DISCIPLINA: ARTE E ANTROPOLOGIA – SEMESTRE 2022.2 DOCENTE: EDUARDO ROMERO LOPES BARBOSA DISCENTE: MICAELLE VANESSA FERREIRA DA SILVA
A INVENÇÃO DO COTIDIANO
“Uma pergunta brusca, enquanto tu caminhas pelas ruas.
Te pergunto: E a entranha?” - Hilda Hilst
Michel de Certeau (1925-1986) foi um intelectual francês, que nasceu em Chambéry,
região camponesa da França, e caminhou por várias áreas dos saberes, formando- se em Filosofia, História, Teologia e Letras Clássicas, além de ter um profundo interesse por Antropologia, Linguística e Psicanálise. Sua obra é conhecida por abordar temas como a história da cultura, a relação entre poder e resistência, a psicologia social e a teoria literária. Seu livro "A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer" é de uma profundidade e complexidade que desafia a forma como pensamos sobre o mundo que nos rodeia. Ele oferece uma perspectiva única sobre a vida cotidiana e enfatiza que a cidade é um espaço de conflito, onde as pessoas estão constantemente lutando por espaço, tempo e identidade em um mundo que é moldado por poderes dominantes. Certeau usa o conceito de tática pra se referir a um conjunto de práticas que as pessoas comuns usam para navegar em ambientes sociais complexos e lidar com as limitações impostas pelas normas, regras e regulamentos que moldam a vida cotidiana. Essas práticas incluem desde pequenos atos de resistência, como a apropriação e reinterpretação de mensagens culturais dominantes, até táticas mais elaboradas, como o uso criativo do espaço urbano. Sendo assim, as táticas são essenciais para a invenção e reinvenção cotidiana, bem como para a resistência às estruturas hegemônicas de poder. Sua análise se concentra nas maneiras de resistir, criar e inovar de uma forma multiforme e astuciosa, subvertendo e escapando das restrições impostas pela sociedade disciplinar e vigilante e criando novas possibilidades de tempo e espaço para si mesmas, fortalecendo suas próprias histórias e identidades em um mundo que muitas vezes é hostil e desfavorável. Em contraposição, há o conceito de estratégia, que são justamente essas práticas planejadas e executadas por aqueles que possuem o poder e o controle sobre o sistema e que são geralmente usadas para reforçar o status quo e manter as desigualdades entre os títulos e as rendas dos habitantes da cidade, além de tentar impor sua visão da cidade através do planejamento urbano, da arquitetura e da gestão urbana. Isso acaba lançando percursos impositivos que afetam o próprio ato de vagar, onde os traçados acabam substituindo as práticas, que hierarquizam e ordenam as superfícies da cidade, operam os arranjos cronológicos e as legitimações históricas, fazendo-se esquecer das diversas maneiras de estar no mundo, podendo-se chegar em graus mais profundos de desterritorialização e desenraizamento das origens dos sujeitos. Porém esses êxodos caminhantes podem se entrelaçar, criando um tecido urbano com suas próprias condições de vida social, pois caminhar é ao mesmo tempo a falta de lugar e a procura de um próprio. Assim, os praticantes ordinários da cidade escrevem um texto urbano sem poder lê-lo, mas jogam astuciosamente com as organizações espaciais, por mais panópticas que sejam. Se inscrevem na lógica, tensionando-a. Essas redes de escrituras avançam e entrecruzam-se, compondo uma história múltipla, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaço. O que remete a uma prática da existência, seja através da linguagem e aos usos do espaço construído, que está sempre aberto a desconstrução. Permanecendo cotidianamente, indefinidamente, outras. Sendo assim, essas figuras ambulatórias praticam a cidade em busca de uma outra espacialidade, podendo chegar a uma experiência antropológica, poética e mítica do espaço. Em processos de caminhar que desembocam na criação de seus próprios mapas urbanos, numa apreensão tátil de apropriação cinésica através dos passos. “Essas árvores de gestos caminham por toda parte. Suas florestas caminham pelas ruas”. Habitar essa cidade possível de vias fecundas a partir da experiência, do encontro com as cores, corpos, cheiros, sons, luzes, temperaturas, polissemias, em que o ordinário ganha uma dimensão extraordinária, mas também sendo importante observar sua texturologia da ambição e da degradação. Vestir o lugar. Desfiar histórias sem palavras. Em suma, o livro de Certeau propõe uma abordagem que valoriza a criatividade e a resistência dos indivíduos e acredita que eles são capazes de elaborar novas formas de vida e produzir novas culturas a partir das práticas cotidianas que desenvolvem, abrindo espaço para a possibilidade de transformação social.