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Titulo do original em russo: EVOLYUTSIONNOE VVEDENIE V'PSIKHOLOGUIYU poe Sumario Capa: Douné 1 — A Pstcotocia Como CiénctA. O OssETO EA Be es IupontANcta PRérica 1 eeu ete eet attont eee eerie 2 : ‘A Psicologia e, outras ciéncias 7 Partes principais da Psicologia u ate Os métodos em Psicologia 1” ‘Apia ania sica Reco oe 2 Uneato F, Pavro Mario ELBER CuNHA Il — A Evotucgio po PsiquisMo 29 A origem do psiquismo 29 Variabilidade do comportamento dos protozogrios 32 ‘Mecanismos do comportamento dos protozoérios 34 Origem do sistema nervoso e suas formas mais. simples 36 1991 O sistema nervoso ganglionar e 0 Dirsitos desta edisfo reservados eee eee eae eee EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA S.A. Progr si sis Ay. Rio Branco, 99 - 26° andar - Centro Surgimento das formas complexas de programa- 30040 - Rio de Janeiro - RJ ‘sao hereditéria do comportamento (“instintivo”) 42 Tel.: (021) 263-2082 Telex: (21) 33798 Fax: (021) 263-6112 sistema nervoso central ¢ © comportamento individualmente variével dos. vertebrados 50 Mecanismos do comportamento individualmente varidvel 56 © comportamento “intelectual” dos animais oe peel § Fronteiras do comportamento individualmente va~ Impresso no Brasil ridvel dos animais 68 Printed in Brazil magio do comportamento dos animais, sendo antes uma forma de tansmisso pratica direta da propria experiéncia que uma transmiseio de informagéo acumulada na histéria de vir geracées, que lembre o minimo sequer a assimilagao da expe- niéncia material ou intelectual das. geracées, passadas, assimi- Taco essa que caracteriza a Kist6ria social do homem. SGo esses trés tragos que constituem as peculiaridades fun- damentais de todo comportamento e o distinguem radicalmente da atividade consciente do homem. I A Atividade Consciente do Homem e Suas Raizes Histérico- Sociais Principios gerais Por suas pecularidades fundamentais, a atividade cons- ciente do homem difere acentuadamente do comportamento individualmente variével dos animais. ‘As diferencas da atividade consciente do homem sinteti- zam-se em trés tragos fundamentais, opostos aqueles pelos quais acabamos de caractetizar 0 comportamento dos animais. O primeiro desses tracos consiste em que a atividade cons- ciente do homem ndo estd obrigatoriamente ligada a motivos biolégicos. Além do mais, a grande maioria dos nossos atos nnéo se baseia em quaisquer inclinagdes ou necessidades biol6- sicas. Via de regra, a atividade do homem € regida por com- plezas necessidades, freqiientemente chamadas de “‘superiores” ou “intelectuais”. Situam-se entre elas as necessidades cogni- tivas, que incentivam 0 homem & aquisicdo de novos conheci- n mentos, a necessidade de comunicagio, a necessidade de ser itil a Sociedade, de ocupar, nesta, determinada posicéo, etc Encontramos fregiientemente situacées nas quais a ativi- dade consciente do homem, além de ndo se sujeitar as influén- cias ¢ necessidades biol6gicas, ainda entra em conflito com elas ¢ chega inclusive a reprimi-las. Sio amplamente conhecidos casos de herofsmo em que o homem, movido por ¢levados motivos de patriotismo, cobre com seu corpo bocas de fogo ou se langa a morte sob tanques; esses casos so apenas exem: plos da independéncia do comportamento do homem em relagso 20s motivos. biol6gicos Entre os animais no hé semelhantes formas de compor- tamento “desinteressado”, que se baseiam em motivos nio- biolégicos: (© segundo trago caractetistico da atividade consciente do homem consiste em que, a diferenca do comportamento do animal, ela nfo é forgosamente determinada por impresses evidentes, recebidas do meio, ou por vestigios da experiéncia individual imediata. Sabe-se que o homem pode refletir as cond de modo ‘imediatamente mais profundo do que o animal. Ele pode abstrair a impresséo imediata, penetrar nas conexGes dependéncias profundas das coisas, conhecer a dependéncia causal dos acontecimentos ¢, apés interpreté-los, tomar como forientagdo no impressOes exteriores porém leis’ mais profun- das, Assim, a0 sair a passeio num claro dia de outono, 0 homem pode levar guarda-chuva, pois sabe que o tempo é instével no outono. Aqui ele obedece a um profundo conheci- ‘mento das leis da natureza ¢ ndo A impressdo imediata de um tempo de sol e céu claro. Sabendo que a agua do pogo esté envenenada, 0 homem nunca iré bebé-la, mesmo que esteja com muita sede? neste caso, seu comportamento no orientado pela impressao imediata da égua que 0 atrai mas por um conhe- Cimento mais profundo que ele tem da situagao. ‘A atividade consciente do homem nio pode tomar como orientagio a impressio imediata da situagio exterior e sim um conhecimento mais profundo das leis interiores dessa situacio, razio por que hé todo fundamento pata afirmar-se que 0 comportamento humano, baseado no reconhecimento da neces- sidade, é livre. Por iltimo, hé o terceiro trago caracteristico, que difere a atividade consciente do homem do comportamento do animal. 2 Diferentemente do animal, cujo comportamento tem apenas duas fontes — 1) os programas hereditérios de comportamento, jacentes no genotipo e 2) os resultados da experincia indivi- ual —, a atividade consciente do homem possui ainda uma ‘erceira fonte: a grande maioria dos conhecimentos e habilidades éo homem se forma por meio da assimilasao da experiéncia de toda a humanidade, acumulada no processo da histéria social f transmissivel no proceso de aprendizagem. Desde 0 momento em que nasce, a crianga forma o seu ‘comportamento sob a influéncia das coisas que se formaram na historia: sénta-se A mesa, come com colher, bebe em xicara € mais tarde corta o pao com a faca. Ele assimila aquelas habilidades que foram criadas pela histéria social a0 longo de ilénios. Por meio da fala transmitem-lhe os conhecimentos mais clementares € posteriormente, por meio da linguagem, ele assimila na escola as mais importantes aquisigdes da humani- dade. A grande maioria de conhecimentos, habilidades e pro- ‘edimentos do comportamento de que dispde 0 homem nao so 0 resultado de sua experitncia propria mas adquiridos pela assimilagdo da experigncia histérico-social de geragées. Este {taco diferencia radicalmente a atividade consciente do homem do comportamento do animal. HA muito tempo uma questio tem ocupado a filosofia ¢ a Psicologia: como explicar os tragos da atividade consciente do homem que acabamos de numerar? Na histéria da filosofia © da ciéncia podemos distinguir duas vias inteiramente diferentes de solugdo dessa questo. ‘Uma delas, tipica da filosofia idealista, partia das posigdes do dualismo A tese bésica dessa corrente reduzia-se nao 36 ‘20 reconhecimento de acentuadas diferengas de principio entre © comportamento do animal e a consciéncia do homem, como também a tentativa de explicar essas diferencas alegando que 1 consciéncia do homem deve ser considerada como manifes- taco de um prinefpio espiritual especial de que carece o animal. ‘A tese segundo a qual o animal deve ser visto como uma méquina complexa, cujo comportamento obedece as leis da mmecnica, e o homem como dotado do principio espiritual com livre-arbftrio partiu de Descartes, tendo. sido repetida poste: iormente pela filosofia idealista sem mudanca considerdvel. B facil perceber que, apontando a diferenca de principio entre 0 comportamento do animal ¢ a atividade consciente do homem, B essa corrente no dé nenhuma explicacdo cientifica aos referidos fatos. ‘A segunda via de solugéo do problema da originalidade da atividade consciente caracteriza 0 positivismo evolucionista Segundo essa teoria, a atividade consciente do homem 6 resul- tado direto da evolugio do mundo animal, ja se podendo obser- vat nos animais todos os fundamentos da consciéncia humana © primeiro cientista a formular essas teses foi Charles Darwin, que em varias de suas obras tentou mostrar que, na forma em- brionéria, os animais jé tém todas as formas de atividade racio- nal inerente a0 homem ¢ que. néo hi limites precisos e basilares entre 0 comportamento dos animais ¢ a atividade consciente do homem. enfoque naturalista, que tentava estudar uma linha tinica de desenvolvimento da comsciéncia dos animais 0 homem, desempenhou papel positivo em seu tempo no combate as con- cepodes dualistas pré-cientificas. No entanto as afirmagées de ‘que 05 animais tém em embriso todas as formas da vida cons- ciente do homem, o enfoque antropomérfico da “razio” ¢ das “vivencias” dos’ animais, bem como a falta de voniade de reconhecer as diferencas de principio entre 0 comportamento dos animais e a atividade consciente do homem continuaram fa ser 0 ponto fraco do positivismo naturalista. Ficava_ sem solugo o problema da origem das peculiaridades da atividade consciente do.homem, que foram ressaltadas acima. A Psicologia cientifica, que parte dos principios do mar- xismo, focaliza de posicées inteiramente diferentes o problema da origem da atividade consciente do homem. E sabido que toda a atividade psiquica dos animais, que cria a base para a orientaco no meio ambiente, forma-se nas condigSes das formas de vida que caracterizam uma espécie de animais. © que € que caracteriza as formas de vida que diferencia a atividade consciente do homem do comportamento dos ani- mais ¢ nas quais devemos procurar as condigdes que formam essa atividade consciente? As peculiaridades da forma superior de vida, inerente ape- nas ao homem, devem ser procuradas na forma histérico-social de atividade, que ests relacionada com o trabalho social, com © emprego de instrumentos de trabalho e com o surgimento da linguagem. Essas formas de vida nao existem nos animais, a transicéo da hist6ria natural do animal & hist6ria social da 4. humanidade deve ser considerada um importante passo assim como a transicgo da matéria inanimada & animada ou da vida vegetal & animal. Por isto as raizes do surgimento da atividade consciente do homem ndo'devem ser procuradas nas peculiaridades da “alma” ‘nem no intimo do organismo humano mas nas condicées sociais de vida historicamente formadas. So justamente essas condigbes que fazem com que, com a transicao para a hist6ria social, mude radicalmente a estrutura do comportamento. Junto com 0s motivos biolégicos do com- portamento, surgem os motivos superiores (“intelectuais”) ¢ necessidades, concomitantes com o comportamento que depende da percepca0 imediata do meio. Surgem formas superiores de comportamento, baseadas na abstraco das influéncias imediatas do meio, e, juntamente com as duas fontes do comportamento — 0 programas de comportamento consolidados por via here- ditéria e a influéncia da experiéncia passada do proprio indi viduo —, surge uma terceira fonte formadora da atividade: a transmissio ¢ assimilagao da experiéncia de toda a humanidade. Abordemos mais detidamente as raizes hist6rico-sociais da complexa atividade consciente do homem. © trabalho e a formagao da atividade consciente ‘A citncia historica destaca dois fatores, que servem de fonte @ transico da hist6ria natural dos animais 4 histori social do homem. Um desses fatores € 0 trabalho social e 0 emprego dos instrumentos de trabalho, 0 outro, o surgimento da linguagem. Examinemos 0 papel desempenhado por esses dois fatores na mudanca radical das formas de atividade psiquica e no surgimento da consciéncia. ‘Sabe-se que, a diferenca do animal, o homem tanto empre- 128 05 instrumentos de trabalho como prepara esses instrumentos. Os remanescentes desses instrumentos, que pertencem & época ‘mais antiga da historia da humanidade, mostram que, se as las- ccas de pedra tosca so os instrumentos de trabalho mais primit vos, na etapa posterior ja surgem os instrumentos (a lamina, a flecha) preparados especialmente pelo homem. Nesses instru ‘mentos podemos distinguir tanto o gume, com o qual o homem 18 primitive podia esfolar © animal morto ou cortar pedagos de 4rvore, como a “‘lombada”, a parte arredondada, que servia para manter-se comodamente na mao. E natural que arma dessa natureza exige preparo especial, que, pelo visto, cabia aos prefe- ridos do grupo primitivo ou & mulher, que ficava em casa enguanto 0 homem ia & caca ‘A preparacdo dos instrumentos (que as vezes subentendia também a divisio natural do trabalho) por si s6 jé mudava radicalmente a atividade do homem primitivo, distinguindo-a do comportamento do animal. © trabalho desenvolvido na prepa- ago dos instrumentos jé nfo é uma simples atividade, deter- minada por motivo biolégico imediato (a necessidade de ali- mento). Por si s6 a atividade de elaboragéo da pedra carece de sentido © nao tem qualquer justificativa em termos biolé- ‘gicos; ela adquire sentido somente a partir do uso posterior do instrumento preparado na caga, ou seja, exige, juntamente com 0 conhecimento da operago a ser executada, o conhe- cimento do futuro emprego do instrumento. B esta ‘a condicdo fundamental, que surge no processo de preparacao. do instru- mento de trabalho, e pode ser chamada de primeiro surgimento da consciéncia, noutros termos, primeira forma de atividade consciente. Essa atividade de preparaco dos instrumentos de trabalho leva a uma mudanca radical de toda a estrutura do comporta- mento. © comportamento do animal fora sempre voltado imedia- tamente para a satisfagdo de wma necessidade. Diferentemente disto, no homem que prepatava seus instrumentos de trabalho, © comportamento adquiria cardter de estrutura complexa; da atividade, voltada para a satislacio imediata de uma necessidade, separa-se uma agao especial, que adquire seu sentido posterior- mente, quando 0 produto dessa acdo .(preparagdo do instru- mento) seré empregado para matar a vitima e deste modo satisfazer a necessidade de alimento. A mudanca mais impor- tante da estrutura geral do comportamento — surgida no pro- ccesso de transigéo da histéria natural do animal a hist6ria social do homem — dé-se quando, da atividade geral, separa-se uma “acdo” que ndo é dirigida imediatamente por motivo bioldgico e 36 adquire sentido com 0 emprego posterior dos seus resul- tados, Perecebe-se facilmente que, na medida em que se tornam mais complexas a sociedade ¢ as formas de producto, essas ages, no dirigidas imediatamente por motivos biolégicos, 16 comegam a ocupar posicao cada vez mais marcante na ati consciente do homem Contudo, a complicagio da estrutura da atividade durante a transigao @ hist6ria social do homem méo se limita & mudanca que acabamos de mencionar. A. preparacio dos instrumentos de trabalho requer uma série de procedimentos ¢ modos (desbastar uma pedra com tra, friccionar dois pedagos de madeira na obtencao do fog0), Por outras palavras, exige a separacio de varias operacdes auxiliares. A separacdo dessas “operacdes” & 0 que constitui 1 sucessiva complicacéo da estrutura da atividade. Deste modo, a separacio entre a atividade biol6gica geral, © as “acdes” especiais nfo & determinada imediatamente por motivo biolégico, mas € dirigida pelo objetivo ‘consciente, que adguire sentido apenas na comparacéo dessas acdes com o resul- tado final. O surgimento de varias “operacées” auxiliares por meio das quais se executa essa atividade € 0 que constitu a mmudanica radical do comportamento, que é 0 que fepresenta uma nova esirutura de atividade consciente do homem. A complexa organizacdo de “aces” conscientes, que se separa da atividade eral, leva a0 surgimento de formas de comportamento, que do séo diretamente dirigidas por motives bioldgicos, podendo inclusive opor-se algumas vezes a cles. Assim é, por exemplo, a caca na_sociedade primitiva, durante a qual um grupo de cacadores “assusta” e afugenta caca que deve ser apanhada, enquanto outro grupo arma emboscada para ela; aqui poderia parecer que as agdes do primeiro grupo contradizem as necessidades naturais de apanhar a caca € s6 adquirem sentido a partir das agdes do segundo grupo cujo resultado é a caca da vitima pelos cacadores. Toma-se claro que a atividade consciente do homem niio é produto do desenvolvimento natural de propriedades jacentes i10 organismo mas o resultado de novas formas histérico-sociais, de atividade-trabalho. lade A linguagem e a consciéncia do homem © surgimento da linguagem é a segunda condigo que leva a formacdo da atividade consciente de estrutura complexa do homem. n Costuma-se entender por linguagem um sistema de cédigos por meio dos quais so designados os objetos do mundo exterior, ‘suas ag6es, qualidades, relacdes entre eles, etc. Assim, na lingua- gem, a palavia “cadeira” designa um tipo de mével que serve de assento, a palavra “pio” designa um objeto comestivel, enquanto “dorme”, “corre” designam ages, “‘dcido”, “plano” designam qualidades dos objetos e as palavras auxiliares “so- bre", “sob”, “juntamente”, “em conseqiéncia” designam rela- ‘gdes'diferentes por complexidade entre os objetos. £ natural que as palavras, unidas em frases, sio os prin- cipais meios de comunicagdo mediante os quais 0 homem.con- serva ¢ transmite informado e assimila a experiéneia acumu- Jada por geracdes inteiras de outras. pessoas. Essa linguagem nao existe enire os animais e surge somente no processo de transigo @ sociedade humana. O animal possui meigs muito variados de exprescdo de seus estados, que sio pereebidos por outros animais ¢ podem exercer influéncia subs- tancial sobre o comportamento destes. O guia de um bando de cegonhas, ao sentir 0 perigo, solta gritos alarmantes aos quais 0 bando reage vivamente. Numa manada de macacos podemos observar todo um conjunto de sons, que expressa satisfaco, agressio, medo ao perigo, etc. Podemos observar um sistema muito complexo de movimentos expressivos nas _chamadas “dangas” das.abelhas, que mudam de cardter dependendo de ter a abelha regressado do véo com boa prenda e modificam-se dependendo da diregéo e da distancia do caminho percorrido Esses “segredos” so transmitidos a outros individuos e podem ofientar de modos diferentes 0 comportamento das abelhas Mas a “linguagem” dos animiais nunca designa coisas, nfo distingue ages nem qualidades, portanto, ndo é linguagem na verdadeira acepedo da palavra. © problema do surgimento da linguagem humana € 0 objeto de imimeras hipéteses € teorias. ‘Algumas delas consideram a linguagem manifestacio do campo espiritual, atribuindo-Ihe, de acordo com a Biblia, “ori- gem divina" . Essas teorias so muito vagas e omitem 0 fato de que a linguagem € uma especial “forma simbélica de exis- téncia, que faz distinggo entre a vida intelectual ¢ qualquer manifestagio do mundo material ‘Outras teorias, seguindo as tradi¢Oes do positivismo natu- ralista, tentam, inuiilmente, ver a linguagem como resultado da evolugio do mundo animal e interpretam como formas iniciais 8 da evolucdo da linguagem os fendmenos de “comunicacao” eatre os animais que descrevemos. Mas a solucSo cientifica do problema da origem da lingua- gem $6 se tornou possivel quando a filosofia e a ciéncia aban- donaram as tentativas de procurar as raizes da linguagem no amago do organismo e de deduzi-la diretamente das peculiari- dades do “espirito” ou do cérebro, concluindo que as condicdes ‘que originaram o fenémeno devem ser procuradas nas relagBes sociais do trabalho cujos primédrdios de surgimento remontam ao periodo de trarsicdo da histéria natural a histéria humana. ‘A ciéncia no dispde de métodos que permitam observar imediatamente as condigées que originaram a linguagem, res- tando para a,érea da ciéncia, denominada “paleontologia da fala”, apenas "0 caminho das hipéteses que se confirmam pot via indireta. Hé miitos fundamentos para se pensar que 0 surgimento da linguagem teve seus primérdios nas formas de comunicagao contraidas pelos homens no processo de trabalho. A forma conjunta de atividade pratica faz surgir forgosa- mente no homem a necessidade de transmitir a outros certa informagao; esta ndo pode ficar restrita 4 expressao de estados subjetivos (vivéncias), devendo, ao contrério, designar os obje- tos (coisas ow instrumento). que fazem parte da atividade do trabalho conjunto. Segundo as teorias originérias da segunda metade'do século XIX, os primeiros sons que designam objetos surgiram no proceso do trabalho conjunto Entretanto seria incorreto pensar que os sons, que assu- rmiram paulatinamente a funcdo de transmitir certa informacao, ‘ecam “palavras” capazes de designar com independéncia os objetos, suas qualidades, aco ou relagdes. Os sons, que come- jam a indicar determinados objetos, ainda nio tinham exis- téncia auténoma. Estavam entrelacados na atlvidade prética, ‘ecam acompanhados de gestos ¢ entonacdes expressivas, razio or que sé era possivel interpretar o seu significado conhecendo 4 situagdo evidente em que eles surgiam. Além do mais, nesse ‘complexo de meios de expresso parece que, a principio, coube posi¢do determinante aos atos ¢ gestos; estes, segundo muitos autores, constitufam os fundamentos de uma original linguagem ativa ou “linear” ¢ s6 bem mais tarde o papel determinante passou a ser desempenhado pelos sons, que propiciaram a base para uma evolugdo paulatina de uma linguagemt de sons inde- pendente, Durante muito tempo, porém, essa linguagem man- teve a mais estreita ligagiio com o gesto ¢ 0 ato € por isto o mesmo complexo de sons (ou “protovocébulo”) podia desi 9 ar 0 objeto para o qual a mio apontava, 2 propria mio ¢ a ago produzida com esse objeto. S6 depois de muitos milénios a linguagem dos sons comecou a separar-se da aco pritica € 4 adguirir independéncia. E a essa época que pertence o su gimento das primeiras palavras autonomas, que designavam Objetos e bem mais tarde passaram a servir para distinguir as fagdes € a8 qualidades dos objetos. Surgie a lingua como wm sistema de cédigos independentes, que durante um longo periodo histérico posterior de desenvolvimento assumiu a forma que distingue as linguas atuais Enguanto sistema de cédigos que designam os objetos, st agdes, qualidades ou relagies © serve de meio de transmissio de informagao, linguagem teve importancia decisiva para a posterior reorganizacéo da atividade consciente do homem. Por isto tém razdo os cientistas que afirmam que, a par com 0 trabalho, a Tinguagem é 0 fator fundamental de formacao da consciéneia: ‘© surgimento da linguagem imprime ao menos trés mu- dangas essenciais & atividade consciente do bomem. A primeira dessas mudancas consiste em que, designando os objetos eventos do mundo exterior com palavras isoladas ou combi (goes de palavras, a linguagem permite discrintinar esses abjetos, irigir a atencao para eles € conservé-los na meméria. Resulta daf que o homem est4 em condi¢des de lidar com os objetos do mundo exterior inclusive quando eles estGo ausentes. E bastante a prontincia interna ou extema de uma palavra para (0 surgimento da imagem do objeto correspondente ¢ © homem por-se em condigdes de operar com essa imagem. Por isto podemos dizer que a linguagem duplica o mundo perceptivel, permite conservar a informagao recebida do mundo exterior € ria um mundo de imagens interiores. Percebe-se facilmente {que importancia tem o surgimento desse mundo “interior” de imagens, que surge como base na linguagem ¢ pode ser usado pelo homem em sua atividade © segundo papel essencial da linguagem na formagio da consciéncia consiste em que as palavras de uma lingua nfo ape- nas indicam determinadas coisas como abstraem as propricda- des essenciais destas, relacionam as coisas perceptiveis a deter~ minadas categorias. Essa possibilidade de assegurar 0 processo de abstracéo e generalizacdo representa a segunda contribuicio importantissima da linguagem para a formacéo da consciéncia. Por exemplo, as palavras “rel6gio” e “mesa” designam nfo apenas certos objetos. A palavra “re'6gio” indica que esse 80 objeto serve para marcar as horus (do latim horologio): a pa- lavra “mesa” indica que esse objeto serve para ser coberto (do Tatim mensa). Além do mais, as palavras “relégio” © “mesa” designam todas as modalidades desses objetos, independente- mente de sua forma exterior ou do tamanho. Isto significa que 4 palavra que distingue (abstrai) de fato os respectivos indicios do objeto e generaliza objetos diferentes pelo aspecto exterior mas pertencentes & mesma categoria transmite automaticamente 20 homem a experiéncia das geragées ¢ serve de meio de repre- sentagao do mundo mais poderoso que a simples percepcio Deste modo, a palavra faz pelo homem o grandioso trabalho de anilise e classificago dos objetos, que se formou no longo processo da histéria social. Isto d4 a linguagem a possibilidade Ge tomar-se ndo apenas meio de comunicacao mas também 0 vetculo mais importante do pensamento, que assegura a tran- cdo do sensorial ao racional na reptesentagio do mundo © que acaba de ser dito di fundamento para designar a terceira fungio essencial da linguagem na formagio da cons- ciéncia. A linguagem € 0 veiculo fundamental de transmissao de informagao, que se formou na hist6ria social da humanidade, ou seja, ela cria uma terceira fonte de evolucao dos processos psiquicos que, no estégio do homem, aproximam-se das duas fontes (os programas de comportamento iransmissiveis por hereditariedade e as formas de comportamento resultantes da experiéncia de dado individuo) que se verificavam nos animais ‘Ao transmitir a informacdo mais complexa, produzida a0 Jongo de muitos séeulos de pritica hist6rico-social, a linguagem permite ao homem assimilar essa experiéncia e pot meio dela dominar um ciclo imensurdvel de conhecimentos, habilidades € modos de comportamento, que em hipétese alguma poderiam ser resultado da atividade independente de um individuo isolado. Isto significa que com o surgimento da linguagem surge no homem um tipo inteiramente novo de desenvolvimento psiquico desconhecido dos animais, ¢ que a linguagem é realmente 0 meio mais importante de desenvolvimento da consciéncia. A importincia da linguagem para a formaclo dos processos psiquicos ‘A importéncia da linguagem para a formagio da cons ciéncia consiste em que ela efetivamente penetra em todos os 81 campos da atividade consciente do homem, eleva a um novo nivel o desenrolar dos seus processos psfauicos: Por isto a andlise da linguagem ¢ do discurso (da forma de transmissio da informago que emprega meios de linguagem) no pode ser vista apenas como capitulo especial da Psicologia mas deve ser considerada também como fatos de construcdo de todo 0 conjunto da vida consciente do homem. & justamente por isto ue o papel da linguagem ou ‘segundo sistema de sinais da rea- lidade”, como a denominou P4vlov, deve ser enfocado como parte conclusiva da introducdo evolucionista Psicologia. ‘A linguagem reorganiza substancialmente os processos de percepcéo do mundo exterior ¢ ctia novas leis dessa percepcio. E sabido que existe no mundo um méimero imenso de obje- tos, formas, matizes de cores, mas é muito limitado o mémero de palavras que designam esses objetos, formas e matizes. Isto leva a que, quando relacionamos 0 objeto, a forma ou. matiz ‘com alguma palavra (‘‘mesa”, “relégio”, “circulo”, “triéngulo” ou “vermelho”, “amarelo”), nds realmente selecionamos os tragos essenciais e generalizamos os objetos, formas e cores percepiiveis em determinados grupos ou categorias. Isto dé & Petcepcio humana tragos que a distinguem radicalmente da percepedo do anitnal. A percepedo humana se tora mais pro- funda, relacionada com a discriminacio dos indicios essenciais do objeto, generalizada e permanente. ‘A linguagem muda essencialmente os processos de atengao do homem Se a atenco do animal tinha cardter imediato, era deter- minada pela forca, a novidade ou valor bioldgico do objeto que Girigiam aiitomaticamente (arbitrariamente) a atencao do ani- ‘mal, com o surgimento da linguagem e baseado nela o homem se acha em condigoes de dirigir arbitrariamente a sua atencao. Quando a mae diz ao filho “isto é uma xicara”, ela esté istinguindo esse objeto de todos os demais dirigindo para fle a atencio da crianca. Quando posteriormente a propria crianca assimila o discurso (a principio exterior, depois inte- rior), acha-se em condigGes de discriminar sozinha os objetos nomeados, as qualidades ou acdes, tornando-se sua atencio dirigivel, arbitra A linguagem muda essencialmente também os processos da meméria do homem. ¥ sabido que a meméria do animal depende consideravelmente da orientagio no meio ambiente © dos motivos bioldgicos, que servem de reforgo daquilo que é Jembrado com éxito. No nivel humano e apoiada nos processos 82 do discurso, a linguagem se torna pela primeira vez atividade ‘mnembnica consciente, na qual o homem coloca fins especiais de lembrar, organiza o material a ser lembrado © acha-se em condigdes nc sé de ampliar de modo imensurdvel o volume de informagio que se mantém na meméria como ainda de vol- {arse arbitrariamente para o passado, selecionando nele, n0 rocesso de _memorizagio, aquilo que em dada etapa se Ihe afigura mais importante. ‘A linguagem do homem Ihe permite destigar-se pela pri- meira vez da experiéncia imediata e assegura o surgimento da imaginagdo, processo que nio existe no animal e serve de base 4 criacdo ofientada e dirigida cujo estudo constitui érea especial da Psicologia. E dispensavel dizer que s6 com base na linguagem © com sua participagio imediata constituem-se as complexas formas de pensamento abstrato e generalizado; o sutgimento dessas formas epresenta uma das aquisigdes mais importantes da humanidade e garante a transigao do “sensorial a0 racional”, considerada pela filosofia do materialismo dialético como um salto que pela importancia € igual a transicfo da matéria inanimada para a arimada ou da vida vegetal para a animal Nao sfo menos importantes as mudancas introduzidas na reorganizagao da vivéncia emocional pelo surgimenio da lin- uagem, que cleva a um novo nivel os processos_psiquicos. ‘Nos animais conhecemos apenas as reagdes afetivas expres- sas, que ocorrem com a participacéo dominante dos sistemas subcorticais ¢ sio diretamente relacionadas com 0 éxito ou fracasso de sua atividade e conservam plenamente sua ligago com as necessidades biolégicas. © mundo emocional do homem rio é apenas incomparavelmente mais rico nem s6 isolado dos ‘motives biol6gicos; a avaliagao das correlagdes das ages real- mente exeqliveis com as intengOes iniciais, a possibilidade de uma formagio generalizada do carter e do nivel dos, seus acer- tos leva a que, paralelamente as categorias afetivas, formem-se no homem vivéncias demorados estados-de-espirito que vo muito além dos limites das teagdes afetivas imediatas © sio insepardveis do seu pensamento, que se processa com a parti- cipagio imediata da linguagem Por tiltimo, no se pode omitir 2 Gltima tese, cuja impor- tincia € especiaimente grande. E sabido que as novas formas de comportamento indivi- ualmente variével do animal sio adquiridas com base em sta corientagéo imediata no meio ambiente e que a aquisic¢éo de 83 formas estéveis de semelhante comportamento se baseia nas leis dos reflexos condicionados, estudadas minuciosamente pela escola de Pavlov. E fato bem conhecido que a aquisicio de novas formas de comportamento exige um reforgo relativamente longo da resposta ao sinal condicional, a repeticio multiplicada da coin- cidéncia dos sinais condicionais com o reforgo incondicionado. ssa ligagao é adquirida paulatinamente, comega a extinguir-se to logo desaparece 0 reforco e se reorganiza com relativa difi- culdade num novo sistema de ligacées Nao encontramos nada semelhante na formagio de novas ‘modalidades de comportamento consciente do homem. A nova forma de atividade consciente pode surgir no homem & base da formulagio discursiva de uma regra, que o homem estabelece com o auxilio da linguagem. Basta instruir 0 homem no sen- tido de erguer o braco ou girar a chave em resposta a um sinal vermelho e nfo fazer nenhum movimento a um azul para surgit imediatamente e consolidar-se essa nova relacio. O advento de qualquer ago, executavel com base em instruglo discursiva, dispensa qualquer reforco “incondicional” (ou bio- 6gico) . Sua formacdo dispensa elaboracio longa e se estabelece de imediato; essa aco, que se estabelece de acordo com uma regra formulada no discurso, mostra-se imediatamente s6lida, ispensa repeticéo permanente da instrucao e no se extingue se essa instrugdo nao se repete. Por iiltimo, a “‘conversio” dessa ‘agio numa nova nao apresenta, na norma, nenhuma dificuldade, ©, para que a rela¢o anteriormente criada seja imediatamente substituida por uma contréria, basta sugerir 20 sujeito uma nova instrugo, dizendo-Ihe, por exemplo, que agora ele deve fazer © contrétio: em resposta ao sinal azul, levantar o braco (ou sirer a chave), nada fazendo ao sinal vermelho. Tudo isso se refere A imensa plasticidade e ao caréter dir givel dos processos de atividade consciente do homem, que distingue acentuadamente 0 seu comportamento do comporta- mento do animal A anélise minuciosa das formas dessa atividade consciente, dos meios de sua direcio, das leis que servem de base a0 seu desenvolvimento ¢ das formas de sua perturbacdo nos estados patoldgicos constitui uma das tarefas fundamentais da Psicologia. 84 IV O Cérebro e os Processos Psiquicos Pina nxrexoen melhor a estutura dos proessospsiqu- cos do homem ¢ das leis que os regem, devemos conhecer acima de tudo a maneira pela qual se construiu o érgaos prin- cipal da atividade psfquica — 0 cérebro humano — e as rela- GBs dos processos psiquicos com ele. O problema da relacéo dos processos psiquicos com 0 cérebro © problema da relagio dos processos psfquicos com 0 cérebro € dos principios de trabalho do cérebro enquanto subs- ‘rato material da atividade psiquica teve solugoes diferentes em petiodos diversos de evolucao da ciéncia. O cardter da solugao desse problema dependia muito da maneira como se. interpre tavam os processos psiquicos do homem ¢ como se enfocavam 5 seus fundamentos cerebrais. Na Idade Média jé se formara na filosofia e na Psicologia a cla relacionada a concepcéo segundo a qual os processos Psiguicos eram formas especiais de existéncia do espirito ou 85

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