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O CENTRO DE INVESTIGAÇÃO NAVAL

E O PATRIMÓNIO CULTURAL MARÍTIMO

A ntes de estabelecer a relação entre os


dois tópicos a que se refere este artigo,
torna-se necessário especificar cada
um deles, pois o primeiro é infelizmente pou-
co conhecido e o segundo tem sido definido
ções antigas e acontecimentos marítimos his-
tóricos. Para o público em geral, ele oferece a
oportunidade de reforçar e desenvolver o mer-
gulho de lazer e o turismo.”
Contudo, e conforme refere o arqueólogo
náutica, confirmados ou potenciais, numa am-
pla cronologia. Esses vestígios que um dia se
perderam por acaso, acidente ou ato de guerra
são testemunhos tangíveis das viagens portu-
guesas espalhadas ao longo das rotas nacionais,
de diversas formas. Paulo Monteiro (2010), “apesar da sua rari- de Lisboa ao Brasil, a África e ao Oriente, e são
Começando com o segundo, conforme já foi dade e do valor arqueológico que intrinseca- um instrumento precioso para o estudo e com-
referido, a expressão Património Cultural Ma- mente possuem, muitos destes vestígios estão preensão dessas mesmas viagens, nos seus mais
rítimo, no amplo universo cultural do mundo ameaçados na sua coerência e integridade. diversos aspetos técnicos (construção naval,
que nos rodeia, não acolhe uniformidade de Entre as maiores ameaças que enfrentam con- náutica, organização, manobra, combate), so-
conceitos, embora ninguém tenha dúvida de ta-se a pilhagem ocasional de sítios arqueoló- ciais (vida a bordo), económicos e outros.
que está relacionado com o meio aquático. gicos submersos por parte de mergulhadores E, a esse número, todos os dias podiam
Contudo, e seguindo um paralelismo com o amadores, a acção deliberada de empresas de ser incorporados mais registos, conforme
que ocorre com a definição de História Marí- caça ao tesouro, o desenvolvimento de obras mostram os dados do então Centro Nacio-
tima, que estuda todas as atividades humanas novas em frente marítima, a realização de nal de Arqueologia Náutica e Subaquática
no meio aquático, o Rcvtko„pkq"Ewnvw- (CNANS), fruto principalmente de acha-
ral Marítimo deve ser encarado o con- dos fortuitos efetuados por mergulhado-
junto de todos os restantes “patrimónios” res amadores e não só.
nkicfqu"c"guug"ogkq"<"Rcvtko„pkq"Suba- Mas, irá levantar-se em breve a ques-
quático (naufrágios, vestígios e artefactos tão em como vamos gerir e salvaguardar
arqueológicos submersos), Naval (tipolo- o nosso Património Cultural Marítimo a
gias de navios/embarcações e técnicas de partir do momento em que o espaço sob
construção naval), Náutico (instrumen- jurisdição portuguesa passar para 18,7
tos e técnicas de navegação, cartografia vezes o atual território nacional com a
náutica, rotas e roteiros), Ctswkvgev„pkeq" inclusão da plataforma continental.
Equvgktq"g1qw"Tkdgktkpjq (faróis, portos, Em termos do quadro legal vigente so-
fortificações costeiras, moinhos de maré, bre este património cultural subaquáti-
gve000+"<"pq"ugw"ugpvkfq"ocku"cornq."go" co e reconhecendo essa especificidade
termos de suporte físico ou mesmo não singular, por ser aquele que se encontra
físico (tradição oral, por exemplo) e não mais ameaçado, pois ao contrário do que
como mais um desses “patrimónios”. se encontra à superfície, este permanece
No mundo anglo-saxónico esta abran- escondido da vista de todos, Portugal
gência tem paralelo com o que é defi- não só contemplou na sua Estratégia
nido para o “Maritime Heritage”, cuja Nacional para o Mar a promoção “da
definição de acordo com a National preservação e valorização do patrimó-
Oceanic and Atmospheric Administra- nio cultural subaquático, arqueológico
tion (NOAA), é: “O património Marítimo e histórico bem como do estudo e da
inclui não apenas os bens materiais como salvaguarda dos testemunhos arqueo-
naufrágios históricos e os sítios arqueoló- lógicos subaquáticos, protegendo-os da
gicos pré-históricos, mas também a docu- delapidação e degradação e apoiando a
mentação em arquivo e a tradição”. sua investigação” (D.R. nº. 237, Série I de
E é só com esta definição que pode- 2006/12/12), como foi também um dos
mos compreender a total amplitude do primeiros Estados a ratificar a Convenção
conteúdo constante na brochura editada da UNESCO sobre a Protecção do Patri-
pela UNESCO sobre a Convenção da mónio Cultural Subaquático (ratificação
UNESCO para a Proteção do Patri- publicada por Decreto do Presidente da
o„pkq" Ewnvwtcn" Uwdcsw vkeq (Paris República nº 65/2006, a 18 de julho,
2001), no que se refere ao património com base na Resolução da Assembleia
cultural: “O património cultural é um teste- dragagens para desassoreamento de portos ou da República nº 51/2006, de 20 de abril).
munho inestimável da cultura das civiliza- carregamento de praias e a pesca de arrasto.” Assim, e pelo menos no plano das intenções,
ções passadas e da história da humanidade. Infelizmente, o vasto património cultural foi delineada uma política aparentemente coe-
O património subaquático, em especial, nos marítimo português, em particular o suba- rente de salvaguarda, estudo e valorização do
informa sobre modos de vida no mar, de tra- quático, tem sido alvo de inúmeras agressões, património arqueológico subaquático, assumin-
balho, rotas comerciais e guerras.” quer em águas de jurisdição portuguesas, do o nosso país constituir esse conjunto de sítios
Pois é esse património cultural subaquáti- como foi o caso do navio holandês Sloot ter submersos um recurso cultural estratégico não
co que vem de imediato à mente de todos Hooge"*Rqtvq"Ucpvq"<"3;96+."eqoq"go" iwcu" renovável da maior importância. Contudo, na
nós quando falamos de património no meio internacionais como foi o caso dos inúmeros recente Lei-Orgânica da Direcção-Geral do Pa-
aquático, pois a mesma brochura aponta para navios saqueados em águas de Moçambique trimónio Cultural, entidade com responsabilida-
que “Nos últimos anos, o património cultural por firmas de caça ao tesouro. des acrescidas nesta área (D.L. nº. 115/2012 de
subaquático tem atraído atenção crescente da Atualmente, estima-se que Portugal tenha re- 25 de maio), não aparece qualquer referência ao
comunidade científica e do público em geral. gistados na sua Carta Arqueológica Subaquática Património Cultural Subaquático, nem Marítimo.
Para cientistas, esse património representa uma cerca de 7500 vestígios de natureza arqueoló- Paralelamente, mas noutra vertente e com res-
valiosa fonte de informações sobre as civiliza- gica, na sua esmagadora maioria de natureza ponsabilidades bastante diferentes, a Marinha

16 FEVEREIRO 2013 › REVISTA DA ARMADA


prossegue, no âmbito da sua Missão, Funções dado e protegido, não só por via das atividades área. Exemplo disso será o de atribuir objeti-
e Tarefas superiormente delineadas pelo Chefe tradicionais da Armada, mas também através vos de identificação concretos aos meios da
de Estado-Maior da Armada através da Diretiva das vertentes de estimular o envolvimento e a Armada em missão, em particular no treino
de Política Naval de 2011, a sua já longa ligação participação dos cidadãos na sua salvaguarda. de unidades de mergulhadores ou dos meios;
com o Património Cultural Marítimo nas seguin- Vertente essa que tem a vantagem de não b) Apoiar, com meios humanos e materiais,
tes vertentes: Fiscalização, preservação da He- estar limitada ao espaço sob jurisdição na- projetos desta área;
rança Cultural e Investigação Científica. cional, em consonância com as intenções c) Sensibilizar os meios humanos que fis-
Destas três faces, todas importantes, vou do Estado português, conforme está estabe- calizam as águas de jurisdição nacionais so-
apenas abordar aquela à qual o Centro de lecido no regime de proteção e valorização bre esta problemática, nomeadamente sobre
Investigação Naval (CINAV) está diretamente do património cultural português (Lei nº as ameaças que este património incorre por
nkicfq"<"c"fc"kpxguvkic›«q"ekgpv hkec0" 107/2001, de 8 de setembro) que no seu nº 2 parte dos designados caçadores de tesouros,
Este centro, formalmente criado pelo Despa- do Artigo 5º (Identidades Culturais) estabele- através de palestras e exposições;
cho do CEMA nº4/2010 de 2 de fevereiro, d) Sensibilizar os futuros oficiais das
mas cujas raízes são bastante anteriores, é Marinhas amigas, cujos cadetes são
uma unidade orgânica de investigação formados na Escola Naval portuguesa e
científica, desenvolvimento tecnológico cujo património já foi ou é ainda hoje
e inovação, de índole multidisciplinar, pilhado, também sobre este assunto;
integrado na Escola Naval e que atual- e) Promover a ligação e o diálogo entre
mente tem as seguintes Linhas de Inves- aqueles que realizam a investigação cien-
tigação, conduzidas pelos membros do tífica desse património e os que têm dia-
CINAV: Estratégia Marítima, Saúde Na- riamente a responsabilidade de fiscalizar
val, Gestão da Manutenção, Robótica e velar pela integridade do mesmo no ter-
Móvel, Processamento de Sinal, Sistemas reno, de modo a maximizar as sinergias
de Apoio à Decisão e História Marítima. daí resultantes, nomeadamente através
Nesta última linha de investigação, o da realização de ações conjuntas.
expoente máximo tem sido o Mestrado Assim, e tendo em consideração que
em História Marítima (que se prevê bre- já passaram quase quatro anos após
vemente passar a Doutoramento) e que a entrada em vigor da Convenção da
é ministrado em associação com a Facul- UNESCO para a Proteção do Património
dade de Letras da Universidade de Lisboa. Cultural Subaquático, ainda há muito
E, mais recentemente, está previsto dar-se por fazer. A Marinha, através dos seus di-
início ao Mestrado em História Militar versos órgãos, pode e deve ter um papel
(ministrado em parceria com cerca de 9 muito importante na sua preservação, e
instituições universitárias civis e militares). a Escola Naval, através do CINAV, con-
Mas, querendo a Linha de investigação sidera que pode contribuir para a con-
em História Marítima expandir a sua atua- textualização científica do património
ção, preferencialmente com outras linhas cultural subaquático, deixando estes de
e com outros centros de investigação, o ser considerados como meros salvados
CINAV deu início ou passou a integrar de mar.
projetos relacionados com o Património Tudo isto porque apesar de todas as
Cultural Marítimo, nomeadamente: leis e convenções existentes para pro-
Projeto ARCHINAVES"<"dcug"fg"fcfqu" teger este património, o facto de “haver
(português/inglês) dos navios portugueses tesouros na costa” suscitará a cobiça e
de 1497 a 1808 (nesta primeira fase). obrigará a medidas de segurança para
O objetivo deste projeto é permitir uma evitar a pilhagem. E só há pilhagem do
consulta direta e automática das relações património quando há pouco conheci-
entre as centenas de navios portugueses mento sobre a sua importância.
que andaram no mar durante os séculos
XV a XVIII, relacionando-os com as cen-
tenas de milhares de pessoas que neles A. Alves Salgado
navegaram, permitindo conhecer de CMG
imediato todas as ocorrências em que
Mfhfoebt!ebt!ルhvsbt;
estiveram implicados.
Projeto ARCHIMARIA"<"Eqpukfgtcpfq" 1 - O casco de um navio naufragado do tempo das
Descobertas, pela sua raridade, permite tentar com-
que a melhor forma de salvaguardar o preender essa máquina complexa, que era o navio.
Património Cultural Marítimo, em particular o ce que “o Estado Português contribui, ainda,
2 - Um naufrágio é uma verdadeira cápsula do tempo, que
Subaquático, e impedir que seja destruído ou para a preservação e salvaguarda do patrimó- ao contrário do que ocorre à superfície, permite ao arqueó-
pilhado é estudá-lo e divulgá-lo, está a ser ela- nio cultural sito fora do espaço lusófono que logo “recuar” no tempo com poucas interferências. O estu-
borado um Sistema de Informação Geográfica constitua testemunho de especial importância do da carga, neste caso um dos diversos almofarizes encon-
(SIG) com duas vertentes: uma como ferramen- de civilização e de cultura portuguesas”. trados, permite compreender e comprovar, por exemplo, as
ta de trabalho para os arqueólogos e outra para Paralelamente a estes projetos, o CINAV rotas comerciais da época.
divulgação ao público em geral, possivelmen- pode servir, para além de parceiro habilitado, 3 - Para além das “riquezas” em termos de conhecimento,
te através de sistemas disponíveis na internet, de elo de ligação entre a restante estrutura da nos naufrágios a prata e o ouro por vezes também estão
presentes, acabando por atrair interesses “alheios” ao Pa-
como por exemplo o Google Ocean. Marinha e as entidades externas, nesta área, trimónio Cultural Marítimo. Uma moeda “real de 8” após
Estes projetos, ligados às teses de Mestrado nomeadamente através de: cerca de 500 anos no mar.
Integrado dos cursos da Escola Naval, vão no a) Difundir, partilhar e coordenar a utiliza-
4 - A divulgação e a criação de espaços visitáveis, é uma das
sentido de garantir que o valioso património ção dos meios da Marinha e objetivos ligados formas mais importantes de preservar o Património Cultural
cultural marítimo e em particular o subaquático ao Património Cultural Marítimo identifica- Marítimo, como acontece no Algarve, nos destroços do na-
do mar português seja devidamente salvaguar- dos por aqueles que conduzem projetos nesta vios francês L’Ocean.

REVISTA DA ARMADA › FEVEREIRO 2013 17

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