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Neurobiológica

Marx e Lacan: Quando a mais-valia encontra o mais-


gozar
 LavraPalavra  setembro 30, 2015  3 Comentários

Por Alenka Zupancic, traduzido por  João Matheus Cassarott;  Daniel Alves Teixeira
(membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia); e  José Mauro Garboza
Junior (membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia)

Esta é a tradução parcial de um texto de Alenka Zupancic chamado “Quando a mais-valia encontra
o mais-gozar”. Publicamos parcialmente o texto para que os leitores possam conhecer melhor esta
importante filosofa da escola lacaniana de Liubliana, que possui como outros expoentes Slavoj
Zizek e Mladen Dolar. A integra da tradução será futuramente publicada através de revistas oficiais.

A teoria dos discursos (ou dos laços sociais) de Lacan é, entre outras coisas, uma monumental e,
em muitos aspectos, revolucionária resposta à questão da relação entre significante e gozo.
Esta pontuação já foi feita por Jacques-Alain Miller: antes de  O Avesso da Psicanálise, as
elaborações conceituais de Lacan foram baseadas na fundamental antinomia entre significante
e gozo[1]. Esses dois termos foram radicalmente opostos (como em  The Ethics of
Psychoanalysis Ética do Psicanalista) ou então apresentados como dois elementos
heterogêneos qualificados por uma certa homologia estrutural (como em  The Four
Fundamental Concepts of Psychoanalysis, onde Lacan afirma, a propósito da pulsão, que “algo
no aparato do corpo é estruturado da mesma maneira como o inconsciente” – e nós sabemos
que “o inconsciente é estruturado como linguagem”. Nós, então, temos uma analogia estrutural
entre gozo e significante: os dois elementos são heterogêneos e permanecem separados,
porém eles estão relacionados por essa analogia estrutural).

A teoria dos discursos é algo diferente: ela articula o gozo junto com o significante e coloca isso
como um elemento essencial de qualquer discursividade. Além disso, esse reconhecimento da
dimensão discursiva do gozo traz à tona a dimensão política da psicanálise: “Esses lembretes
são absolutamente essenciais para serem feitos em um tempo quando, falando do outro lado
da psicanálise, surge a questão sobre o lugar da psicanálise na política. A intrusão na política só
pode ser feita reconhecendo que o único discurso que há, e não apenas o discurso analítico, é o
discurso da jouissance, ao menos quando se espera o trabalho da verdade a partir dele.”[2]

2a10f1
A questão de como o gozo se articula com o significante, e o fato de ele que faz isso, é o exato
ponto onde a psicanálise intervém, “intromete-se”, no político. Lacan aponta o fato de que o
gozo é (ou se tornou) um fator político, seja na forma de promessa (“faça outro esforço, trabalhe
um pouco mais duro, mostre mais paciência, e você finalmente conseguirá!”), ou na forma do
imperativo “Goze!” que geralmente dificulta nossa existência contemporânea de uma maneira
um tanto quanto sufocante.

Mas primeiro – como Lacan, no  Seminar XVII, teve êxito em relacionar conceitualmente gozo
com o significante? Através da seguinte sugestão a qual ele repete, em diferentes formas,
durante todo o seminário: a perda [loss] do objeto, a perda da satisfação e a emergência de uma
satisfação excedente ou mais-gozar são situadas, topologicamente falando, em um único e
mesmo ponto: na intervenção do significante. Lacan desenvolve isso em referência à noção que
Freud introduz em seu ensaio Psicologia das Massas [Group Psychology], quer dizer, no trabalho
que constitui precisamente uma tentativa inaugural da psicanálise Freudiana de pensar alguns
aspectos essenciais do social (e do político). A noção em questão é a de “traço unário” (einziger
Zug), com a qual Freud aponta características peculiares da identificação (simbólica). As últimas
são muito diferentes da imitação imaginária de diferentes aspectos da pessoa com o qual
alguém se identifica: nessa, o traço unário em si mesmo domina a inteira dimensão da
identificação. Por exemplo, a pessoa com quem nos identificamos tem uma forma peculiar de
pronunciar a letra  r, e passamos a pronunciar da mesma maneira. Isto é tudo: não são
necessárias outras tentativas de se comportar, vestir-se como essa outra pessoa, fazer o que ela
faz. O próprio Freud fornece inúmeros exemplos interessantes deste tipo de identificação – por
exemplo, assimilando a tosse característica de outra pessoa. Há também o famoso exemplo do
internato feminino: uma das garotas recebe uma carta do seu amante secreto que a deixa
chateada e a enche de ciúme, o que então assume a forma de um ataque histérico. Em seguida,
várias outras garotas no colégio interno sucumbem ao mesmo ataque de histeria: elas tinham
conhecimento de sua ligação secreta, invejavam dela seu amor, e queriam ser como ela.
Todavia, a identificação com ela tomou esta forma extraordinária de se identificar com o traço
em que emergiu, na garota em questão, no momento de crise em seu relacionamento.

Esse exemplo é na verdade ainda mais instrutivo. Ele circunscreve dois pontos essenciais que
Lacan assimila em relação a essa noção Freudiana. Primeiro, apesar do traço unário poder ser
absolutamente arbitrário, sua significância para o sujeito que “se apropria” como um ponto de
identificação é, obviamente, nem um pouco arbitrário. A singularidade do traço deriva do fato
de que ele marca a relação do sujeito com satisfação ou gozo, isto é, marca o ponto (ou o traço)
da conjunção deles. Isso é um tanto aparente no exemplo do internato. Outra coisa também é
óbvia nesse exemplo: o ataque histérico da primeira garota é o traço (neste caso, já um
sintoma) que comemora seu caso amoroso no ponto preciso onde há um perigo iminente da
garota perder o (amado) objeto; e, portanto, seu ciúme. Esse é o segundo importante ponto de
ênfase que Lacan assimila de Freud, e que concerne à ligação entre perda, o traço unário, e uma
satisfação suplementar. De acordo com Freud, no evento da perda do objeto o investimento é
transferido para o traço unário que marca essa perda; a identificação com o traço unário ocupa
então o lugar (estrutural) do objetivo perdido [lost object]. Todavia, ao mesmo tempo, essa
identificação (e com ela a repetição e reencenação daquele traço) torna-se em si a fonte de uma
satisfação suplementar.

Lacan transpõe isso ao seu enquadramento conceitual interpretando o traço unário como “a
forma mais simples de marca, a qual, falando propriamente, é a origem do significante” (página
52 do seminário xvii). Ele liga o traço unário Freudiano ao que ele escreve como. Ainda mais, ele
delineia e condensa os momentos de perda e satisfação suplementar ou gozo em um único
momento, afastando-se da noção de uma perda original (de um objeto), para uma noção da
perda que é mais próxima da noção de desperdício, de um excedente inútil ou restante, que é
inerente e essencial à  jouissance  como tal. Esse pensamento de perda nos termos de
“desperdício” também é o que o leva a introduzir a referência ao conceito termodinâmico de
entropia, ao qual nós retornaremos abaixo. Então,  jouissance é  desperdício (ou perda); ela
encarna a própria entropia produzida pelo funcionamento do aparato dos significantes. Não
obstante, precisamente como desperdício, essa perda não é simplesmente uma lacuna, uma
ausência, algo faltando [missing]. Ela absolutamente está lá (como o desperdício sempre está),
algo a ser adicionado às operações e às equações significantes, para ser reconhecida como tal.
NoSeminário, Lacan irá resumir esse status de gozo como perda-desperdício pela seguinte
definição canônica: “a jouissance, o que não serve a nada [La jouissance, c’est ce qui ne sert a
rien].”[3]  Isso é precisamente o que distingue o desperdício da falta: algo está lá, porém não
serve a propósito algum. O que ele faz, por outro lado, é exigir repetição, a repetição do próprio
significante ao qual esse desperdício está ligado na forma de um subproduto essencial.
“Jouissance  é o que exige repetição”, diz Lacan, e ele continua para mostrar como é
precisamente em função disso que a jouissance vai contra a vida, além do princípio do prazer, e
toma a forma do que Freud chamou de pulsão de morte.

Isso é realmente uma mudança significativa na conceitualização de Lacan de jouissance. Há


uma ligação imediata entre significante e jouissance: é por meio da repetição de um certo
significante que nós temos acesso à jouissance, e não através de ir além do significante e do
simbólico, transgredindo as leis e os limites do significante. Lacan pontua enfatizando repetidas
vezes que “nós não estamos tratando com uma transgressão”. Deixe-me citar a passagem
mais significativa:

[Gozo] somente entra em cena por acaso, uma contingência inicial, um acidente. O ser
vivo que normalmente se vira e sai ronronando por aí com prazer. Se a jouissance não é
incomum, e se isso é ratificado através da sanção do traço unário e da repetição, que
portanto a institui como uma marca – se isso acontece, só pode se originar em uma
variação muito menor, variação no sentido de jouissance. Essas variações, depois de tudo,
nunca serão extremas, nem mesmo nas práticas que eu mencionei anteriormente
[masoquismo e sadismo].
Então, o que temos aqui? Primeiro, um acidente, uma contingência inicial na qual o sujeito
encontra um prazer excedente, isto é jouissance; esse encontro pode ser incomum a respeito do
princípio do prazer como norma, ainda assim isso não quer dizer que de modo algum é
espetacular ou colossal. Ela é incomum, desde que representa uma espécie de desvio do
caminho comum do prazer em direção a jouissance, embora esse desvio ou divergência nunca
seja extremo, nem mesmo no que parece ser a prática mais extravagante de jouissance. Ela está
fadada à repetição do significante que a instituiu como uma marca, e nesse sentido ela sempre
permanece dentro da esfera do significante. O status da  jouissance  (e da pulsão de morte) é
então essencialmente de algo intersignificante, por assim dizer: ele toma tem lugar, ou dá
corpo, a, uma lacuna ou desvio que é interno ao campo dos significantes.

Alguém poderia dizer que para o Lacan do  Seminário XVII  jouissance  não é nada além da
inadequação do significante a si mesmo, sua inabilidade de funcionar “puramente”, sem
produzir um excedente inútil. Mais precisamente, essa inadequação do significante a si mesmo
tem dois nomes, aparece em duas entidades diferentes, por assim dizer, as quais são
precisamente os dois elementos não-significantes nos esquemas dos discursos de Lacan: o
sujeito e o  objeto a. Para colocar de maneira simples: o sujeito é a lacuna como magnitude
negativa ou número negativo, no sentido preciso que a definição Lacaniana de significante o
coloca. Ao invés de ser algo que representa um objeto para o sujeito, um significante é o que
representa o sujeito para outro significante. Isso quer dizer que sujeito é a lacuna interna do
significante, a qual sustenta seu movimento referencial. O  objeto a, por outro lado, é um
desperdício positivo que é produzido nesse movimento e que Lacan chama de mais-gozar,
deixando claro que não há outro gozo além do mais-gozar, isto é que o gozo enquanto tal
aparece essencialmente como entropia.

Vamos agora primeiro dar uma olhada em como tudo isso pode ser visto no funcionamento do
discurso do mestre como uma forma fundamental de discursividade.

  

___________________

[1] Cf. Jacques-Alain Miller, “Paradigms of Jouissance,” Lacanian Ink 17 (2000): 10-47.

[2] Jacques Lacan, Le séminaire, livre XVII: L’envers de la psychanalyse, ed. J.-A. Miller (Paris: Seuil,
1991), 90. Citações em parentêses no texto listam o número das páginas na edição francesa.

[3] Lacan, The Seminar of Jacques Lacan, Book XX: Encore or On Feminine Sexuality, the Limits of
Love and Knowledge, ed. J.-A. Miller, trans. B. Fink (New York: Norton, 1998), 10.
Para saber mais sobre o tema: link

 Crítica
Alenka Zupancic, Jacques Lacan, Jouissance, Karl Marx, Mais-valia, Marx, Marxismo,

Psicanalise, Teoria dos Discursos

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3 comentários em “Marx e Lacan: Quando a mais-valia encontra o mais-gozar”

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Gabriell Capoeira
24 de novembro de 2016 às 04:41

Muito bom, seria interessante postar mais artigos sobre os componentes dessa escola
de psicanalise e filosofia

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