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niche: 305.800981 S195 Souza, OCS. ag identifcanes a P Alor iain de Brasil a3 8 TT URPE FCH i UFPE CFCH BIBLIOTECA SETOAIAL Octavio Souza | FANTASIA DE BRASIL As identificacées na busca da identidade nacional escuta 8 oats | Shai cto miner sampn | eat: Novem de 1904 Dados Internacionals de Catalogacio na Publicasso (CIP) { (Camara Brasileira do Livro, $, Brasil) {Sexo lobe) ibliogratis 1. Caractristicasnacionais ISBN. 85.7137-083.4 943635 ebp308.80098) Indices para catdlogo satemiticor $S$207,4 de Pe Ealitora Escuta La, | Ds, Homem de Mello, 351 054 iheenu oak ss 1 ax, Gdosolloa ot 6s OL 119 145 191 UFFE. CFCH BUBLiOTE x4 SETORIAL SUMARIO Introducéo 1 Identidade e afirmacio da diferenca, ILO que faz a diferenca diferente? UL Ultrapassando a analogia familiar: a fungao paterna IV, Cunhas e caraibas: © erotismo no paraiso terrestre V. A fantasia entre exotismo e racismo VI. A resposta exotica VIL 0 exotismo hoje Bibliografia Anexo: A identidade e a8 identificacdes INTRODUCAO A busca de identidade naci nal é uma constante na his! rig intelectual brasileira, E ver- dade que ha uma permanen- te mudanca de tom nessa busca, que poderfamos cha- mar de ingénua nos perfodos do neoclassicismo e do ro- mantismo literario, que se tomna cientificista ¢ ca naturalista do fi culo XIX, que retorna refle: va ou culturalista com os mi dornistas (Antropofa rio de Andrade, Verdeamare- lismo, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda nha teor revoluci progressista a pe da de 1950 ds Novo, CPC da UNE), e que, ainda hoje, embora sequer possa mais ser qualificada como busca, permanece como tema da critica sociol gica, antropolégica ou lite ria, tal como a encontramos em autores como Renato Ortiz, Roberto DaMatta, Flo- { | | } FANTASIA DE SRASIL ra Siissekind e Roberto Ventura, por exemplo, O presente trabalho situa-se como uma versio psicanalitica deste wl- timo momento. Em conseqiéncia disso, 0 corpus sobre 0 qual nos de- tivemos nao consistiu tanto de textos dos “autores de 6po- ca", que dao testemunho dos diversos modos pelos quais, se tentou resolver a questéo da identidade nacional, mas antes de criticag contempordneas, principalmente as lite- rérias, que procuram estabelecer um) arrazoado sobre a questao. A isso fomos conduzidos nao s6 por limites im- postos por nossa formacao pessoal, fundamentalmente psi canalitica, como também pela disposigao de travar um did- Jogo interdisciplinar com autores brasileiros que tomaramn, como n6s mesmos, a busca de identidade nacional muito mais como um sintoma das condigdes historicas em que 0 Brasil se viu na iminéncia de passar 4 condi¢ao de Estado nacional, do que como um projeto ao qual sentiam-se com- pelidos a adicionar seus esforcos pessoais, imaginativos ¢ teéricos. | A formagio psicanalitica impée ao analista uma pos- tura dita de “atencdo flutuante” em relacia ao que diz o analisando, Quando traduzida para o exame da cultura, tal postura pode dar mostras de certas estranhezas face a exi- gencia de rigor acadlémico. A maior delas, provavelmente, @a de se deter em topicos que, aparentemente, nao tém outra ordem de validade e de seriacao senio em, sido recolhidos ali onde foram encontrados. Desse modo, um certo ar de flanerie, por parte do autor, nio pode s evitado. Por isso, nao deve o rigor da exposicao ser proc’ rado na anélise sistematica dos marcos. historicos da bu: ca de identidade nacional, mas antes em wm ordenamento do material segundo a razao psicanalitica, pela qual se afir- ma que o vivido humano 7 partir de dois arti- ficios fundamentais: o significante e olobjeto. A partir da vertente do significantel privilegiou-se o con- ceite de identificacdo, vez que uma critica da nocao mes- ma de identidade se fazia necessiria. Com efeito, encober tos pelo termo “identidade" encontram-se diversos signifi- 14 INTRODUSAO cados com implicagdes conflitantes entre si. Assim, é pos- ssivel observar que iter Nessa medida, artis- is que, em um determinado momento, pu- s na conta de glérias nacionais - Olavo Bilac ou Rui Barbosa, por exemplo - logo a seguir foram néo ape- nas criticados como ultrapassados pelos novos tempos, 0 que seria até certo ponto inevitavel, mas também exclui- dos da categoria dos “genuinamente brasileiros”. £ claro, contudo, que a busca de identidade nao foi apenas orien- tada por tal intencdo exclusivista, muito pelo contrario. Tes- temunha também da necessidade de apropriacéo ou pro- ducdo de elementos simbélicos que servissem pata orien- tar o fazer coletivo de um pais que requeria reconhecimento e direito de cidadania junto ao universo das nacées. $40 encruzilhadas desse tipo que se procurou resolver com a distincfo entre identidade e identificacao, a qual dedicamos um estudo que, devido a seu cardter técnico, preferimos incluir como anexo, assim como o terceiro capitulo, no qual se desenvolveu 0 alcance da distincao para a andlise dos fendémenos sociais. i 0 primeiro e 0 segundo capitulos respondem pelo exa- me de uma questio que diz respeito tanto ao significante quanto ao objeto. Trata-se da questdo da diferenca que esta na base de qualquer requisicao de identidade: a identida- de € 0 que, em principio, nos diferencia dos outros. Como se ver, toda a discussio sobre a identidade nacional teve como uma de suas principais questdes o dilema entre a originalidade e a copia: como ser diferente dentro de um universo cultural formado pela importacao de canones es- trangeiros? io entanto, quando o que esta em jogo € o dese- Jo, @ diferenca que conta para o ser humano ¢ a heteroge- 8 FANTASIA DE BRASIL ueidade daquilo que poderia vir a ser um suposto refi te dos significantes, ou seja, 0 objeto. Portanto, uma renga que se apresenta primeiramente em termos sim 's pode refratar-se na busca de um objeto que encarne a iferenca em relacdo ao proprio simbélico. De maneira pa la, a busca de uma diferenca que pudesse servir de tre co identificatério para o Brasil muitas vezes transformou- na requisicio de que 6 Brasil encamasse a propria dife- renca, que fosse um pais mais diferente do que todos os itros diferentes paises, E 0 caminho que mais faciimente apresentou para tornar 0 Brasil um pais mais diferente lo que todas os outros diferentes paises foil o da repre- entacdo exdtica de sua diferenca, artilicio que permite a ‘ansformacao de tracos diferenciais em objetos de fantasia. Conseqiientemente, na vertente do objeto, prioridadl concedida ao conceito de fantasi cam-se significante, imagem e objet d Consiste na adequacao do significante 2 heterogeneidade do objeto pela via da mediacdo de uma imagem. E contw: do, em seu desenrolar fenoménico, 0 gar do significante pode ser reduzido, em iiltima insténcia, ao lugar de um es- ectador para o qual toda a cena fantasistica é desempe- nhada. O capitulo quatro mostra como, no caso do Brasil, © lugar do espectador foi ocupado pelo olhar com que o europeu descortinou a América quando de sua descober- Na fantasia enn ‘ta: uma visio do paraiso. Os capitulos cinco e seis se de- tém na cena fantasistica propriamente dita, em seus figu- tinos. O titulo Fantasia de Brasil enfatiza o quanto a busca de identidade nacional acabou por resultar na confeccao de uma fantasia cujo exotismo dificulta qualquer tentativa de nos apresentarmos em trajes civis, 'a, procurou-se fazer um balanco critica da tra- ico brasileira de busca de identidade nacional ¢ cos ris- cos per ela implicados, __ IDENTIDADEE AFIRMACAO DA DIFERENCA | © emprego do termo “identi- dade” em um trabalho orien- tado por wma visada psica- nalitica exige alguns comenté- rios. Sugere, a expressao, quando aplicada a seres hu: manos, uma idéia de unida- de e estabilidade que ¢ con- flitante com o descentramen- to que a descoberta do in- consciente introduz na cons- ciéncia de si. Quer considere- mos a identidade como um sentimento intimo de unida- de consigo mesmo, quer a consideremos coi Junto predicativo bbuido ao sujeito, ela é sempre | referida a contetdos disponi- veis para a consciéncia, impli- cando, portanto, wma relacdo | de desconhecimento e aliena- | Gio face ao inconsciente, de- terminante itltimo da vida psiquica de cada um, Deslocando-se a questéo do plano individual para o social, FANTASIA DE BRASIL as dificuldades permanecem, especialmier ta de identidade nacional, a qual, dentre ciais de identidade, é a formacao que mi argumentos que temos a aciantar. Na literatura que exa- minamos a respeito da identidade nacional brasileira, esta € quase sempre concebida na base da eleicio de uma sé rie de atributos que qualificam o que deve ser considera- do verdadeiramente nacional. No entanto, um at sempre atributo de um objeto percebido ou concebido, ser indo, portanto, para descrevé-lo ou para defini-lo. O1 ‘oda a tradicao brasileira de busca de identidade na demonstra, em seus textos fundamentais, um propésito muito mais amplo do que o de simplesmente descrever ou definir a nacéo. Sua ambicdo 6 a de suprir certas éncias que impediriam os brasilelros de ocuparem o.1u- gar de agentes da construgio de seu proprio destino na nal, reduzindo a posicio de dependéncia cultural externa m que se encontravam (ou ainda se encontram) acuadlo ra tanto, contudo, o projeto de desericao e de definica lo que seria a identidade nacional mostra-se, a um exame mais acurado, radicalmente insuficlente. A descricio e a definicdo de um grupo de sujeitos como um objeto - a na- cdo - dificilmente podem desempenhar, para 0s sujeitos que o constituem, o papel de referéncia para uma palavra ou para uma acio que se proponha a algo mais do que simplesmente reiterar tal objeto. E € claro que palavras ¢ acdes reiterativas estado longe de estar a altura do que é exigido para a construcio de um destino face as contin- géncias historicas que as nacées se veem obrigadas a en- frentar. Em contraponto aos atributos disponiveis para a cons- ciéncia que formam aqullo que se tem por hébite chamar de identidade, sea ea individual ou grupal a propée a consideracao quando se tra- IDENTIDADE E AFIRMAGAO DA DIFERENGA a cles conferidas por alguma instancia que Ihes é externa. Entretanto, abordar desde logo tais questées seria por de-" mais prematuro. A elas pretendemos chegar junto com-a anélise do campo que é nosso propésito examinar.! Entrementes, nossa op¢ao é a de acolher 0 uso quase ingénuo da nocio de identidade, esperando que 0 desen- volvimento dos nossos argumentos venha explicitar pres- supostos conceituais que facultem redimensionar aquilo que ¢, pelo costume, chamado de identidade.e que traz apenso a si um sentimento que é forte a ponto de lhe con- ferir valor de realidade. Em favor de tal op¢io, apelamos ainda para uma lei editada em 1512 pelo rei espankol Fernando, o Catélico, com validade para as colonias do Novo Mundo e cujo texto reza: “Nenhum indio deve ser chamado ‘cachorro’, a menos que seja este 0 seu nome”. Sendo assim, se toda a traducao refere-se a coisa pelo nome de “identidade nacional”, é assim que a vamos chamar. DIMENSOES DA IDENTIDADE Como propée Renato Ortiz em seu livro Cultura bra- sileira e identidade nacional . Assim, autores e concepcoes iversas e antag6nicas estariam de acordo quanto a pri- meira dimensio, a de que somos diferentes dos estrangei- ros. Ena hora da definic&o interna, quando se trata de di- zer 0 que ¢ o nacional, que as divergéncias surgem. texto puoicado 6 anaxo, “A identidade o as identficagSes", onde © tema étralado mais minuciosamerte, 2. Ct. artigo de fundo do numero especial Columbus special issue da revista Nowswoek, Fal/Weiter 1991, FANTASIA DE BRASIL Antes de abordar as dissensées relativas 4 dimensiio interna da identidade nacional, atenhamo-nos ao que pode ser dito quanto a necessidade de afirmagao face ao estran- geiro. Em sua Inonumental Formaedo da literatura brasi- leira, Antonio Caridido, logo de inicio, observa que a nos- sa literatura, em seu perfodo de formacio, é “uma litera- ‘tua empenhada” na construcio do Brasil enquanto nacio: ‘como a dos outros pa‘ses latino-america- vida nacional no seu raturas dos paises de ve~ ‘80 08 que prendem ne- do esplrito ao conjunto das produgdes: -ando um Tal observacdo permite pensar a dimensao externa da identidade nacional sob dois aspectos: embora a diferen- a entre a literatura brasileira e as dos paises de velha cul- tura possa ser considerada como resultante do acréscimo as caracteristicas da literatura de traducdo européia, do “compromisso com a vida nacional”, essa diferenca tam: ‘pém pode ser vista como tributéria da inexisténcia de um “conjunto das producdes culturais” que sirva de solo a i- teratura nacional. Isto porqu era o da tradicao européia, po outro lado é também ver- dade que, por alguma razo, sua relaco com este solo era problematica. Tal dilema pode ser nitidamente apreendi do nas palavras de Goncalves Magalhies, em seu “Discur- 80 sobre a historia da literatura no Brasil”, de 1836: Falem por nés os viajores, que por astrangeiros nao os tachardo de suspeitos. |... 6 coragio do Brasilaira, nao tendo por ora muito do que se ensoberbega quanto as produgdes das humana: ‘que 86 com 0 tempo Se acumulam, enche-se de prazer, © satisfagao, lendo as brilhantes paginas de Langsdorff, Neuwied, Spix fet Martius, SaintHilaire, Debret, @ de tantos viajores que revelam a Europa as belezas da nossa pétria, (apud Ventura, 1991: 34) 20 Ope . IDENTIDADE E AFIRMAQAO DA DIFERENGA Além do aspecto do culto “is belezas da nossa patria”, que fot a primeira solucdo. adotada para dar contetdo & nossa identidade ~ sua dimensio interna, como diria Re nato Ortiz -, 0 que cabe realcar é 0 queixume quanto & falta de um conjunto de produces culturais, “as produ- Ges das humanas fadigas”, com que se ensoberbecer e se diferenciar da Europa. Pode parecer natural wma tal con- fisséo de caréncia, principalmente porque, é claro, a Am rica nao era a Europa e néo tinha tido tempo para acumu- lar as produces humanas que formam uma cultura eru- dita. No entanto, sua populacio culta era de tradi ropéia, e embora nos tenhamos habituado a considerar evi- dentes as razdes que despertaram a yontade de estabele- cer um corte com a referida tradicdo, parece oportuno in- terrogar as circunsténcias que impediram os brasileiros de simplesmente se considerarem como descendentes | * mos da tradi¢dio européia, tomando-a com naturalidade para si. E claro que o estatuto colonial, 0 desejo de autons mia e a necessidade de afirmacio de um Estado emerge: te sio explicacdes bastante fortes para dar conta de tais circunstancias. Contudo, vale a pena notar que, no século XIX, quando se firmou a controvérsia sobre a autonomia da literatura brasileira em relacdo & portuguesa, varias fo: ram as trocas de argumentos relativas a quais aspectos da tradi¢do européia deveriamos conservar ou rejeitar, na bus- ca de identidade. Um Varnhagen, por exemplo, defensor da autonomia de nossa literatura, mantinha a exigéncia de que preser- véssemos 05 cfnones estéticos curopeus: A Amética, nos seus diferentes estados, deve ter uma pc principalmente no descritvo, sé filha da contemplago de uma natu- reza nova e virgem; mas enganarse-ia o que julgasse que para ser poeta original havia que retroceder ao abe da arte, em vez de adotar @ possulr-<3 bem dos preceites de belo, que dos antigas recebeu a Europa. (apud Coutinho, 1968: 14) FANTASIA DE BRASIL Acrescenta ainda Varnhagen, como lembra Afranio Coutinho em A Tradieao afortunada, julgar incorreto.que. para “produzir efeito e ostentar patriotism”, se exaitas sem “as agdes de uma caterva de canibais, que vinha as- saltar uma colénia de nossos antepassados so para os de- vorar”. (apud Coutinho, A., 1968: 14) Ja Almeida Garret, defensor da unidade das duas lite- raturas, tem, paradoxalmente, uma idéia totalmente opos- ta do papel da cultura européia, que toma como fator de inibicdo da criatividade bras E agora comega a Iiteratura portuguesa a avular ¢ enriqueder-se ‘com as produgées dos engenhos brasi ssa @ novas cenas da nat a seus poetas mais originalidade, mais diferentes imagens, expres- 6e8 € estilo, do que neles aparece: a educago ouropéia apagou-lnes © espirito nacional: parece que recelam de se mostrar ameticanos, © Jal Ihes vem uma afetaggo e Impropriedade que da quebra em suas melhores qualidades. (apud Coutinho, 1968: 20) Goncalves Magalhies, defensor ferrenho da autonomia, considera brasileira toda a producéo literdria desde o des cobrimento. Contudo, nao considera, sempre segundo Afré- nio Coutinho, detentora de cardter estritamente diferencia- do do carter portugués toda a literatura anterior ao ro- mantismo. E este juizo, tal como a propria estética roman- tica a que ambos os literatos se filiam, aproxima Goncal- ves Magalhaes de Almeida Garret na avaliacao de nossos poetas arcades, sobre os quais pesaria o demérito de ha- verem imitado as formas européias de fazer arte. AMERICA: UMA UTOPIA EUROPEIA A questo da cépia de moldes estrangeiros @ tema re- corrente em nossa ctual, que comentaremos posteriormente: por ora, interessa notar que, fossem quais fossem as justificativas para a imperiosidade da afirma- 22 IDENTIDADE E AFIRMAGAO DA DIFERENGA ¢&o de nossa diferenca em relagdo Europa e de nossa autonomia face aos portugueses, isto nao impede que An- tonio Candido se refira a nossa atitude psicologica, na mencionada controvérsia, dizendo que “agiamos, em rela- ‘cdo a Portugal, como esses adolescentes mal seguros, que negam a divida aos pais e chegam a mudar de sobreno- me". (Candido, 1981a: 28) Se quisermos compreender 0 que leva um adolescen- te a sentir-se mal seguro ao ponto de negar a divida para com os pais, chegando mesmo a mudar de sobrenome, um exame da situacéo familiar faz-se necessario. Seré o filo mal seguro por se recusar a arcar com 0 peso da divida paterna? Tera o pai sobrecarregado tanto esta divida, que seu pagamento se torna impossivel? Sera a prépria’ mu- danga de sobrenome uma forma de pagamento da divida paterna? Afinal de contas, ao mudar de sobrenome, o fi- tho pode estar apenas acertando as contas do desconfor- to do pai para com sua propria ascendéncia. No artigo “Literatura de fundacéo”, Octavio Paz ace- na com um inicio de resposta 4 questo, dizendo que “uma literatura nasce sempre frente a uma realidade histérica ¢, freqitentemente, contra essa realidade” (Paz, 1990: 126). A particularidade da literatura hispano-americana (pode- riamos estender esta particularidade a toda a literatura la- tino-americana) é a de que “a realidade contra a qual se levanta é uma utopia” (Paz, O.: 1990, 126). A utopia é 0 desejo do europeu, nosso “descobridor”, em relacao a sig- nificacdio do nosso futuro - nosso futuro que é, no caso, tanto 0 nosso quanto o deles mesmos. 0 fato a ser ressal- tado é que, como todo mundo, os europeus também nao desejavam a seus descendentes - os americanos, nos, bra- sileiros - o seu préprio destino. E essa constatacéio. que embarga qualquer perspectiva de compreensio da coloni zacio como tentativa de repetictio do mesmo, colocando- nos de sobreaviso quanto a uma interpretacao ingénua de nossa teadi¢do de insisténcia na afirmacéo da diferenca. Comparando nossa situacdo identificataria com a dos europeus, Octavio Paz observa: 23 FANTASIA DE BASIL ‘Antes de ter existéneia historica prépria, comegamos por ser uma idéia européia. [..] Europa 6 0 fruto, de certo modo involuntario, da hist6rla européia, enquanto nds somos sua crlagéio premeditada. Du- rante muitos séculgs os europeus ignoraram que eram europeus © 86 ‘quando a Europa tornou-se uma realidade histérica que saltava aos alhos, deram-se conta de que pertenciam a algo mais vasto do que sua cidade natal. E ainda hoje néo & multo certo que os europeus sin- + tam-se europeus: sabem disso, mas sabé-lo é algo muito diferente de sentilo, Na Europa a realidade precedeu o nome. América, pelo Ccontrério, comegou por ser uma ideia, Vitéria do nominalismo: o nome engendrou a realidad, [..] O nome que nos deram nos condenou a ser um mundo novo. Terra de eleigao do futuro: antes de ser, 3 Amé- rica ja sabia como iria ser. Mal se transplantou para nossas terras 0 emigrants europeu ja perdia sua realidade histérica: deixava de ter pas: sado e convertia-se num projétil do futuro. ...] Um ser que nao tem passado, que nao tam mais do que futuro, um ser de pauca realida- de. Americanos: hamens de pouca realidade, homens de pouce peso. Nosso nome nos condenava a ser o projeto histérico de uma consoién- ia alhela: a européia. (Paz, 1980: 127) A situacdo familiar do adolescente mal seguro parece ficar melhor delineada quando nos damos conta de que a miudanca de sobrenome nao esta em total desacordo com 0 mandato paterno, na medida em que o pedido eurepeu de que realizassemos sua utopia tinha por conseqiténcia o estabelecimento da América enquanto corte em relacéo a tradicéo. Dai a inseguranca do homem americano: “ho- mens de pouca realidade, homens de pouco peso”. Enfati- zar este aspecto do projeto europen para as coldnias do Novo Mundo permite proceder a uma importante subver s&o no modo de conceber a questio da relacéio dos ameri- canos com a tradicio ocidental. Ao receber em Fstocolmo 0 Prémio Nobel de Literatu- ra, Gabriel Gareia Marquez profere A do “A solidio da América Latina”. Dirigindo: peus, denuncia: a visio que a Europa tem da América con- tribui para aumentar 0 estado de solidao em que nos en- contramos, Depois de tracar um quadro assustador da si- tuacio politica e social do nosso continente, que qualifica como “uma realidade descomu 24 IDENTIDADE E AFIRMAGAO DA DIFERENGA Postas © mendigos, misicos ¢ profetas, queteiros e malabaris- tes, todas as crituras daquela realidade desaforada tivemos gue pe- dir muito pouco a imaginagéo, porque 2 desatio maior para nds fol a insufleiéneia de recursos convencionais para fazer com que nossa vida fosse acreditavel. Este 6, amigos, o né de nossa solidao. (Garcia Marquez, fotocdpia) A reclamagio quanto & “insuficiéncia dos recursos con- vencionais” faz eco a constataciio de Gancalves Magalhaes mas, em vez do apelo roméntico A imaginacao para can: tar a beleza da patria ou outra particularidade qualquer que nos confira originalidade, Garci mos tido “que pedir muito pouco a imaginacio”. f claro que a época ¢ outra, e a posigao é a de critica do emocen- twismo europeu. Passa, entao, Garcia Marquez a fazer con- sidleragdes sobre a interpretagao européia da nossa reali- dade, reclamando, prineipalmente, que “insistam em m dir-nos com a mesma vara com que medem a si mesmos (Garefa Marquez, fotocdpia). Alega que “a interpretagao da nossa realidade com esquemas alheios s6 contribui para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitarios” (Garcia Marquez, fotoc6- pia). F, lembrando todas as agruras e barbaries que as cul- turas européias tiveram de enfrentar antes de adquirirem, sua identidade atual, completa seu argumento convidai do a Europa a comparar-nos néio com seu veneravel pi sente, mas com seu proprio pasado. Esquecemse, diz ele, “que a busca de identidade propria é tao ardua e sangrenta para nés como foi para eles”. (Garcia Marquez, fotocopia) Jé tinhamos visto que, para Octavio Paz, as modalida- des de aquisicéo de identidade para a Europa e para a América apresentavam caracteristicas absolutamente dis- pares, tornando-se impossivel, na sua 6tica, a comparaciio do presente de uma com 0 passado da outra. Mas a diver- géncia entre as anélises dos dois autores nio se esgota n te simples aspecto, Embora Garcia Marquez coincida com Octavio Paz na afirmagao de ser nossa literatura uma lite- 25 FANTASIA DE BRASIL ratura de combate contra a realidade colonial, as avalia- Ges de ambos os autores sobre esta realidade divergem num topico que para nés é essencial. Enquanto Garcia Marquez permanece na concepcao, partithada pelo senso comum, da colonizagao como esforco de uniformizacéo, Octavio Paz revela a face, em geral oculta, do mandato uté- pico, insinuando, ao contrario de Garcia Marquez, que nos- sa solidéo comeca justamente com a recusa dos europeus em “medir-nos com a mesma vara com que medem a si mesmos". ‘A dentncia de uma vontade européia homogeneizan- te tornou-se 0 mote de que se lanca mao sempre que se quer afirmar uma identidade terceiro-mundista. Assim, a acio da Europa, ou do Primeiro Mundo, é sempre tomada como um empenho em acentuar as semelhancas e elidir as diferencas. Um tal modo de encarar a situacao dos pai- ses de origem colonial gera uma série de impasses ¢ de erros de avaliagdo, que impelem adogao de estratégias culturais marcadas pela rigidez. Delas, a mais generaliza- da é a de estar sempre cata da diferenca que confere originalidade, reduzindo as possibilidades enunciativas, se necessario for, a um discurso de minorias. A situacao se agrava quando nos lembramos de que, na atualidade, a demincia do etocentrismo tornow-se pa. lavra de ordem corrente no culto do relativismo cultural. No entanto, parece ter chegado 0 momento de no mais nos restringirmos 4 critica do etnocentrismo, mas de estendé-la aos fatores que condicionaram o surpreendente sucesso dessa mesma critica: ninguém mais é etnocéntrico! £ acssa tarefa que parece dedicar-se Otavio Velho, no artigo “Relativizando 0 relativismo”, em que afirma que 0 momento atual é 0 de-criticar a tendéncia que se mostra com 0 fato de a “critica & ma: transformar-se no elogio anac neralizado’ tuadas tanto por psicanalistas como Heinz Kohut, quanto por historiadores como Christopher Lasch e Richard Sennett, Otavio Velho considera as conseqiiéncias, para a 28 IDENTIDADE E AFIRMAGAO DA DIFERENGA tradicao relativista da antropologia, da mudanca da men- talidade do homem pos-moderno. De seu ponto de vista, estariamos diante do esgotamento dos conjuntos de ren as e ideais que conferiam aos individuos, no s6 identi- dade, como uma dimensio de projeto a suas existéncias. Nestas condiedes, a busca de identidade passa a s pelo apego a diferencas quaisquer, a “estilos de vida" que nao passam de formaces reativas ante a massificacao do homem contemporaneo. A “tendéncia a ontologizar e hi- postasiar a diferenca", que se encontra nos discursos su- postamente criticos da moderna massificacao, no fundo, 86 faria reforei-la a0 promover “diferencas” totalmente desprovidas de valor essencial para os proprios agentes sociais que as suportam: Todas essas (e outras) observacées apontam para a idéia de uma “eacassez" de valores, convicgdes e compromissos. O discurso do re- lativismo estaria batendo num homem de palha e até, na medida em ‘gue constitui uma luz forte que obscurece 0 antotno, compondo 0 qua- ro dominante ¢ oferecendo-ihe um elogio, (Velho, 1981: 123) Argumentar-se-4 que, no decorrer da presente argu: mentacdo, um desvio ocorreu quanto a seu ponto de inci- déndia. £ claro que a critica de Otivi6 Velho, dirigida a uma conjuntura que podemos chamar de “pés-moderna”, nao se refere ao quadro que até aqui vinhamos tomando como referéncia principal, o da insisténcia na afirmacéo da di- ferenca face ao estrangeiro de que da testemunho a histo- ria de nossa intelectualidade. Acreditamos mesmo que o autor nao concorde, talvez, com que seus argumentos se- Jam estendidos a critica da luta pela auto-afirmacdo dos paises de origem colonial. Mas tal critica no é 0 nosso objetivo. Estamos cientes de que uma coisa sio os “esti- los de vida” adotados por individuos enfastiados numa sociedade que recusa dimensao publica a suas acdes, ou- tra é a luta pela aquisicdo de identidade politica ¢ cultu- ral em paises empurrados para umia posicdo periférica por nagées imperialistas. FANTASIA DE BRASIL No entanto, trabalhos como este de Otavio Velho, de critica de uma tendéncia contemporanea a construcéo de identidades na base de “diferencas" cujo tmnico val de serem, justamente, diferentes, chamam a atencio para um aspecto relacionado busca de identidade que trans- borda os critérios puramente formais de internalidade e extemalidade com que vinhamos traballando. Tal aspec- to 60 do valor de tradigiio que se transmit, ou que é somenie com a sociedade de massas que se torna gritante o vazio de valores que pode estar encoberto pelo esforco de afirmacao de identidade pela via da insisténcia inggdmneesOTAAGMERen amber pode ser verdade que smo procedimento, levado a efeito em outra: Jf trouxesse em si o germe dos mesmos riscos. Essa, t vez, nia das raizes de nossa atual anomia - situ leva tantos autores a afirmarem que o Brasil estar triste vanguarda do mundo, tendo ingressado diretamen- té na pos-modérnidade sem conhecer as vantagens da mo- dernidade, sempre que se quiser compreender pos-moder- nidade como a corrosio do tecido social em conseatiéncia da auséncia de ideais sociais. Nada mais caracteristico de uma moral pos-moderna, neste sentido, que a “lei de Gér- son”, que pauta tio nefastamente, para muitos, as opcdes que 0s brasileiros se véem compelidos a adotar diante da anomia de que padece nossa sociedade. Que tal lei tenha sido assim batizada, s6 temos a lamentar: 0 grande cra- que merecia da posteridade uma lembran¢a mais digna. A IDENTIDADE NO DESENRAIZAMENTO Retomando 0 percurso até aqui trilhado, percebemos que o esforco brasileiro de construir sua identidade pela afmacio da diferenca diante do europeu é marcado por um paradoxo, Se, no plano manifesto, a mudanca.de s0- brenome a que sé refere Antonio Candido aparece como 28 IDENTIDADE E AFIAMAGAO DA DIFERENGA iniciativa de um adolescente, mal seguro, que nega a divida para com os pais, no nivel Jatente en: contramos a divida paga, vez que a mudanca de sobreno- me revela-se a consecucao do mandato do desejo paterno que exige em terras americanas a realizagiio de sua uto- Neste paradoxo, uma estranha relacao com a tradi- cao ¢ estabelecida, pois é como se a propria tradicao im- pusesse, a partir de um determinado momento, sua nega- co. Assim, torna-se possivel que alguém, na estrita linha- gem da tradicao, veja-se subitamente dela excluido, e, 0 que é ainda mais dificil, que se veja na obrigacao de in- ventar uma outra tradicao para si. A situacao complica-se ainda mais se pensarmos que tanto mais esse alguém se aplique ao esforco de separacdo, maior sera o seu grau de fidelidade a tradicao de que tenta se afastar. Mas, a essa altura, conferir 0 nome de “tradicao” a tais mandatos ir- reconheciveis torna-se um contra-senso semAntico: que tra- icdo pode ser esta que recusa ao sujeito qualquer traco iden- ‘ificat6rio no interior de seu proprio universo simbolico? Um dos melhores exemplos do nivel de contradicao que uma tal conjuntura pode produzir é 0 sentimento ge neralizado que temos, brasileiros, latino-americanos em geral, de sermos um povo colonizado. 0 caso dos paises andinos e do México, por forca de sua formacio étuica, talvez possa ser considerado menos paradoxal. Mas, no que se refere ao Brasil, é surpreendente que pessoas que des- cendem fundamentalmente de colonizadores ou de co nos emigrados, cuja situacéo sécio-econémica e cultural tributaria desta origem, possam tao facilmente exprimir 0 sentimento de se sentirem oprimidos por uma empresa de colonizacio estrangeira, da qual, na realidade, sao muito mais representantes do que vitimas. E necessario lembrar, de inicio, que a colonizacéo do Brasil, em sua esséncia, com a ressalva do esforco jesuta, teve muito mais o cardter de uma colonizacdo territorial do que o de uma colonizacio de culturas nativas. Os inclios foram antes exterminados, expulsos ou assimilados do que propriamente colonizados. Também, no que diz respeito Ey FANTASIA DE BRASIL aos africanos, a violéncia foi muito maior do que a que esté em jogo na imposicdo de uma cultura alheia: foram aprisionados, retirados a forca do lugar em que haviam vivido seus antepassados ¢ escravizados. Trata-los como colonizados é, além de uma tentativa de adocar a pilula, perder de vista a particularidade da situacdo: toda a luta dos negros brasileiros para revitalizar suas tradicGes afri- canas nao tem como origem a revolta contra a coloniza- io, mas contra a escravidio. ‘No entanto, é uso do brasileiro declarar que “todos te- ‘mos um pé na Africa” ou que “todos temos sangue de in- dio”, derivando desta singela confissio 0 sentimento de fazer parte de um povo colonizado. O carater deslocado deste sentimento nao passou desapercebido a Contardo Calligaris, em seu Hello Brasil! - Notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil Conversando, treqientemente enconti adores, e uma repartigao nao ais) 1as vezas tive que lembrar a evidéncia de que aqui, salvo os raros indios, néo ha colonizados. Mas parece existir uma paixéo de se Cconceber © apresentar como um colonizado, (Calligaris, 1991: 163-164) Fica evidente com isso tudo a existéncia de um hiato na tradicao ewropéia que faz com que seus descendentes, uma vez em solo americano, E na intenc&o de desfazer os equivocos desta situacéo que Octavio Paz da prosseguimento a sua analise das pe culiaridades identificatérias do homem americano, ainda no artigo “Literatura de fundacdo”. Toma o final do sé- 30 |DENTIDADE E AFIAMAGAG DA DIFERENGA culo XIX como 9 momento em que a literatura hispano- americana encontra sua identidade propria, rompendo com 0 modelo peninsular. No entanto, afirma que esta ruptura nfo se deu pela troca da tendéncia a copia de modelos ibé- ricos pela maior conscientizacdo de uma realidade ameri- cana qualquer: Mas néio voltam os seus olhos em dirego & sua terra @ sim em iregao a Paris. Partem em busca do presente. Os primeiros escrito res hispano-americanos que tiveram consciéncia de si mesmos e de ‘sua singuiaridade histérica formaram uma goragao de desterrados. (... Literatura de evasdo ©, portanto, tentativa de fusao com a vida mo- dema, esforgo de recuperagdo do presente. Queriam estar “ao cor rente", estar dentro da corrente universal. (Paz, 1990: 128) Dizer que partiram em busca do presente, e nao em busca de sua terra, é dizer que a troca nao se fez entre uma tradicao européia e uma outra que fosse americana: ‘© que houve foi a busca de uma reatualizacéo com a pro- pria tradicao européia, que, nesse entretempo, tinha-se transformado e ja ndo era mais representada pelo neoclassicismo ibérico, mas pela modemidade que encon- trava em Paris sua expresséo maxima. Além disso, pode- mos perceber que a idéia de Octavio Paz é a de que a iden tidade americana s6 se tornou possivel quando o desen: raizamento original do homem americano em relagéo a tra- digo européia - sua condigdo utépica - foi “negado", no sentido dialético de negacao, por sua repeticéo, por um outro desenraizamento, desta vez em relacao a0 proprio solo americano: (© desenraizamento da literatura hispano-americana néo act dental. E conseqiéncia de nossa historia: termos sido fundados como uma idéia da Europa. Ao assumi-lo plenamente, o superamos. (Paz, 1990: 129) Deriva dai ainda uma outra conseqiiéncia de impor- tancia para nossas-consideracées sobre a necessidade de afirmar a diferenca ante 0 europeu. A identidade que as- sim se procura nao sera obtida, aos olhos de Octavio Paz, a FANTASIA DE BRASIL pela afirmacao de uma particularidade nativa, ou de algu: ma “raiz” cultural especifica. A possibilidade de adquirir uma identidade que represente 0 homem am: to ao universal da modernidade nao esti na at sua particularidade: nosso movimento nao deve ser 0 que eva do particular ao universal, mas sim 0 inverso: ‘Quando Rubén Dario escreve Cantos de vida y esperanza nao & um eseritor americana que descobre o espirite modémo: 6 um esplrt to modemo que descobre a realidade hispano-americana, Isto nos dis tingue dos espanhdis. Machado acreditava que sé seria universal uma ‘obra que fosse antes profundamente espanhola: Juan Ramén Jiménez ‘chamava-se a si mesmo de “o andaluz universal’. © movimento da Ieratura hispano-americana so desdobra em um sentido inverse: pen samos que 4 literatura argentina nao é universal, mas em compensa ‘¢ao acroditamos que algumas obras da literatura universal s4o argen- tinas. (Paz, 1990: 129-130) Embora tenhamos dado crédito a posstbilidade de ex: tensdo das afirmacdes de Octavio Paz, para 0 caso do Bra- sil, aqui se faz necessario um reparo. A aplicabilidade de tals afirmacées do caso brasileiro talvez se restrinja & mensio de proposta estratégica que elas implicam. Na dade, a atitude tradicional de busca de identidade bras: letra, como se ter a oportunidade de expor adiante mais detalhadamente, é sobretudo a de apostar na obtencdo de universalidade através da afirmagio do particular, Desta atitude, o modernismo brasileiro é, talvez, 0 exemplo mais forte, cabendo a Machado de Assis o lugar da excecao que confirma a regra?* a diferanga ob- vale lombrar, no que ¢8 refer &iteratura brasil {qua "oma uma real fa passa que 0 segundo denolaria a tandéncia contra da “pa dds temas’, tratando "ae grandes alludes de que se nutri a ‘como “proprias de uma Wadia brasil” (cl, Candido, 1981: 21). Ao contrério to que pode parecer, devide & nuanga co racocini, a doservacé® do autor leva & ‘Ttorpretar romaniismo como momento Inaugural da radigdo brasileira do busca 32 IDENTIDADE & AFIAMAGAO DA DIFERENGA A proposta de evitar a armadilha que existiria por tré da disposicio de afirmar a identidade amerleana num mo. vimento que iria do particular ao tmiversal nao implica, de modo algum, o abandono da afirmacio da originalida- de do homem americano, Nao se trata de europeizar a pro- ducao cultural americana. Trata-se, isto sim, de introdu- ir mediacées que o proprio desejo europeu, expresso em seu mandato utépico, nao tinha condi¢ées de formular. Se uum desejo se exprime por mandatos, as condicdes de seu préprio fechamento estio lancadas. O caminho, propos por Octavio Paz, de superacio dialética da situacdio utopi do se esgota no seu segundo momento, aquele que mamos de negacio - via desenraizamento da terra ~ do de- nraizamento original sofrido em relacao a tradicao eu- ‘ceiro momento de redescoberta da América ymo retorno do escritor a terra. Com isto, os ',€ a r€descoberta ¢ postulada como invencio. Nao mais invencao européia, mas nossa invencao: (Paz, 1990: 130-131) ‘ nap EuContramo-nos, pois, no tempo do texto de Octavio Paz, com a americanidade fundada. A dificuldade esta em to universal através do parculr, ao passo que localizamos a porspectva iar, FANTASIA DE BRASIL que todo nosso percurso sera centrado nos p contrados na historia desta busea de fundacao. Octavio Paz foi invocado, num primeiro moment melhor entender-se a constelacdo familiar que teria presi- dido a troca de sobrenome levada a efeito pt literarios brasileiros, procurando assim caracteriza lidade do hiato entre a tradicao européia e a brasileira. Num segundo momento, a intengao foi a de sublinhar as mediacoes propostas por Octavio Paz para a afirmacio de uma identidade americana. Ficou claro que a simples afir- macio da diferenca, a partir de uma originalidade qual- quer, reserva um numero incontornavel de contradicées. E verdade que o movimento por ele indicado, a nosso magistral, pode sofrer as mais variadas criticas, mas cer- tamente 0 ntimero de reversées dialéticas proposto per- mite perceber que a questio da identidade nacional néo pode ser resolvida com uma simples mudanca de sobre- nome motivada pela supervalorizacdo de uma diferenca que venha a ser tomada como bandeira. Além disso tudo, € 0 que &, talvez, mais importante é que a equacao pro- posta por Octavio Paz permite deslocar “a consciéncia, ou a intencdo, de estar fazendo um pouco da nacio ao fazer literatura", que Antonio Candido diz ser caracteristica da producio literaria latino-americana, para uma perspectiva em que 0 que é valorizado é a invenc&o em continuidade com uma tradicdo que nos liga, mais do que dela nos se- para, a historia do Ocidente. A posigo de Octavio Paz em relacdo a esta questio fica evidente na resposta que da a pergunta que Ihe é feita sobre 0 que pode fazer por seu pais um escritor mexicano: “Nao creio que os escritores tenham deveres especificos para com seu pais. Tém para com a lingua - e para com a sua consciéncia” (Paz, 1989: 385) ‘A motivacdo de fazer “um pouco da nacéo", que tan- to marcou o fazer literdrio na América Latina, equivale a um pedido de ingresso numa tradi¢ao na qual ja se esta inserido, IL O QUE FAZ A DIFERENCA DIFERENTE? Uma mudanea de sobrenome, quer implique a recusa da di- vida paterna, quer se revele tentativa de pagé-la na obe- diéncia a um mandato, ndo se faz. sem custos. O menor cus- to € 0 da obrigatoriedade de sua reiteragao diante daque- Jes que ainda nao esti cien- tes ou totalmente convenci- dos cla mudanca. f 0 caso da insisténcia de nossa literatu- ra pa afirmacdo de sua dife- renga - s0 que aqui, talvez, aqueles a quem se trata de convencer nao sao tanto os outros, quanto nés mesmos. Isso ja foi frisado. No entan- to, o maior custo desta insis- téncia, para o qual chama a atencio Antonio Candido, fot © comprometimento da di- mensio estética da imagina- cio, daquilo mesmo que con- fere valor universal a obra de arte. Por forca da necessida- de pragmitica de afirmacdo (ee ee FANTASIA DE SRASIL do nacional, a universalidade da obra teria sido sacrificada em prol de uma fixacao-no pitoresco e no material bruto davexperiéncia. Como nao ha literatura sem fuga ao real, ¢ tentativas de jandé-lo pola imaginagao, os esertores se s hides no vo, prejudicados no exercicio da pelo peso do jento de misséo que acarretava a obrigagai de descrever lade imediata, ou exprimir determinados sentimentos de alcan- Na trilha de Antonio Candido, diversos criticos contem- pordneos reavaliam a questio da perda de expresso ima- ginativa em nossa literatura. Em Tal Brasil, qual romance?, Flora Siissekind analisa extensamente a questdo da adocao, quase unanime, de uma estética “naturalista” pela literatu- ra brasileira, Tal tendéncia seria observavel, segundo a au- tora, em momentos tao diversos quanto a virada do secu- Jo, a década de 1930 e os anos 70. Os modelos, é verdade, variam conforme as préticas discursivas que, a cada ¢po- ca, S40 tomadas como encarnages do critério de verdade: © cientificismo para a literatura propriamente ni da virada do século, a economia € as ciéncias sociais para ‘0s romances “ciclicos” da década de 1930 ¢ o jornalismo para os romances-reportagem dos anos 70. No entanto, a intengdo é sempre a mesma Normalmente, procura-se um: parega acredi ra que, nao f le exterminar quaisquor diividas, digam elas respeito (© QUEFAZ A DIFERENCA DIFERENTE? A autora nao se limita a afirmar que o Brasil seria um caso particular onde a aquisicao de lade, realizavel em outros paises, se toma impossivel por conta de peculia- ridades histéricas. Sua critica ¢ muito mais radical. Ataca a propria idéia de identidade enquanto empresa produto- ra de continuidades, semelhancas e simetrias, ali mesmo onde o encontro de rupturas, diferencas ¢ dissimetrias tra- ria inguietacao e angistia. A criacdo literdria, em sua mensdo eminentemente ficcional, esta vinculada a estas Umas: emprestarlhe a tarefa de produzir identidades é re- tirarthe o proprio ar de que vive. O DIFERENTE E A DIFERENCA © caso do Brasil seria, entdo, aquele no qual a busca de identidade, ao se tomar uma obsesso, compromete em grande parte o fazer literario, tornando-o conservador, preo- cupado com a reedicéio do mesmo, com o “descobrimento" de um Brasil homogéneo, distanciado do reconhecimento das diferencas que The permitiriam produzir outras dife- rengas ainda, imico procedimento que poderia dotar nossa literatura do traco diferencial que tanto buscava. Este é 0 paradoxo: @ literatura brasileira, ao procurar a diferenca através da descricao reiterada de um pais diferente dos ou- tros, mas homogeneo no seu todo, acaba por se distinguir da literatura ocidental de um modo inesperado - pela au- séncia da dimensao ficcional em seus romances, pela inca- pacidade de produzir di © que faz a diferenca do diferente? Seu contetido ou 0 dprio ato de criagdo? Na resposta dada a esta questao, a ‘atura brasileira cau numa esparrela: ao querer ser di- ferente, esqueceu-se da diferenca, que nao pode ser retr tada, mas somente produzida com o recurso da fic bre a diferenca entre o diferente e a diferenca, ensina Deleuze, de quem Flora Siissekind toma 0 principal de sua argumentagao: FANTASIA DE ERASIL. A diferenga “entre” du minagées correspondentes, 8 80 clstingue do outra cdise, imaginemos algo que se distingue ~ 2, n® entanto, aquilo do qud ele se distingue, nao se distingue dele. .gfo, mas deve puxé-lo io que nao se cistingue. as do erro de escolha entre o di- ferente e a diferenca, ido Flora Stissekind, se mostra no drama em que se encpntrou, e que em grande parte ain- da se encontra, a inteliggncia brasileira quando se trata de tomar posicao em relaggo aos produtos culturais que vém de fora: Por um lado, a simetria p a repeticao so as regras do jogo. Dal, a porsisténcia de uma estétida naturalista na fiogéio brasileira. Por ou: tro lado, podem em dados ‘to. Nada mais condenével, estritamente naturalista, do que ira. De um lado, hé a exigén- de outro, a obrigagao de lugar. Pede-se a repetl- Tepudia-se a repeligao ranho jogo onde ndo se fundamenta-se ele mes- Nao se parece perceber & , um bastardo cujo pai, estrangelro € no the deixou outra heranca além de levas eventuais de ros das procedéncias mais diversas. (Silsseki 1984: 38-39) Reencontramos aqui a questio, referida no capitulo ‘anterior, das dimens6es externa ¢ interna da busca de iden: tidade, indicadas por Renato Ortiz. Ao se rejeitar qualquer proximidade com o que vem de fora, 0 unico caminho que resta é “a repeticao ficcional do que se cré que seja 0 pais”. Mostra-se, assim, 0 paradoxo implicado pelo proprio pro- Jeto de constituir uma identidade distinta de outras iden- 38 UFPE. CFCH BIBLOTELA SETOaAL, 0 QUE FAZ A DIFERENGA DIFERENTE? tidades: o que de inicio se propde como busca de diferen- ¢a revela-se, em Ultima instincia, condenacdo a mesmice da reiteracdo de si. A estética naturalista seria tributéria do engano entre o diferente ¢ a diferenca: preocupou-se em. Mostrar € retratar aguilo em que o Brasil seria diferente, esquecendo-se, ou melhor, obliterando, o que no Brasil se apresenta como diferenca. Tal engano acaba por se mos trar inevitavel, pois a diferenca nao se presta a fundar iden- Udades, quaisquer que sejam elas. Seu poder, pelo coniré rio, € o de imtroduzir dividas e rupturas na propria idéia de identidade. Assim, a diferenca nao pode ser apropriada por nenhuma nacionaliclade, pois ela é da ordem do ficcio- nal, sendo, portanto, uma producdo com valor universal. Mesmo o emprego do termo “universal” deve ser feito ju- diciosamente. Nao se trata aqui de um atributo comum’ao conjunto das diversas identidades particulares, mas sim da tendéncia universal & mudanca na Hist6ria, mudanca que 86 pode ser promovida pelo reconhecimento das diferen- as € pela producio subseqiiente de novas diferencas. Dito isto, “nos examninar o conceito de diferenga de que se vale a autora e medir o alcance de sua validade para a anélise dos dilemas identificatorios de que é teste- munha a tradicdo brasileira aqui em foco, Estamos de novo as voltas com a questo da suposta exigéncia de homoge- neizacéo de toda empresa de poder, particularmente em seu aspecto colonialista. No capitulo anterior chamavamos a aten¢do para o fato de que, contrariamente ao que poderia parecer, a expectativa européia em relacio as coldnias do Novo Mundo fol, nao a de que nestas se mé esse a tra- dicdo, mas, pelo contrario, a de que nelas se operasse uma Tuptura em relacdo a esta mesma tradigdo Para que a uto- pia européia se pudesse realizar. No entanto, 6 preciso que se diga, para que os planos de andlise nao se confundam, que a abordagem de Flora Stissekind nao enfatiza as rela. ¢Ges com os pais europeus. 0 esforco de homogeneizactio que esta autora critica ¢ obra dos proprios brasileiros, con- seqtiéncia da condicao bastarda a que os pais eurapeus nos teriam relegado: “aio se parece perceber que ‘tal Brasil’ 6, 9 FANTASIA DE BRASIL antes de tudo, um bastardo cujo pai, estrangeiro e coloni- zador, nao The deixou outra heranca além de levas eventuais de idéias ¢ livros das procedéncias mais diversas" Em nossa perspectiva, a heranca européia nao se tringin a levas de livros e idéias das procedéncias mais di- versas. Como ja dissemos, havia uma idéia particular que dizia respeito a propésitos especificos em relagao ao filho: 6 desejo ut6pico. Se o Brasil é bastardo, nao é daquele tipo de bastardo com cujo destino o pai nado se importa, mas daquele outro tipo que concentra em si as expectativas mais secretas do pai, aquele com quem o pai entret@n a ambi- gna relagio que se pode entreter com o fruto ide nossos pecados. ) ‘Antes de prosseguirmos, é-necessario abordar a ques- téo da nocdo de utopia que adotamos. Um projéto utdpico pode se mostrar sob duas formas extremas - cada caso par- ticular constituindo-se como um produto em que cada wma dessas formas contribui com pesos distintos, Uma forma é cepedo mais ou met ‘a ser atingido. Nesse sen! ‘pia marxista, & utopia de pia oswaldiana, que ¢ muito pouco detalhada. colocadas em enunciados mais ou menos controlaveis por ‘outros cnunciados, de modo que sempre se pode emitir um, juizo sobre a maior ou menor aproximacao que se obtém, § ideais propostos, Outra forma é o mandato utdpico purificado, Aqui, a enunciagio da utopia ganha uma impor- ‘{ancia muito maior do que os enunciados que a veiculam. Estes podem até mesmo ser nitidamente contraditérios, ‘porque aqueles mesmos que os emitem nao tém uma idéla muito precisa sobre como querem que as coisas mucem, 86 sabem que querem que mudem,'e que sera muito me- Thor quando mudarem. Além disso, tém esses enunciados, antes naturezd de uma ordem imperativa do que de uma ordlem prescritiva, “Faca melhor", “Faga diferente!", ou, © que é ainda pior, apenas “Faca!”, e nao “Faca assim, assim eassado..”, © QUE FAZ A DIFERENGA OIFERENTE? A utopia que os europeus quiseram para a América é muito mais proxima dessa tltima forma purificada. Assim, quando Octavio Paz diz que a condicao utopica americana era a de ser uma “terra de eleicdo do futuro: antes de ser, jd sabia como iria ser”, no devemos entender que ja se sabia como se iria ser, mas sim gue ja se sabia como nao se iria ser, que se sabia ser futuro, ou seja, cor te radical em relacao ao presente € ao passado *euturo” 6 uma daquolas palevras que os linglistas chamam de shifters, mutantes, pois elas designam um referente sempre relativo ao sujeito quo fala. Deste ponto de vita, sor cada dia o pals do future & um pouce constrangedor, pois 6 a mesma coisa do que ser — para ser pro~um sonho. (Calligaris, inécito) Tais observagGes sAo muito importantes para o exame do conceito de diferenca adotado por Flora Stissekind. A anilise por ela proposta guarca para nds todo o seu valor, na medida em que explicita 0 que foi feito a partir do man: dato utépico, Deixa claro que tal mandato nio pode ser sus- tentado em toda a amplitude de busca da diferenca, mas, sim, que teve de se degradar em busca do diferente, busca esta que acabou se traduzindo, como nao poderia deixar por uma reiteracio do mesmo. entanto, para melhor julgar as op¢des que estavam em jogo em tal situacao, é util lembrar que a clinica psica- nalitica nos ensina que as patologias sempre guardam um. ‘aspecto de sabedoria, na medida em que sao respostas da- das pelo sujeito a questdes que 0 ameacam numa medida ‘Tauito maior do que se pode sequer imaginar. Nessa pers- pectiva, impde-se a ressalva de que a busca de identidade afinal de contas, uma saida bastante inver va, se levarmos em conta as dificuldades e os perigos carreados por um mandato ut6pico da natureza daquele a que nos referiamos. Para 0 Brasil, a busca de identidace foi de acrescentar aos valores derivados da politic do periodo colonial (como veremos nos capi €1V, fol o estrativismo que fomeceu uma das carac- teristicas particulares dos sonhos utépicos do colonizador “ FANTASIA DE BRASIL em terras brasileiras), 0 valor de um nome, ou melhor, de uma imagem que pudesse servir como nome. Com i - prestow-se ao sonho do futuro uma realidade distinta da realidade do lucro ou do prazer imediato. Tratou-se, por- tanto, de uma resposta estritamente necessaria para que 0 pior fosse evitado. £ claro que uma resposta necessaria nao é, obrigatoriamente, uma resposta suficiente. Flora Stissekind, com sua anélise, chama nossa atengdo para ca- minhos trilhados por diversos autores de ficcao que se restringiram a permanecer ensimesmados nessa prin ra resposta identificatoria, © que Ihe importa diz a literatura brasileira nfo s6 deve sair, como muitos momentos, dos preceitos da ideologia turalista. Sobre isto, nada temos a acrescent mentos so de uma propriedade inabalavel. No entanto, se for acetta a hipétese por nés levantada de que a busca de identidade fol uma protectio necessaria contra a violéncia do mandato utopico, teremos que di como jé deixamos entrever sem explicitar, que o proprio desta violéncia 6, em sua esséncia, um pedicio de diferen- ¢a. Seno, vejamos: 0 mandato utdpico, tal como enviado a0 Brasil, nao foi apenas um pedido para que o Brasil se constituisse como um pais diferente. Nao foi nem mesmo um pedicto para que fosse um pais. Foi, isto sim, um pedi- do para que o Brasil encarnasse, no seu proprio ser, a dife- renea. 0 “futuro”, em sua dimensao de shifter, nio aponta simplesmerite para um diferente, mas sim para a diferenca em seu estado mais puro. Se o mandato utdpico tivesse mais caracteristicas prescritivas do que imperativas, 0 que estaria sendo pedido seria um diferente, um diferente mais diferente que os outros, é verdade, mas, ainda assim, um diferente. Diante de um pedido deste tipo, todas as respos- tas razoaveis estéo a disposicéo do destinatario: aceitar; querer permanecer como antes; querer ainda alguma ou- tra coisa diferente. No caso do segundo tipo de mandato utopico, nenhuma destas possibilidades esta disponivel: nao se sabe 0 que aceitar; nao se era nada antes, pois foi o pro- prio mandato que servin de ato de batismo; ¢ muito me- 42, (O.QUE FAZ A DIFERENCA DIFERENTE? nos se pode optar por algo diferente do que esta se dido, pois 0 que se pede &, justamente, a diferenca. Por isto, qualquer resposta que se dé, é, ao mesmo tempo, uma acci- tagao e uma recusa do mandato. Uma recusa porque, como {Jd vimos, a resposta s6 pode consistir no apego a algo di- Ferente, Tudo é diferente em relagao a alguma outra coisa Com a afirmacao do diferente, inaugura-se a reiteracao do mesmo, como ja se viu. Uma aceitagao porque, apesar de nao se saber ao certo qual € o diferente que ¢ requerido pelo pedido de diferenca, supde-se que, obrigatoriamente, apesar de nao ser isto explicitado claramente, 0 outro sabe to 0 que esta pedindo. Assim sendo, quem sabe se te mesmo o diferente que supre as expectativas do Do nosso ponto de vista, 0 conceito deleuziano de di- ferenca, ao qual Flora Sitssekind se refere para dar esteio a seus argumentos, é insuficiente para situar varios pro: blemas levantados pela questo da busea de identidade na cional na literatura brasileira. Conduz a erros de aprecia- do, deixando de lado aspectos que sao essenciais para com- preender a situacao em sua complexidade. Sendo vejamos © conceito de diferenca de inspiracéo deleuziana é uma das variantes do esforco da critica contempordnea de se afas- tar da tradicdo do “pensamento representativo”, para utili: zarmos os termos de Heidegger’. Segundo essa tradicao, € a mediacaio da representagio que assegura ao ser a identi- dade consigo mesmo. Segundo Deleuze, “o primado da iden- tidade, de qualquer maneira que esta seja concebida, defi- ne o mundo da representaciio” (apud Siissekind, 1984: 63). ‘Tanto Nietzsche, quanto Heidegger; tanto Deleuze, quanto Lacan, assim como muitos outros, atacarao o privilégio da identidade no pensamento classico, propondo, cada um & sua maneira (Deleuze mais préximo de Nietzsche que La- can de Heidegger), um salto para além_ou para aquém da 1.82 e Lacan, a ultapassagam do “pensamento representative" por Heidegger

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