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JOSE ORTEGA Y GASSET LIGGES de METAFISICA Tradugdo de Felipe Denardi i 2019 —CEDET SDET is leciones de metafisica Copyeight © by Horedeos de Ortega y Caset, 2018, to Feofisional e Tenoligio Tadugsoe alipe Denar Revisto & prepare cpp 190.2/501.01 todos ox dttos det obs, + rerodugao desta digo por qualquer meio ou forma, sea cbs fotolia raagio ou qualquer outa ma de repos sem ermisio expres do die he SUMARIO Nota preliminar 7 LIGOES DE METAFISICA Aulal 13 Aula 33 Aula Hl 55 AulalV 73 AulaV 93 Aula VI 113 Aula VIE 121 Aula VIL 129 Aula IX 145 AulaX 153 Aula XI 161 Aula XW 171 Aula XIN 183 Aula XIV 193 ANEXOS TTeses para um sistema de filosofia 209 Ensimesmarse e alterar-se 219 AULAL [A falsidade do estudo —A metafisica e sua necessidade —Antagonismno entre o estudante e o criador da ciéncia — Curiosidade e preocupacio — A tragédia da pedagogia — Cultura sem saizes: rebarbarizagao — Pergunta e resposta — O “fazer” ea justificagao da metafisica} spero que durante este curso vocés entendam perfeitamente a primeira frase que, depois desta, vou enunciar? A frase é esta: nés va- mos estudar metafisica, ¢ isso que vamos fazer é, a principio, uma falsidade. Pode parecer, & primeira vista, algo estupefaciente, mas 0 estupor que pro- duz nao tira a frase sua dose de verdade. Com essa frase — notem bem — nao se diz. que a metafisica seja uma falsidade: ela nao se refere 4 metafisica, mas ao fato de nés nos propormos a estud-la. Nao se trata, pois, da falsidade de um ou de muitos dos T [As primeira paginas desta aula foram publicadas por Ortega sob te Sobre el estudiar ye estudiante, Obras completa, v0 a JOSE ORTEGAY.GESSET nossos pensamentos, mas da falsidade de um fazer nosso — do que vamos fazer agora: estudar uma disciplina, Porque isso que eu afirmei nao vale apenas para a metafisica, sendo s6 eminentemente para ela. Segundo isso, estudar seria, em geral, uma falsidade, Nao parece que tal frase e semelhante tese sejam, as mais oportunas para serem ditas por um professor a0s seus discipulos, sobretudo no comego de um curso, Pode-se dizer que equivalem a recomendar a auséncia, a fuga, a irem ¢ ndo voltarem mais. Logo vyeremos isso: veremos se vocés yo embora ¢ se no voltam porque eu comecei enunciando tamanha enormidade pedagégica. Talvez aconteca o contrério —talver acontega que essa inaudita afirmagao Ihes interesse. Antes de acontecer uma coisa ou outra — antes de voc@s resolverem ir embora ou ficar—, vou esclarecer seu significado. Eu no disse que estudar seja apenas uma falsida- de; é possivel que contenha facetas, lados, ingredien- tes que nao sejam falsos, mas basta-me que alguma dessas facetas, lados ou ingredientes constitutivos do estudar seja falso para que meu enunciado possua a sua verdade, Ora, isso me parece indiscutivel, Por uma simples razdo: as disciplinas, seja a metafisica ou a geometria, existem, esto ai porque certos homens as criaram gracas a um tremendo esforgo, e se despenderam este foi porque precisavam daquelas disciplinas, porque tinham necessidade delas. As verdades que elas contém foram encontradas originariamente por 14 LUGDESDE METAFISICA um homem ¢ logo repensadas ou reencontradas por outros, que sobrepuseram seu esforco ao do primeiro. Mas se as encontraram é porque as buscaram, ¢ se as buscaram é porque tinham necessidade delas. E se no as tivessem encontrado teriam considerado fra- cassadas as suas vidas. Se, a0 contrério, encontraram co que buscavam, é evidente que isso que encontraram. se adequava a necessidade que sentiam. Isso, que & 6bvio, € contudo muito importante. Dizemos que encontramos uma verdade quando achamos certo pensamento que satisfaz. uma necessidade intelectual previamente sentida por nés. Se nao nos sentimos necessitados desse pensamento, ele ndo seré para nés uma verdade. Verdade é, portanto, aquilo que aquieta uma inquietude de nossa inteligéncia, Sem esta inquietude nao é possivel aquele aquietamento. Do mesmo modo dizemos que encontramos a chave quando achamos o preciso objeto que nos serve para, abrir um armério, de euja abertura temos necessidade. ‘A precisa busca se acalma no preciso encontro: este € funcao daquela. Generalizando a expresso, teremos que uma verdade nio existe propriamente senio para quem tem necessidade dela; que uma ciéncia nao é tal ciéncia sendo para quem a busca com afi; enfim, que a metafisica nao é metafisica sendo para quem necessita dela. Para quem nao necessita, para quem nao a busca, a metafisica é uma série de palavras, ou, se quiserem, de idéias, que, ainda que se creia té-las entendido 1s J0S€ ORTEGAY GASSET uma a uma, carecem definitivamente de sentidos isto & para entender verdadeiramente algo, e sobretudo a metafisica, nao faz falta ter aquilo que se chama de talento nem possuir grandes conhecimentos pré- vios — 0 que faz falta, a0 contrario, é uma condi- cao elementar, mas fundamental: 0 que faz falta € necessitar dela. Entretanto, hé diversas formas de necessidade. Se alguém me obriga inexoravelmente a fazer algo, eu 0 farei necessariamente e, contudo, a necessidade desse meu fazer nao é minha, nao surgiu em mim, pois me foi imposta desde fora. Eu sinto, por exemplo, a necessidade de passear, e esta necessidade € minha, brota em mim — o que nao quer dizer que seja um capricho ou um gosto, nao; sendo uma necessidade, tem um carater de imposigao e nao se origina no ‘meu arbitrio, mas me é imposta desde dentro do meu set; eu a sinto, com efeito, como uma necessidade minba. Mas quando saio para passear ¢ 0 guarda de transito me obriga a seguir numa determinada dircgdo, encontro-me com outra necessidade, que j4 nao € minha, mas que me € imposta do exterior, ¢ diante disso 0 maximo que posso fazer é reflet € me convencer de suas vantagens, ¢ em vista 0 aceité-la. Mas aceitar uma nceessidade, reconhecé-la, no é senti-la, senti-la imediatamente como uma necessidade minha — é mais uma necessidade das coisas, que delas me chega, forasteira, estranha a mim, Nés a chamaremos de necessidade mediata,em oposicdo & imediata, a qual eu sinto, de fato, como 16 LUgOESDE METAFSICA tal necessidade, nascida em mim, com suas raizes em mim, inata, autdctone, auténtica, Hi uma expressio de Séo Francisco de Assis onde ambas as formas de necessidade aparecem sutilmente contrapostas. Sao Francisco costumava dizer: “Neces- sito de pouco, e desse pouco necessito muito pouco”. Na primeira parte da frase, S40 Francisco alude as necessidades exteriores ou mediatas; na segunda, as intimas, auténticas ¢ imediatas. Sao Francisco necessitava, como todo ser vivo, comer para vivet, mas nele essa necessidade exterior era muito escas- sa — isto é, materialmente ele necessitava comer muito potco para viver. Mas, além disso, sua atitude {intima era de nao sentir uma grande necessidade de viver; sentia muito pouco apego efetivo & vida e, conseqtientemente, sentia muito pouca necessidade intima da necessidade externa de comer. Pois bem: quando o homem se vé obrigado a acei- tar uma necessidade externa, mediata, encontra-se numa situagio equivoca, bivalente, porque equivale & sugestao de que faga sua —“aceitar” quer dizer isto —uma necessidade que nao é sua, Fle tem, querendo ow nao, de se comportar como se fosse sua; ele é, portanto, convocado a uma ficgdo,a uma falsidade. E ainda que o homem ponha toda a sua boa vontade a servigo de senti-la como sua, nao quer dizer que 0 consiga, 0 que nem sequer é provavel. Feito esse esclarecimento, vejamos qual é a situa- 40 normal do homem chamada “estudar”, usando esta palavra sobretudo no sentido que tem enquan- v JOSEOMTEGAYGASSET to estudo do estudante — ou, em outras palavras, perguntemo-nos o que € 0 estudante enquanto tal, E acontece que nos deparamos com algo tao estu- pefaciente quanto a escandalosa frase com a qual iniciei o curso. Deparamo-nos com o fato de que 0 estudante é um ser humano, masculino ou feminino, a0 qual a vida impée a necessidade de estudar as cigncias das quais ele nao sentiu imediata, auténtica necessidade, Se deixarmos de lado os casos excep- cionais, reconheceremos que no melhor dos casos 0 estudante sente uma necessidade sincera, porém vaga, de estudar “algo”, assim in genere, de “saber”, de instruir-se. Mas a vagueza desse desejo evidencia sua escassa autenticidade. f evidente que um tal estado de espirito jamais levou a criagao de um saber — porque este é sempre concreto, é saber precisamente isto on precisamente aquilo, e segundo a lei que en insinuava hé pouco, da funcionalidade entre buscar ¢ encontrar, entre necessidade e satisfagdo, os que criaram um saber o fizeram porque sentiram, ndo 0 vago afai de saber, mas 0 concretfssimo afa de ave~ riguar tal coisa determinada. Isso revela que, mesmo no melhor dos casos —e repito, salvas as excegdes —, 0 desejo de saber que © bom estudante possa sentir é completamente hete- rogeneo, talvez-antagdnico ao estado de espirito que levou a criagdo do saber mesmo, Porque a situacio do estudante perante a ciéncia € oposta Aquela em que estava o seu criador. E, com efeito, a ciéncia nao existe antes de sew criador. Ele nao a encontrou primeiro e 18 LUCOESDEMETARISCA depois sentiu a necessidade de possui-la, mas primeiro sentiu uma necessidade vital e nao-cientifica, ¢ esta 6 levou a buscar sua satisfagaio; encontrando-a em certas idéias, destas resultou a ciéncia. Ao contrario, o estudante se encontra, desde logo, com a ciéncia pronta, como uma cordilheira que se Jevanta diante dele e impede seu caminho vital. No melhor dos casos, repito, a cordilheira da ciéncia 6 agrada, 0 atrai, parece-Ihe bonita, promete-the triunfos na vida. Mas nada disso tem a ver com a necessidade auténtica que leva a criar a ciéneia. A prova disso est no fato de esse desejo geral de saber ser incapaz.de se concretizar por si mesmo no desejo estrito de um saber determinado. Além disso, repito, niko é um desejo o que leva propriamente ao saber, mas uma necessidade. O desejo nao existe se previa mente ndo existe a coisa desejada, seja na realidade, seja, pelo menos, na imaginagio. O que ainda ndo existe de fato, nao pode provocar o desejo. Nossos desejos disparam-se no contato com 0 que jé esté ai. A necessidade auténtica, ao contrario, existe sem_ ‘que tenha de preexistir, nem mesmo na imaginagao, aquilo que poderia satisfazé-la, Nevessita-se precisa- mente daquilo que nao se tem, do que falta, daquilo que nao ha, e a necessidade € mais estritamente tal precisamente quanto menos se tenha, quanto menos haja aquilo de que se necessita. Para ver isso com plena clareza nao ¢ preciso sair do nosso tema: basta compararmos o modo com que se aproxima de uma ciéncia pronta quem vai 19 JOSE ORTEGA EnSSET estudé-la e quem sente auténtica, sincera necessidade dela. Aquele tenderé a ndo questionar 0 contetido da cigncia, a nao criticé-la: a0 contratio, tenderd a se confortar pensando que esse conteiido da cigncia pronta tem um valor definitivo, que é a pura verda- de. O que ele busca é simplesmente assimilé-la tal e como ja esta af. O necessitado de uma ciéncia, por sua vez — aquele que sente a profunda necessidade da verdade —, se aproximara com cautela do saber jd pronto, cheio de suspicécia, submetendo-o a cri- tica, partindo quase de um preconceito de que nao é verdade o que livro sustenta; em suma, precisamente porque necesita do saber com radical anguistia, pensaré que ainda nao o encontrou, e procuraré desfazer aquilo que se apresenta como pronto. Ho- mens assim so os que constantemente corrigem, renovam, recriam a ciéncia. ‘Mas isso nio € 0 que significa, em seu sentido normal, o estudar € o estudante, Se a ciéncia ain- da nao estivesse af, 0 bom estudante nao sentiria necessidade dela, ou seja, nao seria um estudante. Portanto, trata-se de uma necessidade externa que Ihe é imposta. Ao colocar 0 homem nessa situago de estudante se 0 obriga a fazer algo falso, a fingir que sente uma necessidade que nao sente. Mas a isso podem ser feitas algumas objegdes. Dir-se-d, por exemplo, que ha estudantes que sen- tem profundamente a necessidade de resolver cer- tos problemas constitutivos de tal ou qual ciéncia. De certo existem, mas é insincero chamé-los de 20 LUGOES DE METARISICA estudantes. E insincero ¢ injusto. Porque se trata de casos excepcionais, de criaturas que, ainda que no houvesse estudos nem ciéncia, melhor ou pios, por si mesmos e sozinhos, a inventariam, e dedicariam, por inexoravel vocacao, seu esforco a investiga-la. Mas e 08 outros? A imensa e normal maioria? Estes, € no aqueles poucos venturosos, estes so os que realizam o verdadeiro sentido —e no o utépico — das palavras “estudar” ¢ “estudante”. E com estes que se é injusto a0 niio reconhevé-los como os verdadeiros estudantes ea nio se colocar subordinado a eles o problema do que é estudar como forma e tipo de fazer humano. E um imperativo do nosso tempo, cujas graves raz6es exporei outro dia neste curso, obrigar-nos a pensar as coisas em seu desnudo, efetivo e dramatico ser: Ea Gnica maneira de verdadeiramente nos depa- rarmos com elas. Seria encantador se ser estudante ignificasse sentir uma vivacissima urgéncia por este, € por outro, por outro saber. Mas a verdade é estri- tamente o contrario: ser estudante é homem se ver obrigado a interessar-se diretamente pelo que ndo Ihe interessa ou, no maximo, pelo que the interessa apenas vaga, genérica e indiretamente. A outra objegdo que me poderia ser feita € recor- dar o fato indiscutivel de que os garotos ou garotas tém sincera curiosidade ¢ peculiares interesses. O estudante nao o é “em geral”, mas estuda ciéncias ou letras, ¢ isso supée uma predeterminagao de seu espirito, uma apeténcia menos vaga e nao imposta de fora. 21 Jose ORTEAY Gasser No século XIX se deu demasiada importéncia & curiosidade e As afeigdes, quiseram fundar nelas coi- sas demasiado graves, quer dizer, demasiado pesadas para que entidades tao pouco sérias como aquelas pudessem sustenté-las. Este vocibulo, “curiosidade”, como tantos outros, tem duplo sentido: um deles primario e substancial, ¢ outro pejorativo e insultuoso, assim como a palavra “aficionado”, que significa aquele que ama algo ver- dadciramente, mas também aquele que é apenas um amador. O sentido préprio da palavra “curiosidade” brota da raiz de uma palavra latina (para a qual Heidegger chamou a atengao recentemente), cia, os cuidados, as coitas, o que eu chamo de “preocupagio”. De cura vem curiosidade”. Daqui que em nossa lin- guagem vulgar um homem curioso seja um homem cuidadoso, ou seja, um homem que faz. com atengo e extremo rigor ¢ esmero 0 que tem de fazer, que nao se despreocupa daquilo que 0 ocupa, mas, ao contritio, se preocupa com sua ocupacao. No antigo espanhol “onida ainda era preocupar-se, curare. Esse sentido otigindrio de cura ou cuidados sobrevive em nossas expresses vigentes “curador”, “procurador”, “procu- rar”, “curar”; ena prépria palavra “cura”, que se ligou ao sacerdote porque este cuida das almas. Curiosidade 6 portanto, cuidado, preocupago. Vice-versa, incuria €descuido, despreocupacao; e seguranga, securitas, & auséncia de cuidados e preocupagdes. Por exemplo, se eu procuro minhas chayes é por- ‘que me preocupo com elas, ¢ se me preocupo com 2 LUgoES De META clas 6 porque tenho necessidade de fazer algo, de ‘ocupar-me. Quando esse preocupar-se € exercido mecani- camente, insinceramente, sem motivo suficiente, € degenera em ansiedade, temos um vicio humano que consiste em fingir cuidado pelo que nao nos preocupa de verdade, num falso preocupar-se com coisas que nao vao de fato nos ocupar; portanto, em, ser incapaz de auténtica preocupagio. E é isso que significam pejorativamente empregadas as palavras “curiosidade” e “ser um curioso”. Quando se diz, pois, que a curiosidade nos leva 4 cigncia, das duas uma: ou nos referimos aquela sincera preocupagao com ela, que nao é sendo o que eu chamei antes de “necessidade imediata ¢ auténtica” — a qual reconhecemos que nao costu- ma ser sentida pelo estudante —, ou nos referimos a curiosidade frivola, & ansiedade de meter o nariz, em todas as coisas, ¢ isto no creio que possa servir para tornar o homem um cientista, Essas objegdes siio, portanto, vas. Nao facamos idealizagdes da aspera realidade, beatices que nos induzem a debilitar, nublar, adocicar os problemas, a amortecer 0 seu golpe.? O fato é que o estudante tépico é um homem que nao sente necessidade direta da cigncia, preocupacao com ela, e, contudo, se vé forcado a ocupar-se dela. Isso ja significa a falsidade geral do estudar, Mas logo vem a concrecio, quase ponerles bolas en los cuernos”.— Wt 23 JOSEORTEGAY ASSET perversa de tio miraculosa, dessa falsidade, porque nao se obriga um estudante a estudar em geral, ¢ ele se depara, querendo ou nao, com o estudo dissociado em carreiras especiais, ¢ cada carreira constituida por disciplinas singulares, por tal ou qual ciéncia. Quem pretende que o jovem sinta efetiva necessidade, num certo ano de sua vida, por tal ciéncia que os homens antecessores tiveram gana de inventar? Assim, do que foi uma necessidade to auténtica vaz, a qual alguns homens — os criadotes da ciéncia — dedicaram sua vida inteira, faz-se uma necessidade morta ¢ uma atividade falsa. Nao crie- mos ilusdes: nesse estado de espitito nao se pode chegar a saber o saber humano. Estudar 6, pois, algo constitutivamente contraditério e falso. O estudante € uma falsificagio do homem. Porque o homem é Propriamente apenas aquilo que é autenticamente, por intima ¢ inexoravel necessidade, Ser homem no € ser, ou, o que é dizer o mesmo, fazer qualquer coisa, mas ser 0 que irremediavelmente se é e ha os modos mais distintos entre si de ser homem, e todos eles igualmente auténticos. 0 homem pode ser ho- mem de ciéncia, ou homem de negécios, ou homem. politico, ou homem religioso, porque todas essas coisas so, como veremos, necessidades constitutivas ¢ imediatas da condigéo humana, Mas o homem por si mesmo jamais seria estudante, como o homem por simesmo jamais seria pagador de impostos. Ele tern de pagar impostos, tem de estudar, mas ndo é nem contribuinte nem estudante. Ser estudante, como ser mM ES DEMETAFISICA pagador de impostos, é algo “artificial” que o homem se vé obrigado a ser. Isso, que a principio pode parecer estupefaciente, 6a tragédia constitutiva da pedagogia, e desse pa- radoxo to cruel deve surgir, a meu ver, a reforma da educagao. E por ser a atividade mesma, o fazer que a pe- dagogia regula ¢ que chamamos de “estudar”, algo humanamente falso, acontece 0 que nao se costuma destacar tanto quanto se deveria, a saber, que em nenhuma ordem da vida é tao constante, habitual e tolerada a falsidade como no ensino. Eu sei que ha também uma falsa justiga, isto 6, que se cometem. abusos nos julgamentos ¢ audiéncias. Mas pondere cada um de vooés que me escutam, a partir de sua experiéneia, se nao nos darfamos por muito conten- tes se existissem, na efetividade do ensino, menos insuficiéncias, falsidades ¢ abusos do que padecemos na ordem juridica. O que ali se considera abuso in- toleravel — que nao se faca justi¢a — corresponde quase ao normal do ensino: que o estudante no estude, e que, se estuda, dando o melhor de si, nao aprenda; ¢ é claro que, se o estudante, seja pela razao que for, no aprende, o professor no poder dizer que ensina, mas, no maximo, que tenta, mas no consegue ensinar, Entretanto amontoa-se gigantescamente, geracio apés geragio, 0 pavoroso aglomerado dos saberes humanos que o estudante tem de assimilar, de es- tudar, E conforme o saber aumente, se enriquega ¢ 2s JOSE ORTEGA VGASSET specialize, mais longe ele estara de sentir, imediata ¢ autenticamente, a necessidade dele. Ou seja, have- 1 cada vez menos congruéncia entre o triste fazer humano que ¢ estudar e o admiravel fazer humano que € 0 verdadeiro saber. E.a isso acresceré a terri- vel dissociacio que, hé um século pelo menos, teve inicio entre a cultura vivaz, entre o auténtico saber e o homem médio. Porque, como a cultura ou o saber no tém mais realidade que responder ¢ satisfazer ‘numa ou noutra medida as necessidades efetivamente sentidas, € 0 modo de transmitir a cultura é 0 estudar, © qual nao € sentir essas necessidades, temos que a cultura ou o saber vai ficando no ar, sem raizes de sinceridade no homem médio, a quem se obriga a ingurgité-lo, a engoli-lo. Ou seja, introduz-se na mente humana um corpo estranho, um repertério de idgias inassimilaveis, ou, o que € dizer 0 mesmo, mortas, Essa cultura desenraizada do homem, que do brota dele espontaneamente, carece de autoc tonia, de indigenato — é algo imposto, extrinseco, estranho, estrangeiro, ininteligivel —, em suma, inreal. Por sob a cultura recebida, mas ndo autenticamente assimilada, o homem permaneceré intacto, ou seja, inculto; ou seja, um bérbaro, Quando o saber era mais breve, mais elementar e mais organico, estava mais proximo de poder ser verdadeiramente sentido pelo homem médio, que entao 0 assimilava, rectiava e revitalizava dentro de si. Assim se explica 0 para- doxo colossal destas décadas: que um gigantesco progresso da cultura tenha produzido um tipo de 26 LUGDES DEMETAFSICA homem como o atual, indiscutivelmente mais barbaro que o de cem anos atras. E que a aculturagio ou 0 acimulo de cultura produza, de forma paradoxal, ‘mas automatica, uma rebarbarizagio da humanidade. Voces compreenderao que nao se resolve © pro- blema dizendo: “Bem, entao, se estudar é uma falsi- ficagao do homem, que ademais leva ou pode levar a tais conseqiiéncias, que nao se estude!”, Dizer isso nao seria resolver o problema: seria simplesmente ignora-lo, Estudar e ser estudante é sempre, e sobre- tudo hoje, uma necessidade inexoravel do homem. Este tem, querendo ou no, de assimilar o saber acumulado, sob pena de sucumbir individual ou coletivamente, Se uma geragio deixasse de estudar, a humanidade atual, em suas nove décimas partes, morreria fulminantemente. O ntimero de homens que vivem hoje s6 pode subsistir gragas a técnica superior de aproveitamento do planeta que as cién- cias possibilitam. As técnicas podem ser ensinadas mecanicamente. Mas as técnicas advém do saber, € se este nao pode ser ensinado, chegard uma hora em que também as técnicas sucumbirao. Portanto, € preciso estudar; e isso, repito, é uma, necessidade do homem — mas uma necessidade ex- terna, mediata, como o é virar aquela direita que me aponta o guarda de transito quando preciso passat. Mas ha entre ambas essas necessidades externas — estudar e virar & direita — uma diferenca essencial, que converte o estudo num problema substantivo. Para que o transito funcione perfeitamente nao é a JOSE ORTESRY GASSET necessdrio que eu sinta intimamente a necessidade de virar & direita: basta que cu de fato caminhe nessa diregao; basta que eu a aceite, que eu finja senti-la. Mas com o estudo nao acontece o mesmo; para que cu entenda de verdade uma ciéneia nao basta que eu finja em mim a necessidade dela ou, dito de outro modo, nao basta que eu tenha vontade de aceit-la; enfim, nao basta que eu estude. f preciso, além disso, que eu sinta autenticamente sua necessidade, que me preocupem esponténea e verdadeiramente suas quest&es; s6 assim entenderei as solugdes que ela dé ou pretende dar a essas questdes. Nao se pode enten- der uma resposta quando nao se sentiu a pergunta & qual ela responde. © caso do estudar é, pois, diferente do caso de virar & direita. Neste é suficiente que eu o exerga bem Para que renda o efeito desejado. Naquele, nao; no basta que eu seja um bom estudante para que logre assimilar a ciéncia, Temos nele, portanto, um fazer do homem que se nega a si mesmo: é ao mesmo tempo necessdrio c imitil. E preciso fazé-lo para lograr um certo fim, mas resulta que nao se 0 logra. Por isso, porque as duas coisas so verdade ao mesmo tempo —sua necessidade e sua inutilidade — 0 estudar é um problema. Um problema é sempre uma contradigo que a inteligéncia encontra diante de si, que a puxa em duas diregGes opostas e ameaga rasgé-la. A solugo de um problema téo cru ¢ bicérneo se depreende de tudo 0 que foi dito: nao consiste em decretar que nio se estude, mas em reformar 28 Ligh be METAFISICA profundamente esse fazer humano que é o estudar ¢, conseqiientemente, o ser do estudante. Para isso € preciso virar do avesso o ensino e dizer: ensinar no é priméria e fundamentalmente sendo ensinar a necessidade de uma ciéncia, e nao ensinar a ciéncia cuja necessidade seja impossivel de fazer o estudante sent ‘Mas talvez algum de voeés esteja se perguntand: ‘0 que tudo isso tem a ver com um curso de metafisica? Eu espero —e com isto eu comecei — que durante este curso vocés entendam nao s6 que 0 que foi dito tem a ver com a metafisica, mas também que ja es- tamos nela. Por ora, demos uma justificativa mais clara para ter comegado assim antecipando uma primeira definigao da metafisica, aparentemente a mais modesta, a qual ninguém se atreverd a inva- lidar: digamos que metafisica é algo que o homem faz; alguns homens, pelo menos; depois veremos se no so todos, ainda que ndo se déem conta. Mas essa definigio nao nos basta, porque o homem faz muitas coisas e ndo apenas metafisica; mais ainda, 0 homem € um incessante, ineludivel e puro fazer. Faz sua fazenda, faz. politica, faz inchistria, faz versos, faz cincia, faz, paciéneias e quando parece que nao faz. nada é porque espera, e esperar, sua experiéncia 0 confirma, é &s vezes um terrivel € angustioso fazer: é fazer tempo; e o que nem sequer espera, o que verdadeiramente nao faz nada, 0 faitnéant, este faz 0 nada, ou seja, sustenta e suporta o nada de si mesmo, o terrivel vazio vital que chamamos de tédio, spleen, 2» JOSE ORTEGAY GASSET desespero. Quem nio espera, desespera; um fazer tio horrivel, que carece de um esforgo tio feroz a ponto de ser um dos que o homem menos pode agiientar, € que costuma levé-lo a fazer o efetivo e absoluto nada, a aniquilar-se, suicidar-se. Em meio a tao variado, tio omnimodo fazes, como reconheceremos o peculiarmente metafisico? Para isso terei de antecipar uma segunda definigao mais determinada: o homem faz metafisica quando busca uma orientacao radical em sua situacao. Mas qual é a situagdo do homem? Este nao se encontra somente em uma, mas em muitas situa- ‘ges distintas; por exemplo, vocés se encontram agora em uma, casualmente na de se pér a estudar metafisica, como ha duas horas se encontravam em outra, ¢ amanha em outra, Entretanto, todas essas situagdes, por diferentes que sejam, coincidem todas em serem porgdes da vida de vocés. Portanto a vida do homem se compoe de situagdes, como a matéria se compée de atomos. Sempre que se vive, vive-se numa determinada situagio. Mas é evidente que, 0 serem todas situagdes que sejam, hd nelas uma estrutura elementary, funda- mental, que as faz, todas, situagdes do homem. Essa estrutura genérica é 0 que elas tém essencialmente de vida humana. Ou, dito de outra forma, quaisquer que sejam os ingredientes variéveis que formem a situagdo em que eu me encontre, é evidente que essa situacdo seré um viver. Portanto, a situagio do homem é a vida, é viver. ‘is, por mais distintas 30 LUCOES DE METAFISICA E dizemos que a metafisica consiste em o homem buscar uma orientagio radical em sua situagio. Mas isso supde que a situacdo do homem — isto é, sua vida — consiste numa radical desorientagdo. Nao dizemos, pois, que 0 homem, dentro de sua vida, se cencontre desorientado parcialmente nesta ou noutra ‘ordem,em seus negécios ou em seu caminhar por uma paisagem, ou na politica. Aquele que se desorienta no campo busca um mapa ou uma biissola, ou pergunta a um transeunte, ¢ isso lhe basta para se orientar. Mas nossa definigéo pressupde uma desorientagio total, radical; ou seja, ndio que acontega ao homem. de se desorientar, de se perder em sua vida, mas sim quea situagao do homem, a vida, é desorientagio, € estar perdido — e por isso existe a metafisica. 31

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