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Continuo Preta a A ntana ComPaNHIA Das LETRAS BIANCA SANTANA Continuo preta A vida de Sueli Carneiro OMPANHIA Das LETRAS: 1. Documentos dos antepassados Sueli Carneiro é filha de uma costureira e de um ferrovid- tio.! A mae, Eva Camargo Alves, nasceu numa familia de classe média, em Campinas, a cerca de cem quilémetros de Sao Paulo, em 1927. O pai, José Horacio Carneiro, nasceu em Rodeiro, hquele tempo parte do municipio de Ub4, Zona da Mata de Minas Gerais, em 1916, mesmo ano em que foi promulgado o primeiro Cédigo Civil Brasileiro. Embora a independéncia do Brasil tenha ocorrido quase em anos antes, em 1822, ¢ a reptiblica tenha sido proclamada em 1889, a legislacao portuguesa ainda ditava as regras no pais sobre a pessoa, a familia eo patriménio. Mais importante que \lefinir direitos era tipificar crimes. Como se pode ler na tese de doutorado? de Sueli Carneiro, tanto 0 Cédigo Criminal de 1830 quanto o Cédigo Penal de 1890 j4 elegiam pessoas negras e po- do de liberdade. Em sua urgumentagao, ela desenvolve a nogao de um dispositivo de ra- hres como alvos prioritérios da privat cialidade e aplica ao dominio das relagées raciais tanto 0 concei- a7, i to de dispositivo quanto 0 de biopoder, do fildsofo francés Michel Foucault. Os chamados vadios ¢ mendigos, “sem ocupagdo honesta € util”, do cddigo de 1830 eram, em sua maioria, pessoas negras. Postos de trabalho livre eram criados € quase automaticamente ocupados por imigrantes brancos em detrimento de ex-escraviza- dos, que — sem terra, sem dinheiro, sem escolarizagao nem tra- balho — acabavam vagando pelas ruas. O cédigo de 1890 era ainda mais explicito quanto a discriminagao racial: “Fazer nas ruas e pragas puiblicas exereicios de habilidade e destreza corpo- ral conhecidos pela denominagao de capoeiragem” constitufa crime com pena de prisdo entre dois a seis meses. Direitos, mes- mo que protegendo mais a propriedade que as pessoas, s6 foram promulgados no Brasil em 1916, ano de nascimento de José Ho- r4cio Carneiro, pai de Sueli. Nascido e crescido na roga, José Horacio tinha duas irmas e quatro irmaos. Uma delas, Nadir, de 93 anos de idade, tinica testemunha viva do passado mineiro da familia, diz que a familia vivia mudando de fazenda, atras de trabalho. Geraldo Cameiro, irmio de Sueli, lembra do pai contando que aos dezessete anos fugiu a cavalo da situagao de semiescravidao. Os filhos homens de José Horacio — as meninas, ndo-— escutavam as histérias dos adultos que conversavam € bebiam ao redor do pogo, na casa da avé Olympia, em Sao Paulo. Os garotos eram poupados dos de- talhes — lembrangas de dor eram guardadas a sete chaves. Accriancada nunca ouviu os nomes dos bisavés ou os sobre- nomes de quaisquer pessoas. Dos antepassados, sabiam apenas que eram gente da roga, que trabalhava em terras de coronéis durante e depois do tempo da escravidao legal. Talvez por isso, € por sempre terem ouvido que Rui Barbosa havia mandado quei- mar todos os documentos que registravam as origens de pessoas 18 negras, desenhar uma drvore genealégica nao estava no horizon- te de ninguém, Queima de arquivos? Isso mesmo. Em 14 de dezembro de 1890, 0 ento ministro da Fazenda Rui Barbosa assinou um des- pacho que ordenava a eliminagao dos documentos referentes & escravidao, alegando que a reptblica era “obrigada a destruir esses vest{gios por honra da patria e em homenagem aos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de ci- dadaos que pela aboligéo do elemento servil entraram na comu- nhao brasileira”. As boas intenges eram pura fachada: dar um fim Aqueles documentos tinha mais a ver com 0 Estado nao que- ier arcar com indenizagées a fazendeiros que se sentiam prejudi- cados pela aboligao. Alguns historiadores sustentam que muitos documentos ja haviam sido levados a Portugal antes da Proclamagao da Repti- blica, em 1888. E considerando a extensdo e a complexidade do pais, é dificil acreditar que todo érgao vinculado a Fazenda teria, de fato, queimado seus registros. Mas ainda que a fogueira tivesse ocorrido, o registro da escravizacao estava presente em todos os documentos sobre a pessoa escravizada, fosse nas igrejas, dioce- ses, congregagdes, ordens, irmandades, santas casas; fosse nos cartérios, tribunais, cdmaras e outras instituigdes repletas de li- vros a espera das pesquisadoras e pesquisadores que se multipli- cam nos estudos sobre a meméria ¢ a histéria de pessoas negras. A folha 29 de um desses livros amarelados, o de nimero 1, dla Paréquia Sao Sebastiao, de Rodeiro, Minas Gerais, restaurado depois de uma enchente, traz o registro’ de casamento dos avés paternos de Sueli Cameiro: Aos 20 de setembro de um mil novecentos ¢ treze, na Par6quia Sao Sebastio [ ta Cameiro e Olympia Luiza Alexandrinha. | receberam-se em matriménio Horacio Gaivo- a9) Ele com 20 anos de idade. Filho de Maria Gaivota. Ela com 17 anos de idade. Filha de Alexandre Martins da Cos- ta e Lutiza Josepha de Aratijo. Sueli nunca tinha ouvido o nome de Maria Gaivota, Ale- xandre ou Luiza. Tia Nadir tampouco tinha pistas a oferecer. Somente depois que o documento foi encontrado, ao ouvir “Ma- ria Gaivota”, seus olhos se iluminaram: “Esse era o nome da minha av6! Maria Gaivota era minha avo”. Nadir lembra de uma mulher velha e de poucas palavras, que cuidara sozinha dos dois filhos, Horacio e Agostino, e da filha Coleta. Quando nova, ela havia trabalhado como empregada doméstica nas casas de fazendeiros. Ea av6 ria ao lembrar 0 que ela e uma colega fizeram certa vez, com agulha e linha, a0 pa- pagaio que a patroa deixava na cozinha para repetir as conversas das pretas. A tinica coisa que o bicho repetia depois era: “Cu cosido, sinha! Cu cosido!”. Nadir até hoje sente um gostinho de satisfagdio pela vinganga. Do avé paterno, a tia nunca ouviu falar. “Minha avo é do tempo dos escravos. Nao tinha isso de marido. E os filhos tam- bém nao falavam de pai”, conta. A informagao adiantada por ela, de que Maria Gaivota fora uma mulher escravizada, s6 pode ser confirmada a muitos quilémetros dali, depois de se conhecer seu local de nascimento na certidao de Horacio, seu filho: Aos vinte e dois dias do mez de outubro do anno de mil oitocentos € noventa e um, neste distrito de Paz da Parochia de Sao Januario de Uba, Municipio de mesmo nome, Estado de Minas Gerais, com- pareceu em meu cartorio José Bernardino Fernandes e perante as testermunhas: Honério Januario Carneiro e Luiz Goncalves Fontes, ambos negociantes ¢ residentes nesta Parochia e declarou que no dia dezesseis do corrente mez ¢ anno, as nove horas da noite, no cor- 20 rego Alegre desta Freguesia, nasceu uma creanga do sexo masculi- no, que deve chamarse HORKCIG, filho natural de Maria Gaivotta, cozinheira, residente nesta Freguesia, natural de Grdo Mogol, filha legitima de Manoel Gaivotta e sua mulher, esta fallecida. Nao se sabe em que condigdes nasceu e viveu Maria Gaivo- lu, mas o registro’ de batismo da bisavé de Sueli Carneiro esta na cidade de Grao Mogol, no norte de Minas Gerais: Maria, parda, nascida a 15 de junho de 1856 no Burity. Filha le- g{tima de Manoel Gaivotta Costa e de Josepha Maria de Jesus. Padrinho Goncalo de Azevedo Ferreira Madrinha Joanna Cardozo de Sa Pelo documento, pode-se aferir que Maria Gaivota e seu pai, Manoel, safram de Crao Mogol entre 1856 e 1891. Naquele pe- todo, era frequente o fluxo migratério de negras e negros escra- vizados em diregéo a Uba. a HIPOTESE DA GENEALOGIA DO SOBRENOME CARNEIRO ‘Ana Relehior de Roviigues Botha Gato aoe Desingos Ana Borba |) Velho ane Cabral oto |p Maria / i Cli co Cima ‘Antonio rrr aie Camara Antonio Cameiro Flores Francisca I Ant Janudtio Carneiro Sihia Francisco Abin i de Melo Cte Franco Maia hee Ami de deMelo cents Franco vet ‘Aim Chico Buarque peel using | -——J Jamadvia Manoel Care Grivota Alexandre Martins da Costa Honéxio Januatio Maria | ee i Gavota Horicio |) Gaivota ->4>————— Carneiro Olympia Liza Alesandrina 2. Do diamante ao café A origem do nome Grao Mogol! suscita varias interpreta- bes, uma das quais € que seria uma corrupiela de “Grande \margor’”, dados os intimeros roubos, trapagas e brigas que ocor- ‘iui por 14. Outra verséio evoca Babur, fundador do Império Mo- jol ea quem os portugueses chamavam grao-mogol, que possufa ‘in diamante de 793 quilates, porte compardvel as gemas encon- vidas naquela regido de Minas. Jim 1768, a Coroa portuguesa teve notfcias da descoberta ile diamantes na serra de Santo Antonio de Itacambiracu, onde ‘ais tarde foi constitufdo o municipio de Grao Mogol. A explo- io de diamantes na regio, ainda que clandestina de meados século xvit ao infcio do x1x, mobilizou pessoas livres e escra- Vivadas até a metade do século xix. Antes de 1850, 0 povoado cheyou a ter 40 mil habitantes. Depois disso, passou & média de |5 mil pessoas, que se mantém até hoje. Algumas negras € negros enriqueceram com o garimpo € compraram a prépria liberdade. Outros resistiram como pude- jam, inclusive criando quilombos na regiao. Hoje existem mais 3: de oitenta comunidades quilombolas na bacia do Jequitinhonha. Buriti do Meio, por exemplo, foi fundada por Eusébio Grama- cho, um negro que saiui de Grao Mogol ¢ iniciou a comunidade quilombola certificada pela Fundagdo Palmares em 2004, atual- mente com cerca de setecentas pessoas. Na segunda metade do século xix, a extragdo de diamantes na regio se tornou invidvel, fosse porque a tecnologia disponivel nao dava conta das dificuldades da operagdo, fosse porque o di- nheiro ea necessidade de mao de obra passaram a se concentrar no café, que se expandia pelo Sudeste Entre 1855 e 1873, 6562 negras e negros escravizados apor- taram em Ub, provenientes de outzas regides de Minas Gerais. No mesmo period, 261 foram vendidos e por isso safram de Grito Mogol.? Se Maria e Manoel Gaivota fossem livres, como a maior parte da populagao negra nesse perfodo, dificilmente se deslocariam no fluxo da venda de pessoas escravizadas. A possi- bilidade de perder a liberdade saindo do territ6rio em que eram reconhecidos como forros era grande. Provavelmente eram es- cravizados em Grao Mogol e, sendo vendidos, foram deslocados para Ubé. Na certiddo de nascimento de Horacio, av6 paterno de Sue- li, nao consta 0 nome do pai. O sobrenome Cameiro aparece uma tinica vez, referido a uma das testemunhas. Por que a crian- ¢a carregaria o nome de uma testemunha de seu nascimento? A hipétese mais dbvia é a de que pessoas escravizadas levavam 0 sobrenome de seus senhores. Mas, em 1891, trés anos depois da assinatura da Lei Aurea, nem Maria nem Hordcio eram escravi- zados, apesar de as relagdes de servidao permanecerem fortes naquela regiao até pelo menos a metade do século xx. Ea teste- munha, Honorio Janudrio Carneiro, ainda que descendente do fundador de Ub, de familia proprietéria de terras e também de 24 educandarios tradicionais, era comerciante, como se sabe pela certidao e pelo relato de pessoas da regio. Honério era um homem casado. E até 1916 o direito civil brasileiro era regido pelas medievais Ordenagoes Filipinas, que distinguiam os descendentes legitimos dos ilegitimos.* O sacros- santo casamento na Igreja catdlica era a garantia da legitimidade de um filho. Criangas nascidas fora do matriménio eclesidstico cram consideradas “frutos do pecado sexual da fornicagiio” e nao podiam ser batizadas ou registradas com o nome do pai. Dentre os ilegitimos, havia ainda a subcategoria esptiria dos chamados filhos incestuosos ¢ adulterinos. Em 1891, um filho nascido de relagdo extraconjugal seria considerado esptirio, adulterino, e nao poderia ser registrado pe- lo pai, nem mesmo se o pai assim 0 desejasse. O avd de Sueli, Horacio Carneiro, nao poderia, pois, ser registrado como filho de Honério Janudrio Carneiro, o qual compareceu ao cartério na condig&o de testemunha. De Honério, entao, viria o sobrenome Carneiro de seu avo Horacio, de seu pai José Hordcio, que 0 legou a Sueli, que 0 pas- sou a sua filha, Luanda. Como nao ha pessoa viva que os tenha conhecido, tal hipétese nao pode ser confirmada. Ou serd que 0 sinh6, passando em frente ao cart6rio, generosamente se ofereceu para testemunhar 0 nascimento de uma crianga preta e ainda lhe emprestar o sobrenome? Quem sabe uma excecao a realidade comum nas Minas Gerais e também em Sao Paulo, conforme José Correia Leite, um dos principais militantes negros de nossa hist6ria, nascido na capital paulista em 1900, relatou a Cul Muitas negras moravam com brancos importantes, mas de forma escondida, Nao s6 no Bixiga, em outras partes também, onde 0 portugues predominou. Muitas vezes elas eram prejudicadas quando o sujeito morria. Perdiam os bens que tinham ajudado a 2 adquirir porque quase sempre nao eram casadas. Eu conheci mui- to caso de individuos bem-sucedidos & custa de cozinheiras. Fram mulheres trabalhadoras que ndo davam a minima despesa, sequer. Saiam de mana e voltavam a noite, trazendo coisas (comida, rou- pa) da casa dos patrdes. Ainda havia os favores que seus compa- nheiros precisavam e elas conseguiam. Havia muitos desses casos no Bixiga, que alids, nao foi um bairro s6 de italiano. L4 morou muito negro também.* O préprio Correia Leite narra seu nascimento a rua 24 de Maio, a época um endereco residencial da pequena Sao Paulo. A mae, negra, para poder trabalhar como doméstica deixava-o de casa em casa. Do pai, nada se sabia. Nao é, pois, absurda a hipdtese de Horacio Carneiro, av6 de Sueli, ter sido filho adulterino — sem direito a heranga ou reco- nhecimento — de Honério Janudrio Cameiro, neto do capitao- -mor Anténio Janudrio Carneiro, fundador da cidade de Uba. Diferentemente do que o sufixo “mor” possa induzir a pen- sar, capitao-mor estava longe de ser um titulo pomposo — era atribufdo a filhos de alferes, cargo militar abaixo de tenente. A aristocracia, como diz Palmyos Carneiro’ em sua pesquisa do inicio do século xx, “se distinguia pelo simples fato de terem a pele branca”. A Zona da Mata era uma 4rea proibida durante o ciclo do ouro, considerada zona-tampao pela Coroa portugue- sa — vetava-se a abertura de estradas, comércios ou cultivos, pois eles poderiam eventualmente facilitar a entrada de exploradores em busca de ouro. Os portugueses viam com bons olhos 0 assen- tamento de puris, coroados, cropés e outros povos indfgenas na regiao, preservando a mata e dificultando a circulagao de inimi- gos do rei. Com a decadéncia do ciclo do ouro, brancos pobres come- garam a ocupar a Zona da Mata, se tornaram fazendeiros, ergue- 26 ram capelas, estabeleceram poder civil, militar e vida social na jegido, exterminando indigenas e escravizando negtos. Num tom \rpreendentemente critico, relata Palmyos Carneiro: oi em 1797, com a terra cercada, usurpada dos indigenas e com 0 trabalho de negros escravizados que comegou a surgir 0 pequeno povoado Aplicagio de Sao Janudrio de Ubé. A cidade s6 viria a se instalar em 1857 pelo seu fundador o Capito Mor Antonio Janué- rio Cameiro, responsével inclusive pela policia daquela Matta.® O capitio-mor teve dez filhos, cinco homens e cinco mu- \lheres, entre as quais Justina Janudria Carneiro e Teresa Janudria (Carneiro. Justina é mae de Honério Januario Carneiro,’ que apa- jece como testemunha na certidio de nascimento do avé de Sue- \\, Teresa 6 mae de José Cesdrio de Faria Alvim Filho, personali- (ude politica importante na Primeira Repiiblica, avd de Afonso \rinos de Melo Franco, autor da lei contra a discriminagao racial, dle 1951, que leva seu nome. E avo de Maria Amélia de Carvalho Cosirio Alvim, mae de Chico Buarque. Todo Cameiro de Ub4 « diz parente distante do artista. 27

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