You are on page 1of 5
PENA DE MORTE, UM ARCAISMO Venottio Fanner Os grandes problemas para a vida resolvem-se onde ndo sabemos. Ou simplesmente dissolvem-se como problemas, onde nio sabemos também. Em dado momento nés vemos que a sua solucio é «esta, ou que puramente © problema mio tem intetesser. A Histéria estd cheia de exemplos desses. A Historia —e a nossa propria vida. Hé um indizivel equilibrio interno do homem em que um problema como tal ou uma sua solugao se pode ou no integrar. $6 isso nos pode dar conta da variabilidade do nosso gosto, dda nossa moral, da nossa justica... E é s6 depois de firmada a importancia de um problema ou uma sua solugdo que nés 0 sabemos discutir. Discuti-lo € pols algo de superfiuo ou de pdstumo # uma profunda dccisiv: 96 depois de ela se executar € que sabemos «demonstrar» que ela deve executar-se. Entretanto discutimos, porque é a grande forma plausivel de recondu- zirmos 0s outros & nossa profunda conviccio. Sobre a volidade, porém, da pritica portugueca da aboligio da pena de morte, permita-se-me que eu no sdiscutar, O derradciro argumento, alids, € que julgo irrespondivel, ¢ esse bem conhecido de que assassinar degalmentes um criminoso € acrescentar a um crime um outro crime —e este decerto maior, porque perpretado sempre a frio. Mas 0 meu propésito é mais modesto do que esse de ediscutirr. Com efeito, eu dese~ jaria apenas frisar esta pequena verdade, normalmente esquecida, e é que ‘matar hoje um homem € suprimir um valor incompardvelmente maior do que no pasado. Assim a pena de morte se agravou extraordinariamente como castigo. Tal agravamento deriva duplamente de que todo 0 softi- ‘mento humano se explicita e tem o sen significado tiltimo no que de moral ‘ou de sespiritualy nele possamos incluir; e de que o homem é hoje o extremo 2 limite de si mesmo. Assim o sofrimento se iio mede pelo incémodo fisico ‘em si, mas pelo que através dele se atinge numa dimensio moral; ¢ a morte de um homem nio é 0 abreviamento de uma vida como trinsito para 0 waléuy, suas a desuuiyio de una vousciéucia pela qual o mundo vem ao ser, ou seja, rigorosamente, a destruicéo do universo... A um cédigo penal que inclua a mutilaio entre os castigos, nés julgamo-lo naturalmente sbérbaro». E no entanto néo reflectimos normalmente na razio por que 0 é B 6 porque no reflectimos, que of eSdigos scivilizados: eliminam 2 muti- lagio mas nem sempre a pena de morte —como sc a morte nfo fosse a mutilagio maior. Ela pode iludir-nos sobre isso, no se nos revelar clara- mente no que é, pela razio de que todos temos de morrer ¢ porque um morto nio tem a consciéncia de si como tem um mutilado. Mas se é de dentro da vida que a morte se investe da qualidade de um castigo, seré de dentro da vida—e nio para depois da morte —que a mesma morte deve assumir o que hé de trdgico © de degradante nela, Toda a histéria ‘humana, no nosso surto cultural que se inicia para que nos importa no Cristianismo, se define para todos os sectores que se quiserem, pela progres- siva auto-consciéncia do homem, ou seja, paralelamente, pela progressiva consciéncia da sua dignidade, Uma rectificagio econdmica ou social nfo se opera antes de operar-se no homem a consciéacia do dircito a cla. Os direitos nao surgem quando um reformador os pregou, mas quando abriu nele a consciéncia do direito a esses direitos. E s6 quando se reconhece como tal a opressio do que nos oprime e se no vé pois ai uma fatalidade, que a liberdade escolhe libertar-se. Eis porque as libertagdes se no exigiram today de uma 96 vez, un 96 quando piogressivamente a9 caigiu a indefi- nivel harmonia de n6s na constante € progressiva valorizagio de nés. Diremos assim que se hé um progresso do homem, ele é apenas ¢ gent- ricamente 0 que se define pela sua progressiva eespiritualizacdor. Porque tudo © mais dai deriva—e uma dliberdade abstract», longe de se infe- riorizar diante das «liberdades concretas, serve-Ihes de fundamento: 36 depois da consciéncia da liberdade € que poderemos exigir libertar-nos. Ora a histéria dos castigos ¢ af que se esclarece. Decepar uma mio, tirar os olhos, cortar uma lingua foram castigos talvez justificiveis quando significavam quase s6 a dor fisica em si e a eliminagio do que havia de prético naquilo que se climinava. Suprimir uma das mios é suprimir a comodidade do uso dessa mio; como cortar uma pata a um animal é estti- tamente privi-lo dessa utilidade. A cbarbaridade> dos maus tratos a um animal comeca quando nos pomos a viver em vez dele, ou seja a sentir a sua humilhagio. Fis porque é nos animais mais préximos de nés que mais sentimos tal sbarbaridades: é «bérbaro cortar uma pata a um cio, 25 mas no corti-la a uma mosca.. Entendemos assim que no tempo de uma reduzida eespiritualidadey do homem fosse ainda 0 incémodo fisico a decisiva determinante do préprio aperfeicoamento espiritual, Cortar as mios ou a lingua a um homem é no dominio dos castigos o equivalente do incémodo fisico do anacoreta que se alimenta de gafanhotos ou vive no alto de uma coluna... A santidade entende-se pelo sacrificios mas 0 sacrificio s6 se entendia na dimenso de um corpo. Hoje, porém, sabemos ‘que mutilar alguém nfo é atentar apenas contra o seu corpo mas contra © espirito que o vive: e que buscar a santidade num regime de raizes ¢ gafanhotos seria puramente ridiculo... A fome s6 hoje é verdadeiramente um escindalo, porque s6 hoje ela nfo ¢ um incémodo do estémago, mas uma humilhagio. E muitas vezes penoso relermos hoje as descrigdes dos sofrimentos antigos, no porque softamos também, mas porque preci- samente mal entendemos esse softimento —¢ um aluno liceal pode chegar ‘a sorrir perante as tribulagSee de uma Lisboa cercada, na descricio magis- tral de um Fernio Lopes, ou perante 0 martirio de Sepilveda no belo relato do seu nauftigio... Seria ficil, no entanto, que ele nio sorrisse: bastava sublimar decisivamente em sofimento moral todo o sofrimento fisico de que se nos fala. Decerto 0 softimento moral existiu sempre. Decerto a humilhagio coexistiu com 0 castigo fisico. Mas de tal modo cla é das margens desse castigo, que s6 acentuando-a ebarbaramentes, grosseiramente, se admitia decerto que atingisse o supliciado. Cortar as mios a um homem s6 hoje sabemos definitivamente que nio é privé-lo desse instrumentor, até porque 0 corpo mio é um sinstrumentor: € exp6-lo ‘a0 opr6brio dos outros e de sina sua profunda degradacio. Tirar os olhos, cortar a lingua a um homem nio é privé-lo da wantagem» de ver ¢ de falar: € degradé-lo na dignidade do seu todo ¢ sobretudo na impossibilidade de se realizar como espirito comunicivel — o espitito que assoma a um olhar ¢ incarna no verbo que o efectiva. O maior atentado contra 0 homem nilo € contra a sua écomodidades mas contra 0 que através disso se instaura em humilhagio—e os regimes policiais sabem-no. ‘Mas se assim é como entender que a pena de morte persista onde nio persistiu 0 castigo das mutilagdes? Antes do mais, decerto, porque sbarbaridades da mutilagdo se niio afirma sem equivocos nesse vassassinato legals. A morte investe-se de uma grandeza de tragédia que the vem precisamente, e como disse, da comum sorte do homem. E da condicéo humana morrer, mas nio o ser-se mutilado, Assim o suplicio unifica 0 supliciado ¢ os outros homens. O seu aspecto final é simplesmente 0 de um morto—e por um curto espago de tempo... Assassinar legalmente € pois de algum modo investir o condenado, embora antecipadamente, da sua 27 tigica condigio de mortal. Um cadiver tem quase sempre grandeza —mas nio a sua deformagio. Condenar alguém & morte dir-se-ia assim insinuadamente engrandecé-lo; como mutili-lo seria claramente humi- Ihé-lo. Todas as deferéncias especiais para com um condenado & morte serd isso que significam — se nifo significam apenas 0 remorso antecipado do crime que vai cometer-se. O condenado cresce sibitamente em impor- tiincia—e o carrasco ¢ 0 sacerdote de um ritual sagrado. A sacralizagio das vitimas dos sacrificios de outrora prolonga-se no rito da pena capital de hoje. E é esta ambiguidade da morte como rito ou investidura de uma trigica grandeza e como méxima degradacio humana que perpetua a pena de morte onde a clara degradaco da mutilagio se aboliu. Mas justamente a morte é a maior degradagio do homem: ela definitivamente reduz a0 nada da imundicie 0 que foi o mais alto prodigio da vida... No entanto, para que esse prodigio avulte, hd que sondé-lo até aos cous extremoe limites © reflectir que ele so cinge a oseer mecmor limites. 6 podemos saber o que significa a morte de um homem quando soubermos iluminadamente 0 que significa a sua vida—s6 podemos entender a violéncia da morte quando enfim entendermos 0 que nela se perde. Ora precisamente jamais como hoje nés soubemos que essa perda é sem medida porque é a do absoluto de nés. Tal absoluto, porém, é dentro e nio fora de nés que se revela. O homem tende a perder significacio medida que 0 objectivames, 0 afastamos de nés—cle tende para a insignificancia de ‘um insecto, se 0 observamos do alto de um décimo andar... O homem fria- mente objectivado tem 0 contorno estrito de uma coisa —e de uma coisa ‘és podemos dispor sem grandes problemas de consciéncia. Assim o esforco da compreensio do homem tem de orientar-se pela nossa prépria e profunda subjectivagio. Entendemos decerto a grandeza do homem naquilo que realiza, mas antes disso no ser possivel realizi-lo ¢ mais profundamente ¢ universalmente no saber que o realiza, no arrancar-se a si mesmo nesse acto puro de ser que é 0 do abismo da sua liberdade. Projectado de si, plasmado ao fazer, absorvido mesmo num Todo ou num Valor, o homem no se media a si porque essencialmente vivia fora de si. E é justamente quando nada o supera, quando a luz que dele vem nenhum Valor trans- cendente se ilumina, que ele se descobre como o méximo Valor ou mais rigorosamente como 0 tinico Valor, ¢ a luz se Ihe revela como a pura luz em si. Uma imprevista necessidade de ser se nos impde no absoluto acto de se estar vivo, de nos arrancarmos a nés, na sentida impossibilidade de pensarmos 0 nada de nés, porque 0 pensi-lo exige 0 nosso veu» a pensé-lo. Assim a nossa consciéncia de sermos fecha um cerco a tudo, incluindo ‘nossa propria morte... Assim a nossa vida se nos revela como uma estranha 28 ¢ categérica necessidade. Assim ela instaura em nés um absurdo absoluto ivino. Mas porque justamente € uma cerwza a morte (wal (€ 9¢ uur Deus ‘nos aguardasse a morte violenta violaria a melhor obra divina) 0 que & morte hhoje se paga € um prego infinito. A vertiginosa grandeza do homem vem de que nenbuma outra grandeza a supera, como o brilho de uma luz se destaca contra o escuro da noite. ‘Ora a pena de morte que se perpetua ignora 0 que cresceu no homem ¢ ela ird destruir. Ela suprime um ser humano pelos limites de outrora como se esses limites se no tivessem dilatado, ignorando também assim que 0 sem-limite de hoje se suprime com os limites de ontem, Derruba ‘uma casa que teve um $5 piso ¢ cresceu enormemente, esquecendo que os outros pisos ruirio com o primeiro. Destréi a planta pelo limite da semente, como se a semente mio estivesse jé dando flor. A pena de morte é da meno- ridade do homem, dessa menoridade em que é possivel a um Cicero defender 08 combates dos gladiadores. Porque um gladiador morre pelo limite da infincia do homem, e ignorante do seu crescimento, que ¢ por onde Cicero 0 tem de limitar —niio pelo limite da sua maioridade de hoje. E A objecgio fil de que se a pena capital atenta contra o infinito do homem, também contra o ilimitado dele atenta 0 assassino, nés podemos responder precisamente que a maioridade do homem nio ¢ a de todos os homens, mas deve ser pelo menos a de um juiz... E acaso 0 criminoso nio poder ascender & maioridade que no tem? Suprimi-lo ¢ suprimir a possibilidade de que o absoluto conscientemente se instale nele. Suprimi-lo é suprimir © Universo que ai pode instaurar-se, porque se 0 nosso sew fecha um cerco a tudo 0 que existe, a nossa morte é efectivamente, depois de mortos, a morte do Universo, E € justamente porque asin & que us devidianes para tudo na vida, enquanto estamos vivos. Um Hegel péde ver na pena ‘com que se castiga 0 criminoso «uma maneira de a sua liberdade existir, 0 seu direitas e assim esse criminoso 1se dignifica como ser racionay. Mas ‘Hegel acreditava na transcendéncia de um Todo nio viu o vescindalo da pluralidade das consciéncias (Sartre). Hoje sabemos todavia que esse eescindalo» existe, porque niio existe nenhum Todo que se nos substitua € de algum modo 0 anule. Inresistivelmente ¢ imediatamente, porém, nés deverfamos abordar 0 problema da guerra. Ele excede no entanto 0 ambito deste escrito, Em todo 0 caso, que esta pergunte fique ressoando dentro de nés: se no temos, © direito de matar, como termos o dever de matar? 29

You might also like