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Jean Flori A CAVALARIA | A ORIGEM DOS NOBRES CUERREIROS DA IDADE MEDIA ‘Traduzido originalmente do francés sob o titulo La Chevalerie, por fditions Jean- Paull Gisserot. reitos de eigdo e taduedo p ‘Traduplo autorizada do francés. (© 2008, Madras Eaitora Lida, Editor: Wagner Veneziani Costa todos os paises de lingua portuguesa Produgdo ¢ Capa: Equipe Téenica Madras Traducio: Eni Tendtio dos Santos Revisdo Rita Sorrocha Neuza Aparecida Rosa Alves ‘Ana Paula Enes (CIP-BRASIL.CATALOGACAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, F659 Flor, Jean ‘A Cavalaria: A Origem dos nobres guerreiros da Idade Média / Jean Flori; ‘taduplo Eni Tenério dos Santos. Sao Paulo: Madras, 2005 ‘Tradugio de Lachevaleie Incl bbliografia ISBN 85-370-0014.0, 1. Cavaleirs ecavalaria - Histra. 2. Cavalaria. 3, Cavalaria na literatura. 1 Titulo. 05-3217. CDD 3662 CU 061.2366 06.10.05 011890 Proibida a reprodugdo total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer imeio eletrénico, meeanico, inclusive por meio de processos xerogrificos, incluindo finda o uso da internet, sem a permissto expressa da Madras Editora, na pessoa de seu editor (Lei n* 9.610, de 19.2.98) ‘Todos os direitos desta edigd0, em lingua portuguesa, reservados pela MADRAS EDITORA LTDA. Rua Paulo Goncalves, 88 — Santana e CEP: 02403-020 — Sto Paulo — SP is? Caixa Postal: 12299 — CEP: 02013-9170 — sP ie Tel. (011) 6959-1127 — Fax: (011) 6959-3090 7 www.madras.com.br INDICE Capitulo 1 O que é a cavalaria? .... ‘A cavalaria e seus ardorosos opositores... vocabulério da cavalaria Capitulo 1 ‘Acentrada na cavalaria: a investidura Imagens da investidura simbolismo das armas.. ‘Acentrega das armas como sinal de poder A igreja e a entrega das armas. ‘A investidura cavalheiresea... A investidura no século XII A igreja e a liturgia da investidura .... ‘A evolucio da investidura nos séculos XIII e XIV Capitulo 111 ‘Natureza e fungio da cavalaria . 51 Res Publica: a nogio de Estado na Tdade Media 32 Pro Patria mori: a nogao de Pitria na Idade Média, 36 6 ACavalaria Ideologia real e servigo de vassalagem... penne ST O servigo dos cavaleiros da familia 59 O servigo mercenirio 60 Capitulo IV Os cavaleiros: armas ¢ métodos de combate... sess 7 (O desenvolvimento da cavalaria pesada 68 Cavalaria e mutacionismo 7 ‘Uma nova esgrima da langa B A evolugio do armamento eavalheiresco 7 Capitulo V Guerra e cavalaria..... Aspectos politicos... Aspectos técnicos Aspectos econdmicos.. Aspectos ideoligicos Aspectos religiosos.... Capitulo VI Justas e torneios cavalheirescos 7 As origens. 98 Os torneios nos séeulos XI-XIII 99) Interesse dos torneios Aten OB Evolugdo da guerra e dos tomeios (séeulos XIII e XV)... 107 Capitulo VIL Nobreza e cavalaria. ( que é a nobreza? ‘Nobreza e cavalaria Capitulo VIL A Igreja ¢ a cavalaria Da_paz de Cristo a paz do claustro Da paz do claustro & paz de Deus. Da paz de Deus & paz da cruzadal nnn Cruzada e cavalaria Capitulo IX. Amor € caValAti@ see - rmsnctne 141 © amor, « mulher e 0 casamento.... ann ‘A mulher, 0 amor e a corte Ince © amor dito “cortés" Amulher,o clérigo eo cavaleiro Amor e cavalaria... Capitulo X, iteratura ¢ ideologia cavalheireseas.... O cavaleiro épico. cavaleiro cortés .. Da cavalaria terrestte & cavalaria celestial Capitulo XT A cavalaria, entre mito e realidade... ‘As ordens religiosas militares |As ordens laicas de cavalari... Conclusao... Orientagio Bibliografica Suméria 146 ve 150 153 137 158 163 168 175 176 181 187 189 0 QUE E A CAVALARIA? A cavalaria e seus ardorosos opositores A nnogiio de cavalaria é mais complexa e multifacetada do que parece. Se salientarmos somente o aspecto puramente militar do guer- reiroa cavalo, podemos ser levados a confundir os significados de ca~ valaria. Seria preciso, neste caso, falar de cavalaria carolingia, merovingia, até romana e, por que nao, barbara, citica ou sérmata, O historiador italiano Franco Cardini demonstrou toda a importincia que tinham, para (05 povos das estepes, a cavalaria pesadamente armada ¢ os valores guerreiros que Ihe eram associados: 0 culto do cavalo ¢ da espada, a veneragio da forga fisica, da coragem ¢ menosprezo da morte, ete. n 2 A Cavalavia Esses valores oriundos das estepes foram transmitidos aos invasores “bir- baros” da Europa ocidental e se encontram, ligados a outros tragos ger- mianicos, como a devogao pessoal ao rei-chefe da tribo, na sociedade ‘guerreira, que caracteriza as novas realezas surgidas do desmembramen- to do Império Romano, Mas, ele também demonstrou que a presenga desses tragos ndo basta para caracterizar a cavalaria. Ela nasce em um contexto histérico politico-social particular que Georges Duby e eu mes- ‘mo, entre outros, tentamos precisar. Ela, de fato, possui elos estreitos ‘coma vassalagem que se instaura, certamente, desde antes do desapare- cimento do Império Romano no Ocidente; mas, também com o declinio da autoridade dos reis, depois dos condes, decorrente da desintegragio do Império Carolingio, coma formagao das castelanias que marcam 0 inicio da chamada época feudal; com as tentativas da Igreja de inculcar nesses guerreiros uma ética ou, a0 menos, regras de conduta que limitas- sema violéncia e seus efeitos sobre as populagdes desarmadas; e com alguns outros fendmenos da sociedade que abordaremos mais adiante. Ora, a maioria desses elementos quase nao aparece antes do ano 1000. Nao é, portanto, sabio falar de cavalaria antes dessa data, Seria dizer com isso que a cavalaria ¢ apenas um subproduto do que chamamos de a “mutagdo do ano 1000” e que niio teria aparecido sem ela? Seria ir longe demais. A existéncia da cavalaria, tal como é com- preendida neste livro, niio esta totalmente vinculada ‘4 mutagao feudal, eo estudo que é feito dela tampouco esta totalmente vinculado a tese “mutacionista”, que encontra hoje alguns detratores zelosos, embora, is vezes, um pouco excessivos. Convém aqui nos explicarmos sumariamen- te. Atese mutacionista, resultante de obras de histéria regional, que se- iam muitas para serem enumeradas, de Georges Duby a Jacques Le Goff ¢ Pierre Toubert, passando por Pierre Bonnassie e a maior parte dos. melhores historiadores do pés-guerra, ressalta uma profunda ruptura que teria ocorrido por volta do ano 1000 na sociedade ocidental, principal- ‘mente na Franga. Podemos, com o risco que comporta todo resummo des- Se tipo, esquematiz4-la, limitando-nos aos aspectos que dizem respeito diretamente & cavalaria, da seguinte forma: o declinio da autoridade do rei, ja perceptivel no final do século IX, teria sido acompanhado pelo declinio dos principados ¢ dos condados, e pela emancipagao politica, O.que én envalorio? 13 ‘militar administrativa e judicria, mais ou menos profunda e rapida, con- forme as regides, de seus subordinados, 0s castel6es cercados de seus ‘ilies, os cavaleiros. Essa emancipagao € acompanhada por tumultos € exagdes, que niio se relacionam a causas externas (guerras ou invades, por exemplo), mas pressio e mesmo a opressio dos cavaleiros. Estes, oriundos das falanges intemas da aristocracia ou de meios mais humildes ainda, aproveitam-se da auséncia da autoridade pablica forte para impor spopulagdes camponesés, por meio da forga de suas armas, costumes, taxas ¢ impostos que eles cobram desses povos desarmados, em nome dos senhores condes e casteldes. Em tomo do ano 1000, forma-se assim uma nova classe social que cavalga: a classe dos cavaleiros, os milites, ‘que aparecem cada vez com mais freqlléncia nos textos dessa época, ‘demonstrando a militarizag2o da sociedade desse tempo. Isentos dessas diversas taxagdes, cles se separam da massa camponesa e se aproximam da aristocracia; tentam fundlit-se com a nobreza € conseguem isso em datas que variam conforme as regides. Esses direitos, taxas e “maus cos- tumes”, que se arrogam os senhores, a pretexto de proteger a populagio desarmada, por meio da forga de seus préprios guerreiros (de onde » termo de senhoria banal que a designa, do termo ban =autoridade ligada Adetengaio da forga armada), sio impostos de fato a todos 0S habitantes do distrito castelio, sejam eles livres ou nao, sujeitos do senhor proprie+ trio fundidrio ou colones, isto é, proprietdrios das terras que eles culti- ‘vam, Assim, pela extensii da senhoria banal edo poder feudal, diferen-| ‘5a social que outrora separava os livres dos ndo-livres, ameniza-se em| ‘beneficio de uma nova divisio, que isola aqueles que portam asarmas (0s) miltes)daqueles que so desprovidos dels, as massa camponesss, Ir) ‘res ou tido-livres (inermes). 5 ssa tese mutacionista recentemente foi objeto de algumas criticas fs vezes fundadas, muitas vezes excessivas, a exemplo de Dominique Barthélémy. Para ele, no teria havido, por volta do ano 1000, nem crise castela, nem crise social, nem formacao de uma classe nova de cavalei- ros, © brusco surgimento, bem real, do termo milifes nas atas, ecartas principalmente, nao significaria de forma alguma o crescimento deuma nova categoria social; ele traduziria uma simples mudanga nos habits redacionais dos escribas, simplesmente uma revoligaio no nivel do voca- OE Mu ACavateria bbuldrio; miles (= cavaleiro) teria apenas substituido vassus (vassalo)..NBo se deveria, por outro lado, insistir na ruptura, no declinio da autoridade sobre os distirbios.“feudais", mas, pelo contrario, salientar a contimuida- de, minimizar as exagdes e as guerras particulares. Analisando essa pers pectiva, a cavalaria resultaria apenas de um contisco qualquer de migalhas «do poder por guerreiros de origem relativamente humilde que tentavam se ‘unir énobreza. A cavalaria, desde sua origem, confundia-se com a nobre- za com 0 poder, nio apenas porque as palavras milites € nobiles Se- iam intercambiiveis, mas porque o termo cavalaria, que se aplicaria a ‘oda a aristocracia, nada mais seria que um termo que designava. direito de governar. A aristocracia 0 compartilhava com o rei que, nessa pers- pectiva, teria somente um pouco mais de “cavalaria” que 0s outros, Ca- valaria, nobreza, aristocracia e poder seriam, no fundo, para simplificar a ‘mesma coisa, Outra percepgdo da cavalaria é expressa por Karl-Ferdinand Werner. Para clea cavalaria nio seria de origem germanica e guerreira, ‘mas de origem administrativa e romana. Haveria assim continuidade entre ‘amilicia da época imperial crist& ea cavalaria, designada também por «esse mesmo termo, No Baixo Império, essa palavra se aplica a0 conjunto do servigo piblico, administrativo, hierarquizado e disciplinado, segundo ‘omodelo militar A entrega do cingulum militiae (que mais tarde, acredi- {a-se, mareari.a investidura dos cavaleiros) significaria, potanto, aentra- danno servigo do Estado, em um nivel elevado do exercicio da fungao piiblica, muito mais que a éntrada de um soldado ordinério no Exército. Acessas diversas concepodes sobre a cavalaria permitam-me acres- Centar a minha. Ela, minha concepsao, coincide em muitos pontos coma ‘ese mutacionista, principalmente em sua descrigio (que parece bem fun- dada) do ctescimento das castelanias, sem todavia confundir-se com ela; admite algumas das criticas da segunda sem, no entanto, segui-laem seu conceito globalizante da cavalaria assimilada ao poder e ao direito de reinar—menos ainda na nogao dos “graus diversos de cavalaria”, avatar ‘Supremo dessa confusio. Minha concepeio aceita uma parte da terceira, Principalmente a que vincula ao servigo piiblico (ou ao que resta dele) a entrega das armas aqueles que governam em seu nome, sem com isso ‘ceitara idéia de uma real continuidade entre as instituigdes romanas ea O que dm cavalarin? 15 Cavalaria, Considero a cavalaria resultante da fusio lenta e progressiva, na sociedade aristocritica e guerreira que se implanta entre o fim do sécu- lo Xo fimdo século XI, de muitos elementos de ordem politica, militar, cultural, religiosa, ica id2olbgica. Esses elementos fomecem, poucoa pouco, d entidade essencialmente guerreira na origem, 0s tragos caracte- risticos do que ela se tonta aos olhos de todos no decorrer do século XII: a cavalaria, a nobre corpora de guerreiros de elite, a ponto de se transformar em corporasaio de nobres cavaleiros, com uma ética que Ihe € prépria ¢, antes de se tomar uma instituigaio moral, uma ideologia e até ummito, O vocabulario da cavalaria Para bem perceber o que os contemporineos entendiam por ca- valaria, nada melhor éo que conhecer 0 vocabulério que empregam a seu respeito 0s textos edigidos — no inicio apenas em latim, depois tam- ‘bémem linguas verniculas (frances antigo, alto-alemaio médio, anglo-saxao, provengal,etc.). Que nogdes fundamentais exprimem esses termos € que conotagdes diversas assumem ao longo do tempo? — Militia, a partir do século XI, designa sem contestay30 possivel que entendemos por cavalaria. Aequivaléncia tio evi- dente a partir do fimdo século XII, mais ainda pelo que se seguiu, «que 0s escritores que traduzem para o francés antigo 0s textos lati- 1nos anteriores substituem sistematicamente 0 termo militia pela palavra cavalaria, 0 prego, aliis, de algumas inexatiddes, obscu- ridades ou verdadeiros contra-sensos. A palavra militia, antes dessa data, aplica-se de fato a realidades que no coincidem exatamente com a nogao habitual de cavalaria. Nos textos latinos da Epoca romana clissica, a militia é0 Exército de Roma, 0 Conjunto dos soldados, Mas K. Wemer tem razio em observar, como eu fizem / algumas obras desde 1983, que o termo assumiu conotayoes de servigo pablico quando, durante o Baixo Império, os soberanios tentaram organizar o império & maneira de um exército ¢ tomé-lo como modelo para sua administragao, Encontramos, portanto, 4s 16 A Cavalaria Martin \ezes até no limiar do século X, por exemploem Hincmar de Reims, © termo militia com um significado de servigo piiblico, que inclui Certamente.autlizagdo da forga armada, mas designa antes de tudo uma fungao civil na corte do rei. Ainda no século XI, alguns textos expressam por meio da palavra militia a fungio de governo dos ‘condes ou principes, representantes do poder piblico ou do que resta dele nessa época. Enfim, ao longo de toda a Idade Média, iniimeros documentos de origem, geralmente eclesistica, opdem o setvigo de Deus, realizado pela militia Dei dos clérigos e monges, a0 servigo do Mundo, do Século e mesmo do Diabo, a0 qual se dedicam os leigos. Para estes iltimos, a palavra pode certamente incluir ainda uma conota¢o guerreira ou militar. Esse niio poderia sero caso dos servidores de Deus que, precisamente, devem abs- ter-se de derramar sangue ¢ portar armas e so, por natureza, isen- tos do servigo militar O verbo Militare, mais evidente ainda, nao se aplica ‘Como era o caso na origem, . agdo de servir por meio das ‘armas, mas a toda forma de servigo pblico, administrativo, polit £0 ou judicidrio; em suma, a todo exercicio da fungio publica. Es- sas finges sto, als, muitas vezes elevadas ¢ implicam o porte da espada como sinal de autoridade exercida em nome do Estado, Sao Paulo, em muitas de suas cartas, faz alusio a essa autoridade dos magistrados romanos que, soment iz ele, no portam em vao a espa- ae aos quais convém se submeter. Logicamente, ele nfo designa assim 0s milites, 0s soldados, mas os iudices, os magistrados ro- ‘manos encarregados pelo Estado de assegurar a ordem e adminis trara justiga. Esses magistrados desapareceram com o império ¢ sua fungo nos reinos barbaros, depois no Império Carolingio, foi exercida por personagens nomeados pelo soberano, que exerciam €m seu nome a autoridade publica, os condes (comites), as vezes chamados e6nsules (consules) ou juizes (iudices), ou mais generi- camente principes ou potentados (principes, praesules, poternes, tc), Esses grandes senhores, cada vez mais autdnomos a partir do século IX, confiscam para sia autoridade e as funges pablic que eles devem exercer em nome do Estado, Uma nogio em vias de desaparecimento, uma vez.que o poder central ndo tem mais os ‘meios de controlé-los, supervisionar ou revogar. Essas fangs tor- nam-se assim o que chamamos entio de “honras”, cargos associa- dos.a vastos dominios que sto, de certa forma, seu salirio perma- niente, e logo se tomariam hereditérios no século IX. Nesse senti-

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