cimento dos classicos se restringia aos eruditos ou, em certa extensao, aos homens com alguma instrugao; a Biblia, no vernéculo, estava aberta a todos, até mesmo &s classes mais baixas, para ser pilhada e utilizada. Na Inglaterra do século XVII, um século de revolugdo ¢ guerra civil, to- dos os partidos recorriam ao apoio da Biblia. Cacadores de heréticos como Thomas Edwards e Ephraim Pagitt assinalaram as semelhangas entre as here- sias de sua época e as dos primérdios da Igreja, mas tais semelhangas rara- mente eram conseqiténcia de pesquisa por parte dos heréticos, embora algumas delas, sem dtivida, tenham sido uma heranga das tradigdes dos cdtaros, dos waldensianos e dos lolardos. Os radicais do século XVII afirma- vam que suas idéias provinham da Biblia. E eles estavam certos. Todas as heresias tinham suas origens na Biblia, porque ela mesma é uma compilagio, um meio-termo; a ortodoxia muda na medida em que incorpora ou reage exageradamente a heresia — que se origina no texto biblico. Milton, e muitos outros como ele, acreditava que — admitindo-se a livre discusséo —a verdade consensual surgiria entre cristaos honestos e de men te aberta; e passou muitos anos de sua vida dedicando-se A compilagao bibli ca, De Doctrina Christiana (Sobre a Dowtrina Crista), que objetivava a reconciliacdo de todos os protestantes. O trabalho que ele produziu foi tao radicalmente herético que nao péde ser publicado na Inglaterra, nem mes- mo em latim, e quando se tentou publicé-lo depois de sua morte nos Pafses Baixos, todo 0 poder da diplomacia britanica foi utilizado para evité-lo, Tra- tava-se de um trabalho que estracalhava a idéia de uma tinica verdade Biblica que fosse aceita por todos os governantes de seu pats Sobre a Doutrina Crista de Milton,’ sua “mais querida e melhor posse”, €simbélica. O texto latino definhou por 150 anos entre documentos de Es- tado no Departamento de Registros. Foi finalmente publicado em 1825, por ordem do rei da Inglaterra e traduzido por um bispo da Igreja anglicana; ¢ sua publicagao sé despertou um leve interesse histérico. Aquela dinamite do século XVII havia se transformado em um pasquim enfraquecido. A Biblia nao era mais a fonte de toda a verdade: o lluminismo do século XVIII pra- 27 CHRISTOPHER HILL ticamente a ignorava. Nem era mais o manual dos revolucionarios. Os revo- luciondrios franceses basearam-se em fildsofos leigos como Voltaire ¢ Rousseau. Em certo sentido, meu livro trata do declinio e da queda do impé- rio politico ¢ cultural da Biblia na Inglaterra do século XVII. 'A Biblia exerceu um importante papel na formagao do nacionalismo inglés € na afirmacdo da supremacia da lingua inglesa em uma sociedade na qual, entre 0s séculos XI ¢ XIV, predominou o francés falado pelos normandos. A tra- dugdo da Biblia para o inglés foi contempornea & disseminagéo da nova invengio da imprensa. A Biblia impressa foi algo muito diferente da Vulgata manuscrita, de propriedade privada do clero. Como afirmou George Hakewill, os livros enclausurados nas bibliotecas dos monastérios “foram resgatados de seu cércere, conseguiram se expandir ¢ andavam livemente & luz do dia”. A Biblia vernacular era propriedade de todos os leigos alfabeti- zados, e pregadores protestantes radicais tentaram estender seu conhecimento a todos os niveis da sociedade. No século XVII, a Biblia era aceita como um elemento central a todas as esferas da vida intelectual: nao era apenas um livro teligioso”, no sentido moderno e restrito da palavra religio. A Igreja € 0 Estado na Inglaterra dos Tudor eram um 865 a Biblia era, ou deveria ser, 0 fundamento de todos os aspectos da cultura inglesa. Quanto a este princ{- pio, houve consenso entre a maioria dos protestantes. Se no entendermos isto, caimos na cilada anacrénica de falarmos de uma “época mais religiosa” do que a nossa. Sob varios aspectos ela foi menos religiosa do que a nossa. Os historiadores freqiientemente comentam 0 fato de que a Revolugio Inglesa nfo teve antepassados ideolégicos. Nenlum dos participantes sabia que aquilo pelo qual estavam passando era uma revolucio. A palavra veio a adquitir seu sentido moderno somente ¢ por causa da Revolugao Inglesa’, a primeira grande revolugdo européia. Os revoluciondrios americanos cons- cientemente voltaram-se para a experiéncia inglesa do século XVII, descrita por Catharine Macaulay em sua histéria de oito volumes dedicada a Hampden, Milton, Marvell, Nedham e Sidney. Mirabeau organizou a tradux 28 A BIBLIA INGLESA E AS REVOLUCOES DO sécuLO xvi So francesa da History de Catharine Macaulay, que também foi cuidadosa- mente estudada pelos Ifderes da revoluctio americana, muitos dos quais tro- cavam correspondéncia com ela.* Girondinos e jacobinos, mencheviques € bolcheviques, monarquistas e republicanos, todos se enquadram nos padrées estabelecidos pela Revolucéo Inglesa. Os revolucionérios franceses temiam oadvento de um Cromwell, ¢ tiveram Napoledo; os revoluciondrios russos Se Preocupavam com o bonapartismo ea ditadura militar, e no perceberam que Stalin se aproximaya. Os ingleses tiveram de enfrentar situagdes revoluciondrias inesperadas, durante os anos 1640 ¢ 1650, sem nenhuma orientagio teérica, como a que Rousseau e Marx deram a seus sucessores franceses ¢ russos, ¢ sem a experién- ia de acontecimentos anteriores que pudessem ser chamados de revolugées, Eles tiveram de improvisar. A Biblia em inglés foi o livro ao qual natural- ‘ente voltaram-se em busca de orientagio. Era a Palavra de Deus, cuja auto- -Fidade ninguém podia rejeitar. E era o maior patriménio da nacao inglesa orestante. Sua edicao impressa encontrava-se disponivel apenas gracas aos nflitos e martirios da reforma inglesa, uma fase essencial da pré-histéria olucionaria, O primeiro registro de utilizacdo da Iingua inglesa na proclamagao de Sevemo ocorreu em 1258, quando Simon de Montfort controlava o rei Brique Tl. © uso oficial da lingua motreu com Simon e a sua causa? En- nto, a lingua no morreu, J&em 1801 George Ellis percebeu uma liga- entre 0 desenvolvimento da lingua inglesa e o crescimento das cidades.10 #s antigo documento parlamentar inglés conhecido é uma peticao de companhia de comerciantes, datada de 1386. Nessa época, a gramética nada nas escolas comegara a abandonar o francés ea adotar 0 inglés. Os heiros pararam de ensinar o francés a seus filhos. Documentos juridicos ares em lingua inglesa também datam desse periodo ¢ as petigdes ¢ mentos das guildas das cidades remontam a década de 1380, Henrigue tum usurpador — falava inglés como sua primeira lingua, ¢ Shakespeare Certo a0 retratar Henrique V como tendo apenas um leve sotaque fran- Talvez Shakespeare estivesse reproduzindo algo que ouviu por acaso do fez com que seu Personagem, Jack Cade, dissesse “Ele fala francés, ¢ | Pestanto é um traidor”. Ele “usa a lingua de um inimigo”,” E 29 CHRISTOPHER WILL Richard Rolle, © primeiro poeta importante a escrever em Um Iimgua aque podia ser reconhecida como o inglés, morreu Em 13493 as letras de can- g6es religiosas em inglés também proliferaram durante a segunda metade daquele século. A literatura inglesa apareceu como nma torrente, de uma s6 ver — Chaucer, Langland e Gower, 0 poeta de Gawain and the Green Knight e Pearl. Da mesma época era também John Wyclif, um tedlogo que usou agres- sivamente 0 inglés quando o latim teria sido mais tradicional." A Guerra dos Cem Anos contra a Franca acclerou indiscutivelmence a passage para 0 inglés, Nenhuma outra versio da Brblia em francés circulou na Inglaterra, cebora alguns exemplares continuassem a ser encontrados na Franca. A lei- tua da Biblia estava associada & ascensio de uma classe urbana instrufdae de ‘uma classe média rural: encontramos comerciantes € cavaleiros lollardos. Chaucer conhecia bem a sua Biblia. O lolardo Nicholas Hereford propés que a riqueza da Igreja fosse usada para criar 15 universidades e uma centena de instituicdes de caridade — uma esperanga educacional que foi revivida du- rante a Reforma do século XVI e novamente durante a Revolug4o no século XVII. John Rastell, em 1527, observou que Henrique VIL havia determina- do que “os estatutos e ordenancas (..) dirigidos & comunidade deste reino nos dias de hoje” fossem impressos de forma que “o povo (..) pudesse rapi- amente tomar conhecimento dos ditos estarutos ¢ ordenancas, a du eram obrigados a obedecer”. Henrique VIII seguin a pratica de seu pai. Rastell traduaiu do francés 0 Sumario dos Estatutos, publicado antes do reinado de Henrique VU. Isto porque sabia que “¢odo o povo deste reino tinha grande prazer ¢ entregava-se muito & leitara da lingua inglesa vulgar”. Se os estatu- tos podiam ser publicados de forma que 0 povo pudesse “evitar os crimes € as penalidades deles decorrentes”, por que nd0 8 Biblia?" John Foxe atribuiu “o presente da escrita impressa” a intervencio direta de Dens. Ele citou o catélico Rowland Philips durante © reinado de Henrique Vill: “ou descobrimos a escrita impressa ou ela nos descobrira”."* Thomas Beard, amigo e mentor de Oliver Cromwell, defendera a mesii® opinido de Foxe ao ver a Providéncia divina por trés da coincidéncia entre a época da snvengio eo desenvolvimento da imprensa ea traducso da Biblia para o in- elés.¢ Para John Preston, a invencio da imprensa fora uma prova a mais da existéncia de Deus, de seu amor por suas eriaturas. Segundo Henry Robson, 30 A BIBLIA INGLESA EAS REVOLUGOES DO SECULO XVII a liberdade de impressio tornou possiveis a Reforma e as concepgbes mals amplas de liberdade religiosa."” Por mais de um século antes do reinado de Henrique VIII, os Jolardos faziam circular verses manuscritas das Escritu- vax, Encontraram mensagens profundamente subversivas na Biblia. Elemen= tos socialmente inferiores reuniam-se furtivamente, em grupos ilegais, para cuir e discutir a leitura da Biblia. Talvez a palavra de Deus tenhe langado suas ratzes mais profundas entre cles. “Wyclif justificou sua oposigio as posses temporais da Igreja utilizando o amandamento “nao roubarés”."® Para ele, a Biblia era a chave para a.compre= ersio humana da verdade; por esta azo, todos os leigos possufam o direito co dever de estudé-la por si mesmos.”” No século XV o simples fato de pos- ‘cuir uma Biblia em inglés e é-la era evidéncia presumfvel de heresia. Na ver- dade a Igreja parecia preocupar-se mais com as tradugbes correntes da Bfblia ‘cera mais severa em ertadicé-las na Inglaterra do que em qualquer outro “jugar da Europa, exceto talvez a Botmia. Bale sabia que existiam tradugdes a Biblia em Brabance, na Holanda, em Flandres, na Franga, na Espanha, na Itdlia e em outros pafses.? Muitos daqueles que se envolveram no trabalho perigoso de traduzir a Biblia no inicio do século XVI tornaram-se martires — Tyndale, John Rogers “Cranmer. Tyndale, cuja magnifica versio teria sido mais bem entendida se sie tivesse sobrevivido e se tornado um bispo eduardiano, declarou que era smpossivel iniciar os leigas em qualquer verdade, exceto nas Escrituras que Gpareciam diante de seus olhos em sua Iingua-mae”.»' Ele foi financiado por sccadores enquanto traduzia a Biblia, e previu a oposigio do establishment Mil livros eles usaram como alavanca para impor suas doutrinas ¢ abomindveis, ¢ é por isto que as Escrituras devem vir & luz.” A andlise “Tyndale foi corroborada do ponto de vista contrétio pelos rebeldes da nualha de 1549, que exigiam que a Biblia inglesa fosse retirada de circu- “para que o clero néo pudesse continuar, por muito tempo, confun- 9 os heréticos”.2* A Igreja Romana acabou reconhecendo que, uma vez ‘nao podia suprimir as tradugSes inglesas, deveria competir com clas: 0 avo Testamento de Rheims surgiu em 1582, porque “varias coisas eram rajosas e até recomendaveis agora, que, na paz da Igreja nao eram muito rias nem porventura de todo toleraveis”.”* 31 CHRISTOPHER HILL A disponibilidade da Biblia em inglés foi um grande estimulo ao aprendi- zado da leitura; ¢ isso por sua vez assistiu 20 desenvolvimento de publica- ges baratas € distribuigio de livros. Foi uma revolucéo cultural de proporgées sem precedentes, cujas conseqiiéncias nao podem ser superestimadas.* O acesso direto ao texto sagrado deu aos leigos uma sensagio de seguranga que antes lhes faltava, o que serviu para fortalecer criticas de longa data 8 Igreja a0 clero.2* Henrique VIII logo percebeu que era necessirio abolir “a diversi- dade de opinides” por um Ato do Parlamento, sem muito sucesso. As mulhe- res (exceto as nobres), os artesios, ¢ aristocratas, os agricultores, os trabalhadores ¢ os servos estavam proibidos de ler o Novo Testamento ou de discuti-lo em piiblico. Reformadores pioneiros como Tyndale tinham plena consciéncia da importancia de expandir a area social da discussao teolégica, —embora valha a pena lembrar que mesmo no final do século XVII Richard Baxter falava em uma “ralé” de “latoeiros, carregadores ¢ barqueitos” que nunca haviam lido a Biblia” Podemos avaliar proveitosamente a economia da imprensa. © Novo Tes- tamento de Tyndale custava 3/-— nao era uma soma pequena. Entretanto, (05 textos biblicos manuscritos dos lollardos custavam de sete a 18 vezes mais.” Isso foi uma revolugo. E, uma vez que foi iniciada, tornow-se irrefredvel. A professora Eisenstein demonstrou brilhantemente o estimulo que a impren- sa deu 20 anticlericalismo: 0 que antes era murmurado nas tabernas agora podia ser lido por qualquer um. As indulgéncias para os pecados passaram a ser impressas; 0 fato de que clas tivessem rendido lucros substanciais a em- preendedores chocou os crentes sérios. Os ataques dos luteranos as indul- géncias também foram impressos: uma controvérsia religiosa tornow-se impossivel de ser controlada, A quantidade de obras de Lutero que foram vendidas geraria inveja em nossos modernos escritores de romances po- pulares. A Reforma aconteceu simultaneamente com a ascensio das cidades li- vres ¢ foi a imprensa que interligou ambos os fatos. Os impressores, publi- cando tanto para o mercado interno quanto para a exportagio, tiveram grandes — ¢ novos — lucros: um exemplo é o impressor de Antuérpia que publicou o Novo Testamento de Tyndale. A principal mercadoria de expor- taco de Genebra foram os livros, a maioria escrita por refugiados religio- 32 a BIBLIA INGLESA E AS REVOLUGOES DO SECULO XVII sos, que assim pagaram caro por sua aceitagao. E nem os impressores eram vauito seletivos agora que tinham liberdade para imprimir: Sarpt teve © $2% livro, Historia do Concilio de Trento (1621), impresso em Genebra e reimpresso em outras regides protestantes. “Desde os tempos de Castellio a (..) Voltaire, a indistria da impressio foi o principal aliado natural dos filé- scfos libertinos, heterodoxos e ecuménicos.” Alguns pequenos paises Pro- restantes, ansiosos por expandir seus mercados, agora nao tinham mais razoes para temer 0 poder repressor de Roma.” ‘A professora Eisenstein esté correta 20 ver nestes fatos uma revolugio cultural, Ela cita o panfleto utépico Macaria, publicado pelo circulo Hardlib em 1641: “A arte da impressao vai expandir tanto o conhecimento que as "pessoas comuns, conscientes de seus préprios direitos ¢ liberdades, nao se- por isto, aos poucos, todos os Esta foi uma previsio tao mais governadas por meio da opressio e, -reinos serdo como a Macéria”, isto é, sero ut6picos. ‘um tanto prematura em 1641. ‘Alongo prazo, houve conseqiléncias também de cardter econdmico Pat escritores. Eisenstein assinala que Erasmo mostrou como os homens de podiam emancipar-se do status de dependente, embora fosse necessa ‘uum século ¢ meio . Ela afirma ainda que gragas & impressio foram possiveis alguns mmentos reformistas, até mesmo entre os catdlicos, que no mais espera- ra formar novas ordens ou reformar uma antiga, € as salas de espera das autoridades em Roma. A para que os menos eminentes desfrutassem essa liber~ na permissdo papal pai quer freqiientavam mais abriu-se a laicidade, de Calvino a Bunyan. A impressao estimulou demicismo apurado, inicialmente biblico ¢, depois, cientifico#! A do Concilio de Trento de que a Vulgata fosse a tinica versio oficial disputas entre protestantes ¢ catélicos, eno seio dos préprios proves jntensificaram um retorno & Biblia que objetivava investigar a exa seu texto, o que estimulou uma grande onda de estudos biblicos. Bradshaw, em seu livro English Puritantisme (1605), insistia em que fantes da biblia “deviam seguir estas regras somente se fosse ttl para brit o significado de outros escritos”: sem interpretagoes alegoricas, snterpretando 0 texto & luz da tradigfo eclesidstica.+ © Treatise of the 33 CHRISTOPHER HILL Cornuptions of Scripture (1612), escrito por Thomas James, o primeiro biblio- tecario de Bodley, foi, neste contexto, um marco. Uma vez que a Biblia te- nha se tornado o arbitro supremo, um texto oficial deveria ser estabelecido a partir dos mais rigorosos critérios de erudicao. A autoridade dos padres, Para os quais os catélicos apelavam, podia ser desprezada. James denunciou todos os “indices expurgatorii”, ¢ afirmou ter utilizado o Index pontificial Para ajuda-lo a decidir que livros deveria comprar para a biblioteca de Bodley."* A andlise penetrante dos textos feita por James e a sua exposi¢go das falsificagses contribufram, em tltima andlise, para solapar a confianca na autoridade da Biblia. A este respeito, concordo com Elizabeth Eisenstein e me oponho as con- clusGes do artigo de Gillian Brennan “Patriotism, Language and power: English Translations of the Bible, 1520-1580”. Este dltimo deseja nos fazer acreditar em uma “ruptura na elite intelectual entre os conservadores, que queriam preservar seu monopélio de acesso ao conhecimento através do uso das linguas cléssicas, ¢ os pensadores progressistas, que compreenderam que Poderia ser mais facil controlar as idéias das massas usando a lingua corren- te”. Tal teoria me parece levar a recente e absurda obsessdo com a existéncia de uma ligagao entre literatura e poder. Eu nio acredito que estes “pensado- res progressistas”, que arriscaram, e freqiientemente sactificaram, a pr6pria Vida para colocarem a Biblia verndcula ao alcance de todos os compatriotas, estivessem preocupados principalmente com “a manipulaao da lingua como forma de poder”. Depots do acontecido, apés observarem o que as pessoas comuns conseguiram extrair da Biblia em Iingua verndcula, somente af, mui- fos como Lurero chegaram & conclusio de que uma catequese feita pelos mi- nistros da Igreja era mais segura do que a leitura irrestrita da Biblia. Porém, nao havia nenhuma intengao de traduzir a Biblia com o objetivo de obter 6 controle de uma populagao inquieta. O fato de que houvesse uma demanda Por uma Biblia em lingua inglesa € um dos aspectos deste caso que precisa ser explicado em termos de um desenvolvimento econémico e social que re- monta ao tempo de Wyclif. Tyndale, entretanto, dificilmente poderia ser definido como um politico calculista. Nés no devemos ler na mente dos Primeiros reformadores consideragdes que ocorreram a alguns de seus st Cessores somente depois de uma ou duas geragdes de experiéncia, 34 A BIBLIA INGLESA E AS REVOLUGOES D0 SécuLO xvi) i Para os catdlicos, as imagens serviam como os livros dos iletrados. Os pro- festantes ¢ os impressores demonstraram que mais pessoas podiam aprender a ler, o que criou uma nova cultura*® e um novo interesse pela educacao Popular, tanto no que se refere aos educadores quanto no que concerne aque- lesa serem educados. “Nés atraimos as pessoas para aleitura « para ouvirem a Palavra de Deus”, escreveu o bispo Jewel. “Apoiamos o conhecimento e cles [catdlicos] a ignorancia.”** Mais tarde os bispos perderam ears confian- $2. “Os erros”, escreveu Joseph Hall durante o reinado de Carlos L, “que Raquela época podiam apenas rastejar [antes da Reforma], agora podem voar,” “Nés precisamos aprender com os nossos sibios adversarios, que adminis- nan © Boverno da Igreja Romana” permanecer em completo siléncie” Ainda em 1643 Francis Cheynell pensow que “teria sido melhor refutar o Socinianismo em latim” do que em inglés, Mas em um segundo instante ele Feconheceu que, aquela altura, era tarde demais para evitar que as pessoas comuns lessem sobre as controvérsias teolégicas.>* Andrew Marvell, escre- vendo depois da experiéncia da Revolucio, ironicamente imaginou um fu- dee em lvt®> Que em breve lhe serd respondido, (..) Houve maneiras de descobrir como banir os ministros [e reunides das congregacées popula- res], mas até agora nenhum estratagema foi capaz de evitar estes encontros sedutores com as letras”,>? O livto da época elisabetana Homily against Disobedience and Wilfuul Rebellion colocou em confronto a determinagéo papal em manter “espe- cialmente a gente comum” na ignoréncia com relagio a0 aceses 8 Biblia verndcula na Inglaterra.* John Jewel afirmou: “a menos que se saiba que nao € possivel julgars a menos que se ouga ambos os lados, na € possivel saber”.*! “Quando Deus deu [a Adio} a razio, Ele lhe dew a liberdade de sscolha, porque a raz8o € a capacidade de escolher”, disse Milton em 35 CHRISTOPHER HILL Areopagitica, quando pedia liberdade de imprensa nas questées politicas € nas religiosas.*” O bispo Jewel também declarou que a autoridade da Biblia estava acima do Coneflio Geral da Igreja, era a intérprete méxima nas con- trovérsias doutrinais.** Ele, porém, nao disse quem deveria interpretar a Biblia. Alleitura popular da Biblia alarmou os conservadores. Thomas More disse, em 1530, que se tratava de uma “heresia pestilenta” supor que “nao deve- rfamos acreditar em nada além da pura Escritura”.# Henrique VIII se quei- xava com o Parlamento em 1546 de que a Biblia era “disputada, versejada, cantada e tocada em todas as tabernas ¢ cervejarias”. © O epigrama de Ivan Roots de que a Reforma comegou nas cervejarias da Inglaterra expressa uma verdade fundamental.* Onde mais as pessoas comuns poderiam se encon- trar para uma discussao? Aexplosio da imprensa durante a relativa liberdade da regéncia de Eduar- do VI permitiu que o protestantismo e as discussées religiosas se estabele- cessem na Inglaterra. Segundo Joseph Martin, “a imprensa colocou mais e mais pessoas em contato direto com a Biblia”, A sofisticagao biblica dos mértires marianos das classes baixas foi o seu traco mais marcante. Eles en- frentaram os bispos ¢ os estudiosos, debateram ¢ questionaram-nos. A lem- branga deste fato nao desapareceu com facilidade. Martin demonstrou que, ao longo da breve reagao catélica romana da era mariana, os artifices publi- cavam suas opinides para que fossem lidas pelos outros.*” Todavia, de forma geral, a defesa da velha religifo foi deixada ao clero; e durante o reinado de Mary, a repressao. Entretanto, ainda parecia possivel que a imprensa pudes- se permanecer na Inglaterra. O livro de John Standish, Discourse where it is debated whether it be expedient that the Scriptures should be in English for all men to read at wyll (1554), enfatizava as conseqiiéncias sociais da leitura descontrolada da Biblia, Os pregadores leigos “nos lugares remotos ¢ reunides secretas” iriam jogar os homens contra suas esposas, os senhores contra os seus servos ¢ vice-versa. As mulheres “tomaram para si o dever de ensinar”; 8 servos tornaram-se “teimosos, voluntariosos e desobedientes com seus se- nhores*.** Agora os soldados e servicais podiam falar tanto nas Escrituras, fato lamentado por Anthony Gilby em Pleasant Dialogue (1566), que nao havia mais respeito pelos superiores.” 36 A BIBLIA INGLESA E AS REVOLUGOES DO SECULO XVII ‘As objecées leitura popular da Biblia sobreviveram por muito tempo. A Igreja dos Tudor esforgou-se em construir uma rede nacional de pregadores capazes de ir ao encontro das novas demandas de pregasao. Sua existéncia também poderia servir aos propésitos da policia, j& que através deles as au- toridades “podiam conhecer com certeza pelo nome, ¢ em um breve perfodo de tempo, quantos e quais eram os inimigos (...) da teligiéo ¢ da comunida- de”. O puritano Laurence Chaderton, pregando a passagem da Epistola aos Romanos XII, enfatizou o potencial da espionagem de um clero leal ao governo.” ‘A Biblia em inglés nfo pode ser abolida; mas, durante o século apés a Reforma, a Igreja Anglicana fez 0 possfvel para atenuar 0 contetido revolucio- dio que alguns ingleses e inglesas percebiam nela. O arcebispo Whitgift, da época de Elizabeth, nao ocultou 0 seu desagrado em relagao & prética de ler e-explicar a Biblia em casa, especialmente quando estranhos estavam presen- tes, sem que os praticantes tivessem tido educacio universitéria para inter- pretarem “passagens dificeis”.® Sir John Coke, no reinado de Carlos 1, “declarou abertamente que “a principal utilidade” do clero “agora éadefesa 2 nossa Igteja ¢ do nosso Estado”? Todas estas atitudes poderiam ter tido so se o clero tivesse conseguido monopolizar 0 uso da imprensa. Toda- 2, esta nova invengio ndo podia se restringir aos defensores do status quo, deo Governo té-lo tentado. Quando houve a guerra civil, Henry Oxin- len incitou a pequena nobreza a permanecer unida para manter 0 governo copal; jé que o presbiterianismo queria “igualar os homens de condicao srior aos nobres” ¢ “instituir um professor superior a um bispo em cada 6quia”.? Ainda em 1672 Andrew Marvell expés 20 ridfculo o bispo Sa- <| Parker por lamentar-se de que “pessoas desqualificadas pudessem ob- misses indiscriminadas para a leitura das Escrituras”.** hierarquia anglicana desejava assegurar-se de que em cada par6quia esse um clérigo culto que interpretasse as Escrituras para os seus paro os, resolvesse seus problemas e contivesse qualquer pensamento heré- ‘Alguém que, tendo sido educado em Oxford ou Cambridge, ndo entasse, ele proprio, idéias perigosas. Como uma ajuda adicional para a doxia, a catequese tornou-se o método mais adequado para disseminar aceitas aos ignorantes: o século XVI e 0 inicio do século XVII vi- 37 TL —————— CHRISTOPHER HILL ram a proliferagdo do catecismo. Tudo isto demonstrou ser ineficiente. O nivel educacional do clero elevou-se significativamente durante os reinados de Elizabeth ¢ dos dois primeiros Stuart, mas ainda deixava muito a desejar. © patrocinio leigo evitou que grande parte dos paroquianos tivesse vor ativa na escolha de seus sacerdotes. Havia sempre os “cies mudos” — uma ex: pressio Biblica que registramos (Isafas, 56.10). Beneficios eclesidsticos mo- Gestos ¢ a avareza dos vigirios acabaram levando ao pluralismo; algumas paréquias careciam de um sacerdote residente, ou lhes era impingido um cura mmigeravelmente pago. Esta inabilidade do clero reforgou a énfase puritana na religiao cultivada dentro do lar, na leitura e discussdo da Biblia presididas pelo chefe da famflia. 0 pior de tudo é que a educagio universitéria demonstrou ser uma sal- vaguarda insuficiente. No novo mundo competitivo que os circundava, os jovens nas universidades descobriram na Biblia uma alternativa para socie- dade hierarquizada e uma Igreja ignalmente hierarquizada. As classes letra- das produziram traidores em seu meio. A partir do momento em que as Fecrituras foram traduzidas para a lingua corrente ¢ impressas, a “caixa de Pandora” havia sido aberta. A Igreja medieval tinha encontrado muitas difi- culdades para conter a heresia; mas agora a unidade da Igreja parecia ter desaparecido para sempre. A Biblia se mostrou capaz de gerar divisSes em uma sociedade em que as tens6es sociais ja se vinham acumulando, Apesar da repressio durante o reinado de Mary Tudor ¢ da falta de estimulo por parte de Elizabeth, a tradigfo popular continuow a florescer. Os panfletos espirituosos e irreverentes de Martin Marprelate (1588-89) citavam Wyelif ¢ apresentavam aos prelados os nomes de Judas ¢ Simon Magus como exem- plos de nao residentes.#* Marprelate pode ser reprimido, mas nao foi esque- cido. Em 1641, alguns de seus panfletos foram reimpressos, ¢ muitos novos tratados, com base neles, foram publicados, alguns deles pelo futuro leveller Richard Overton. Eles eram populares até mesmo no Exército.** Os protestantes radicais fizeram questo de publicar edigoes bararas da Biblia, Durante o reinado de Eduardo VI, tanto a Biblia quanto os Livros [Apéctifos foram publicados em seis in octavo.*” A Biblia de Genebra era nor- malmente impressa em itélico, € ndo no antigo estilo gético. Isto a tornava barata, relativamente pequena ¢ portétil. Por outro lado, a omissao na publi- 38 A BIBLIA INGLESA E AS REVOLUCOES DO SECULO XVII cago de edigdes baratas da Biblia dos bispos de 1568 ajudou a fazer com que a Biblia de Genebra se tornasse a Biblia do povo.%* © monopélio manti nha © prego das Biblias alto demais para que os pobres pudessem comprar, embora cépias mais baratas fossem contrabandeadas da Holanda. Os mo- nopélios, porém, sofreram um colapso depois de 1640, ¢ as Biblias baratas passaram a circular livremente.” Em 1640 as Bfblias in octavo eram vendi- das a2 shillings e 8 d, quando vinham com as notas & margem e, ainda me- nos, em formato “duodécimo”. Em 1650 0 Exército escocés podia adquirir Biblias a 1 shilling ¢ 8d, cada uma, mas ao que parece o prego padrao naque- Je ano variava entre 2 shillings e 2 shillings e 44.* Todos os religiosos das Indias Orientais estavam sempre com uma Bfblia como matéria de leitura, juntamente com a obra de Foxe, Book of Martyrs, ¢ a de Hakluit, Voyages. O _ niimero de Biblias e Novos Testamentos publicados na Inglaterra entre a Reforma e 1640 foi estimado em mais de um milhdo de exemplares. Por esta tazio, em meados do século XVII, homens ¢ mulheres ingleses haviam vivido um quarto de milénio de énfase na soberania das Escrituras uma fonte que deveria ser aberta a todos. Henrique VIII havia previsto tamente os perigos de se permitir que as classes mais baixas pudessem cutir os assuntos politicos que cabiam a seus superiores. O secretério de sado da rainha Elizabeth, Sir Thomas Smith, acreditava que a maioria dos nens ingleses (¢ é claro todas as mulheres inglesas) existiam apenas para regras. Em 1628, Carlos I sentiu-se ultrajado quando a Camara dos nuns pediu que a Petigao de Direitos — a primeira mudanga significativa prerrogativas reais — fosse impressa, porque ele ndo queria que o povo yum a lesse ou discutisse. Em 1641, a proposta de imprimir “O Grande ”, uma lista das queixas da Camara dos Comuns contra o governo los I, levou a um tumulto no Parlamento, no qual as espadas foram ssembainhadas na tinica vez em sua histéria. Foi o pressdgio de uma guerra ‘na qual o Parlamento tinha de recorrer a0 povo se queria que Carlos derrotado. ‘Omomento decisivo veio em 1640, quando a censura e as cortes eclesiés- sucumbiram e, com elas, as restrig6es quanto as discuss6es sobre a Bi- ‘Sli — ou, na verdade, sobre qualquer outra coisa. Grupos de homens e 38 a i TICE CHRISTOPHER HILL mulheres podiam agora ouvir juntos qualquer “pregador improvisado” que possuisse talento e acreditasse ter uma mensagem a transmitir, Nao havia a menor possibilidade de controlar as heresias que trouxessem tais pregagées: a originalidade era um dos meios através dos quais quem se autodesignasse pregador poderia ganhar segnidores. Na década de 1650, a igreja estatal de Cromwell restaurou certa ordem e controle; mas estava longe da perfeigo: a igreja 8 qual Bunyan se juntou nos anos 1650 era, efetivamente, uma Igreja “congregada”, mas seus sacerdotes realizaram 0 que tecnicamente era um meio de vida em uma Igreja nacional. Esta congregacao, como qualquer outra, teve um papel importante na politica, A porta que havia sido aberta nao mais poderia ser fechada de novo. “Em vao o Parlamento inglés permitiu que as Biblias escritas em inglés pudessem entrar nas casas mais pobres, ¢ que os homens e mulheres mais simples procurassem as Escrituras”, escreveu Roger Williams em 1644, jé que “eles eram forgados a acreditar no que a Igreja acreditasse”.® Depois de 1660, a existéncia de discordancias teve de ser aceita, ainda que relu- tantemente, como nunca fora antes de 1640. Entretanto, o tempo dos “pre- gadores improvisados”, com seus ouvintes de passagem, havia terminado. Em 1672 0 governo de Carlos I insistiu que as Igrejas que concediam “in- dulgéncias” fossem registradas e autorizadas. Assim, algum controle havia sido instaurado: os clérigos dissidentes podiam ser considerados respons&- veis por suas congregagées. Apenas em 1689 0 Parlamento péde aprovar 0 Ato de Tolerancia. Francis Bacon acreditava que trés grandes invengdes haviam sido in- troduzidas neste nove mundo em que vivia — a pélvora, a buissola a im- prensa. A pélvora contribuiu para o estabelecimento de Estados nacionais centralizados na Europa e para o bom relacionamento entre eles; a pélvora, juntamente com a biissola, tornaram posstvel a extensdo do dominio euro- peu pelo mundo ¢ o consegiiente enriquecimento deste continente. A impren- sa expandiu o conhecimento. Porém, vista em suas conseqiiéncias politicas, era ambivalente. Por um lado, ela tornou possivel que mais pessoas recebes- sem educacao, ampliando, assim, a chamada nagio politica; por outro, ela ofereceu novas possibilidades de manipulagio e controle da opiniao publi- ca. Em ambos os processos a Biblia teve um papel fundamental. Ela também 40 A Bigtia INGLESA EAS REVOLUGOES DO SECULO XVII foi responsével por modos de pensar que justificaram a expansio € @ SUPSS- macia européias.* wv |A Biblia foi fundamental para toda a vida intelectual e moral dos séculos XVI e XVII. A partir do reinado de Elizabeth, as controvérsias entre presbiterianos ¢ adeptos da Igreja episcopal passaram a girat em rorno woos textos biblicos. Para Walter Travers, por exemplo, 0 relacionamen’o dda Igreja com o Estado teria sido determinado pelo fato de que os profe- ‘as do Antigo Testamento acharam necessirio repreender aré mesmo OF lgovernadores escolhidos por Deus, como Davi e Ezequias.* Entreranto, a considerada uma 5 era somente em questdes religiosas que a biblia ¢ Mie antoridade. O grande oraculo puritano, William Perkins, declarou as Escrituras “abrangiam varias ciéncias Sagradas”, inclusive a €tica, omia, a politica, a academia (“a doutrina de dirigir bem as esco- Jar da teoria politica. Thomas & Tomemos a esfera aparentemente secu! bes foi denunciado por seus contemporaneos como um ate, uma wacdo que ele negou enfaticamente. Ele declarou que 0 Leviata deri- 3 dos “Principios da Razéo”: mesmo nao tendo tido éxito neste senti- vsstava “certo de que etam Principios provindos da Autoridade das Seituras”, e que cle 0 havia demonstrado nas Partes HiT e IV da obra — “jo livro — que tratam da “Comunidade Crista” ¢ do “Reino das “Tm ambos os casos a discussio é preponderantemente biblica. hha que ter poder sobre a consciéncia humana”, declarou Hobbes, 6 Calcula-se que haja 657 citacdes do texto sono Levidtd, ¢ que no total existam 1.327 citagdes em suas seis prin- Js obras politicas.* " Hobbes certamente no utilizo ne de sua obra foi, & primeira vista, surpreendente. Toda a argumentay do excrito péstumo de Sir Robert Filmer, Patriarcha, e de seus trabalhos Scados em infcios das décadas de 1640 © 1650, esta paseada nas hist- Ses do Antigo Testamento, do livro do Génesis em diante. Filmer acreditava -sim o da Palavra em si. ude forma incomum a Biblia, contudo 0 at

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