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Capítulo 6

A arte etrusca

A península itálica tardou a entrar na história. A Idade do Bronze só terminou ali


no séc. III a. C., pouco mais ou menos quando os gregos começavam a estabelecer-se
nas costas do sul e na Sicília. Segundo Heródoto, uma outra grande migração teria prece­
dido aquela: os etruscos, abandonando a sua pátria (a Lídia, na Ásia Menor), vieram
estabelecer-se na região compreendida entre Roma e Florença, que depois se chamou Tos­
cana, a terra dos tusci ou etrusci. Quem eram os etruscos? Terão realmente vindo da Ásia
Menor? Ainda hoje sé discute vivamente a afirmação de Heródoto. Sabemos que recorrê-

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220 História da arte A arte etrusca 221

ram ao alfabeto grego para formar o seu, no final do séc. VIII a. C., mas a sua língua
- acerca da qual os nossos conhecimentos são ainda bem limitados - não tem qualquer
parentesco com nenhuma já conhecida.
Cultural e artisticamente estão fortemente ligados à Ásia Menor e ao Oriente Próximo
Antigo, mas apresentam também traços para os quais não há paralelo em parte alguma.
Não será, então, de admitir que os etruscos tenham chegado à Itália antes das migrações
indo-européias de cerca de 2000-1200 a. C., que levaram as tribos micênicas e dóricas para
a Grécia e os antepassados dos romanos para a Itália? Nesse caso, o florescimento súbito
da civilização etrusca a partir de cerca de 700 a. C. pode ter resultado da fusão deste povo
italiano pré-histórico com pequenos mas poderosos grupos de invasores vindos da Líbia
por mar, no decurso do séc. VIII a. C. Não deixa de ser curioso que esta hipótese se apro-
xime da lenda da origem de Roma: os romanos acreditavam que a sua cidade fora fundada
em 753 a. C. por descendentes de refugiados de Tróia, na Ásia Menor. Tratar-se-ia de
uma lenda etrusca, mais tarde adotada, como tanta outra coisa, pelos romanos?
O que os etruscos pensavam das suas origens, não sabemos. Os únicos documentos
escritos que nos deixaram são curtas inscrições funerárias e alguns, poucos, textos mais
longos sobre os seus ritos religiosos, mas os autores romanos afirmam que existiu uma
copiosa literatura etrusca. A verdade é que praticamente nada conheceríamos dos etrus- 215. Uma cinerária em forma de cabeça humana, c. 675-650 a. C.
Terracota, alt..0,65 m. Museu Etrusco, Chiusi
cos, em primeira mão, se não fosse através dos seus cuidadosos jazigos, que os romanos
não danificaram quando destruíram ou reconstruíram as cidades etruscas, e que, portan-
to, permaneceram quase todos intatos até os tempos modernos.
Mas os etruscos, tal como os gregos, nunca construíram uma nação unificada, apenas
As sepulturas italianas da Idade do Bronze eram do tipo modesto encontrado em todas formaram confederações instáveis de cidades-estados prontas a guerrear-se e lentas a unir-
as regiões da Europa pré-histórica: os restos mortais, colocados num vaso ou urna de ola- se contra um inimigo comum. Durante os sécs. V e IV a. C., as cidades etruscas tombaram
ria, eram depositados numa simples cova, juntamente com os objetos tidos por essenciais uma por uma nas mãos dos romanos. No final do séc. III a. C. todas elas tinham perdido
no mundo do Além: armas, para o homem, jóias e utensílios domésticos, para a mulher. a independência, ainda que muitas continuassem prósperas, a avaliar pela riqueza dos ja-
Na Grécia micênica, este culto primitivo dos mortos foi elaborado sob influência egípcia, zigos durante o período de declínio político.
como o indicam os monumentais sepulcros "de colmeia". Oito séculos passados, aconte-
ceu na Toscana algo muito semelhante. Por volta de 700 a. C., as sepulturas etruscas co- OS TÚMULOS E A SUA DECORAÇÃO
meçaram a imitar, em pedra, os interiores das casas de habitação, e a serem cobertas com
grandes montes cônicos de terra (tumuli). O teto podia ser abobadado ou de falsa cúpula, O florescimento da civilização etrusca coincide, assim, com o período arcaico da Gré-
como o Tesouro de Atreu, em Micenas (fig. 126). E, na mesma época, as urnas de barro cia. Foi durante essa época, especialmente nos fins do séc. VI e princípios do V a. C., que a
começaram a adquirir gradualmente forma humana: a tampa (ou testo) converte-se em arte etrusca alcançou o seu máximo vigor. A influência grega arcaica afastara as tendências
cabeça do defunto e alguns pormenores anatômicos passam a ser modelados no bojo da orientalizantes muitos dos mais belos vasos gregos foram encontrados em sepulturas
etruscas desse tempo - mas os artistas etruscos não imitaram simplesmente os seus modelos
vasilha, por vezes colocada numa espécie de pedestal, indicando categoria social elevada
helênicos. Trabalhando num ambiente cultural muito diferente, conservaram a sua própria e
(fig. 215). Junto desta incipiente escultura funerária surgiram de repente sinais de grande bem marcada identidade.
riqueza, peças de ouro decoradas com motivos correntes nos vasos gregos orientalizantes Seria de esperar que o culto etrusco dos mortos se desvanecesse sob a influência grega.
do mesmo período, misturados com objetos preciosos provenientes do Oriente Próximo. Muito pelo contrário, as sepulturas e os seus interiores são cada vez mais esmerados, à
_Os sécs. VII e VI a. C. viram os etruscos no auge do poder. As suas cidades medida que se aperfeiçoavam as técnicas dos pintores e escultores, já capazes de represen-
rivalizavam com os gregos; a sua esquadra dominava o Mediterrâneo e protegia um tar os defuntos em tamanho natural, reclinados no tampo dos sarcófagos (agora com a
vasto Império comercial que competia com o dos gregos e dos fenícios; o seu território forma de um leito), como se participassem de um banquete festivo, o sorriso arcaico nos
estendia- se desde Nápoles, ao sul, até o vale inferior do Pó, ao norte. A própria Roma foi lábios. O exemplar monumental da figura 216 mostra-nos dois esposos lado a lado, estra-
governada por reis etruscos durante cerca de um século, até a implantação da República, nhamente alegres e majestosos ao mesmo tempo. Toda a obra é em terracota e estava origi-
em 510 a. C. Os reis lançaram a primeira muralha defensiva em torno das "sete nariamente pintada em cores vivas. As formas elásticas, suavemente arredondadas, traem
colinas", drenaram os lameiros pantanosos do fórum, e ergueram o primeiro templo na a preferência etrusca pela modelação em materiais brandos, em contraste com o amor
colina do Capitólio, fazendo uma cidade do que até então não fora mais do que um
agrupamento de aldeias.
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216. Sarcófago, de Cerveteri, c. 520


a. C. T erracota, comp. 2 m. Museo
Nazionale di Villa Giulia, Roma 217. Pintura mural (detalhe), c. 520 a. C. Túmulo da Caça e da Pesca, Tarquínia

dos gregos pela escultura de pedra; há menos disciplina formal aqui, mas nota-se uma ças, e perguntamos se algum artista grego arcaico era capaz de situar o homem num am-
vivacidade e espontaneidade extraordinárias. biente natural tão eficazmente como o fez o pintor etrusco. Poderia esta pintura ter sido
inspirada pelas cenas egípcias nos pântanos (fig. 70)? Parecem ser o antecedente mais pro-
Crenças funerárias primitivas vável do tema da composição. Mas o pintor etrusco soube dar vida à cena, tal como suce-
dera com o casal da figura 216, comparado às estátuas funerárias egípcias.
Não sabemos com rigor que ideia faziam os etruscos da vida de além-túmulo. Efígies
como este casal reclinado, que pela primeira vez na história representam os mortos como
completamente vivos e felizes, sugerem que eles encaravam o sepulcro como uma morada O Túmulo das Leoas
não só para o corpo mas também para a alma (ao contrário dos egípcios, os quais pensa- Uma obra mais tardia, de outro sepulcro de Tarquínia (fig. 218, est. 18), representa
vam que a alma deambulava livremente e cujas esculturas funerárias permaneciam, por um par de bailarinos: a exaltada energia dos seus movimentos parece-nos caracteristica-
isso mesmo, ''inanimadas"). Ou quem sabe os etruscos julgassem que ao encher o jazigo mente etrusca, mais do que grega. De interesse especial é a roupagem transparente da mu-
de representações de banquetes, bailados, jogos e outros prazeres semelhantes, persuadi- lher, que deixa o corpo à vista. Na Grécia, esta diferenciação aparecera poucos anos antes,
riam a alma a permanecer na cidade dos mortos e a não perturbar o reino dos vivos. De na última fase da pintura cerâmica arcaica. As cores contrastantes dos corpos das duas
outro modo, como poderíamos compreender a decoração maravilhosamente rica das pin- figuras prolongam um uso introduzido pelos egípcios havia mais de dois mil anos (fig.
turas murais dessas câmaras funerárias? Uma vez que nenhuma obra desta espécie sobre- 67, est. 6).
viveu na Grécia, elas têm uma importância única, não apenas como uma realização etrusca,
mas também como um possível reflexo da pintura grega a fresco.
Crenças funerárias tardias
O Túmulo da Caça e da Pesca Durante o séc. V a. C., a concepção etrusca do Além tornou-se bastante mais complicada e
menos festiva. Daremos logo pela mudança se compararmos o grupo da figura 219, um
A mais surpreendente de todas é, talvez, a grande panorâmica marinha de aproxima- recipiente cinerário talhado em pedra macia, de pouco depois de 400 a. C., com o
damente 520 a. C., no Túmulo da Caça e da Pesca, em Tarquínia, de que a figura 217 sarcófago da figura 216. A mulher está agora sentada aos pés da cama e não é mais a
reproduz o detalhe mais bem conservado: uma vasta extensão de água· e céu em que esposa do jovem: as suas asas indicam que se trata do demônio da morte, e o rolo que traz
os pescadores e o caçador com a sua fisga desempenham apenas um papel acessório. O na mão esquerda registra o destino do falecido. O jovem aponta para ele, como se dissesse:
movimento livre e rítmico das aves e dos golfinhos recorda a pintura minoica de mil anos "Vede, chegou a minha hora!" O ar pensativo é melancólico das figuras revela a
atrás (fig. 118), mas falta-lhe a qualidade imponderável e flutuante da arte cretense. Pode- influência provável da arte grega clássica que impregna o estilo deste grupo. Ao mesmo
ríamos evocar o Dioniso num Barco, de Exéquias (fig. 140), como o equivalente grego tempo, porém, reflete-se aqui uma nova atitude de incerteza e de pesar: o destino do ho-
mais próximo desta cena. Contudo, as diferenças são tão reveladoras como as semelhan-
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220. Câmara funerária. Séc. III a. C. Túmulo dos Relevos, Cerveteri

mem está nas mãos de inexoráveis forças sobrenaturais. A morte é a grande ruptura, mais
que uma continuação, ainda que num plano diferente, da vida terrestre.
Em túmulos posteriores, os demônios da morte ganham um aspecto temeroso; outros,
218. Dois Bailarinos, detalhe de pin- ainda mais aterrorizadores, entram em cena, batendo-se muitas vezes contra gênios benfa-
tura mural (v. est. 18). Túmulo das zejos pela posse da alma do defunto. Um deles aparece no centro da câmara funerária
Leoas, Tarquínia
da figura 220, um jazigo do séc. III a. C., em Cerveteri, ricamente decorado com relevos
de estuque, em vez de pinturas. Todo recinto, talhado na rocha viva, imita fielmente o
interior de uma casa, incluindo as traves do teto. Os robustos pilares (notem-se os capitéis,
que lembram o tipo eólio, da Ásia Menor, da figura 172), tal como a superfície das pare-
des entre os nichos, estão cobertos de reproduções exatas de armas, armaduras, utensílios,
pequenos animais domésticos e bustos do falecido. Neste cenário, o demônio das pernas
serpentiformes e o seu cão tricéfalo (Cérbero, o guardião das regiões infernais) parecem
ainda mais inquietantes.

OS TEMPLOS E A SUA DECORAÇÃO


': Dos templos etruscos só os alicerces de pedra se conservaram, porque os edifícios pro-
priamente ditos eram de madeira. Parece que os etruscos, embora fossem mestres ria arte
da alvenaria, rejeitaram, por motivos religiosos, o emprego da pedra na construção dos
219. Um Jovem e o Demônio da
santuários, cujo traçado apresenta uma semelhança geral com os templos gregos mais sim-
Mor- te (recipiente cinerário). ples (fig. 221), mas com certas características próprias, em parte adotadas mais tarde pelos
Princípios do séc. IV a. C. Pedra romanos. Todo o edifício assenta num alto envasamento ou podium, não maior que a
(pietra fetida), comp. 1,19 m. cella, com degraus apenas do lado sul, os quais conduzem a um pórtico profundo, susten-
Museu Arqueológico de Florença tado por duas filas de quatro colunas cada, e à cella. Esta é geralmente dividida em três
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221. Reconstituição de um templo etrusco. Istituto di Etruscologia e Antichità Italiche, Universidade de Roma

compartimentos, porque a religião etrusca era dominada por uma tríade de deuses, os 222. Apolo, de Veios (v. est. 19). Museo Na-
antecessores dos romanos Juno, Júpiter e Minerva. O templo etrusco tinha assim uma zionale di V illa Giulia, Roma
forma quadrangular, atarracada, sem a elegância dos santuários gregos e mais próxima da
arquitetura doméstica. Não é preciso dizer que não havia lugar para esculturas de pe-
dra: a decoração plástica consistia geralmente em placas de terracota, revestindo a arqui- Que Veios era, efetivamente, um centro escultórico no fim do séc. VI a. C. parece con-
trave e os beirais do telhado. Apenas a partir de 400 a. C. se encontram, uma ou outra firmado pela tradição de que o último dos reis etruscos de Roma chamou um mestre de
vez, grupos de terracota de grande escala, preenchendo ô tímpano acima do pórtico. Veios para fazer a imagem de terracota de Júpiter, para o templo do Capitólio. Esta ima-
gem desapareceu, mas, como símbolo de Roma ainda mais famoso, a figura de bronze
da Loba que amamentou Rômulo e Remo ainda existe (fig. 223). Os dois meninos foram
Veios acrescentados no Renascimento e a história primitiva da estátua é obscura: alguns erudi-
Não obstante, conhecemos uma tentativa anterior e surpreendentemente audaciosa de tos suspeitam até que ela seja obra medieval. Não obstante, é quase com certeza um origi-
obter espaço para a escultura monumental no exterior do edifício. O chamado.Templo nal etrusco arcaico, porque a extraordinária ferocidade da expressão, o vigor físico latente
de Apolo, em Veios, a pouca distância ao norte de Roma, edifício do tipo comum em do corpo e das patas; possuem a mesma qualidade impressionante que sentimos no
tudo o mais, tinha quatro estátuas de terracota, em tamanho natural, no espigão (cu-me) Apolo de Veios. Em qualquer caso, a Loba, como emblema totêmico de Roma, está
do telhado, como se vê na reconstituição da figura 221. Formavam um grupo dramático, do unida por fortíssimos laços à mitologia etrusca, na qual as lobas parecem ter
gênero que poderíamos esperar na escultura grega dos tímpanos: a disputa entre desempenhado um papel importante desde tempos remotos.
Héracles e Apolo pela corça sagrada, na presença de outras divindades. A mais bem con-
O RETRATO E O TRABALHO DO METAL
servada dessas figuras, o Apolo (fig. 222, est. 19), é há muito reconhecida como a obra-
prima da escultura etrusca arcaica. O seu corpo maciço, completamente revelado sob os A preocupação dos etruscos com as efígies dos mortos poderia levar-nos a supor um
pregueados ornamentais da roupa; as pernas musculosas, de fortes tendões; a sua passada interesse precoce pelo retrato individual. Mas, na verdade, as feições das imagens funerá-
rápida e decidida - tudo isso revela uma força expressiva que não tem paralelo nas está- rias, como as das figuras 216 e 217, são inteiramente impessoais e foi apenas por volta
tuas gregas de pé realizadas na mesma época. de 300 a. C., sob a influência grega, que a semelhança individual começou a aparecer
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na escultura etrusca. As melhores peças não são retratos funerários, geralmente toscos
e mal acabados, mas as cabeças de estátuas de bronze. O Retrato de um Rapaz da figura
224 é uma verdadeira obra-prima do seu gênero. A firmeza do modelado confere uma
pungência especial à boca expressiva e aos doces e melancólicos olhos.
Não menos admirável é a excelente qualidade da fundição e do acabamento que con-
firmam a antiga fama dos etruscos como artífices magistrais do metal. A sua capacidade
neste campo já vinha de longe, pois a riqueza da Etrúria baseava-se na exploração das
jazidas de cobre e ferro. A partir do séc. VI a. C., produziram vastas quantidades de esta-
tuetas de bronze, espelhos e outros objetos semelhantes, tanto para exportação como para
consumo interno. O encanto destas pequenas peças está bem ilustrado pelo desenho cinze-
lado no reverso de um espelho, feito pouco depois de 400 a. C. (fig. 225). Uma ondulante
grinalda de videira envolve um ancião alado - o adivinho Calcas - debruçado atenta-
mente sobre um objeto arredondado. O desenho é de tão belo equilíbrio e de tão seguro
traçado que somos tentados a considerar a arte clássica grega como a fonte direta da sua
inspiração. Quanto ao estilo, talvez seja assim, mas o tema é especificamente etrusco, por-
que o gênio alado observa o fígado de um animal sacrificado.

223. Loba, c. 500 a. C. Bronze, alt. 0,85 m. Museus Capitolinos, Roma

224. Retrato de um Rapaz. Princípios do séc. Ili a. C.


Bronze, alt. 0,23 m. Museu Arqueológico de Florença 225. Costas de um espelho, e. 400 a. C.
Bronze, gravado, diâm. 0,152 m. Museus
do Vaticano, Roma
230 História da arte

A adivinhação
É a ilustração de uma prática tão corrente entre os etruscos como o culto dos mortos:
a consulta dos augúrios e a interpretação dos presságios. Os etruscos acreditavam que a
vontade dos deuses se manifestava através de sinais no mundo natural, como as trovoadas
ou o voo dos pássaros, e que os homens podiam interpretá-los para averiguar se os deuses
encaravam com favor ou aversão os seus empreendimentos. Os sacerdotes que conheciam
a linguagem secreta destes sinais gozavam de enorme prestígio; até os romanos tinham
o hábito de consultá-los antes de qualquer acontecimento importante, público ou particu-
lar. A adivinhação já vinha desde a antiga Mesopotâmia - também não era prática des-
conhecida na Grécia - mas os etruscos levaram-na mais longe que qualquer dos seus
predecessores. Confiavam especialmente nos fígados de animais sacrificados, nos quais
acreditavam que os deuses inscreviam a tão esperada mensagem divina. Na verdade, para
eles o fígado era uma espécie de microcosmo, dividido em seções que correspondiam, no
seu entender, às regiões do céu. Estas práticas, estranhas e irracionais como são, tornaram-se
não obstante parte da nossa herança cultural e persistem ainda hoje. É verdade que já
não tentamos adivinhar o futuro pelo voo das aves ou pelo exame dos fígados de animais,
mas a ''leitura'' de folhas de chá e os horóscopos têm ainda significado para muita gente,
e falamos de acontecimentos "auspiciosos", acontecimentos que indicam um futuro favo-
rável, sem a menor noção de que "auspicioso" tinha inicialmente a ver com o voo favorá-
226. Porta Augusta, Perúgia. Séc. II a. C.
vel das aves. Talvez não acreditemos verdadeiramente que o trevo de quatro folhas dá sorte
e um gato preto azar, mas ainda há um número surpreendente de pessoas supersticiosas.
ças, é uma autêntica fachada arquitetural. Um arco emoldurado de volta perfeita fecha
AS CIDADES o alto vão; acima fica uma balaustrada (de pilastras anãs, alternando com escudos redon-
dos, motivo manifestamente derivado dos tríglifos e métopas do friso dórico), que supor-
Segundo os escritores romanos, os etruscos foram mestres na engenharia arquitetôni- ta um segundo arco (atualmente entaipado), ladeado por duas pilastras maiores.
ca, no urbanismo e na topografia. Não há dúvida de que os romanos muito aprenderam
com eles, mas qual terá sido a contribuição etrusca para a arquitetura romana? Pouco O arco
ou nada ficou das edificações romanas primitivas nem das etruscas que as antecederam.
Os templos romanos conservaram traços etruscos, e o atrium, o pátio da casa romana Os arcos são verdadeiros, isto é, construídos de blocos talhados em cunha (as aduelas),
(fig. 247), também teve origem na Etrúria, que em matéria de planejamento e ordenação apontando para o centro da abertura semicircular. Um arco assim é forte e sustenta-se
urbanos pode reivindicar a primazia sobre a Grécia. A pátria originária dos etruscos, a por si próprio, em contraste com os falsos arcos compostos de camadas horizontais de
Toscana, era por demais acidentada para estimular projetos geométricos; mas quando co- blocos ou lajes de pedra ou de tijolos (como a abertura sobre o lintel da Porta dos Leões,
lonizaram as terras ao sul de Roma, no séc. VI a. C., traçaram as suas novas cidades se- em Micenas, figura 131). O arco autêntico e a sua extensão, a abóbada de berço, já tinham
gundo a rede viária que tinha por centro a interseção de duas ruas principais, o cardo sido descobertos no Egito, por volta de 2700 a. C., mas os egípcios utilizaram-nos sobretu-
(de norte para sul) e o decumanus (de leste para oeste). Os quatro blocos assim obtidos do nos túmulos subterrâneos e em edifícios de caráter utilitário (fig. 78), jamais nos tem-
podiam ser subdivididos ou ampliados conforme as necessidades. Esse sistema, adotado plos. Talvez o considerassem impróprio para a arquitetura monumental. Na Mesopotâmia,
pelos romanos nas cidades que viriam a fundar por toda a Itália, Europa Ocidental e nor- o arco verdadeiro foi usado nas portas das cidades (fig. 100, est. 10) e talvez em outros
te da África, pode muito bem ter derivado da planta dos acampamentos militares etrus- locais não temos maneira de sabê-lo, por não terem se conservado quaisquer indícios.
cos. Mas também parece refletir as crenças religiosas que levaram os etruscos a dividir Os gregos conheciam o processo desde o séc. V a. C., mas, tal como os egípcios, limitaram
o céu em regiões, de acordo com os pontos cardeais, e a erguer os seus templos segundo o emprego do arco verdadeiro aos edifícios subterrâneos e às portas simples, recusando-se
um eixo norte-sul. sempre a integrá-lo nas ordens arquitetônicas. E aqui reside a importância da Porta Au-
Os etruscos devem, igualmente, ter ensinado os romanos a construir fortificações, pontes, gusta: é o primeiro caso, tanto quanto sabemos, em que o arco aparece integrado no voca-
sistemas de drenagem e aquedutos, mas pouco resta desses grandes empreendimentos. O bulário das ordens gregas. Os romanos iriam desenvolver esta combinação de múltiplas
único monumento verdadeiramente notável que escapou ao tempo é a Porta Augusta, de maneiras, mas parece caber aos etruscos o mérito de terem-na inventado e de lhe terem
Perúgia, entrada fortificada do séc. II a. C. (fig. 226). Encaixada entre duas torres maci- dado respeitabilidade.

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