You are on page 1of 46

Mary Jo Putney

Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

Mary Jo Putney
A Besta Negra do Belleterre
Dentro da Antologia Christmas Revels
The Black Beast of Belleterre

A história da Bela e a Besta na Inglaterra vitoriana.


A besta negra do Belleterre tem um herói: James Markland, barão de Falconer, que cresceu em
solidão e, além disso, está desfigurado por uma lesão. Leva um capuz para ocultar seu rosto, e
vive em solidão.
Um homem chamado Sir Edward Hawthorne toma emprestada uma quantidade substancial de
dinheiro dele, e não pode devolver. Quando vai enfrentar ao senhor Hawthorne, vê de longe a
Ariel, sua formosa filha. Logo se inteira de que Sir Hawthorne tem a intenção de casá-la com um
homem mais velho com o fim de pagar a seus credores. Falconer se oferece em seu lugar, a
contrair matrimônio só de nome com Ariel.

Disp em Esp: Alena Jaden & Mara Adilén


Envio do arquivo e trad: Gisa
Revisão: Waléria
Revisão Final: Chris
Formatação: Chris e Gisa
Tiamat - World

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

Comentário da Revisora Waleria: O livro é de uma leitura rápida, principalmente para quem
gosta de romances históricos. Tem muito da "Bela e a Fera". E os sonhadores adorarão a história.
Uma moça linda que se sente deslocada por ser inteligente e só ser vista como uma decoração,
um homem bondoso e fiel que foi desfigurado ainda jovem. Não é hot, mas é uma graça. Boa
leitura.

Comentário da Revisora Chris - é uma gracinha, verdadeiramente um conto de fadas, muito


romântico (como eu gosto). A mocinha é uma fofa e o mocinho maravilhoso.

A Besta Negra Do Belleterre

Ele era feio, muito feio. Não sabia disso quando era jovem e tinha uma mãe que o amava
apesar de seu rosto. Quando as pessoas o olhavam de modo raro, havia presumido que era
porque era o filho de um lorde. Como havia poucos meninos que estivessem dispostos a serem
amigos dele, não pensou mais nisso.
Foi só mais tarde, quando sua mãe havia morrido e o acidente tinha aumentado sua natural
fealdade, que James Markland se deu conta de quão diferente era. As pessoas o olhavam fixo ou,
se eram educados, afastavam rapidamente o olhar. Seu próprio pai não o olhava diretamente nas
raras ocasiões em que se encontravam. O sexto barão Falconer tinha sido um homem muito
arrumado; James não o culpava por desprezar a um filho que era tão claramente indigno do antigo
e nobre nome que ambos levavam.
Não obstante, James era o herdeiro, assim lorde Falconer tinha dirigido o desagradável
assunto com uma consumada e aristocrática graça: tinha instalado ao menino em um pequeno e
remoto imóvel, ocupou-se de que fossem contratados tutores competentes, e não tinha pensado
mais nele.
O chefe dos tutores, senhor Grice, era um homem severo e beato, generoso com as surras
(punição por mau comportamento) tanto como com os sermões sobre a inevitável maldade da
natureza humana. Em seus dias mais joviais, o senhor Grice dizia a seu estudante quão afortunado
era por ser bestial em um modo que todo mundo podia ver; a maioria dos homens levava a
fealdade em suas almas, onde facilmente podiam esquecer sua maldade básica.
James deveria sentir-se agradecido de que lhe tivesse concedido semelhante oportunidade
assinalada para ser humilde. James não tinha estado agradecido, mas sim resignado. Sua vida
poderia ter sido pior; aos serventes pagava o suficiente para tolerar ao moço ao que serviam, e um
dos moços do estábulo inclusive era amistoso. Assim James tinha um amigo, uma biblioteca, e um

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

cavalo. Estava satisfeito a maior parte do tempo.


Quando o sexto lorde morreu — de um modo próprio de um cavalheiro, enquanto jogava
whist — James se converteu no sétimo barão Falconer. Nos vinte e um anos de sua vida tinha
passado um total de, possivelmente, dez noites sob o mesmo teto que seu defunto pai. Havia
sentido muito pouco pela morte de seu pai; nem pena, nem triunfo, nem culpa. Possivelmente
tinha havido arrependimento, mas só um pouquinho.
Era difícil lamentar não conhecer melhor a um homem que tinha escolhido ser um estranho
para seu próprio filho. Assim que seu pai morreu, James tinha tomado a dois serventes de
confiança e voado a um mundo mais amplo, como a ave alçando voo do brasão da família. Egito,
África, Índia, Austrália; tinha-os visto todos durante seus anos de viagens. Tinha descoberto que a
vida de um excêntrico lorde inglês lhe assentava bem, e também tinha desenvolvido hábitos que
lhe permitiam manter o mundo a uma distância segura. Ver os monges em um monastério no
Chipre lhe tinha dado a ideia de vestir um manto com um pesado capuz que o ocultaria da
curiosidade ocasional.
Sempre vestia um manto ou capa similar quando devia andar entre estranhos. Como era
jovem e incapaz de reprimir seus vergonhosos desejos, também tinha aproveitado sua riqueza e
distância do lar para educar-se nos pecados da carne. Pelo preço adequado, era singelo contratar
a mulheres hábeis e experimentadas que não só se deitavam com ele, mas também inclusive
simulavam que não lhes importava como se via. Uma ou duas, as melhores atrizes do monte,
tinham sido quase convincentes ao declarar que desfrutavam de sua companhia e de seu toque.
Ele não se ofendia por suas mentiras; o mundo era um lugar complicado, e se mentir podia
garantir mais dinheiro a uma moça, não se podia esperar que ela dissesse a verdade. Não
obstante, seu prazer estava tingido pela amarga consciência de que unicamente seu dinheiro o
fazia aceitável. Retornou a Inglaterra aos vinte e seis anos, mais forte por ter visto o mundo além
dos limites de sua pátria; o suficientemente forte para aceitar os limites de sua vida.
Nunca teria uma esposa, já que nenhuma moça de bom berço se casaria com ele se tinha
opção e, portanto, ele nunca teria um filho. Nem teria uma amante, sem importar quanto tivesse
saudades de seu corpo e do breve e ditoso esquecimento que só uma mulher podia prover.
Embora ele fosse filósofo por natureza e tivesse decidido cedo que não se permitiria a
autocomiseração, havia limites à filosofia.
As únicas razões pelas quais uma mulher se submeteria a seus abraços seriam o dinheiro ou
a lástima. Nenhuma dessas razões era passível; embora James pudesse suportar sua fealdade e
solidão, não poderia ter suportado saber que era patético. Em vez de deter-se na amargura,
estava agradecido pela riqueza que o amortecia do mundo. A diferença dos homens feios que
eram pobres, Falconer estava em posição de criar seu próprio mundo, e o fez.
O que fazia que sua vida valesse a pena era o fato de que quando tinha retornado a
Inglaterra, apaixonou-se. Não de uma pessoa, é obvio, mas de um lugar. Belleterre, no exuberante
condado do sudeste do Kent, era o imóvel principal da família Markland. James nunca tinha ido ali
sendo menino, porque seu pai não tinha desejado vê-lo. Em troca, James tinha sido criado em uma

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

pequena propriedade familiar nas industriais Midlands. Não lhe tinha importado, porque era o
único lar que tinha conhecido e não sem seu próprio encanto austero.
Entretanto, quando retornou de sua excursão do mundo logo depois da morte de seu pai e
viu Belleterre pela primeira vez, por um breve momento tinha odiado a seu pai por mantê-lo
afastado de sua herança. Belleterre significava “formosa terra”, e nunca tinha havido um nome
mais apropriado. Os ricos campos e bosques, a antiga mansão de pedra parecida com um castelo,
eram objetos dignos do amor que ele desejava expressar. Converteu-se no trabalho de sua vida
ocupar-se de que Belleterre fosse cuidada tão meigamente como um menino.
Dez anos tinham acontecido desde que tinha chegado ao Belleterre, e tinha tido a
satisfação de ver a terra e as pessoas prosperarem sob sua administração. Se estava sozinho, não
era mais do que esperava. Os livros tinham sido inventados para salvar a solidão humana, e eram
amigos sem par, amigos que nunca se burlavam, estremeciam-se ou riam às costas de um homem.
Os livros revelavam seus tesouros a todos os que tomavam o esforço de procurar. Belleterre, os
livros e seus animais... James não necessitava nada mais.

Primavera…
Algumas vezes, infelizmente, Falconer considerava necessário abandonar Belleterre, e hoje
era um desses dias. O ar era quente e estava cheio de aromas e canções da primavera. Desfrutou
da viagem de quinze quilômetros, embora não esperava com vontade a entrevista que teria lugar
quando chegasse ao destino. Franziu o cenho enquanto refreava seu cavalo ante a entrada
principal do Gardsley Manor, já que a ferragem estava oxidada e a argamassa estava
desmoronando-se entre os tijolos dos pilares que encerravam a entrada. Quando fez soar o sino
para convocar ao guardião, passaram cinco minutos antes que um homem áspero e mau vestido
aparecesse.
Disse secamente:
—Sou Falconer. Sir Edwin está me esperando.
O guardião ficou tenso e abriu rapidamente o portal, mantendo o olhar afastado da figura
coberta que passava junto a ele. Falconer não estava surpreso pela reação do homem; sem
dúvidas os camponeses contavam muitas histórias sobre o misterioso lorde encapuzado de
Belleterre. Que tipo de histórias, Falconer não sabia nem lhe importava.
Antes de encontrar-se com sir Edwin, Falconer soube que devia estabelecer a condição da
propriedade; era a razão pela que tinha preferido visitar Gardsley em pessoa em vez de convocar o
baronete a Belleterre. Uma vez que esteve fora da vista do guardião, passou do caminho principal
a um caminho que girava ao oeste, apenas paralelo ao bordo do castelo. Amarrou seus arreios a
um lado de uma colina coroada de árvores e tirou um par de óculos de seu alforje, logo subiu ao
topo.
Como não havia ninguém à vista, afastou seu capuz para trás, desfrutando da sensação da
suave brisa primaveril contra seu rosto e sua cabeça. Como tinha esperado, a colina dava uma

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

clara vista da ondulada campina do Kent. Inclusive podia ver a distância o vapor de um trem rumo
ao Dover. Mas o que viu mais perto não lhe agradou. Os óculos mostravam ao Gardsley com
lamentáveis detalhes, desde cercos desmoronados a campos cheios de ervas daninhas e gado de
pobre qualidade. Quanto mais via, mais se esticava sua boca, porque a propriedade tinha sido
claramente descuidada durante anos.
Cinco anos antes, sir Edwin Hawthorne tinha ido até Falconer e pedido um empréstimo
para ajudá-lo a melhorar seu imóvel. Embora Falconer não tivesse gostado muito do baronete,
tinha estado impressionado e divertido pela pura audácia do homem para pedir dinheiro a um
completo estranho. Provavelmente Hawthorne tinha sido inspirado pelas histórias da
generosidade de Falconer para a caridade, e tinha decidido que não tinha nada a perder pedindo
um empréstimo.
Sir Edwin tinha sido muito eloquente, falando emocionalmente da custosa enfermidade de
sua esposa e a recente morte, de sua única filha, e de como a propriedade que tinha estado em
sua família durante gerações necessitava desesperadamente investimentos para ser próspera
novamente. Embora Falconer tivesse sabido que estava sendo tolo, tinha cedido ao impulso e lhe
tinha emprestado ao baronete as dez mil libras que tinham sido requeridas. Era uma fortuna
considerável, mas Falconer bem podia permitir-lhe e se a Hawthorne realmente importava tanto
seu imóvel, merecia uma oportunidade para salvá-lo. Mas onde quer que tenham ido as dez mil
libras, não tinha sido ao Gardsley.
O empréstimo tinha vencido um ano atrás, e Falconer tinha outorgado uma extensão de
doze meses. Agora que o período de graça tinha terminado, o dinheiro não tinha sido devolvido, e
Falconer devia decidir o que fazer. Se tivesse havido algum sinal de que ao baronete lhe importava
sua terra, Falconer estaria disposto a estender o empréstimo indefinidamente. Mas isto...!
Hawthorne merecia ser açoitado e arrojado à rota como um mendigo pelo abandono de suas
responsabilidades. Falconer estava a ponto de descer de seu cavalo quando viu um brilho azul do
outro lado da colina.
Pensando que poderia ser um Martín pescador, voltou a levantar seus óculos e registrou o
pendente inferior até encontrar a cor que estava procurando. Ficou sem respiração ao ver que não
era um Martín pescador a não ser uma moça. Estava sentada com as pernas cruzadas sob uma
macieira em flor e esboçava com lápis-carvão sobre uma tabuleta apoiada em cima de seu colo.
Enquanto ele a observava, ela fez uma careta e arrancou seu último desenho. Logo amassou o
papel e o deixou cair sobre uma pilha de trabalho similarmente rechaçado. A primeira impressão
de James foi que era uma menina, porque era pequena e seus cabelos de prata dourada caíam
soltos sobre seus ombros em vez de estarem submetidos.
Mas quando ajustou o foco dos óculos, a maior claridade mostrou que seu rosto e figura
eram os de uma mulher, embora uma jovem. Tinha dezoito anos, possivelmente vinte por fora, e
era elegante até sentada no chão. Face à simplicidade de seu vestido azul, devia ser a filha do
Hawthorne, porque não era uma granjeira. Mas não se parecia com seu pesado pai; em troca,
tinha uma qualidade de brilhante doçura que chamou a atenção de Falconer. A visão dele era de

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

seu lado, e o puro perfil lhe recordou à imagem de uma deusa em uma moeda grega.
Se seu velho tutor, o senhor Grice, pudesse ter visto esta moça sob a macieira, inclusive
esse velho carrancudo poderia haver-se perguntado se todos os humanos eram inerentemente
pecadores. Ela era tão adorável que a Falconer doeu o coração. Não sabia se sua dor derivava da
tristeza porque nunca a conheceria, ou da alegria de que semelhante beleza pudesse existir no
mundo. Ambas as emoções, possivelmente. Inconscientemente, levantou uma mão e levou o
escuro capuz sobre sua cabeça para que se, por acaso, ela olhasse para ele, fosse incapaz de vê-lo.
Preferia morrer antes de ver esse doce rosto mostrando medo ou repugnância.
Quando havia feito sua súplica por dinheiro cinco anos antes, sir Edwin tinha mencionado o
nome de sua filha. Era algo extravagante que havia feito com que Falconer pensasse que a sua
mãe devia ter adorado Shakespeare. Titânia, a rainha das fadas? Não, não era esse. Ofélia ou
Desdémona? Não, nenhum desses.
Ariel... Seu nome era Ariel. Agora que Falconer via a jovem, dava-se conta de que o nome
era perfeito, porque ela parecia não de tudo mortal, uma criatura de ar e raios de sol. Sua mãe
devia ter sido profeta. Embora soubesse que era errado espiá-la, não podia obrigar-se a afastar o
olhar. Pelo modo em que o olhar dela subia e baixava, estava desenhando o velho carvalho em
frente dele.
Tinha a hábil rapidez manual de uma verdadeira artista, que compete com o tempo para
capturar uma visão privada do mundo. James estava seguro de que ela via mais profundo que a
mera casca e as folhas da primavera; era uma lástima que não pudesse ver seu trabalho. Uma
rajada de brisa soprou pela ladeira, levantando mechas de seu brilhoso cabelo, levando um de
seus desenhos enrugados pela grama e soltando flores da árvore. Pétalas rosadas golpeadas pelo
sol choveram sobre a moça, como se até a natureza se sentisse obrigada a celebrar sua beleza.
Enquanto o aroma das maçãs subia pela colina, Falconer soube que nunca esqueceria a
imagem que ela compunha, dourada pela luz do sol e rodeada pelas flores. Estava a ponto de
afastar-se quando a jovem ficou de pé e tirou as pétalas de seu vestido. Depois de juntar seus
desenhos descartados, deu a volta e desceu pelo lado oposto da colina, afastando-se dele. Seus
passos longos eram tão graciosos como James sabia que seriam, e seu cabelo era um cintilante
manto prata dourada. Mas ela tinha passado por cima do desenho que tinha jogado longe.
Logo depois que a moça ficou fora de sua vista, Falconer desceu e recuperou a folha
enrugada do arbusto de cerefólio1 verde onde se alojou. Alisou o papel, com cuidado de não
borrar o carvão. Como tinha adivinhado, o desenho da moça, do nodoso carvalho, ia além de uma
mera ilustração. Em um punhado de linhas fortes e livres, tinha insinuado duros invernos e verões
férteis, ricos de bolotas; sol e chuva e seca; a larga história de uma árvore que tinha brotado pela
primeira vez gerações antes que a jovem tivesse nascido e que sobreviveria por mais séculos.
Essa miúda menina dourada era efetivamente uma artista. Como não queria o desenho,

1
Para os franceses ele é considerado indispensável na culinária do dia-a-dia. E, na verdade, o cerefólio se parece
muito com a salsa e pode até ser confundido com ela se a pessoa se atentar somente para o formato das folhas e se
esquecer de pegar algumas folhinhas e sentir os aromas.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

certamente não faria nenhum dano que ficasse com ele. E, sabendo que era um tolo sentimental,
James também retirou alguns cabelos da grama que tinha sido esmagada debaixo dela enquanto
trabalhava. Procurou a jovem enquanto completava seu caminho à mansão, mas sem êxito. Se não
fosse pela evidência do desenho em seu alforje, poderia haver-se perguntado se a tinha
imaginado.
Sir Edwin Hawthorne recebeu a seu convidado nervosamente, dando efusivas boas-vindas e
desculpas. Tinha sido um homem arrumado, mas linhas de dissolução marcavam seu rosto e agora
o suor brilhava em sua fronte. Como Falconer esperava, o baronete era incapaz de devolver o
empréstimo.
—Os últimos dois anos foram difíceis, milord. — disse, com os olhos disparando-se pela
habitação, o que fora necessário para evitar olhar à figura encapuzada que estava sentada imóvel
em seu escritório — Arrendatários preguiçosos, enfermidades nas ovelhas. Você sabe quão duro é
obter benefícios da agricultura.
Falconer não sabia; seu próprio imóvel era assombrosamente rentável, porque prosperava
em mãos amorosas. Não só as mãos de seu amo, mas também as de todos seus arrendatários e
empregados, porque não aceitava a ninguém em Belleterre que não amasse a terra.
Com calma, disse:
—Já lhe dei um ano a mais do término do empréstimo original. Pode fazer pagamentos
parciais?
—Hoje não, milord, mas muito em breve, — disse sir Edwin — dentro de um ou dois meses,
deverei estar em posição de lhe devolver ao menos a metade da soma. Sob seu capuz ocultador, a
boca do Falconer se torceu.
—Você é um jogador, sir Edwin? É pouco provável que a volta de uma carta ou a velocidade
de um cavalo o salvem da ruína.
O baronete se moveu nervosamente ante o comentário de seu convidado, mas era o golpe
da culpa, não a surpresa. Com veloz falsidade disse:
—Todos os cavalheiros apostam um pouquinho, é obvio, mas não sou um jogador. —
passou uma mão úmida por seu cabelo — O asseguro se tão somente me der um pouco mais de
tempo...
Falconer recordou os campos descuidados, as pobres casinhas dos peões, e quase se
negou. Então pensou na moça. O que aconteceria a Ariel se a propriedade de seu pai fosse
vendida para pagar suas dívidas? Ela deveria estar em Londres agora, revoando pela temporada
com as demais mariposas brilhantes e de berço nobre. Deveria ter um marido que a apreciasse e
lhe desse filhos. Mas uma estreia em Londres era custosa, e provavelmente qualquer dinheiro que
seu pai conseguisse mendigar ou conseguir emprestado ia a seus próprios vícios.
Apesar do isolamento de sua vida, Falconer não era ingênuo sobre seus próximos.
Certamente não era o único credor de Hawthorne; o homem provavelmente tinha tomado
dinheiro emprestado em cada direção e tinha dívidas que não poderiam ser pagas mesmo se
Gardsley fosse vendida. Falconer sentiu uma onda de fúria. Um homem que descuidava sua terra

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

também negligenciaria a sua família, e uma jovem que deveria ter estado vestida com sedas e
adorada pelo homem mais nobre da terra vestia algodão e estava sentada só em um campo.
Não era que ela tivesse parecido infeliz; adivinhava que tinha o dom de ser feliz em
qualquer lugar. Mas ela merecia muito mais. Se Falconer insistisse com o pagamento agora, seu
pai estaria arruinado, e a jovem provavelmente terminaria sendo um parente pobre na casa de
alguém mais. Incapaz de suportar essa ideia, Falconer se encontrou dizendo:
—Dar-lhe-ei três meses mais. Se puder devolver a metade do capital para então,
renegociarei o resto. Mas se não puder pagar...
Era desnecessário completar a frase.
Balbuciando de alívio, sir Edwin disse:
—Esplêndido, esplêndido. Asseguro-lhe que terei suas cinco mil libras daqui a três meses.
Certamente poderei lhe devolver a quantidade inteira para então. Falconer olhou ao baronete e o
desprezava. Era um homem débil e superficial, incapaz de ver mais à frente do fato de que tinham
perdoado as consequências de suas ações por um tempo mais. Falconer ficou abruptamente de
pé.
—Retornarei dentro de três meses a partir de hoje. — Mas enquanto viajava a casa para o
Belleterre, seguia açoitado por um pensamento. O que aconteceria a jovem?
Ariel retornou à casa para almoçar, satisfeita de ter realizado vários esboços que valiam a
pena guardar. Sua satisfação morreu ao descobrir que seu pai tinha tomado o trem de Londres
essa manhã. Assim que o mordomo o disse, Ariel levou uma mão a seu cabelo desordenado e saiu
disparada escada acima para sua habitação. Enquanto escovava os nós de seu cabelo, perguntou-
se quanto tempo ficaria sir Edwin no Gardsley essa vez.
A vida sempre era mais agradável quando ele estava longe, o que era a maior parte do
tempo. Mas enquanto estava ali, ela devia andar com cuidado e manter-se fora de sua vista. Ai!
Não podia fugir de seu dever filial de jantar com ele cada noite. Ele criticaria sua aparência
imprópria de uma dama; sempre o fazia. Também seria bastante específico em relação às várias
maneiras nas quais ela era uma decepção para ele.
Uma ou duas vezes Ariel tinha pensado em assinalar que não lhe dava suficiente dinheiro
para que estivesse vestida na moda se tivesse tido tal predisposição, mas a prudência sempre
refreava sua língua. Embora não fosse um homem verdadeiramente maldoso, sir Edwin era capaz
de atacar quando estava bebendo, ou quando estava particularmente frustrado com suas
circunstâncias. Ainda escovando seu cabelo, vagou até sua janela e olhou para fora. Adorava essa
vista em particular. As nuvens estavam bastante dramáticas esta tarde; possivelmente poderia
subir ao teto e tentar capturar o entardecer em aquarelas.
Mas não, isso não seria possível essa noite, já que deveria jantar com seu pai. Estava
afastando-se com pesar da janela quando uma estranha figura descendeu os degraus da frente.
Era um homem alto vestindo um envolvente manto negro com um capuz profundo e folgado que
obscurecia totalmente seu rosto. Como se dizia que Gardsley tinha um fantasma ou dois, Ariel se
perguntou distraidamente se um deles estaria fazendo uma aparição. Mas o homem que se movia

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

tão agilmente pelos degraus e logo pedia que trouxessem seu cavalo parecia bastante real.
Certamente, o cavalo e o lacaio de Gardsley que o levava não eram fantasmas.
Abruptamente se deu conta de que a figura só podia ser o misterioso e solitário lorde Falconer, às
vezes chamado de Besta Negra do Belleterre. Era uma espécie de lenda no Kent, e as donzelas
com frequência falavam dele em calados sussurros deliciosamente escandalizados.
Ariel tinha ouvido que o descreviam como um santo tanto como um demônio, às vezes
tudo no mesmo fôlego. Dizia-se que dava muito a caridade e que tinha dotado de recursos um
hospital para pobres na próxima Maidstone; também se dizia que tinha selvagens orgias de meia-
noite em seu imóvel. Ariel tinha procurado o significado da palavra “orgia”, mas a definição tinha
sido tão vaga que não tinha sido capaz de deduzir o que envolvia.
Entretanto, tinha divulgado alarmante. Despojado dos rumores e excitadas hipóteses, as
intrigas sobre ele se reduziam a três fatos: tinha crescido nas Midlands, era tão horrivelmente
deformado que seu próprio pai tinha sido incapaz de suportar vê-lo, e agora ocultava a si mesmo
dos olhares de todos exceto um punhado de serventes de confiança, nenhum dos quais dizia uma
palavra sobre ele. Se seu silêncio era produto do medo ou da devoção, era uma fonte de muita
especulação.
Enquanto Ariel o olhava subindo em seu cavalo sem esforço, decidiu que sua deformidade
não podia ser do corpo, porque era alto e de ombros amplos, e se movia como um atleta. Com
compaixão, perguntou-se o que o tornava tão resistente a mostrar seu rosto ao mundo. Até mais,
perguntava-se por que lorde Falconer estava no Gardsley. Devia ter negócios com seu pai. De fato,
isso explicaria por que sir Edwin tinha retornado inesperadamente de Londres.
Ariel acabava de chegar a essa conclusão quando lorde Falconer levantou a vista para a
fachada da casa. Seu olhar pareceu ir direto para ela, embora fosse difícil estar segura, já que seu
rosto estava em sombras. Instintivamente, ela deu um passo atrás, sem querer ser apanhada no
ato de olhar fixamente. Embora, pensou com um toque de mordacidade, um homem que se vestia
como um monge medieval devia esperar atrair atenção.
Deixando cair o olhar, ele deu a volta a seu cavalo e partiu em meio galope. Montava
belamente, tão em sintonia com seus arreios que parecia mover-se sem o uso de rédeas ou
joelhos. Voltando a adiantar-se, Ariel o viu desaparecer da vista. A Besta Negra do Belleterre.
Havia uma qualidade impressionante nesse homem, que era tão romântica quanto trágica.
Ariel começou a considerar diferentes modos de retratá-lo. Não em aquarelas, isso não era o
suficientemente forte. Teria que ser a crueldade da pluma e tinta ou a voluptuosa riqueza dos
óleos.
Ficou parada junto à janela por algum tempo, perdida em contemplações, até que sua
atenção foi apanhada por outra figura que descia os degraus. Essa vez era seu pai, seguido por seu
ajudante de câmara. Enquanto observava, a carruagem apareceu dos estábulos. Depois que os
dois homens subiram, ouviu seu pai ordenar ao chofer que o levasse a estação. Assim retornava a
Londres sem sequer pedir para vê-la.
Que parvo de sua parte sentir-se ferida quando seus encontros eram tão incômodos para

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

ambos. Além disso, agora seria livre para subir ao teto e pintar o entardecer. Mas Ariel descobriu
que isso era um consolo inesperadamente débil. Um entardecer já não parecia tão interessante;
não quando acabava de ver o enigmático lorde Falconer. Sim, pluma e tinta seriam o melhor para
ele.

Verão…
Falconer retornou ao Gardsley exatamente três meses depois de sua primeira visita. O dia
também era excelente, assim, desprezando-se por sua debilidade, tomou o mesmo desvio pelo
imóvel que tinha tomado antes. A terra não estava em melhor forma do que tinha estado, e o feno
estaria arruinado se não fosse talhado imediatamente, mas isso não lhe importava. Seu verdadeiro
propósito era uma melancólica esperança de que pudesse ver brevemente a moça. Mas ela não
estava desenhando na colina hoje. As flores há tempo que tinham desaparecido da árvore, e agora
pequenas e verdes maçãs penduravam dos ramos.
Girou seu cavalo com pesar e montou para a casa. Fizera com que seu advogado fizesse
perguntas a respeito de sir Edwin Hawthorne e os resultados tinham confirmado todas as
suspeitas de Falconer. O baronete era um apostador e um conhecido sedutor das esposas de
outros homens. Ficava longe de Gardsley durante meses intermináveis, e tinha estado suspenso à
borda do desastre financeiro durante anos.
O relatório do advogado continuava dizendo que a única filha de sir Edwin, Ariel, tinha vinte
anos. Tinha tido uma governanta até os dezoito; após, aparentemente tinha vivido sozinha em
Gardsley com apenas serventes por companhia. Nas raras ocasiões em que era convidada à
sociedade local, era muito admirada por sua beleza e modéstia, mas a reputação de seu pai e sua
própria falta de dote deviam havê-la excluído de receber alguma oferta matrimonial apta.
Ao Falconer havia sido difícil acreditar nessa parte do relatório. Certamente os homens do
Kent não podiam ser tão cegos, tão ambiciosos, para passar por cima a semelhante jóia
simplesmente porque não tinha fortuna. O mordomo deixou-o entrar e o levou a uma sala de
desenho à frente da casa, dizendo que sir Edwin estaria com seu convidado em um momento.
Falconer sorriu sem alegria. Se o baronete tivesse o dinheiro, estaria esperando-o com um talão
bancário na mão. Agora provavelmente se encontrava em seu escritório tentando
desesperadamente pensar em um modo de salvar sua esbanjadora pele.
Falconer passeava pela sala de desenho quando ouviu o som de vozes elevadas, o nervoso
tenor do baronete se chocando com os tons mais suaves de uma mulher. A sala de desenho tinha
portas duplas que conduziam a outra sala de recepção detrás, assim Falconer as atravessou. As
vozes eram muito mais fortes agora, e viu que outro par de portas levava ao escritório de sir
Edwin, onde estava acontecendo a disputa. O baronete estava dizendo:
—Casar-te-á com ele porque eu o digo! É o único modo de nos salvar da ruína.
Embora Falconer nunca tivesse ouvido a voz de Ariel, soube instantaneamente que esse
tom doce e suave lhe pertencia.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

—Quer dizer que salvará a ti da ruína, ao preço de arruinar a mim. — respondeu ela —Até
eu ouvi a respeito de Gordstone; o homem tem má fama. Não me casarei com ele.
Falconer sentiu como se o tivessem golpeado no estômago. Gordstone de fato tinha má
fama, era um pestilento lascivo que tinha levado a três jovens esposas a suas tumbas. Não só tinha
uma reputação maligna, mas também devia ser mais de quarenta anos mais velho que Ariel.
Certamente sir Edwin não podia ser tão vil para oferecer sua única filha a semelhante homem.
Entretanto, Gordstone era rico e o pai do Ariel necessitava de dinheiro.
Em uma tentativa transparente de soar tranquilizador, sir Edwin disse:
—Não deveria ouvir as intrigas clandestinas. Lorde Gordstone é um homem rico e distinto.
Como sua esposa, terá uma posição na mais divertida sociedade de Londres.
—Não quero ser parte da sociedade de Londres. — replicou sua filha — Apenas quero que
me deixem em paz aqui em Gardsley. É pedir muito?
—Sim, maldita seja, é! — ladrou o baronete — Uma moça com sua beleza poderia ser um
grande recurso para mim. Em troca, esconde-te aqui e joga com lápis e pinturas. Apesar de sua
falta de cooperação consegui arranjar um esplêndido matrimônio para ti, e por Deus que te
comportará como uma filha correta e me obedecerá.
Com a voz tremente, mas desafiante, Ariel disse:
—Não o farei! Terei vinte e um anos logo. Não pode me obrigar.
Era mais forte do que parecia, essa delicada jovem dourada. Mas enquanto esse
pensamento de admiração passava pela mente de Falconer, ouviu o terminante som cortante de
carne açoitando carne, e Ariel gritou. Sir Edwin tinha golpeado a sua filha. Quase cego pela fúria,
Falconer pôs sua mão sobre o pomo da porta do escritório. Estava a ponto de abrir a porta quando
de repente ouviu Ariel falando outra vez.
—Não mudará minha opinião deste modo, papai.
Embora Falconer pudesse ouvir as lágrimas em sua voz, ela não falou como se tivesse sido
seriamente machucada, assim ele se deteve, com a mão ainda sobre o pomo. O que quer que
aconteça entre sir Edwin e sua filha não era assunto dele, e se ele intervisse, o baronete
certamente castigaria a jovem por isso mais tarde, quando seu defensor não estivesse perto.
—Não se preocupe, encontrarei um modo que te fará mudar de opinião. — lhe disse sir
Edwin bruscamente — Se não se casar com Gordstone, não terá um teto sobre sua cabeça, já que
Gardsley deverá ser vendida. Então, o que fará senhorita? Vá a sua habitação e pense nisso
enquanto eu falo com esse feio bruto na sala de desenho. Se não puder persuadi-lo de que me dê
outra extensão a meu empréstimo, serei pobre e também você.
Falconer deu a volta e se retirou silenciosamente à sala de desenho na frente da casa.
Estava ali parado, olhando pela janela, com as mãos enlaçadas atrás das costas, quando o
baronete entrou na sala.
— Bom dia, milord. — disse sir Edwin em uma voz de amabilidade forçada. — Veio bem a
tempo para ouvir boas notícias. Minha filha está a ponto de contrair uma vantajosa aliança, e
poderei lhe devolver o dinheiro do acordo. Só precisará esperar umas poucas semanas mais, já

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

que o noivo está ansioso por bodas antecipadas.


Falconer virou-se e olhou fixamente a seu anfitrião, mas não respondeu. Enquanto o
silêncio se estirava, sir Edwin ficou cada vez mais nervoso. Falconer sabia que sua quietude
perturbava as pessoas; uma vez, a suas costas, alguém havia dito que era como ser observado pelo
anjo da morte. Quando já não pôde suportar mais o silêncio, o baronete disse:
—Sente-se mau, milord?
Logo depois de outra sinistra pausa, Falconer disse:
—Já estendi o empréstimo duas vezes. Como Gardsley é sua garantia, posso o ter
desalojado daqui amanhã, se assim desejar.
Sir Edwin empalideceu.
—Mas não pode me arruinar agora, não quando há uma solução tão ao alcance da mão!
Juro que dentro de um mês...
Falconer cortou ao outro com um brusco movimento da mão.
—De fato posso arruiná-lo, e por Deus, possivelmente o faça, porque você merece ser
arruinado.
Quase choramingando, o baronete disse:
—Não há nada que possa fazer para persuadi-lo a reconsiderar? Certamente é o dever de
um cristão mostrar piedade. — deteve-se um momento, procurando por outros argumentos — E
minha filha... Destruirá sua vida também? Este é o único lar que ela teve.
Sua filha, a quem o vilão se propunha vender a Gordstone. As mãos de Falconer formaram
punhos quando pensou nessa dourada menina profanada por uma criatura tão repugnante. Não
podia permitir que a jovem se casasse com Gordstone. Não podia. Mas, como poderia evitá-lo?
Uma ideia escandalosa lhe ocorreu. Considerá-la sequer era equivocado, blasfemo; entretanto,
cometendo um engano podia evitar outro maior. Quando esteve seguro de que sua voz seria
uniforme, Falconer disse:
—Há uma coisa que me faria mudar de opinião.
Impacientemente, sir Edwin disse:
—O que é isso? Juro que farei o que você deseje.
—A moça. — a voz de Falconer se quebrou — Tomarei à moça.
Meia hora mais tarde depois de Ariel ter sido enviada ao seu dormitório, seu pai foi em sua
busca. Ela se armou de valor quando ele entrou, rogando ser o suficientemente forte para resistir
à suas ameaças e pressões. Estava comovida pelo que lhe tinha revelado antes. Embora sir Edwin
nunca tivesse gasto dinheiro em seu imóvel ou com ela, sempre tinha assumido que tinha uma
renda privada decente, ou não poderia haver-se permitido viver em Londres. Mas hoje lhe havia
informado que toda sua fortuna tinha desaparecido e que devia casar-se com o desprezível lorde
Gordstone.
Entretanto, não era possível que se casasse com o Gordstone. Quinze dias antes, seu pai
havia trazido o homem ao Kent para o fim de semana. Em retrospectiva era óbvio que o
verdadeiro propósito da visita tinha sido que o velho sátiro examinasse Ariel. Uma vez, ele a tinha

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

apanhado a sós e saltado sobre ela como um cão ao descobrir um osso suculento. Seu nauseante
fôlego e mãos como garras tinham sido asquerosas. Logo depois de escapar a seu abraço, ela tinha
passado os dias em campos distantes e tinha trancado sua porta pelas noites, até que ele partiu.
Sem preâmbulo, seu pai disse:
—Não queria se casar com Gordstone, e agora não terá que fazê-lo. Apareceu outro
candidato para sua mão. Sem verte, lorde Falconer te quer.
—Lorde Falconer? — ofegou Ariel, sua mente indo para a escura e enigmática figura que
tinha visto tão brevemente — Como pode querer casar-se com uma mulher a que alguma vez
conheceu?
—Pergunte você mesma, — respondeu sir Edwin — está na sala de desenho e quer falar
contigo agora mesmo. — maliciosamente, deu um passo atrás e fez um gesto para que ela fosse
diante dele — Parece que será minha salvação embora não queira. Não pode dizer que não te criei
bem senhorita; tem como escolher entre dois maridos ricos e com título! A maioria das meninas
cortariam o braço direito para estar em sua posição.
Ariel duvidava de que muitas moças sacrificassem uma extremidade pelo privilégio de ser
forçada a escolher entre um repugnante velho lascivo e um homem sem rosto conhecido como a
Besta Negra, mas manteve o queixo alto quando passou junto a seu pai. Pensou fugazmente em
seu cabelo solto, mas não havia tempo de arrumar-se. Nisto seu pai tinha razão; se ela se
comportasse como uma jovem dama, bebendo chá em vez de vagar pelos campos, estaria
preparada para semelhante entrevista crucial. Certamente, se estivesse vestida de modo
adequado, teria menos temor.
Entrou na sala de desenho com a pesada mão de seu pai sobre o braço. A Besta Negra do
Belleterre se encontrava parado frente a lareira apagada. Alto, escuro e tão quieto que as pregas
de seu manto poderiam ter sido esculpidos em pedra. Tentando ocultar o tremor de suas mãos,
Ariel as uniu detrás dela.
—Aqui está a menina. — trovejou sir Edwin — Tão emocionada pela perspectiva de receber
seus cuidados que desceu correndo. Ariel, faça uma reverência a sua senhoria.
Enquanto ela descendia obedientemente, o homem encapuzado disse:
—Deixe-nos, sir Edwin.
—Isso não seria apropriado.
Embora o tom do baronete fosse virtuoso, seu duro olhar a sua filha demonstrava que não
confiava que ela dissesse o correto sem ele ali. Asperamente, Falconer repetiu:
—Deixe-nos! Falarei com a senhorita Hawthorne em privado.
Ariel secou dissimuladamente suas mãos úmidas em sua saia enquanto seu pai abandonava
receosamente a habitação. Face ao que havia dito e feito antes, viu-o partir com pesar, já que era
uma quantidade conhecida, a diferença do aterrador homem junto à chaminé. Inclusive sem o
capuz, seria difícil vê-lo claramente, já que tinha escolhido parar na parte mais escura da sala.
Falconer voltou-se para ela.
—Disse-te seu pai por que desejo falar contigo? — Sem confiar em sua voz, ela assentiu.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

Sua voz era a mais profunda do que Ariel jamais tivesse ouvido, mas o tom autoritário que tinha
usado ao dirigir-se a seu pai tinha desaparecido. De fato, ele soou quase tímido quando disse:
—Não me tenha medo, Ariel. Pedi a seu pai que partisse para que pudéssemos falar
livremente. Sei que está em uma posição difícil e quero ajudar. Infelizmente o único modo em que
posso fazê-lo é me casando contigo.
Sobressaltada, ela disse:
—Sabe a respeito de Gordstone?
—Sim, enquanto estava esperando para falar com seu pai, ouvi por acaso a discussão entre
vocês.
Inconscientemente Ariel levantou uma mão até sua bochecha, onde estava se formando
um arroxeado. Quando o fez, as dobras do manto do Falconer se agitaram ligeiramente e a
atmosfera mudou, como se uma nuvem de trovões tivesse entrado na habitação. O rosto dela se
ruborizou e deixou cair a mão, envergonhada de que este estranho tivesse ouvido o que tinha
acontecido entre ela e seu pai. Isso explicava muito; aparentemente a Besta Negra do Belleterre
era suficientemente cavalheiro por haver-se alterado pelas ameaças de seu pai.
Mas isso não respondia uma pergunta mais básica. Pensando nessas confusas orgias, ela
perguntou:
— Por que está disposto a lhe oferecer matrimônio a alguém a quem não conhece?
Depois de um prolongado silêncio, ele disse:
— Nenhuma jovem dama deveria ser forçada a casar-se com Gordstone. Nunca pretendi
me casar, assim te oferecer o amparo de meu nome não me privará de nada. — seu tom se tornou
intenso — E isso é exatamente o que estou te oferecendo... Um lar e o amparo de meu nome. Não
requererei... Intimidade marital de sua parte.
O rubor do Ariel retornou, desta vez ardorosamente quente. As donzelas sempre baixavam
suas vozes ao falar sobre o leito matrimonial, ou do palheiro extra matrimonial. Ariel supunha que
o tema devia estar relacionado com as orgias, mas isso seguia sem lhe dizer nada de valioso.
Com voz entrecortada disse:
—Quer dizer que será um... Um matrimônio só de nome?
Ele se aferrou à frase com alívio.
—Exato. Disse a seu pai que desejava estar em paz em Gardsley. Não posso te dar isso, já
que é questão de tempo que ele perca o imóvel, mas se você gosta do campo, será feliz em
Belleterre. Será livre para desenhar ou pintar, ou fazer qualquer outra coisa que deseje. Prometo
não interferir. Os olhos de Ariel se abriram muito. Como podia ele saber a respeito de sua arte e
quão importante era para ela? Em vão tentou ver o rosto de Falconer entre as sombras do capuz,
sem êxito. Havia algo estranho no homem; não era raro que tivesse semelhante reputação
alarmante.
—Seu oferecimento é muito generoso — lhe disse — mas, que benefício obterá você de tal
matrimônio?
—O quente resplendor que vem de saber que se realizou um bom ato. — disse ele com

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

inconfundível ironia. Vendo a expressão dela, disse em voz mais baixa — Agradar-me-á se for feliz.
Ela começou a retorcer uma mecha de seu cabelo que lhe caía sobre o ombro. Falconer
parecia bondoso, mas, o que sabia dele? Não estava segura de confiar na generosidade
desinteressada. Se convertia-se em sua esposa, seria de sua propriedade, para que fizesse com ela
o que desejasse.
Adivinhando seus pensamentos, ele disse:
—Está se perguntando se pode confiar em que a Besta Negra de Belleterre mantenha sua
palavra?
Assim demonstrava que conhecia seu apelido. Dessa vez, quando ela ruborizou, foi por seus
próximos, por inventar um título tão cruel.
—Estou confusa... — disse Ariel sinceramente — Uma hora atrás, mal sabia que você
existia; agora estou considerando sua oferta de matrimônio. Há algo muito medieval nisso. — Ele
ofereceu-lhe um inesperado burburinho de risadas.
—Se estivéssemos na Idade Média, não teria nenhuma escolha, e o homem propondo-se a
ti não estaria vestindo o manto de um monge.
Assim tinha senso de humor. Por alguma razão isso a surpreendeu, porque era uma figura
tão escura e melodramática. Ariel afundou em uma poltrona e uniu suas mãos sobre o colo
enquanto avaliava suas opções. Desprezou instantaneamente casar-se com Gordstone; antes se
converteria em mendiga.
Possivelmente poderia ficar em Gardsley por um tempo, mas tristemente aceitou que seus
dias no único lar que tinha conhecido estavam contados. Até mesmo se seu pai recebesse um
inesperado ganho financeiro, logo o esbanjaria. Só lhe importava a sociedade de Londres e não
valorizava seu imóvel, além do fato de que ser Hawthorne de Gardsley lhe outorgava posição.
Podia procurar trabalho. Nostalgicamente pensou na Anna McCall, quem tinha sido sua
governanta e amiga durante seis anos. Anna tinha sido despedida no décimo oitavo aniversário de
Ariel porque sir Edwin não queria continuar pagando seu modesto salário. Anna tinha ido a um
bom posto com uma família perto de Londres; possivelmente poderia ajudar Ariel a encontrar um
emprego, já que ambas as mulheres seguiam mantendo correspondência. Mas Anna era mais
velha e mais inteligente, enquanto que Ariel era jovem e distraída, e não tinha habilidades exceto
o desenho.
Ninguém a quereria como governanta ou mestra. Se não se casasse com Gordstone, não
poderia permanecer em Gardsley, e como era incapaz de manter-se a si mesma, só tinha a outra
opção: aceitar a proposta de Falconer. Dos caminhos abertos a ela, era o mais difícil de avaliar.
Entretanto, até se o homem estivesse mentindo e quisesse usá-la para saciar suas misteriosas
necessidades masculinas, não poderia ser pior que Gordstone, e se genuinamente não queria mais
que lhe oferecer um lar, ela poderia ser feliz em Belleterre.
Levantando a cabeça, Ariel olhou ao escuro estranho que esperava pacientemente sua
resposta. Ariel desejou poder ver seu rosto; sem importar quão disforme fosse seu rosto, seria
menos alarmante que o capuz. Não obstante, disse firmemente:

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

—Se realmente o desejar, lorde Falconer, casar-me-ei com você.


Com o humor rondando novamente em sua voz, ele disse:
— Decidiste que sou o melhor de um grupo ruim?
— Exato. — os lábios dela se curvaram involuntariamente — Aparentemente herdei algo do
sangue apostador de meu pai.
— Muito bem, então, Ariel — disse ele, sua profunda voz fazendo música com o nome dela.
— Nos casaremos. Garanto que sua vida em Belleterre não será pior que sua vida aqui, e se estiver
dentro de meu poder, ocupar-me-ei de que seja melhor.
Ela não podia pedir algo mais justo que isso. Entretanto, essa noite em sua cama chorou até
dormir.

Casaram-se três semanas e meia mais tarde, depois do anúncio das admoestações. O pai de
Ariel tinha insistido em que ela tivesse um vestido de noiva elegante, e a tinha levado a uma
costureira de Londres. Como sempre, ela tinha odiado o ruído e as multidões de gente. Até mais,
odiava o vestido de seda branco, com sua armação e cauda, e elaborados babados que a faziam
sentir como um bolo muito decorado.
Mais que tudo, odiava o espartilho e os aros de aço que devia usar para que o vestido
ficasse adequadamente justo antes que abandonassem o salão da costureira, ouviu sir Edwin dizer
à proprietária que enviasse a conta lorde Falconer de Belleterre. Assim, seu pai não gastaria seu
próprio dinheiro nem sequer para o vestido de bodas de sua filha. Qualquer remorso sentimental
que Ariel tivesse a respeito de abandonar seu lar se esfumou então.
Dormiu mal durante as semanas entre seu compromisso e seu casamento, e foi à igreja no
dia de suas bodas com escuros círculos sob seus olhos. Não ficaria surpresa se o noivo a tivesse
olhado uma vez e trocado de opinião, mas ele não o fez. Entretanto, ela suspeitava que Falconer
estivesse tão nervoso quanto ela, embora não estivesse segura de como sabia disso se ele ficava
completamente invisível sob sua bata com capuz.
Por um momento teve o pensamento histérico de que poderia não estar casando-se com
lorde Falconer, já que qualquer um poderia ocultar-se sob uma toga. De repente recordou a si
mesma que seu rosto podia estar escondido, mas sua altura e movimentos fluídos e poderosos
eram prova de sua identidade. Foram bodas muito pequenas, com apenas Ariel e seu pai, o pastor
e sua esposa, e um homem maior que se encontrava junto a lorde Falconer. Apoiado em um fraco,
mas inconfundível aroma, o homem maior era um moço de estábulo.
Ariel tinha convidado a Anna McCall, mas sua amiga não tinha podido ir pela interessante
razão de que ela mesma estava se casando nesse mesmo dia. Embora a cerimônia acontecesse
rapidamente, houve várias surpresas; a primeira quando o pastor se referiu ao noivo como "James
Philip." Ariel sabia que seu sobrenome era Markland, mas com uma pequena sacudida se deu
conta de que não tinha sabido seu primeiro nome. Ele era um estranho, um completo estranho, e
ela tinha concordado casar-se com ele sem saber seu nome nem sua aparência.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

Levantou o olhar para o rosto dele, mas a igreja era velha e escura, e o capuz efetivamente
evitava que ela visse algo, embora ela estivesse parada ao seu lado. O serviço progrediu. A
seguinte surpresa chegou quando Falconer levantou sua gelada mão para poder deslizar o anel no
dedo dela. Usou ambas as mãos para sustentar a sua, e Ariel encontrou seu quente toque
reconfortante. Então baixou o olhar.
Não tinha visto de perto as mãos de Falconer antes, porque ele tendia a colocá-las de um
modo que não ficassem facilmente visíveis. Agora ela via que sua mão esquerda estava tão
excessivamente marcada com cicatrizes que os dois dedos menores deviam ser quase inúteis. Não
pôde evitar olhá-lo fixamente, com surpresa. Ele viu sua reação e deixou cair as mãos assim que o
anel esteve no dedo dela. A manga de seu manto caiu sobre seu pulso, e uma vez mais o dano foi
encoberto.
Ariel quis lhe dizer que sua reação tinha sido simples surpresa, não asco, mas não podia
fazer isso agora, em meio à cerimônia de bodas. Mordeu o lábio enquanto o pastor finalizava o
ritual, declarava-os marido e mulher, e dizia com forçada jovialidade que era momento de beijar à
noiva. Ariel tinha se perguntado o que aconteceria nesse momento. Seu novo marido se absteria,
ou realmente a beijaria e ela poderia descobrir algo de sua aparência?
Novamente, Falconer a surpreendeu tomando a mão direita e beijando-a, muito
brandamente. Seus lábios eram quentes, suaves e firmes, tal como os lábios deviam ser. Ariel
queria chorar e não sabia por que. Então deram a volta e abandonaram a igreja, casados. Não
tinha planejado nenhum café da manhã de bodas, já que Ariel tinha suposto que lorde Falconer
estaria incômodo em um evento semelhante.
Nem haveria lua de mel; iriam diretamente para Belleterre, onde já deveriam ter sido
entregues as posses de Ariel. Justo antes de sair, viu Falconer dar alguma coisa a seu pai, mas não
disse nada até que ela e seu novo marido estiveram sozinhos em sua carruagem.
Então, enquanto ela ordenava suas torcidas saias, disse com calma:
— Quanto lhe custou comprar-me?
Falconer se moveu incomodamente no assento de couro, mas não evadiu a pergunta.
— Cancelei um empréstimo de dez mil libras e dava a seu pai vinte mil libras mais. Supõe-se
que as utilize para cancelar outras dívidas, embora duvide que o faça.
Ela inalou o especial e doce aroma de seu buquê de flores, que consistia principalmente de
flores brancas e cravos rosa pálido.
— Esse é um preço muito alto a pagar por uma boa ação. Poderia ter dotado de recursos
outro hospital por trinta mil libras.
— Suponho que sim — disse ele incomodamente — mas o considero dinheiro bem gasto.
Ariel olhava diretamente à sua frente, com os olhos sobre o forro aveludado da carruagem.
Ele tomou vantagem disso para estudar seu perfil outra vez, esta vez muito mais de perto que a
ocasião em que a tinha visto pela primeira vez. Mas hoje ela não era a menina despreocupada sob
a macieira.
Sob o véu seu cabelo loiro estava levantado em um complicado estilo de cachos e saca-

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

rolhas, e seu vestido a fazia espantosamente elegante. Sua beleza e sofisticação o alarmaram;
onde tinha encontrado a audácia para propor-se a semelhante modelo de virtudes? Era trágico
que por culpa da irresponsabilidade de seu pai agora Ariel estivesse atada a um homem
absolutamente indigno dela.
—É uma pena que nunca tenha passado uma temporada em Londres. — disse ele
tristemente — Ali poderia ter encontrado um marido de seu agrado em vez de ser forçada a
escolher entre duas alternativas difíceis de digerir. Para sua surpresa, ela sorriu sem humor.
—Fui a Londres por uma Temporada quando tinha dezoito anos.
Ele franziu o cenho.
—Então, por que não está casada? Deve ter obtido um êxito sensacional.
Ariel começou a arrancar as fitas que caíam de seu ramo. — Oh, sim, obtive êxito... fui
proclamada uma beleza, de fato. — disse com inesperada ironia — E houve várias propostas de
matrimônio. Felizmente foram impropriamente realizadas a mim em vez de ao meu pai, assim fui
capaz das declinar sem que ele se inteirasse delas.
Desconcertado, Falconer disse:
— Por que se negou? Todos eram homens como Gordstone?
Ela enroscou uma fita ao redor do magro dedo.
—Nenhum era tão espantoso como ele, mas tampouco queriam casar-se comigo. Só
queriam ganhar a última beleza. E ganhar é a palavra correta. O cortejo era um esporte, e eu era
um dos melhores troféus da temporada. Nenhum dos homens que me propôs matrimônio sabia
nada sobre mim, nem lhes importava as coisas que me importavam. — levantou o olhar para ele,
com seus olhos azuis — Ser uma beleza é ser uma coisa, não uma pessoa. Possivelmente você,
mais que a maioria dos homens, pode compreender isso.
Suas palavras lhe chegaram com o impacto de um golpe; pela primeira vez, Falconer se deu
conta de quanto era ela mais que a menina formosa que tinha visto na ladeira. Depois de respirar
profunda e lentamente, ele disse:
—Sim, compreendo o que é ser uma coisa e não uma pessoa. Não a culpo que isso te
ofenda. Mas mesmo assim, estaria melhor se estivesse casada com um desses homens, alguém
que lhe desse um matrimônio real e uma posição na sociedade.
—Não estou segura de que estaria melhor assim. Estava dizendo a verdade a meu pai
quando disse que preferia uma vida tranquila no campo. Ele não pode suportar a calma; suponho
que essa é a razão pela qual nunca nos entendemos muito bem. — disse Ariel com suavidade.
Então, livrando-se visivelmente de seu humor — Não acredito haver te agradecido
adequadamente por me salvar de Gordstone. Realmente aprecio o que tem feito. — logo depois
de uma ligeira vacilação, adicionou: — James.
Surpreso, ele disse:
—Ninguém me chama assim.
Ela levantou o olhar rapidamente.
—Prefere que não o faça?

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

—Não, por favor, como desejar. — respondeu, com a voz afogada.


Estava profundamente comovido por ouvi-la usar seu nome; nenhuma mulher o havia feito
desde que sua mãe tinha morrido. Pensando na morte de sua mãe, deixou cair a mão esquerda
fora de vista atrás de sua coxa. Ariel tinha visto as cicatrizes com desagrado quando ele tinha
posto o anel em seu dedo; era de esperar, já que ela mesma não tinha defeitos. Mas tinha as boas
maneiras do refinamento natural e havia feito sua melhor tentativa por não mostrar sua repulsão.
Durante o resto da viagem a Belleterre nenhum deles falou, mas o silêncio era menos
incômodo do que ele tinha esperado. Quando a carruagem se deteve frente a seu lar, Falconer a
ajudou a descer e disse ligeiramente, como se o assunto não fosse importante:
—Depois deste momento nunca terá que suportar meu toque outra vez. Falconer começou
a tirar sua mão direita da dela, mas Ariel se aferrou a ela. Brandamente, com seus enormes olhos
azuis olhando-o fixamente, disse-lhe:
—James, não deve pensar que me repugna. Somos quase estranhos, mas foste bom comigo
e agora estamos casados. Certamente teremos algum tipo de relação. Espero que não seja tensa.
Ele afastou a mão de seu agarre, sabendo que se sentisse o toque de seus magros dedos mais
tempo, iria querer fazer mais que só sustentar sua mão.
—Não será tensa. De fato, apenas me verá por acaso no imóvel. Ela franziu o cenho.
—Isso soa como uma vida muito solitária. Não podemos ao menos ser amigos,
possivelmente nos fazer companhia de vez em quando?
Seria muito difícil ser amigo dela, mas James disse obedientemente:
— Se deseja isso. Quanta companhia quer?
Ela mordeu o lábio inferior, encantadoramente honesta.
—Talvez... Talvez pudéssemos jantar juntos cada noite. Se não se importar...
—Não, não me importará.
Falconer recordou a si mesmo que o pedido dela provinha da necessidade básica de
interação humana e não de algum agrado especial por ele, mas mesmo assim, a alegria formou-lhe
redemoinhos por dentro ao saber que ela realmente tinha pedido sua companhia com
regularidade. Ariel tomou-lhe o braço enquanto começavam a subir os degraus, surpreendendo-o
outra vez. Era uma menina valente, e honrada, disposta a cumprir com seu dever.
Solenemente, James prometeu a si mesmo que não tomaria vantagem dessa boa
disposição. Os serventes estavam alinhados dentro da casa para conhecer a nova ama. Ariel sabia
que nunca recordaria todos os nomes até que os conhecesse melhor, mas ficou impressionada
pelo ar geral de bem-estar. Se realizavam-se orgias em Belleterre, não pareciam consternar aos
serventes. Não obstante, percebia uma profunda reserva entre eles, como se duvidassem dela.
Supunha que era natural que fossem cautelosos com sua nova ama. Uma vez que descobrissem
que não pretendia fazer mudanças radicais, relaxariam.
Terminadas as apresentações, Falconer a deixou em mãos de sua governanta para que
fosse levada a suas habitações. A senhora Wilcox era distante, mas amável enquanto levava a sua
nova ama acima. Enquanto passava por salas e corredores, Ariel observou que seu novo lar estava

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

mobiliado com um excelente, se não austero gosto. Também estava bem cuidada com os pisos e
móveis reluzindo de cera e sem uma bolinha de pó em nenhum lugar. Ao chegar ao destino a
governanta abriu a porta e disse:
—Seus pertences foram entregues e as donzelas as desempacotaram, sua senhoria. Se
houver algo que deseja, ou queira fazer mudanças, só tem que pedi-lo.
A primeira impressão de Ariel foi que tinha ingressado em um jardim, já que cada superfície
disponível estava coberta de vasos com flores de bem-vinda. Vagou pelas habitações perfumadas,
impressionada pelo tamanho e luxo de seus alojamentos. Não só havia um dormitório bem
mobiliado e uma sala de estar, mas também outra enorme câmara que estava quase vazia.
Levou-lhe um momento para dar-se conta de que essa sala era para estudo, já que havia luz
do norte e um cavalete na esquina. Seus olhos arderam. James saberia o quanto isto significaria
para ela? Devia havê-lo adivinhado; embora fosse um estranho, entendia-a melhor do que seu pai
jamais a tinha compreendido.
Detrás dele, uma suave voz do Kent disse:
—Sou Fanny, sua senhoria, e serei sua donzela pessoal. Deseja tirar seu traje agora e
descansar antes do jantar?
Agradecidamente Ariel aceitou a sugestão da jovem, já que a tensão do dia a tinha deixado
exausta. Dormiu bem e despertou refrescada. Fanny apareceu novamente e a ajudou a vestir-se.
Em uma das surpresas que começavam a tornarem-se frequentes, Ariel descobriu um armário
cheio de roupas novas. Aparentemente tinham encarregado à costureira em Londres que lhe
fizesse todo um novo guarda-roupa, além do vestido de noiva. Seu marido tinha julgado bem seu
gosto, já que a maioria dos vestidos eram soltos vestidos de tarde.
Seriam perfeitos para o dia no campo, particularmente para pintar e caminhar. As cores
escolhidas eram em tons pastéis claros e delicados que assentavam bem a seu cabelo loiro e tez
clara. Ariel começava a suspeitar que a Besta Negra tivesse o olho de um artista.
Quando desceu para jantar, encontrou seu marido esperando no salão. Saudou-a com
gravidade e perguntou se tudo era de seu gosto. Assegurou-lhe que suas habitações eram
adoráveis, especialmente o estúdio. Então foram juntos a sala de jantar. James ficou tenso quando
tomou o braço, e Ariel se perguntou se achava seu toque de mau gosto. A sala de jantar era muito
grande, a um extremo da habitação e era bastante escuro, embora o sol do verão ainda não
houvesse se posto.
Ariel tinha pensado que quando seu marido comia poderia tirar o capuz, mas não o fez.
Como sua cadeira estava na parte escura da sala e ela estava a uma dúzia de metros, na ponta
longínqua da mesa lustrada, não via nada de seu rosto. O jantar foi silencioso até o final, quando
foi servido frutas.
Logo depois que o lacaio abandonou a habitação, Ariel disse:
—Sempre se senta ou para nas sombras?
James se deteve no ato de cortar um pêssego.
—Sempre.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

—É necessário?
—Para mim sim. — lentamente começou a cortar uma espiral de pele de pêssego com seus
largos dedos destros. Nas sombras era impossível ver as cicatrizes em sua mão esquerda. — Disse
que podia fazer o que desejasse em Belleterre. Em troca, Ariel, eu peço que respeite meus desejos
neste assunto.
Ela mordeu o lábio.
—É obvio James.
O resto da comida passou em silêncio. Quando terminaram, levantaram-se e foram ao
corredor. Ariel tinha pensado que possivelmente se sentariam juntos depois de jantar, mas em
troca seu marido disse:
—Boa noite, querida minha. Se desejares ler, a biblioteca está ao outro lado dessa porta à
esquerda. A seleção de livros é ampla e, é obvio, é bem-vinda a adicionar o que desejar à coleção.
Ariel se deu conta de que ele tinha falado a sério ao dizer que se veriam pouco. Bom, ela tinha
desejado uma vida tranquila, e parecia que seu desejo seria atendido.
Estava dizendo boa noite quando uma escavada de garras soou sobre o polido piso de
mármore. Ariel levantou o olhar para ver um cão trotando ansioso pelo corredor. Era o cão mais
feio que já tinha visto, ossudo, manchado e de duvidosa origem. Mas seu rosto peludo brilhava
com felicidade canina ao chegar junto de seu amo, então se sentou sobre as patas traseiras e se
balançou sobre suas ancas.
Falconer arranhou a cabeça do cão e uma língua rosada pendurou fora de sua boca
ofegante.
—Você chegou a conhecer a sua nova ama, Cerberus?
Divertida pelo nome, Ariel disse:
—Cerberus não tem interesse em mim; claramente é a ti a quem adora com todo seu
canino coração.
A bata de Falconer se agitou, como se houvesse uma ligeira brisa.
—Não se demora muito para ganhar o coração de um cão.
Ariel estava começando a dar-se conta de que podia ler os movimentos do tecido para
determinar os estados de ânimo de seu marido; muito útil, já que seu rosto estava oculto. Embora
fosse nova com a habilidade de ler togas, adivinhou que ele estava incômodo com seu comentário
de ser adorado. Pobre homem, sentia-se indigno até da devoção de um cão? Com repentina
ferocidade, Ariel quis saber mais sobre o estranho com quem se casou; quis saber o que o havia
feito e o que era. Com o tempo certamente saberia. Depois de tudo, estavam vivendo sob o
mesmo teto.
Pelo canto do olho, Ariel viu mais movimentos. Girando a cabeça, viu um gato branco e
negro entrando no corredor. Movia-se muito estranho, e depois de um momento se deu conta de
que lhe faltava uma pata traseira. Entretanto, parecia não ter problemas para mover-se. Ariel se
ajoelhou e esfregou seus dedos, esperando que criatura fora com ela.
—Esse é Tripod! — disse Falconer — Sua pata foi acidentalmente cortada por uma foice.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

Logo depois de um desdenhoso olhar ao Cerberus, a gata saltou para Ariel e se esfregou
contra seus dedos estirados. Ela sorriu.
—Obrigado por se dignar a me conhecer, Tripod.
Com ciúmes, o cão trotou para ela para pedir um pouco de atenção. Enquanto Ariel lhe
alvoroçava as orelhas caídas, murmurou:
—Que tipo de aparência divertida é. Recorda-me ao quadro de um boi almiscarado que vi
uma vez.
Com uma voz grave, seu marido disse:
—Qualquer criatura feia tem um lar assegurado aqui. — Ariel ficou gelada um momento,
sentindo que tinha cometido algum tipo de erro terrível. Então ficou de pé e disse com calma:
—É um homem muito bondoso, James, para acolher a abandonados e perdidos. Depois de
tudo, eu sou um deles. Boa noite. Então foi acima às encantadoras habitações onde passaria sua
noite de bodas sozinha.
Embora a tivesse visto com seus próprios olhos e conversado com ela durante o jantar, ele
custava acreditar que ela estava sob seu próprio teto. Em sua mente nunca usava o nome Ariel;
para ele sua esposa era ela, como se fosse a única mulher no mundo. O que não tinha esperado
era quão atormentadora seria sua presença. Dez anos se passaram desde a última vez que tinha
dormido com uma mulher e havia se tornado razoavelmente confortável com a vida monástica.
Mas já não mais; embora seguisse vestindo os mantos de um monge, sofria de desejo.
Queria tocar a pele de sua esposa, suave como uma flor, enterrar suas mãos no sedoso cabelo,
inspirar seu doce aroma feminino. Queria mais que isso, embora não se permitisse pôr palavras a
seus pensamentos básicos. Depois de que ela foi se deitar, ele saiu e caminhou de uma ponta de
Belleterre à outra enquanto o entardecer se tornava noite. Cerberus trotava obedientemente
detrás, preparado para defender seu amo dos ataques letais de coelhos e faisões.
Assim que estava suficientemente escuro, Falconer tirou o capuz, dando boas-vindas ao frio
ar noturno, já que ardia. Desprezava a si mesmo pela debilidade de seu corpo; era impensável que
um monstro como ele pudesse estar com o anjo com quem se casou. Ao menos, a diferença de
Gordstone, ele sabia que era um monstro. Mas em seu coração, não era melhor que o outro
homem, porque não podia deixar de desejá-la. Era muito tarde quando retornou à casa.
Para sua surpresa, quando subiu as escadas viu uma luz sob a porta do dormitório de sua
esposa. Também lhe estava custando dormir? Talvez devesse ir e falar com ela, tranquilizá-la
sobre sua nova vida. Embora soubesse que mentia a si mesmo a respeito de seus motivos,
literalmente não pôde evitar descer pelo corredor e golpear brandamente à porta de Ariel.
Quando não houve resposta, girou o pomo e abriu facilmente a porta, logo atravessou a habitação
até a cama.
Ela havia adormecido enquanto lia, e jazia com a cabeça voltada para um lado, seu pálido
cabelo loiro derramando-se abundantemente sobre o travesseiro. Vestia uma camisola com
delicadas nervuras e renda, e era a coisa mais formosa que ele jamais havia visto. James tomou o
livro que ela tinha deixado sobre o cobertor. Era um de seus próprios volumes de William Blake, o

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

místico poeta e artista. Uma boa escolha para uma moça que também era uma artista.
Depositou o exemplar sobre a mesa junto a um vaso de rosas, apagou o abajur e ordenou a
si mesmo abandonar a habitação. Mas se permitiu um último olhar. As cortinas do dormitório não
tinham sido fechadas, e à luz da lua ela era como uma figura modelada em marfim e prata. Ele se
embebeu da imagem, sabendo que nunca poderia permitir-se fazer isto novamente, já que não
podia confiar em si mesmo estando tão perto de Ariel.
Quando havia memorizado sua imagem o suficientemente bem para que lhe durasse toda
uma vida, girou para partir. Estava a meio caminho da porta quando sua resolução se quebrou e
voltou a entrar. Contra sua vontade, sua mão se levantou e começou a mover-se para ela. Com
uma violência que era muito intensa para ser apagada, voltou-se para o vaso de rosas e agarrou os
caules com sua mão esquerda. Ignorando os espinhos cravando-se em seus dedos, tirou as pétalas
com a mão direita. Então, lentamente espalhou as frágeis pétalas escarlates sobre Ariel como um
pagão adorando a sua deusa.
Elas pareciam-se com veludo negro enquanto se dispersavam sob os raios da lua. Uma
pétala lhe tocou a bochecha e deslizou pela suave curva, indo descansar sobre sua garganta,
exatamente do modo em que ele desejava tocá-la. Enquanto o embriagador aroma de rosas
enchia o ar ao redor de James, mais pétalas caíram no cabelo dourado e a delicada camisola de
musselina, subindo e caindo com o lento ritmo de sua respiração. Quando sua mão ficou vazia, ele
respirou estremecidamente. Então se voltou e saiu de sua habitação para sempre.

Outono…
Ariel adicionou um pouco mais de pintura amarela à mescla, deu uma pincelada carregada
pelo papel de prova, e logo examinou criticamente o resultado. Sim, isso devia servir para a
sombra base das folhas, que estavam à altura de sua cor outonal. Nas seguintes duas horas, fez
vários esboços em aquarela dos bosques, mais interessada em criar uma impressão de vibrante
cena do que desenhar uma cópia exata. Como James dizia, agora que os fotógrafos eram capazes
de reproduzir imagens precisas, os artistas tinham mais liberdade para experimentar, para ser
mais abstratos. O trabalho absorvia sua inteira atenção, já que a aquarela era em muitos sentidos
o meio mais complicado e volátil.
Quando finalmente obteve uma pintura que a satisfazia, começou a empacotar seu
equipamento dentro dos alforjes especiais que um dos moços do estábulo de Belleterre fizera
para carregar suas coisas por todo o imóvel. O lugar era profundamente pacífico. Sobre sua
cabeça, altos olmos sussurravam no vento como um rio nascido no céu. Não havia levado muito
tempo para que sua vida mergulhasse em uma cômoda rotina. Como seu marido tinha prometido,
tinha paz, liberdade e tudo que o dinheiro pudesse comprar.
O tamanho do subsídio que lhe dava era assombroso, e tinha sido emocionante
encomendar os melhores papéis e tecidos, os mais caros pincéis e pigmentos, e nunca ter que

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

considerar o preço. Também provou ser bastante educativo ter semelhante riqueza ao seu dispor.
Descobriu que depois de ter comprado seus implementos artísticos, havia pouco mais no que
gastar o dinheiro. Nem sequer precisava comprar livros, já que a biblioteca de Belleterre era que
melhor já havia visto. Nem tinha que comprar roupas, pois tinha o guarda-roupa que seu marido
lhe tinha dado ao casar-se.
Também lhe tinha dado uma deliciosa égua cinza de formosas maneiras. Foxglove era o
cavalo mais bonito do imóvel, já que o resto das bestas era um grupo de aspecto raro. Embora
bastante capazes de fazer seu trabalho, tendiam a ter joelhos com vultos, orelhas cortadas e
pelagens que eram ásperas até depois do mais profundo polido. Os pares não se encaixavam para
nada. Ela suspeitava que, igualmente a Cerberus e Tripod, tinha dado um lar aos cavalos porque
não tinham sido apreciados por um mundo que valorizava a aparência acima das aptidões.
A Ariel pareciam simpáticos, os cavalos desiguais e quase lhe incomodava o fato de que seu
marido tivesse comprado Foxglove para ela. Acreditava que era incapaz de apreciar algo que não
fosse perfeito? Aparentemente. Entretanto, como sua intenção tinha sido agradá-la, dificilmente
podia queixar-se. Sim, James lhe tinha dado exatamente a vida de paz e liberdade que tinha
prometido.
Podia desenhar e pintar tanto quanto quisesse, porque já não tinha que passar a maior
parte de seu tempo tentando, em vão, fiscalizar o descuidado imóvel de seu pai. Seu trabalho
estava melhorando, e parte do crédito devia ir a seu marido, já que com frequência discutiam
sobre arte no jantar. Seu conhecimento de pintura era notável e suas observações muito úteis,
porque as habilidades dela eram mais intuitivas que analíticas.
Entretanto, em vez de montar para retornar à casa, Ariel pôs seus braços ao redor do
pescoço de Foxglove e enterrou seu rosto contra a pele brilhosa e com aroma de cavalo da égua.
Era uma jovem muito afortunada. Sendo esse o caso, por que era tão triste?
—Oh, Foxy... — disse com voz afogada — Estou tão sozinha... Mais só do que estive em
toda minha vida. Às vezes parece que é minha única amiga.
Embora soasse perigosamente como auto compaixão, essa afirmação era certa. Se não
tivesse pedido que seu marido jantasse com ela, passaria dias e dias sem vê-lo. Esperava ansiosa
por aqueles jantares, porque ele era o mais agradável dos acompanhantes, culto e divertido, capaz
de discutir sobre qualquer tema. Apesar de sua juventude e frequente ignorância, ele nunca era
rude ou desdenhoso com suas opiniões; de fato, as discussões a estavam tornando muito mais
entendida, e as desfrutava enormemente.
Entretanto, sem importar quão agradável fosse o jantar, assim que terminava James se
despedia dela com um amável boa noite e se retirava. Ariel não voltava a vê-lo até a noite
seguinte, exceto possivelmente por acaso, à distância, quando ele cavalgava pelo imóvel. Além
disso, os serventes de Belleterre eram um grupo surpreendentemente reservado. Ariel tinha tido
um bom relacionamento com todos em Gardsley, mas as pessoas de Falconer eram tão distantes
agora como no dia em que tinha chegado, quatro meses antes.
A única exceção era Patterson, esse velho moço do estábulo meio cego que tinha sido

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

padrinho de seu marido nas bodas. Ao menos ele sempre era amistoso, embora não muito
comunicativo. Patterson, Foxglove, Cerberus e Tripod formavam quase toda a vida social de Ariel.
Inclusive sua amiga Anna não havia escrito em meses, presumivelmente porque estava absorta
com sua nova família. Com um suspiro, Ariel montou e deu volta com Foxglove para o lar. Sempre
tinha sido capaz de viver bastante feliz em seu próprio mundo; de fato, nunca havia se sentido só
até chegar em Belleterre.
Agora considerava uma boa noite quando Tripod se dignava a dormir em sua cama. Ariel
havia mudado, e a culpa podia ser lançada à seu marido. A solidão já não era suficiente, porque
adorava estar com ele; adorava ouvir sua voz profunda e bondosa, adorava rir com seu mordaz
senso de humor. Ficaria feliz em andar atrás dele como Cerberus. Mas não podia, porque sabia
que James não gostaria disso.
Era apenas uma moça e não muito interessante; embora ele estivesse disposto a
compartilhar uma refeição por dia com ela, mais de sua companhia provavelmente o faria chorar.
Ariel não se atrevia a arriscar o que tinha, pedindo mais do que James estava disposto a dar.
Enquanto ela freava Foxglove em frente aos estábulos, Patterson saiu tranquilamente para ajudá-
la a desmontar. Quando seus pés estiveram a salvo sobre o chão, Ariel fez uma pergunta
impulsivamente, inspirada por seus pensamentos anteriores.
—Patterson, por que todos os serventes são tão reservados comigo? É algo que fiz?
O ancião se deteve no ato de desempacotar seus materiais de pintura.
—Não, milady. Todos a consideram muito adequada.
—Então, por que sinto como se estivesse sendo julgada e não dou ao trabalho? — disse
Ariel, e imediatamente se sentiu tola.
O moço do estábulo tomou suas palavras de bom modo.
—Não é isso, milady. Você é muito admirada. — disse. — É só que temem que possa
machucar ao amo.
Ela o olhou fixamente.
—Machucá-lo? Por que faria isso? — lhe ocorreu uma horrível ideia — Certamente
ninguém pensa que o envenenaria para poder ser uma viúva rica!
—Não é isso, milady. — disse ele rapidamente — Não é esse tipo de dano pelo que estão
preocupados. — ele tirou os alforjes da égua. Sem olhar para Ariel, disse: — Não é necessário uma
faca ou um revólver para se romper o coração de um homem.
—Sua senhoria sabe apenas que estou viva. — disse ela, incapaz de acreditar na insinuação
— Sou só mais uma criatura desafortunada que ele trouxe para Belleterre porque necessitava de
um lar.
—Não, milady. Não é em nada como outros. — face ao nublado de seus olhos, o olhar de
Patterson parecia passar justamente através dela — Conheci a esse moço a maior parte de sua
vida, e sei que nunca trouxe para casa ninguém como você.
A mente de Ariel foi inexplicavelmente à manhã depois das bodas. Tinha encontrado
pétalas de rosas vermelho sangue em cima de toda a cama quando despertou. Tinha estado

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

surpreendida e um pouquinho incômoda, até que concluiu que algumas das flores deveriam ter
caído e sido sopradas pelo vento. Mas se fosse o vento, tinham caído de modo muito estranho.
Tinha uma imagem mental de James semeando pétalas de rosa, e um estranho e profundo
calafrio a atravessou. Seria possível que lhe importasse do modo em que a um homem importava
uma mulher? Rechaçou a ideia. Ele não a queria por esposa; aparentemente a natureza de James
era tão monástica como suas roupas. Enquanto Ariel vacilava, apanhada em seus pensamentos,
Patterson disse:
—Acredito que ele está no aviário, milady. Se quiser, posso levar suas pinturas à casa.
Como indireta não havia nada sutil nela.
—Por favor, faça-o, Patterson. E obrigado.
Os passos de Ariel eram lentos enquanto caminhava pelos jardins para o aviário. Se
compreendera corretamente o velho moço do estábulo, importava a James, ao menos o suficiente
para ter o potencial de feri-lo. Não porque alguma vez fosse fazê-lo, mas o lado oposto desse
potencial era que poderia ser capaz de fazê-lo feliz. Com frequência sentia tristeza irradiando de
seu marido, e a possibilidade de poder reduzi-la era tentadora. Seus passos se fizeram ainda mais
lentos quando avistou o aviário.
Era um enorme recinto feito de ferro fundido, elaboradamente moldado e pintado de
branco. Não só era o suficientemente grande para incluir várias árvores pequenas e um pequeno
lago, mas também para um abrigo onde as aves podiam refugiar-se durante o mau clima. O aviário
era o lar de dúzias de pássaros, a maioria deles espécies estranhas que Ariel não reconhecia. Com
frequência ia vê-los voar, tagarelar e jogar conversa fora. Em particular desfrutava em persuadir
ao grande papagaio verde a conversar.
Várias vezes tinha feito esboços dos residentes do aviário, tentando capturar os
movimentos velozes e brilhantes. Mas hoje seu olhar foi diretamente ao seu marido, que estava
dentro do recinto. Em vez de seu habitual manto às panturrilhas, estava vestido com um escuro
casaco e calças como os que qualquer cavalheiro poderia usar para um dia de administração do
imóvel. De qualquer modo, sua cabeça e ombros estavam ocultos em um capuz folgado que
ocultava seu rosto tão efetivamente quanto o manto mais largo. Ariel o tinha visto ocasionalmente
vestido desse modo, mas sempre à distância.
De perto, era um homem de excelente figura, alto, forte e masculino. Seu casaco negro
mostrava a amplitude de seus ombros. Seus movimentos a fascinavam; o girar de seu poderoso
pulso quando estirava a mão para que um pequeno pássaro marrom pudesse saltar em cima dela,
sua suavidade enquanto acariciava a cabeça da pequena criatura com um índice, sua calorosa
risada afogada quando o papagaio desceu em parafuso e aterrissou sobre seu ombro com um
grande açoite de asas. As aves o amavam, sem lhe importar como era seu rosto.
O mesmo era certo para todas as criaturas que viviam em Belleterre, e todos os humanos
também, incluindo Ariel. Ou possivelmente o que ela sentia por seu marido não era amor, mas
podia sê-lo se lhe desse uma possibilidade. Ela tinha saudades de sua companhia, de seu toque.
Em sua limitada vida nunca tinha conhecido a ninguém como ele; não só pela evidente razão de

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

como se vestia, mas também por sua bondade e conhecimentos. Já não importava que não
soubesse como se via; estava tão acostumada com seu capuz que, em efeito, converteu-se em seu
rosto.
Mas, como podia uma ignorante jovem dizer a um homem amadurecido e educado que
desejava ser mais para ele? Rogando que lhe chegasse a inspiração, Ariel elevou o fecho da porta e
entrou no aviário. Cerberus, que tinha estado recostado fora, levantou-se cambaleando e tentou
entrar com ela, mas Ariel o conteve firmemente. Quando a porta fechou tilintando detrás dela,
James virou-se. Com surpresa em sua voz, disse:
—Pensei que estivesse pintando, Ariel.
—Estava, mas a luz mudou, assim resolvi parar depois de ter pintado algo que, de alguma
forma, fiquei satisfeita.
Com um sorriso na voz, ele disse:
—Alguma vez está um artista completamente satisfeito com seu próprio trabalho?
Ela sorriu com pesar.
—Duvido-o. Sei que eu nunca estou.
Enquanto ela tentava pensar no que dizer a seguir, o papagaio voou a um ramo e cantou
brandamente:
— Ar-r-riel. Ar-r-riel.
Surpreendida, disse:
—Quando aprendeu isso?
James deu de ombros.
—Agora mesmo, imagino. É uma criatura contrária. Uma vez passei horas tentando sem
êxito lhe ensinar a dizer 'Deus salve à Rainha.' Quão único aprendeu esse dia foi a frase 'Que deus
o leve,' que disse justo antes de me render, exasperado.
A ave atentamente grasnou:
—Que o diabo o leve! Que o diabo o leve!
Ariel riu.
—Está seguro de que 'que deus o leve' foi o que aprendeu esse dia?
Seu marido se uniu a suas risadas.
—Parece que minha má linguagem foi exposta. Sinto muito.
—James…
Não segura de como dizer o que queria, Ariel deu vários passos para seu marido. Para sua
consternação ele se afastou.
—Alguma vez viu um destes periquitos de perto? — apoiou uma mão sobre o ramo e o
pássaro saltou sobre ela — Adoráveis criaturinhas.
Foi feito habilmente, como se não estivesse retirando-se, mas sim simplesmente tivesse
visto algo que tinha apanhado sua atenção. Ariel sentiu as lágrimas ardendo em seus olhos.
Patterson devia estar equivocado; se importasse ao James de um modo especial, ele não fugiria
cada vez que ela se aproximava. Estava lutando por manter a compostura quando o periquito de

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

peito azul repentinamente saltou pelo braço de seu marido e desapareceu entre as dobras do
capuz, onde se envolveu ao redor de sua garganta.
Para o Ariel foi o cúmulo. Inclusive essa tola avezinha, que não serviria para mais de dois
bocados para o Tripod, tinha-lhe sido permitido estar mais perto de James que ela. Sua solidão e
desejo brotaram, e com eles as lágrimas. Humilhada, deu a volta para abandonar o aviário,
querendo afastar-se antes que seu marido se desse conta. Mas ele notou tudo. Rapidamente,
disse-lhe:
—Ariel, o que acontece?
Ela sacudiu a cabeça e tentou torpemente abrir a porta, mas o fecho estava rígido deste
lado. Enquanto lutava com ele, seu marido veio detrás dela e lhe tocou hesitantemente o
cotovelo.
—Seu pai tentou comunicar-se contigo, ou te alterou de algum modo?
Para o Ariel foi o mais natural do mundo voltar-se para ele, e para James pôr os braços ao
redor dela. Chorava mais do que tinha chorado em toda sua vida, mesmo quando sua mãe tinha
morrido. Mas, Deus querido, que maravilhoso se sentia estando em seu abraço! Ele era tão forte,
tão quente, tão seguro. Tão alto, também… o topo de sua cabeça não alcançava ao queixo dele, o
qual deixava seu ombro a uma altura conveniente. Tentando deter suas lágrimas, ela tratou de
respirar, pressionando seu rosto contra a suave lã negra de seu casaco.
—Ariel, minha querida moça... — disse ele com suave impotência, balançando-a um
pouquinho — Há algo que possa fazer? Ou… ou está chorando porque está casada comigo?
—Oh, não, não, não é esse o problema. — deslizou os braços ao redor da cintura do James,
querendo estar tão perto como pudesse — É só que… estou tão só aqui. Seria possível que
passássemos mais tempo juntos? Possivelmente nas noites, depois do jantar. Não te incomodarei
se quiser trabalhar ou ler, mas eu gostaria de estar contigo.
Era o mais perto que podia chegar de pôr seu coração nas mãos de James. Ele não
respondeu por um comprido momento, tanto que ela pensou que poderia sufocar-se, porque não
parecia poder respirar normalmente. Uma mão lhe acariciava as costas, lentamente, como se
estivesse acalmando a um cavalo.
Finalmente ele disse:
—É obvio que podemos, se isso for o que quer.
—Mas, incomodar-te-á? — perguntou Ariel, precisando saber se ele estava disposto ou só a
estava consentindo. Sentiu um fraco roçar contra seu cabelo, da mão dele, ou talvez seus lábios.
—Não, não me incomodará. — respondeu brandamente — Será um prazer para mim.
Ela estava tão feliz que suas lágrimas começaram a fluir novamente. Isso lhe deu uma
desculpa para ficar justo onde estava, entre os braços de James. Nunca se cansaria de seu abraço,
porque sentia como se tivesse chegado em sua casa. Além da felicidade, sentia emoções mais
profundas que não reconhecia. Assustavam-na um pouco, mas ao mesmo tempo sabia que queria
explorá-las mais, porque tinham algo a ver com James. Deu-se conta de quanta tensão havia em
seu marido. A contra gosto deu um passo atrás, porque não queria esgotar suas boas-vindas.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

—Está ficando tarde. — repentinamente consciente da desordem de seu cabelo e as


manchas em seu traje de pintar, disse: — Devo ir me trocar para o jantar.
—Esta noite, se quiser, podemos nos sentar na biblioteca. — disse James vacilante —
Tenho algumas cartas a escrever, mas se acredita que não te aborrecerá…
— Não ficarei aborrecida. — Ariel estava quase envergonhada pela transparente felicidade
em sua voz — Vê-lo-ei no jantar.
Essa noite seria o primeiro passo, e com o tempo haveria outros. Não estava exatamente
segura de onde conduziria esse caminho, mas sabia que devia segui-lo.
A refeição foi a mais alegre que compartilharam. Falconer se perguntava se sua esposa
esperava com ânsia por passarem a noite juntos tanto quanto ele, e logo decidiu que isso era
impossível. Entretanto, ela estava mais feliz do que jamais viu antes. Apesar de não perceber até
agora, quando a diferença era óbvia, que ela estava tornando-se cada vez mais calada, e seu
característico brilho estava apagando-se.
Recordou-se a si mesmo que inclusive as jovens mulheres independentes que desfrutavam
da solidão necessitavam um pouco de companhia, e para Ariel, ele era o que havia disponível. Não
tomaria como algo pessoal o desejo dela de vê-lo mais… Mas isso não significava que não pudesse
desfrutá-lo. Foram à biblioteca tomar o café, ainda conversando, com uma calidez tangível entre
eles. Falconer tomava cuidado de não esticar essa frágil teia de sentimento, porque queria que se
fortalecesse. Ariel se sentou e serviu cortesmente café de uma cafeteira de prata. Embelezada
com um vestido de seda azul, via-se especialmente adorável essa noite, sua delicada cor tão fresca
como as flores da primavera.
Enquanto lhe passava a taça, ela disse:
—Hoje recebi uma carta de minha antiga governanta, Anna. Falei-te sobre ela? — quando
James respondeu negativamente, Ariel continuou: — Logo depois de partir de Gardsley, ela
encontrou um posto ensinando às duas filhas de um viúvo que vive em Hampstead, justo ao norte
de Londres.
Ele revolveu o leite em seu café.
—O homem é intelectual ou artístico, como muitos que vivem em Hampstead?
Ela riu.
—Assim é. O senhor Talbott desenha tecidos e móveis para elaboração industrial e é
bastante bem-sucedido nisso. Também tem o bom senso para apreciar a Anna. De fato, casaram-
se no mesmo dia que nós. Foram à Itália em lua de mel e acabam de retornar. Anna desculpou-se
por não escrever, mas disse que esteve tão ocupada e feliz que não se deu conta de quanto tempo
tinha passado. Convidou-nos a visitá-la em Hampstead; a casa é muito grande. — Ariel olhou
timidamente por cima de sua taça de café — Estaria disposto a fazê-lo em algum momento?
Agradar-te-á Anna, e o senhor Talbott soa como um homem maravilhoso.
Falconer franziu o cenho, mas não quis arruinar o humor da noite.
—Possivelmente algum dia. — disse vagamente.
Ariel o contemplou pensativamente e trocou de tema. Falaram de outras coisas até que

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

terminou o café. Então ela ficou de pé. Falconer temeu que tivesse mudado de opinião e fosse
para cima, até que ela disse:
—Lerei enquanto escreve suas cartas. — ofereceu-lhe um sorriso brilhante e ligeiramente
nervoso — Não quero distraí-lo de seu trabalho.
Quando ela estava tão perto, era difícil pensar nas cartas, mas James foi obedientemente a
sua mesa e começou a escrever. Tinha uma grande e variada correspondência, porque as cartas
eram um modo de estar envolto com as pessoas sem ter que conhecê-las cara a cara. Cerberus
estava agradavelmente desconcertado por ter a ambos na habitação, e ia e vinha, saltando
primeiro junto a Falconer, logo perambulando para a poltrona onde Ariel estava lendo.
Tripod era mais preguiçosa, e simplesmente se enroscou sobre a mesa, em cima de uma
pilha de papéis de carta. Falconer não podia recordar quando tinha sido mais feliz. A biblioteca,
com seus profundos móveis estofados em couro, sempre tinha sido sua habitação favorita, e ter a
presença de Ariel fazia que mesmo o paraíso parecesse inferior. Mas a noite melhorou ainda mais.
Ouvindo um som a seu lado, baixou distraidamente a mão esquerda para alvoroçar as orelhas do
cão. Em troca, tocou um cabelo sedoso. Olhando para baixo, viu sua esposa enroscada contra sua
cadeira.
—Ariel? — perguntou, sobressaltado.
Ela levantou o olhar, brincalhão em vez de desculpas.
—Cerberus desfruta que lhe arranhem a cabeça, assim pensei em provar. — seu sorriso se
desvaneceu — Sinto muito, não deveria haver lhe incomodado.
—Não é necessário desculpar-se. — girou a cabeça para que ela não pudesse ver sob o
capuz — Estou preparado para um recreio.
Como se tivessem vida própria, seus dedos se enroscaram nas brilhosas mechas. Tinha
pensado que seus dedos com cicatrizes tinham pouca sensibilidade, mas agora podia jurar que
podia sentir cada delicada mecha separadamente. Com um suave suspiro satisfeito ela relaxou
contra o flanco de sua cadeira. Por, possivelmente, um quarto de hora, mantiveram-se assim,
enquanto James lhe acariciava a cabeça, o magro pescoço, as delicadas orelhas.
Enquanto o fazia, a alegria borbulhava dentro dele como uma fonte de luz, e em sua mente
ressoou as palavras do famoso soneto da Elizabeth Barrett Browning: Como te amo? Deixe-me
contar os modos… Porque amava a esta moça deliciosa que era sua esposa.
O dia de suas bodas, quando ela tinha expressado seu desagrado por ser cortejada
unicamente por sua beleza, ele havia se sentido envergonhado, porque não podia evitar estar
cativado por seu encanto. Entretanto até nesse primeiro momento, quando a imagem dela tinha
sido como uma flecha em seu coração, tinha percebido que sua beleza era até mais de espírito
que de corpo.
O idílio terminou quando Tripod, decidindo que necessitava atenção, saltou de repente no
colo de Ariel. Ela riu e se endireitou. Falconer começou a retirar sua mão, mas antes que pudesse,
ela apanhou seus dedos. Então, muito deliberadamente, apoiou a bochecha contra a palma de sua
mão.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

A pele de Ariel era suave como a porcelana contra as ásperas cicatrizes que inutilizavam
seus dois dedos menores e voltavam horríveis ao restante de sua mão. Mas ela não se acovardou.
James começou a tremer enquanto ondas de sensações pulsavam dentro dele, começando em
seus dedos e estendendo-se até que cada célula de seu corpo vibrou.
Pela primeira vez se perguntou se seria possível que tivessem um matrimônio real. Ela não
parecia enojada pelas cicatrizes em sua mão; haveria uma possibilidade de que pudesse tolerar o
resto dele? O pensamento era tão aterrador como excitante. Suas emoções muito caóticas para
controlá-las, Ficou de pé e logo ela. Roucamente disse:
—É hora de ir à cama. Mas, possivelmente pela manhã te uniria a mim para ir cavalgar?
O sorriso dela era impressionante.
—Eu gostaria muito.
Ele apagou as luzes e a acompanhou até sua habitação, com os animais seguindo-os detrás.
Em sua porta, ela se voltou para ele.
—Boa noite, James. — lhe disse com voz suave e rouca — Durma bem.
À débil luz do corredor, ela se via ansiosa e acessível, seus lábios ligeiramente abertos, seu
cabelo docemente despenteado por suas carícias de antes. O instinto lhe disse que ela aceitaria
um beijo, e possivelmente mais. Mas era tão formosa que James não pôde tocá-la.
—Boa noite, Ariel.
Dando a volta se afastou, sentindo-se tão frágil que um toque poderia fazê-lo em pedaços.
A ideia de que pudessem construir um matrimônio verdadeiro era muito nova, muito aterradora
para segui-la. Podia estar interpretando mal a boa disposição dela. Ou, pensamento indescritível,
Ariel podia acreditar-se disposta, mas poderia mudar de opinião quando o visse. Havia algo que
ele sabia: se o rechaçava agora que tinha começado a ter esperanças, seria incapaz de suportá-lo.
Ariel foi à cama em estado de júbilo. James tinha estado contente de estar com ela, sabia.
Nem sequer tinha se importado quando ela tinha sucumbido bobamente a seu desejo de estar
mais perto. O melhor de tudo era que queria cavalgar com ela. Possivelmente podia acontecer
todo o dia juntos. E talvez a noite…? A ideia a encheu de cândida emoção. Não sabia claramente o
que acontecia em um leito matrimonial, mas sabia que havia beijos e abraços envoltos e
definitivamente gostava dessas coisas; ainda formigava pelo gentil fogo do toque de James.
Se a intimidade começava com um beijo, em que emocionante lugar poderia terminar?
Suas ardentes emoções lhe tornaram impossível dormir. Finalmente suas voltas provocaram um
grunhido de protesto de Tripod, que necessitava de suas vinte horas de sonho cada dia. Ariel se
rendeu e saiu da cama. Enquanto acendia o abajur sobre seu escritório, decidiu que o melhor uso
de sua alegria de espírito era responder a carta de Anna, já que agora estava no mesmo sublime
ânimo que tinha estado sua amiga.
Sua gaveta de papelaria continha só duas folhas de carta, que não seriam suficientes. Devia
procurar mais na biblioteca. Cantarolando brandamente, colocou sua bata, tomou o abajur e foi
escada abaixo. As sombras cambiantes a fizeram pensar em fantasmas, mas se havia alguns por
perto, certamente seriam benévolos. Devia perguntar a James pelos fantasmas de Belleterre;

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

qualquer edifício tão antigo devia ter ao menos três ou quatro. Com fantasmas em sua mente,
Ariel abriu a porta da biblioteca e piscou com surpresa. No canto mais afastado da habitação,
emoldurado por escuras prateleiras de livros, flutuava um objeto que se parecia horrivelmente a
um crânio. Ariel gritou repentinamente, estupefata.
Uma agitação de sons e movimentos ocorreu, muito rápido e confuso para que Ariel o
entendesse. O objeto se afastou girando, acompanhado de uma exclamação suave e angustiada.
Quase simultaneamente se ouviram um ruído surdo, um sussurro de tecidos e logo um ressonante
golpe da porta no lado mais longínquo da biblioteca. Chocada e sozinha, Ariel soube com uma
certeza além da razão que algo catastrófico acabava de ocorrer.
Liberou entrecortadamente o fôlego que tinha estado contendo e caminhou para o canto
mais longínquo da sala. Um abajur baixo ardia sobre a mesa; assim era como tinha visto… o que
fora que tivesse visto. Um livro jazia aberto no chão, e se ajoelhou para levantá-lo. Os Sonetos da
Portuguesa, da Elizabeth Barrett Browning. Deus querido, o outro ocupante da biblioteca devia ter
sido James com o capuz baixo.
Tentou recordar a fugaz imagem que tinham visto seus olhos quando tinha entrado na
habitação, mas por mais que tentasse não podia recordar detalhes. O objeto flutuante tinha
estado à altura adequada da cabeça dele; a brancura parecida com um crânio devia ter sido seu
cabelo, loiro pálido como o seu ou possivelmente prematuramente grisalho. Coberto por seu
escuro manto, o resto do corpo do James tinha sido invisível na escuridão, o qual tinha convertido
a sua imagem tão estranha. Com doente horror adivinhou que ele tinha deixado cair o livro e
fugido por sua horrorizada exclamação.
Apoiou-se enjoada contra a biblioteca, com o volume de poesia apertado contra seu peito.
James devia ter pensado que ela estava reagindo a sua aparência com repugnância. Mas em
realidade nem sequer o tinha visto! Simplesmente tinha tido fantasmas em sua cabeça e se
desconcertou ao ver algo fantasmal. Mas para James, que sempre estava tão profundamente
envergonhado de sua aparência, devia ter parecido como se ela o encontrasse repugnante. Ele
não teria fugido assim, sem uma palavra, se não estivesse profundamente ferido.
Angustiada, deu-se conta de que isto era o que os serventes tinham temido. Ela tinha o
poder de ferir seu marido, e sem intenção o tinha feito. Ele devia sofrer ainda mais porque tinham
começado a aproximar-se; certamente, esse fato amplificava a própria dor de Ariel. Decidida a lhe
explicar que tudo tinha sido um espantoso engano, apagou a luz que ele tinha deixado, tomou seu
próprio abajur e foi acima, para as habitações de James. Vacilou fora de sua porta, porque nunca
tinha estado dentro, e entrar sem convite era uma invasão dessa privacidade que ele envolvia ao
seu redor tão certamente como seu capuz.
Mas Ariel não podia permitir que o mal-entendido não fosse corrigido. A dor em seu
coração era quase insuportável, e ele devia sentir-se até pior. Deu a volta ao pomo da porta da
sala de estar de James, e a porta se abriu brandamente, mas não havia ninguém dentro.
Rapidamente revisou a sala de estar e o dormitório ao lado. Nada mais que móveis sólidos e
masculinos, e tecidos de ricas cores. Abriu a última porta e se encontrou no vestiário de James,

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

mas ele tampouco estava ali. Estava a ponto de partir quando uma pequena pintura emoldurada
apanhou seu olhar. Surpreendeu-se ao ver que era um de seus próprios desenhos, mas não um
que houvesse feito desde que tinha chegado a Belleterre.
Franzindo o cenho, examinou-o com mais cuidado. Era um esboço de seu carvalho favorito
em Gardsley, e tinha sido feito na primavera. O papel tinha sido enrugado, logo alisado, e algumas
das linhas de risco estavam um pouquinho imprecisas. Dando-se conta de que era um desenho
que ela tinha descartado, enviou sua mente de volta ao momento em que devia ter desenhado
esse tema em particular. Tinha sido o dia em que tinha visto pela primeira vez a James, quando ele
tinha visitado seu pai. Devia ter encontrado o desenho então.
Tocou o elaborado marco de ouro, que era muito mais custoso do que o esboço merecia.
Ninguém emolduraria semelhante desenho por si mesmo, assim devia ser pela artista. Sentiu
lágrimas incipientes atrás de seus olhos. Sim, ela devia lhe importar, embora não merecesse
semelhante consideração. Tragando com força, retirou-se e registrou silenciosamente as áreas
públicas da casa, detendo-se ao descobrir que as portas francesas na sala de desenho estavam
sem travas.
A governanta nunca haveria permitido tal relaxamento, assim James devia ter saído por aí.
Podia estar em qualquer lugar. Ariel se negava a acreditar que poderia machucar a si mesmo. O
incidente na biblioteca não podia ter sido tão ofensivo, em seguida voltaria para a casa. Decidida a
esperá-lo acordada, retornou às habitações dele e se enroscou no sofá, com as pernas para cima.
Mas apesar de sua intenção de ficar acordada, com o tempo a fadiga a superou. Despertou
com volta de James, embora ele não fizesse nenhum som. Levantou a cabeça bruscamente do sofá
e olhou fixamente a seu marido. Seu capuz estava firmemente em seu lugar, e estava tão quieto
que ela não podia notar nada de seu estado de ânimo. Seu abajur estava apagando-se, mas lá fora
o céu começava a clarear. Com calma, ele disse:
—Deveria estar deitada, Ariel.
Ela inspirou temerosamente e foi direto ao coração do assunto.
—James, o que aconteceu na biblioteca… Nada aconteceu. Não te vi, foi só o movimento
inesperado. Por isso foi que me surpreendi.
Ainda seguia tratando de encontrar as palavras adequadas quando ele levantou uma mão,
cortando-a com seu gesto.
—É obvio que nada aconteceu. — concordou com uma voz totalmente desapaixonada.
Logo depois de uma pausa, continuou: — Me ocorreu que como estiveste sozinha, possivelmente
deveria visitar sua amiga Anna por algumas semanas.
Ariel se levantou do sofá, com a manta obstinada a seu redor.
—Não me envie para longe, James... — rogou.
—Não entende.
Como se ela não tivesse falado, ele disse:
—Você gostará de Hampstead; é bastante perto de Londres para ser interessante, o
suficientemente longe para ser tranquilo. Envie uma nota à senhora Talbott hoje e veja se é

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

conveniente que vá. — deu um passo adiante, sustentando a porta aberta em um inconfundível
convite para que partisse — Bem poderia ir. Com o inverno chegando não há muito para fazer no
imóvel e não terei muito tempo para ti. Não quero que te aborreça, assim será melhor que visite a
sua amiga.
Gelada por sua atitude, Ariel repetiu desesperadamente:
—James, não compreende! A toga se agitou fracamente.
—Que não compreendo? — perguntou, ainda com essa voz suave e implacável.
Derrotada, ela caminhou para a porta. Deteve-se um momento quando estava mais perto
dele, perguntando-se se deveria tomar sua mão, se tocá-lo poderia convencê-lo o do que as
palavras não podiam.
Duramente, como se estivesse lendo sua mente, ele disse:
—Não o faça.
Um momento mais tarde, Ariel estava no corredor de fora, e a porta de James tinha sido
firmemente fechada detrás dele. Insensível, colocou a manta ao redor de seu corpo tremia e
caminhou pela comprida passagem para suas próprias habitações. Talvez devesse fazer o que ele
sugeria. Não só se beneficiaria do afetuoso bom julgamento de Anna, mas também se partisse por
uma quinzena ou algo assim, isso daria tempo a seu marido para recuperar do dano não
intencional que ela tinha infligido. Quando retornasse, James estaria mais aberto a sua explicação.
Então poderiam começar de novo. Depois de tudo, o incidente tinha sido tão corriqueiro. Negava-
se a acreditar que James não podia recuperar-se disso.

Casa Talbott, Hampstead 20 de outubro


Querido James,
Só uma nota para te dizer que cheguei sem incidentes. É maravilhoso ver a Anna outra vez,
está verdadeiramente feliz. O senhor Talbott é um homem tolerante, alegre e hospitaleiro. Faz
maravilhosos brinquedos para as meninas.
Havia-me perguntado se às suas filhas poderia lhes incomodar o fato de que Anna passasse
de governanta a ser sua mãe, mas elas a adoram. Aparentemente sua própria mãe morreu quando
eram muito pequenas. Terminarei isto agora para que possa sair com o próximo correio, mas
escreverei uma carta mais extensa esta noite.
Sua amorosa esposa,
Ariel

Casa Talbott, Hampstead 10 de novembro


Querido James,
Estava certamente certo a respeito de Hampstead. É um lugar encantador, cheio de gente
interessante. Em nada parecida com a espantosa espécie de sociedade que conheci durante minha
temporada.
Recorda a carta que escrevi onde me perguntava quem era o dono de Hampstead Heath?

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

Disseram-me que o cavalheiro que tinha os direitos de propriedade do brejo recentemente os


vendeu à Companhia Metropolitana do Trabalho para que a área seja preservada para uso público
para sempre. Alegrou-me saber disso, porque as pessoas necessitam de lugares como o brejo.
Passear ali me recorda um pouco Belleterre, embora seja obvio que não é tão tranquilo e
adorável. Ontem à noite jantamos com um jovem cavalheiro literário, um tal senhor Glades. É
bastante radical, já que brincou comigo por ser lady Falconer. É muito inteligente — quase tanto
como você — mas penso que sua mente é menos aberta.
Sei que deve estar terrivelmente ocupado, mas se encontrar tempo para rabiscar uma nota
para me contar como está, apreciaria muito. É obvio, logo voltarei para casa, assim não precisa
tomar nenhum problema em especial.
Sua amorosa esposa,
Ariel

Belleterre 20 de novembro
Minha querida Ariel,
Não há necessidade de que te apresse em retornar. Estou muito ocupado fazendo uma
inspeção de melhoras necessárias para os arrendatários das granjas.
Minhas saudações aos seus amáveis anfitrião e anfitriã.
Falconer

Casa Talbott, Hampstead 1 de dezembro


Querido James,
A semana passada, para divertir as meninas, fiz alguns esboços ilustrando a história do gato
de Dick Whittington. Sem que soubesse, o senhor Talbott os mostrou a um editor amigo dele, um
tal senhor Howard, e agora o homem quer que ilustre um livro para meninos para ele!
Diz que meus desenhos são "mágicos," o qual soa muito bem, embora não sei bem o que
quis dizer com isso. Embora me adule seu oferecimento, não sei se deveria aceitá-lo. Teria alguma
objeção se sua esposa se envolvesse em uma aventura comercial? Se você não gostar da ideia, é
obvio que não o farei. Já quase é hora do chá…
Acrescento mais esta noite... Sinto muito a sua falta.
Sua amorosa esposa,
Ariel

Belleterre 3 de dezembro
Minha querida Ariel,
Claro que não faço objeção que venda seu trabalho. Muito apropriado da parte do senhor
Howard apreciar seu talento. De fato, possivelmente deveria comprar uma casa em Hampstead, já
que fez tantos amigos ali. Seria conveniente se decidisse ilustrar mais livros para meninos. Busca
uma casa que realmente você goste; o preço não é problema.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

Falconer

Casa Talbott, Hampstead 4 de dezembro


Querido James,
Embora me agrade Hampstead, não estou segura de que necessitemos uma segunda casa,
e certamente não posso comprar uma a menos que você a veja. Podemos discutir o assunto
quando voltar para casa. Também quero pedir sua opinião para os acertos financeiros que sugeriu
o senhor Howard.
Não me importa o dinheiro particularmente, já que sua generosidade me dá muito mais do
que necessito, mas tampouco quero ser tola nisso. Mais tarde esta noite copiarei os detalhes de
sua proposta e enviarei esta carta pela manhã. Espero ansiosa sua resposta.
Sua amorosa esposa,
Ariel

Belleterre 6 de dezembro
Minha querida Ariel,
O contrato do senhor Howard parece justo. Entretanto, não posso recomendar que retorne
ao Kent agora mesmo, já que o clima está muito cinza e deprimente. É muito melhor ficar com seus
amigos, já que Hampstead e Londres serão muito mais entretidos que o campo.
Além disso, como você disse, entendo que todos os Talbott se afligem quando fala sobre
partir. E o que diz do literário senhor Glades? Disse que ele afirma que é sua musa; certamente não
quererá deixar ao tipo sem inspiração.
Falconer

Casa Talbott, Hampstead 7 de dezembro


Querido James,
Quando mencionei sua carta a Anna, ela sugeriu que poderia querer vir a Hampstead, e
poderíamos passar o Natal com os Talbott. Diz que há muita alegria e celebração. Possivelmente
muita; não estou segura de que fosse o tipo de coisa que você gostaria. Além disso, por muito que
queira a Anna e a sua família, preferiria que meu primeiro Natal contigo fosse tranquilo, só nós
dois.
E Cerberus e Tripod, é obvio. Tripod me perdoou por partir? Sendo como são os gatos,
provavelmente me expurgou de sua memória por meu abandono. Espero ansiosamente sua
resposta,
Sua amorosa esposa,
Ariel
PS A única inspiração que ao senhor Glades lhe importa ou precisa é o som de sua própria
voz.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

Falconer terminou a carta e fechou os olhos com dor. Podia ouvir a voz dela em cada linha,
ver sua vibrante imagem na mente. Era uma tortura ler suas cartas, e lhe escrevia fielmente todos
os dias, com apenas débeis e pouco frequentes recriminações por sua quase total falta de
resposta. Entretanto, o que podia lhe responder? Estou morrendo de amor por ti, amada, vêm
para casa, vêm para casa. Não era o tipo de carta que alguém podia escrever à mulher que tinha
ficado horrorizada ao ver seu rosto.
Deprimido, ficou de pé e ficou olhando pela janela da biblioteca. O irregular clima tinha
produzido um breve momento de sol, mas o inverno estava em seu coração. Uma moça leal como
era, Ariel voltaria para casa se ele o permitia mas, para que? Sua vida em Hampstead era plena e
feliz; o que teria em Belleterre além de repugnância e solidão? Não podia lhe permitir que
retornasse. O senhor Glades, o cavalheiro literário, figurava regularmente em suas cartas.
Claramente, o homem estava apaixonado por ela, embora Ariel nunca chegasse a dizer isso;
possivelmente, em sua inocência, não se dava conta desse fato. Falconer fez investigar ao homem
e tinha descoberto que o Honorável William Glades era arrumado, rico e talentoso, parte de um
brilhante círculo literário. Também era considerado um jovem respeitável. Um pouquinho
presunçoso, como estavam acostumados a ser os jovenzinhos inteligentes, mas pelo resto era
exatamente o tipo de homem com o que Ariel deveria haver se casado. Falconer apoiou-se
pesadamente contra o marco da janela.
Uma vez tinha lido a respeito de selvagens que podiam morrer por própria vontade.
Embora tivesse sido cético no momento, agora acreditava que era possível fazer uma coisa
semelhante. De fato, seria fácil morrer… Envolveu os braços ao redor dele, tentando intumescer
sua desesperada pena. O coração de seu espírito estava morto, e seria só questão de tempo até
que seu coração físico também parasse. A luz do sol tinha desaparecido e o céu se obscureceu tão
rapidamente que podia ver seu próprio rosto fracamente refletido no vidro da janela. Estremeceu
ante a imagem, retornou a seu escritório e tomou a pluma.

Belleterre 8 de dezembro
Minha querida Ariel,
Nunca celebro o Natal; é uma tola combinação de sentimentalismo, piedade exagerada e
paganismo. Mas não quero te privar das festividades, assim acredito que deveria ficar com os
Talbott durante as festas.
Falconer

Depois de ler a última carta de seu marido, Ariel se recostou em sua cama e se aconchegou
como uma menina ferida. Não chorou, porque nos últimos dois meses tinha derramado tantas
lágrimas que agora não ficava nenhuma para chorar este rechaço final. Embora James fosse muito
cortês para dizê-lo diretamente, era evidente que não queria que retornasse jamais a Belleterre.
Ela seguia acreditando que alguma vez lhe tinha importado ao menos um pouquinho, mas

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

claramente seus sentimentos tinham morrido aquela noite na biblioteca. Obrigou-se a enfrentar
seu futuro. Embora amasse a seu marido, ele nunca a amaria; nem sequer podia suportar tê-la sob
seu teto.
Portanto, bem podia aceitar sua sugestão e comprar uma casa em Hampstead. Havia uma
encantada e velha casa de campo a venda a só dez minutos de caminhada dos Talbott. Tinha uma
adorável vista sobre o Hampstead Heath e era justamente do tamanho adequado para uma
mulher e uma servente. Embora James tivesse que pagar por ela, jurou trabalhar tanto com as
ilustrações que com o tempo já não necessitaria do dinheiro dele para sobreviver. Manter-se só
agora parecia possível; seria muito mais difícil fazer que valesse a pena viver o resto de sua vida.

Natal…
—Tiveram um agradável passeio? — perguntou Anna.
—Esplêndido. — Ariel se ajoelhou e ajudou à pequena Jane Talbott a sair de seu casulo de
casaco, chapéu, cachecol e manta — Até no inverno o brejo está cheio de maravilhosas cores
sutis. Nunca me canso dele.
A menina maior, Libby, disse:
—Depressa, Janie, não poderemos ajudar a decorar a árvore até que tenhamos tomado o
chá. Anna, uma mulher alta com cabelo castanho claro, entrou em corredor da frente.
—Obrigado por levar às meninas para passear e gastar sua energia. — sorriu indulgente
enquanto as meninas escapuliam de sua habitação — Estão tão emocionadas que temo que
vibrassem até fazer-se em pedaços desde agora até o Natal. E se elas não o fazem, eu o farei!
—Coragem, só faltam dois dias. — Ariel tirou seu casaco e chapéu — Chegou algo no
correio para mim?
—Este pacote chegou de parte do senhor Howard.
Anna o levantou da mesa do corredor e o alcançou.
—Nada de Belleterre?
—Não, querida... — disse Anna em voz baixa.
Ariel levantou o olhar e se obrigou a sorrir.
—Não te veja tão mal por mim, Anna. Atrevo-me a dizer que isto é o melhor.
Os olhos de sua amiga eram compassivos, mas era muito sábia para oferecer compaixão
quando as emoções de Ariel eram tão frágeis. Em troca, disse:
—Certamente todos na Casa Talbott ficaremos extasiados se compras Dove Cottage. Jamais
tirará Jane e Libby de cima.
—Eu adoro as ter por perto. — disse Ariel — E Libby tem verdadeiro talento para desenhar.
É um prazer lhe ensinar. — olhando o pacote do editor, continuou: — Se me desculpar, irei a
minha habitação. O senhor Howard disse que enviaria outra história para que a avalie.
Enquanto Ariel subia as escadas, agradeceu a compreensão de Anna. De fato, todos os
Talbott tinham sido maravilhosos; Ariel não sabia como poderia ter sobrevivido os últimos dois
meses sem sua calidez e vivacidade. Como presente de Natal para a família, fazia um quadro em

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

óleo dos quatro juntos. Era um dos melhores trabalhos já feitos; a dor parecia estar aperfeiçoando
suas habilidades artísticas.
Como esperava, o pacote continha o projeto que o senhor Howard queria que fizesse a
seguir. Tinha ficado tão contente com “O gato com botas” que agora falava em fazer uma série
inteira de contos de fadas clássicos, todos a serem ilustrados por Ariel. Com um renovo de
interesse viu que lhe tinha enviado dois livros diferentes da bela e a besta. Embora pareça
mentira, embora Ariel tivesse um vago conhecimento da história, nunca tinha lido uma das muitas
versões do velho conto popular. Tomando o maior dos volumes, começou a ler e logo descobriu
que era uma história muito mais poderosa que “O gato com botas”.
Além disso, as possibilidades visuais eram tentadoras. Ariel ia à metade quando sua nuca
começou a arder. De um modo estranho, o conto se parecia com sua própria vida, embora a
realidade fosse muito mais triste e mais sórdida. Ao final foi um alívio inteirar-se de que a Bela e
sua Besta viviam felizes para sempre. Ariel supôs que por isso era que as pessoas liam histórias tão
imaginativas: porque não se podia confiar em que a vida real terminasse igualmente bem. Mas
enquanto deixava a história de lado, foi espreitada pela imagem da Besta, que quase tinha
morrido de pena quando Bela o tinha abandonado. O resto do dia foi ocupado com festejos.
Ajudou aos Talbott a decorar a árvore. Logo depois de que as meninas foram enviadas
entre risadas à cama, os adultos foram a uma casa próxima, onde compartilharam ponche quente
de vinho e especiarias, e houve conversações com outra dúzia de vizinhos. A pequena festa ajudou
a distrair Ariel de sua tristeza. Enquanto ia à cama, deu obrigado por que nos próximos dias
estariam tão ocupados. Para o começo do novo ano, poderia estar preparada para enfrentar sua
nova vida. Mas sua antiga vida não tinha terminado, porque ao dormir sonhou com a bela e a
besta.
Ela mesma era Bela, jovem e confusa, primeiro temendo à Besta que a deixava cativa, logo
aprendendo a amá-lo. O que tornou o sonho um pesadelo foi o fato de que seu captor não era um
monstro leonino, a não ser James. Ele era uma criatura nobre e atormentada, que estava
morrendo pela falta de amor, e enquanto a vida escapava dele, chamava-a. Ariel despertou com
um grito angustiado. Como podia havê-lo deixado? Como podia ter permitido que a enviasse para
longe?
Até acordada ouvia a voz dele em sua mente, os tons profundos e desolados ecoando
através dos quilômetros que os separavam. Deslizou para fora da cama, decidida a partir
instantaneamente para Belleterre. Assim que seus pés tocaram o chão gelado, deu-se conta da
tolice de seu impulso. Eram três da manhã, e faltavam horas para que pudesse partir; entretanto,
podia empacotar seus pertences para estar pronta a primeira hora. Lançou-se na tarefa com
frenética pressa e terminou em meia hora.
Pensar nas horas que ficavam por esperar fez que quisesse chiar de frustração. Então a
golpeou a inspiração. Localizou em seu escritório papel de desenho, pluma e tinta. Sentindo como
se outra mão guiasse a sua, desenhou uma série de imagens com traços febris, agudos. Não tinha
comprado um presente de Natal para seu marido, já que ele tinha estado tão firmemente oposto a

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

celebrar a festa. Agora ela estava criando um presente tão vívido que bem poderia ter sido feito
com o sangue de seu coração mais do que com tinta da China.
Enquanto soluçava sobre o último desenho, rogou que ele o aceitasse com o espírito
devotado.

O lacaio abriu a porta da frente de Belleterre e piscou com surpresa.


—Lady Falconer?
—Nenhuma outra. — disse Ariel secamente enquanto passava rapidamente junto a ele
para o salão de entrada —Meu marido está na casa?
—Não, milady. Acredito que pretenda passar todo o dia fora no imóvel.
—Muito bem. — inspecionou seus arredores, sem surpreender-se ao ver que não havia um
rastro de decorações festivas. — Por favor, peça à senhora Wilcox que se reúna comigo no salão
imediatamente. Logo faça que levem minhas coisas a minha habitação. Seja particularmente
cuidadoso com a pasta de desenhos.
Enquanto o lacaio se apressava a obedecer, Ariel foi ao salão, que era a menor e mais
amistosa das salas públicas. Enquanto esperava a governanta, Tripod entrou saltando na
habitação. A gata estava a meio caminho de Ariel antes de recordar seu mal-estar. Com ostentoso
desdém, Tripod se sentou de costas à ama da casa que se atreveu a partir por tanto tempo. Só a
movediça ponta de sua cauda traía seu humor.
—Não faça isso, Tripod.
Ariel levantou a gata em braços e começou a arranhar as orelhas felinas. Em um minuto, a
gata começou a ronronar e estirar o pescoço para que pudesse lhe arranhar o queixo. Ariel
esperava ironicamente que seu marido fosse tão fácil de convencer. Logo a senhora Wilcox se uniu
a ela. Sempre circunspecta, hoje o governanta estava positivamente ártica. Com uma voz que só
estava dentro dos limites da cortesia, disse:
—Como sua chegada era inesperada, sua senhoria, levará uns minutos para refrescar suas
habitações.
Ignorando o comentário, Ariel disse:
—Como está meu marido? — quando a governanta vacilou, Ariel a incitou: — Fale com
liberdade.
A senhora Wilcox não necessitava mais estímulo.
—Muito mal, milady, e é tudo sua culpa! — explodiu — Se vê ao amo como se tivesse
envelhecido cem anos desde que partiu. Como pôde partir por tanto tempo, depois de tudo o que
ele fez por você? — Quão mal era "muito mal"? Embora sofresse, Ariel manteve sua voz uniforme.
Era a ama de Belleterre, e pretendia encher esse posto apropriadamente.
—Parti porque ele me enviou longe. — disse com calma —Foi muito mal de minha parte lhe
obedecer. Não voltará a acontecer. — deixou a gata e tirou as luvas — Quero que cada servente
na casa fique a trabalhar decorando Belleterre para as festas. Folhas, cintas, coroas, velas… tudo.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

Envie a um homem para cortar uma árvore para o salão, e faça que a cozinheira prepare um
banquete de vésperas de Natal. Entendo que o tempo é limitado, mas estou segura de que a
cozinheira fará um bom trabalho com o que há disponível. Oh, no futuro, cada vez que se sirva a
mesa, ponha sempre meu lugar junto a meu marido, em vez do outro extremo. — a senhora
Wilcox ficou boquiaberta. Ariel adicionou: — E quando decorarem e cozinharem, não economize
nos quartos dos serventes. Quero que esta seja uma festa que Belleterre nunca esquecerá. Agora
se vão; há muito que fazer.
—Sim, milady. — disse a governanta, com os olhos começando a brilhar. Deteve-se justo
antes de abandonar a habitação — Não voltará a partir, verdade? Ele a necessita ferozmente.
—Os cavalos selvagens não me levarão a menos que ele também venha. — prometeu Ariel.
Depois de tudo, ela também necessitava a seu marido ferozmente.

Vésperas De Natal…
Pensar em retornar à casa vazia era quase mais do que Falconer podia suportar. Estava tão
cansado em espírito que não notou o quão brilhantemente iluminada estava a casa, mas quando
entrou no salão foi açoitado pelo aroma a pinheiro e azevinho. Deteve-se, piscando ante a imagem
que encontrou frente a seus olhos. O salão estava coroado com grinaldas de folhagem acentuadas
por bagos e coques escarlate, e um lacaio estava parado em uma escada, colocando brilhantes
folhas de azevinho depois de um espelho alto para o toque decorativo final.
Falconer exigiu saber:
—Por ordem de quem se fez isto?
Enquanto o nervoso lacaio tentava formar uma resposta, uma voz clara e suave disse:
— Minha, James.
Ele reconheceria essa voz em qualquer parte; entretanto era tão inesperada que não podia
acreditar que ela estivesse realmente ali. Mesmo ao dar a volta e ver sua esposa caminhando pelo
salão até ele, estava seguro de que devia estar alucinando. Deliciosa com um elegante vestido
escarlate, seus loiros cabelos atados simplesmente com um formoso laço de veludo escarlate,
devia ser uma ilusão nascida de seus sonhos desesperados. Mas ela certamente se via real.
Detendo-se frente a ele, Ariel disse:
—Vêm ver a árvore antes que vás banhar-te e se trocar para o jantar. Perplexo, James a
seguiu dentro do salão, que estava perfumado por ácidas folhas perenes e doces troncos de
macieira que ardiam. Ariel fez um gesto para o alto abeto que tinha sido se localizado em uma
esquina.
—Patterson escolheu a árvore. Adorável, verdade?
Roucamente ele disse:
—Ariel, por que retornou?
—Sou sua esposa e Belleterre é meu lar. — respondeu ela brandamente — Em que outro

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

lugar estaria no Natal?


—Te disse que passasse as festas com seus amigos.
Ela enlaçou os dedos em frente dele, os nódulos se viam brancos.
—Quando nos casamos me ofereceu um lar. Está retirando essa oferta?
—Não pertence aqui.
A angústia o atravessou, como se estivessem retorcendo uma faca em seu coração. Tinha
pensado que ela compreendia e aceitava que suas vidas deveriam estar separadas, mas
aparentemente não. Agora devia atravessar a agonia de dizer as palavras em voz alta; devia enviá-
la longe outra vez.
—Não deve arruinar sua vida por uma lealdade inapropriada, Ariel. Nosso matrimônio é só
de conveniência. Tenho quase o dobro de sua idade… É apenas pouco mais que uma menina.
—Sou o suficientemente adulta para ser sua esposa. — respondeu ela.
Ele se afastou para o extremo em sombras da sala, tentando desesperadamente evitar que
suas defesas desmoronassem.
—Nunca quis uma esposa.
—Mas a tem, — disse Ariel brandamente — por que foge de mim, James? Sei que não sou
inteligente, mas te amo. É tão impensável que estejamos verdadeiramente casados?
—Amar? — disse ele, incapaz de reprimir sua amargura — Como poderia uma moça
formosa como você amar a um homem como eu?
Suas palavras atuaram como uma faísca no pavio.
—Como te atreve! — disse ela furiosamente, vendo-se como um anjo fiado em açúcar a
beira da explosão — Acredita que porque os homens pensam que sou formosa não tenho
coração? Acredita que sou tão superficial, tão cegada por meu próprio reflexo no espelho, que não
posso ver sua fortaleza, sua bondade e sua inteligência? Insulta-me, milord.
Em vão ele disse:
—Não quis te insultar, Ariel, mas como pode amar a um homem cujo rosto jamais viu?
Os olhos azuis dela se entrecerraram.
—Se fosse cega e não pudesse ver nada, acreditar-me-ia incapaz de amar?
—Claro que não, mas isto é diferente.
—Não é diferente! — sua voz se suavizou — Apaixonei-me por ti por suas palavras e seus
atos, James. Comparados com eles, a aparência não tem muita importância.
Quando as dobras negras de seu manto se agitaram ela soube que estava profundamente
afetado, mas ainda não convencido. Ariel se ajoelhou junto à árvore e tirou a pasta de desenhos
que havia feito para ele.
—Se quer ver como te vejo, observa estes. Vacilante, ele tomou a pasta e a depositou na
mesa. Ariel parou a seu lado enquanto James passava as páginas de desenhos soltos. Se algo de
seu trabalho tinha magia, era isto, porque os desenhos saíam direto de seu coração e sua alma. As
imagens compunham uma Bela e a Besta modernos, e mostrava exatamente como ela tinha visto
seu marido, do primeiro vislumbre em Gardsley até o presente.

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

Sob cada imagem tinha escrito umas poucas palavras para transmitir a história. James era o
centro de cada desenho, forte, misterioso, impressionante. Embora seu rosto nunca fosse
mostrado, era tão irresistível que os olhos não podiam olhar a nenhuma outra parte. Ele era a
enigmática Besta Negra de Belleterre, seus escuros mantos inchados ao seu redor como nuvens de
trovão. Era o compassivo e paciente lorde Falconer, preocupando-se por tudo e todos ao seu
redor.
E era James, rodeado por adoradoras aves e bestas, por cada criatura que o conhecia e não
podia evitar amá-lo. Então enviou longe ao Ariel. O último desenho o mostrava jazendo nos
bosques de Belleterre ao ponto da morte, seu poderoso corpo drenado de força e seu enorme
coração quebrado. Ariel chorava a seu lado, seu pálido cabelo caindo ao redor deles como um véu
de luto. A inscrição se lia debaixo: "Ouvi sua voz no vento." James deu volta a última folha e
encontrou uma página em branco.
—Como termina a história? — perguntou, com a voz trêmula.
—Não sei... — sussurrou Ariel — O final não foi escrito ainda. Quão único sei é que te amo.
Ele deu volta rapidamente, seus velozes passos levando-o às sombras ao outro lado da
habitação. Ali ficou parado, imóvel, durante um interminável intervalo, com suas rígidas costas
para Ariel, antes que desse volta para enfrentá-la.
—Fui feio inclusive pequeno. Minha mãe estava acostumada dizer que era uma lástima que
tivesse saído como meu avô materno. Mas isso era uma fealdade normal e não tinha importado
muito. O que verá agora é o resultado do que aconteceu quando tinha oito anos.
Ariel ouviu sua inalação entrecortada, viu o tremor em suas mãos enquanto as levantava
para seu capuz e logo baixou lentamente as dobras de tecido até seus ombros. Seus olhos se
alargaram ao ver que era totalmente descascado. Claro, isso explicava por que tinha tido a fugaz
impressão de um crânio quando o tinha visto na biblioteca. Entretanto o efeito, embora
assombroso, não era pouco atraente, já que sua cabeça era bem formada e tinha escuras pestanas
e sobrancelhas bem definidas. Poderia haver modelado para um líder asiático em uma pintura de
um dos grandes artistas românticos. Com a voz tensa, James continuou:
—Minha mãe estava me levando ao Eton para meu primeiro trimestre, e passamos a noite
na Casa Falconer em Londres. Essa noite houve uma explosão de gás em seu dormitório. Despertei
e tentei ajudá-la, mas já estava morta. — levantou sua danificada mão esquerda para que Ariel
pudesse vê-la claramente — Isto aconteceu quando arrastei seu corpo para fora da habitação em
chamas. As cicatrizes menores em meu couro cabeludo e no pescoço foram produzidas por brasas
quentes que caíram sobre mim. — tocou sua cabeça nua — Mais tarde tive febre cerebral e delirei
durante semanas. Pensaram que morreria. Obviamente, não o fiz, mas meu cabelo caiu e nunca
voltou a crescer. Nunca me enviaram à escola; era considerado 'inadequado’. Em troca, meu pai
me instalou em uma propriedade menor em Midlands, para não ter que pensar em mim. — James
fechou seus olhos um momento e voltou a abri-los, com expressão desolada — Pode ser tão
tolerante no particular como foi no abstrato?
Ariel caminhou para ele, e pela primeira vez seus olhares se encontraram. Os olhos de

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

James eram de um profundo cinza esverdeado atormentado, capaz de ver coisas com as quais a
maioria dos homens nunca sonhavam. Detendo-se diretamente frente a ele, ela disse com
sinceridade:
—Tem os olhos mais formosos que jamais tenha visto. A boca dele se torceu.
—E o resto de mim? Meu pai se negava a me olhar, meu tutor com frequência me dizia
quão afortunado era porque minha horripilância era visível em vez de ocultá-la como a maioria
dos homens.
Ariel sorriu e sacudiu a cabeça.
—É uma fraude, meu amor. Estou quase decepcionada. Tinha esperado algo muito pior.
A expressão dele se fechou.
—Certamente não vais mentir e dizer que sou bonito.
—Não, não é bonito. — ela levantou as mãos e passeou seus dedos de artista pelos planos
de seu rosto, sentindo a sutil irregularidade de cicatrizes já curadas, o masculino nascer da barba
ao final do dia — Tem ossos fortes e marcados… Muito fortes para o rosto de um menino. Até sem
os efeitos do fogo e a febre, teria levado anos chegar a ter estes traços. Alguma vez viu uma
imagem do senhor Lincoln, o presidente norte-americano ao que dispararam alguns anos atrás?
Ele tinha um tipo de rosto similar. Ninguém diria que era bonito, mas foi muito amado e
profundamente chorado.
—Segundo recordo, o cavalheiro tinha uma boa cabeça cheia de cabelos. — disse James.
Ariel deu de ombros.
—Um menino calvo seria alarmante, quase horripilante. Mas agora que é um homem, o
efeito não é desagradável… bastante dramático e interessante, em realidade. — ela ficou nas
pontas dos pés e deslizou os braços ao redor do pescoço dele, e pressionou a bochecha contra a
sua. Enquanto a tensão chispava entre eles, Ariel murmurou: — Agora que não tem nada que
esconder, promete não me enviar longe outra vez? Porque te amo tanto que não acredito poder
sobreviver a outra separação.
Os braços dele a rodearam com força esmagadora. Ela era magra, mas forte, e tão formosa
que ele mal que podia suportá-lo.
—À diferença da Besta em sua história, não posso me converter em um bonito príncipe, —
lhe disse intensamente — mas te amei desde o primeiro momento em que a vi, esposa de meu
coração, e juro que nunca deixarei de te amar.
A risada de Ariel soou como sinos de prata.
—Para ser sincera, nos dois livros que me enviou o senhor Howard, o bonito príncipe do
final era bastante insípido. Seu rosto tem caráter; foi moldado pelo sofrimento e a compaixão, e
nunca será insípido. — jogou a cabeça para trás, com seu brilhante cabelo dourado derramando-
se sobre os pulsos dele. Repentinamente tímida, disse-lhe: — Notaste o que há sobre sua cabeça?
James levantou o olhar e viu visco fixado ao candelabro, e voltou a observar a expressão
ofegante dela. Dominando sua feroz fome para não afligi-la, inclinou a cabeça e tocou com seus
lábios os de Ariel. Era um beijo de doçura e maravilha, uma promessa das coisas por vir. Seu

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

coração pulsava com tanta força que James se perguntou se poderia sobreviver a semelhante
felicidade. O instinto o fez terminar o beijo, porque se arriscavam a ser consumidos pelas chamas
de suas próprias emoções. Muito melhor ir devagar, para saborear cada momento do milagre que
lhes tinha sido outorgado. Compreendendo sem palavras, Ariel disse sem respiração:
—É hora de que nos troquemos para o jantar, já que levará algum tempo decorar a árvore.
Trouxe alguns adoráveis ornamentos novos de Londres. Espero que você goste.
James lhe beijou as mãos e a soltou.
—Adorá-los-ei.
A véspera de Natal se converteu em um mágico noivado. Ele descartou seu manto. Logo
jantaram o suficientemente perto para tocar joelhos e dedos em vez de estar separados por mais
de três metros de polido mogno. Rindo e falando, converteram a árvore em uma brilhante fantasia
com luzes de velas. E todo o tempo teciam uma rede de puro encanto entre eles. Cada roce dos
dedos, cada tímido olhar, cada risada compartilhada pelas travessuras de Cerberus e Tripod,
intensificava seu mútuo desejo.
Quando foram acima, ele vacilou ante a porta do Ariel, ainda um pouco incapaz de
acreditar. Sem palavras, ela o conduziu dentro de sua habitação e foi para seus braços. Enquanto
se beijavam, James descobriu uma inesperada aptidão para liberar Ariel de seu complicado vestido
de noite. Seu corpo magro curvilíneo era perfeito, como tinha sabido que seria. Com os lábios, a
língua e as mãos, adorou-a, tão encantado por sua resposta como pela sensação da sedosa pele de
Ariel sob sua boca.
Ela era luz e doçura, a essência de mulher pelo que todos os homens desejavam morrer, e
ao mesmo tempo unicamente Ariel. Entregou-se a ele com absoluta confiança, e esse presente
sanou os lugares escuros dentro de James. Realmente podia sentir a escuridão desmoronando-se
até que seu coração ficou livre de toda uma vida de dor e solidão. Semelhante vulnerabilidade
deveria havê-lo aterrorizado, mas a confiança de Ariel dava lugar a uma confiança igual da parte
dele.
Dificilmente poderia recordar ao homem atormentado que tinha sido incapaz de acreditar
no amor. Em troca da confiança dela, entregou-lhe paixão, usando todas suas habilidades, toda
sua sensibilidade, toda sua ternura. Seus corpos se uniram como se fossem duas metades de um
todo que finalmente se uniram, e quando ela gritou com alegre assombro, foi o som mais doce
que James jamais tivesse ouvido.
Depois de que a paixão fora satisfeita pela primeira vez, deitaram tranquilos nos braços um
do outro. Ele nunca tinha conhecido tal êxtase ou tal humildade. À distância, os sinos da igreja
começaram a soar.
—Meia-noite... — murmurou ele — A paróquia as faz ressonar pelas mudanças para
celebrar o começo do dia de Natal.
Ariel se estirou luxuosamente e voltou a apoiar-se sobre ele.
—Natal... Uma época de milagres e novos começos. O que poderia ser mais apropriado?
—Efetivamente. — James roçou seus dedos pelos cabelos dela, maravilhando-se com a

46
Mary Jo Putney
Tiamat World A Besta Negra do Belleterre

textura sedosa — Sinto muito, meu amor, não tenho um presente para ti.
Ariel riu brandamente.
—Deu a ti mesmo, James. Que melhor presente poderia desejar?

Fim

Comunidade: http://www.orkut.com.br/Community?cmm=94493443&mt=7

Grupo: http://groups.google.com.br/group/tiamat-world?hl=pt-BR

Blog: http://tiamatworld.blogspot.com/

46

You might also like