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Aos Leitores

Chegamos à edição 287 da Revista de Administração Municipal – RAM no momento em que a


administração pública, nos três níveis que constituem a federação brasileira, vive a inquietação e
o desafio de responder a mudanças não habituais no ritmo e funcionamento do governo federal.

Nestas condições de democrática turbulência, o grau de profissionalização alcançado pela


burocracia se põe à prova e mostra sua capacidade de manter o Estado funcionando.

E a RAM vem reforçar seu papel de alimentadora da base técnica que sustenta a gestão pública
e as políticas setoriais incumbidas ao governo.

São quatro artigos cuidando de temas que sinalizam para a importância estratégica da
administração municipal. O primeiro é de caráter abrangente e abre toda uma discussão acerca do
futuro do planeta, ao tratar dos ODS, chegando até a viabilidade dos nossos Municípios que estão a
demandar tratamento diferenciado conforme as especificidades que os caracterizam. Retoma-se a
discussão sobre a síndrome da simetria que o IBAM, em sua vasta história de ação para o governo
local, foi um dos precursores em apontar.

Nos dois artigos que se seguem, o saneamento está em pauta. Pedra de toque para a melhoria
da qualidade do ambiente em todo o território nacional, vemos nos textos as relações entre
saneamento, resíduos sólidos, desigualdades e inclusão social, relações público-privadas e
questões institucionais de relevância para a organização e funcionamento do governo. São textos
que exemplificam a dimensão sistêmica da gestão municipal.

O quarto artigo, ao debruçar-se sobre a questão da segurança pública, apresenta experiências


para a reflexão dos gestores que observam um mundo que vive, hoje, a realidade de conter mais de
meia centena de pontos de guerra abertos e reconhecidos como tal. O que dizer da violência que
está tão palpável nos ambientes urbanos?

Os pareceres jurídicos que ajudam a estruturar a RAM estão, neste número, abordando,
principalmente, assuntos incluídos em uma pauta de ordenamento do espaço, em que pese o
estranhamento que se possa ter em uma primeira leitura que se faça deles. Ao tratar de controle
de zoonoses e de demarcação de terras é de saúde e territorialidade que se fala.

O terceiro parecer cuida do legislativo e de seu papel. Nada mais apropriado para o mês que
antecede as eleições municipais.

Boa leitura e até o próximo número quando já serão conhecidos os gestores municipais que
governarão pelos próximos quatro anos.

2 Revista de Administração Municipal – RAM


Índice
4 Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e os Municípios
Alexandre C. de Albuquerque Santos
17 Política Nacional de Resíduos Sólidos: a reprodução da discriminação estrutural na
fronteira entre o público e o privado
Andrea de Moraes Barros
Edinei João Garcia
24 A Regulação dos Aterros Sanitários a Partir da Avaliação de Indicadores de
Desempenho
Pedro Alexandre Moitrel Pequeno
33 As Organizações Policiais e a Gestão Pública
Cesar José de Campos

Pareceres
43 Posturas municipais. Proliferação de pombos. Controle de zoonoses
46 Regularização fundiária dos ribeirinhos. Cessão de uso. Demarcação das terras.
Considerações
48 PL – Poder Legislativo. Concessão de Honrarias. Denominação de próprios públicos.
Princípios da Moralidade e da Impessoalidade. Legislação eleitoral. Considerações

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Revista de Administração Municipal – RAM 3


Os Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável e os Municípios

Alexandre C. de Albuquerque Santos*

Resumo: Neste trabalho procuram-se alcançar dois objetivos. O primeiro direciona-se a explorar
e clarificar os conceitos associados à expressão Desenvolvimento Sustentável – ODS – expressão
cunhada em escala global, a partir dos sucessivos Encontros, Cúpulas e Conferências das Nações
Unidas que, ao longo de cerca de 40 anos, vão incorporando dimensões distintas ao conceito,
até se chegar aos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável. A partir desse ponto procura-se
chamar a atenção para o fato de que, embora sejam postulados comuns às distintas realidades
nacionais, regionais e locais, os ODS se realizam em ações nos municípios, que, no caso brasileiro,
se constitui em um universo substancialmente heterogêneo. Tal heterogeneidade se expressa
não apenas pela distinção do porte demográfico, mas por inúmeras outras variáveis, desde o
tamanho, localização, perfil social, estrutura produtiva etc., fatores que interferem na formulação
e implementação de políticas públicas direcionadas à consecução dos ODS em cada localidade.

Expressões-chave: Gestão pública, Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, Municípios


brasileiros

Introdução para serem alcançados demandam ações


Neste artigo procuramos explorar dois sistemáticas e orientadas dos três níveis de
objetivos. Em princípio procuramos dar a governo, além de parcerias com instituições da
conhecer aos leitores, especialmente aos sociedade civil e o empresariado. Os governos
gestores e gestoras municipais, o que representa municipais têm nesse contexto papel de
a expressão “Desenvolvimento Sustentável’ e protagonistas.
como foi cunhada em escala global. Para tanto, Em seguida, exploramos, a título de exemplo,
buscamos percorrer a trajetória das sucessivas alguns dos ODS, quando buscamos demonstrar
reuniões promovidas pelas Nações Unidas, que, em face da diversidade do universo
desde a Conferência das Nações Unidas sobre constituído por nossos Municípios, cada
Assentamentos Humanos e Meio Ambiente objetivo adquire maior ou menor relevância
(Habitat I), realizada em Vancouver, no Canadá ou exige, pelas características das respectivas
em 1976, até a Conferência das Nações Unidas localidades, abordagens distintas.
sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada Nessa direção, chegamos ao segundo
no Rio de Janeiro, em 2012 (Rio + 20) e, a objetivo do artigo, que se direciona para
partir de suas recomendações, indicar como
se chegou a definição dos 17 Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável - ODS.
* Arquiteto e Urbanista com especialização em
Os ODS são compromissos assumidos
Desenvolvimento Urbano e Geografia Humana pelo IGC /
nacionalmente, que abrangem, praticamente, UFRJ. Superintendente de Desenvolvimento Econômico e
todos os campos da ação pública e, portanto, Social do IBAM.

4 Revista de Administração Municipal – RAM


demonstrar a heterogeneidade desse universo e Meio Ambiente (Vancouver – CA – 1976), a
municipal e para a necessidade de concebermos e humanidade passou a construir a noção de
implementarmos políticas públicas distintas em sustentabilidade. A Declaração Final daquele
função de conjuntos relativamente homogêneos evento enfatiza em vários pontos, o foco nos
de Municípios. Do ponto de vista aqui defendido, assentamentos humanos e a preocupação com
um estudo capaz de agrupar Municípios pelos a qualidade de vida nas cidades, realçando a
indicadores que lhes conferem similaridade, relação homem X meio, como tema central dos
poder-se-ia permitir maior eficácia às políticas compromissos e preocupações compartilhadas
públicas de uma maneira geral e especificamente entre os países-membros das Nações Unidas.
ao monitoramento e alcance dos ODS em cada Em seus Princípios Gerais, merece destaque
lugar. Para isto, exploramos ou buscamos dar o de número 11: “As nações devem evitar a
algumas pistas de indicadores que deveriam poluição da biosfera e dos oceanos e devem
informar um estudo dessa natureza, capazes participar do esforço para acabar com a
de permitir a concepção e monitoramento exploração irracional de todos os recursos
de políticas específicas para conjuntos de ambientais, não renováveis ou renováveis no
Municípios similares. longo prazo. O ambiente é patrimônio comum da
Finalmente, chamamos a atenção para o humanidade e sua proteção é responsabilidade
fato de que a produção de dados e indicadores de toda a comunidade internacional. Todos os
desagregados capazes de expressar atos realizados por nações e pessoas devem,
diversidades territoriais, distinções entre portanto, ser inspirados em um profundo
realidades urbanas, rurais ou destinadas respeito à proteção dos recursos ambientais
à conservação ambiental, ou demandas de sobre a qual a própria vida depende”2.
segmentos sociais específicos, esteja na pauta A partir desse enfoque inicial, que aponta
de preocupações do Governo brasileiro – para alertas sobre os limites da exploração dos
proposta claramente expressa no documento ativos ambientais e a expansão demográfica
Negociações da Agenda de Desenvolvimento concentrada, novas reflexões sobre a
Pós-2015: elementos orientadores da posição relação homem/meio vieram a contribuir
brasileira1, elaborado por um Grupo de Trabalho para a construção do conceito atual de
integrado por 27 ministérios – um sistema com desenvolvimento sustentável. A própria
tais características ainda não existe. Assim, Declaração de Vancouver já incorpora outros
terminamos por chamar a atenção dos gestores enfoques e enfatiza a importância de se
para que, ao buscar os caminhos da consecução privilegiar ações direcionadas aos segmentos
dos ODS em seu Município, estejam atentos sociais específicos, realçando que a qualidade
para as características e demandas específicas de vida nos assentamentos humanos, embora
e para identificar quais e como os ODS melhor esteja estreitamente concatenada aos limites dos
se adequam à cada realidade local. recursos ambientais, também está relacionada
ao modelo econômico mundializado, às formas
A Construção do Conceito de de produção e consumo e, sobretudo, a seus
Desenvolvimento Sustentável impactos sobre os meios sociais.
A busca pelo desenvolvimento sustentável A primeira das grandes cúpulas mundiais
vem orientando as ações dos Estados Nacionais direcionadas às sociedades-membros das
desde meados da década dos anos 70 do século Nações Unidas com um enfoque específico
passado, quando, a partir da Conferência das sobre um determinado segmento social foi
Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos a Cúpula Mundial pela Criança, realizada em

1
Negociações da Agenda de Desenvolvimento Pós-2015: elementos orientadores da posição brasileira, p. 12. http://
www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/ODS-pos-bras.pdf Acesso em 30/08/2016.
2
Declaração de Vancouver sobre os Estabelecimentos Humanos, a partir do relatório da Habitat: Conferência das
Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, Vancouver, Canadá, 31 de maio a 11 de junho de 1976. The Vancouver
Declaration on Human Settlements habitat.igc.org/vancouver/van-decl.htm - (tradução do autor)

Revista de Administração Municipal – RAM 5


Nova York em 1990. Nela as nações firmaram Em 1993, em Viena, vivenciamos a II
um documento de ratificação dos direitos da Conferência Internacional de Direitos Humanos,
criança, que deveria traduzir-se em legislação quando foi afirmada de maneira definitiva a
nacional, onde se reiteram os direitos ao acesso noção de indivisibilidade dos direitos humanos,
universal à educação básica, proteção contra como preceitos que se aplicam aos direitos civis,
abuso, exploração e violência, e combate ao políticos, econômicos, sociais e culturais. Na
trabalho infantil3. Tais princípios, por exemplo, declaração final também se enfatizam os direitos
inspiraram no Brasil a elaboração do Estatuto à solidariedade, à paz, ao desenvolvimento e os
da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 direitos ambientais5. Caminha-se claramente
de julho de 1990, recentemente alterado pela na direção de incorporar preceitos das
Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. conferências anteriores integrando as agendas
Em 1992, o Rio de Janeiro sediou a Conferên- de direitos sociais e ambientais e afirmando
cia das Nações Unidas para o Meio Ambiente e a universalização dos princípios básicos da
Desenvolvimento, quando foram cunhadas a De- democracia e de uma ética comum às Nações.
claração do Rio e a Agenda 21. Nelas se sinaliza No Cairo, em 1994, realizou-se a III
um conceito universal de desenvolvimento inte- Conferência Internacional sobre População
grado e sustentável. Na Declaração do Rio para o e Desenvolvimento. Nela, ao contrário das
Meio Ambiente e Desenvolvimento, se proclama anteriores, que ainda se orientavam por
no Princípio 1 que “os seres humanos estão no princípios desenvolvimentistas, quando
centro das preocupações com o desenvolvimen- enfatizavam as políticas de controle de
to sustentável. Têm direito a uma vida saudável e natalidade como solução para os impasses do
produtiva, em harmonia com a natureza”. Em seu desenvolvimento econômico-social, sobretudo
Princípio 3, destaca o compromisso com as gera- nos países periféricos e emergentes, passa-se a
ções futuras, quando afirma: “O direito ao desen- reconhecer que as pessoas são o recurso mais
volvimento deve ser exercido de modo a permitir valioso do planeta. Segundo Patriota,
que sejam atendidas equitativamente as neces- “A partir da CIPD, as políticas e os
sidades de desenvolvimento e de meio ambiente programas de população deixaram de
das gerações presentes e futuras”. A linguagem centrar-se no controle do crescimento
adotada combina a noção de desenvolvimento populacional como condição para a melhoria
sustentável com o princípio do crescimento eco- da situação econômica e social dos países,
nômico sustentado, como afirmado no Princípio e passaram a reconhecer o pleno exercício
8: “Para alcançar o desenvolvimento sustentável dos direitos humanos e a ampliação dos
e uma qualidade de vida mais elevada para todos, meios de ação da mulher como fatores
os Estados devem reduzir e eliminar os padrões determinantes da qualidade de vida dos
insustentáveis de produção e consumo, e promo- indivíduos. Nesta perspectiva, delegados de
ver políticas demográficas adequadas”4, expres- todas as regiões e culturas concordaram que
sando claramente a necessidade de superação da a saúde reprodutiva é um direito humano e
contraposição entre desenvolvimento econômico um elemento fundamental da igualdade de
e meio ambiente. gênero”6.

3
A íntegra da Declaração Mundial Sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança está disponível em
https://www.mprs.mp.br/infancia/documentos_internacionais/id117.htm.
4
A íntegra da Declaração do Rio para o Meio Ambiente e Desenvolvimento encontra-se em http://www.onu.org.br/
rio20/img/2012/01/rio92.pdf.
5
Declaração final da II Conferência Internacional de Direitos Humanos – http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/
viena/viena.html.
6
Patriota, Tania in Apresentação do Relatório da Conferência Internacional sobre população e Desenvolvimento –
Plataforma do Cairo, 1994 - http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf onde também se encontra a íntegra
da Declaração Final. Ver também sobre o assunto, comentários incluídos no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano
no Brasil - IPEA / PNUD - Rio de Janeiro / Brasília – 1998.

6 Revista de Administração Municipal – RAM


Enfatiza, ainda, o papel desempenhado econômico sustentado, no desenvolvimento
pelas ONGs na formulação, implementação e social, na proteção do meio ambiente e na
monitoramento de programas de população justiça social, a igualdade de oportunidades e
e desenvolvimento, bem como preconiza a a plena e equânime participação das mulheres
importância do setor não governamental. e homens como agentes beneficiários de um
A Cúpula Mundial de Desenvolvimento desenvolvimento sustentado centrado na
Social, realizada em Copenhague, em 1995, pessoa”8. Os direitos da mulher são reafirmados
é definitiva na construção de um conceito como direitos humanos e universais e se destaca,
de desenvolvimento humano ampliado e pela primeira vez num documento da ONU, que
integrado. Reafirma todos os direitos como raça e etnia são fatores de desigualdade, dando
direitos sociais e faz a pregação do combate às grande ênfase à igualdade de oportunidades
desigualdades, associando-o tanto aos direitos entre homens e mulheres. No parágrafo 32
humanos, como aos cuidados ambientais. No assumem o compromisso de “intensificar os
parágrafo 6 da Declaração Final da Cúpula, os esforços para garantir o exercício, em igualdade
Chefes de Estado reunidos em Copenhague de condições, de todos os direitos humanos
reafirmam compromissos com a busca do e liberdades fundamentais para todas as
desenvolvimento sustentável: mulheres e meninas que enfrentam múltiplas
“Estamos profundamente convencidos barreiras para seu fortalecimento e avanços,
de que o desenvolvimento econômico, em virtude de fatores como raça, idade, língua,
o desenvolvimento social e a proteção origem étnica, cultura, religião, incapacidade/
do meio ambiente são componentes deficiência ou por integrar comunidades
interdependentes do desenvolvimento indígenas”9.
sustentável e fortalecem-se mutuamente, Em Istambul realizou-se em 1996 a
o que constitui o quadro dos nossos II Conferência das Nações Unidas sobre
esforços no sentido de alcançar uma melhor Assentamentos Humanos e Meio Ambiente
qualidade de vida para todas as pessoas. – HABITAT II, onde se forjou definitivamente
Um desenvolvimento social equitativo que o conceito de desenvolvimento sustentável
reconheça aos pobres o poder necessário como a alternativa possível de superação dos
para utilizar de modo sustentável os problemas socioambientais dos povos. Embora
recursos ambientais, é o fundamento focalize a questão dos ambientes e da pobreza
necessário do desenvolvimento sustentável. das cidades, em sua declaração final afirma que
Reconhecemos também que para sustentar “o desenvolvimento rural e o desenvolvimento
o desenvolvimento e a justiça social é urbano são interdependentes” e ainda que,
necessário um crescimento econômico como “os seres humanos estão no centro
alargado e sustentado, no contexto do de nossas preocupações com relação ao
desenvolvimento sustentável”7. desenvolvimento sustentável, são também a
Em Beijing (1995), na IV Conferência sobre base de nossa ação para implementar a Agenda
a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz, Habitat. As nações signatárias do documento
reafirmam-se princípios de desenvolvimento “reconhecem que as mulheres, as crianças e os
sustentável como alternativa de combate aos jovens têm necessidades especiais de contar
desequilíbrios sociais. No parágrafo 16 da com condições de vida segura, saudáveis
declaração final, tornam essa relação explícita, e estáveis. Comprometem-se a intensificar
quando afirma estarem convencidas de que “A os esforços para erradicar a pobreza e a
erradicação da pobreza baseada no crescimento discriminação, para promover e defender

7
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Conferências-de-Cúpula-das-Nações-Unidas-sobre-Direitos-
Humanos/declaracao-e-programa-de-acao-da-cupula-mundial-sobre-desenvolvimento-social.html
8
Ver trecho citado e a íntegra da Declaração final em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/pequim95.htm.
9
idem, idem.

Revista de Administração Municipal – RAM 7


direitos humanos e as liberdades fundamentais Embora se tratem de objetivos genéricos,
de todos e para atender suas necessidades nos últimos 16 anos, a partir dos indicadores
básicas”. Em outro trecho reafirma que “com o estabelecidos na Cúpula, registram-se avanços
objetivo de conservar o meio ambiente global expressivos12.
e melhorar a qualidade de vida em nossos A partir de então a questão das mudanças
assentamentos humanos, se comprometem climáticas também ganhou a cena, da mesma
a adotar padrões sustentáveis de produção e forma que as questões da intolerância e da
consumo; transporte e desenvolvimento dos xenofobia.
assentamentos; a prevenir a contaminação; Nessas direções merecem destaque a
a respeitar a capacidade de sustentação dos Conferência Mundial contra o Racismo,
ecossistemas e a preservar as oportunidades Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias
das gerações futuras10”. Conexas, realizada em Durban, África do
A democracia, o desenvolvimento de Sul, em 2001, e a Cúpula Mundial sobre o
habilidades, a descentralização e os princípios Desenvolvimento Sustentável, realizada em
de parceria e participação constituem a Johanesburgo em 2002. Nessa última Cúpula,
base estratégica da conquista dos objetivos conhecida como Rio+10 ou Cimeira da Terra,
preconizados. Propõem articulações cooperativas foram reavaliados os objetivos da Rio-92 e
e alianças com os parlamentares, as organizações os princípios da agenda 2, sendo o objetivo
da Sociedade Civil, ONGs, os sindicatos e os principal da Conferência, rever as metas
empresários do setor privado e focalizam a propostas pela Agenda 21 e “direcionar as
ação no Plano Local, que “deve ser orientada e realizações às áreas que requerem um esforço
estimulada mediante programas locais baseados adicional para sua implementação, assim
na Agenda 21, sem prejudicar as políticas, como refletir sobre outros acordos e tratados
objetivos, prioridades e programas nacionais”11. da Rio-92. Essa nova Conferência Mundial
De certa forma o conceito, apontando para levaria à definição de um plano de ação global,
uma visão integrada de desenvolvimento capaz de conciliar as necessidades legítimas
sustentável, já estava determinado desde de desenvolvimento econômico e social da
esse período. Em 2000 foi realizada em Nova humanidade, com a obrigação de manter o
York a Cúpula do Milênio, que discutiu “O planeta habitável para as gerações futuras”13.
Papel das Nações Unidas no século XXI”. Nela Entretanto foi na Conferência conhecida
foram cunhados, além de compromissos como Rio+20 que o tema foi tratado em sua
entre as nações, oito metas e indicadores plenitude. “A Conferência das Nações Unidas
para o controle e mensuração dos avanços, os sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20,
Objetivos do Milênio: (a) reduzir a pobreza; (b) realizada de 13 a 22 de junho de 2012, na cidade
atingir o ensino básico universal; (c) promover do Rio de Janeiro, ficou assim conhecida porque
a igualdade entre os sexos e a autonomia das marcou os 20 anos de realização da Conferência
mulheres; (d) reduzir a mortalidade infantil; (e) das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
melhorar a saúde materna; (f) combater a HIV/ e Desenvolvimento (Rio-92) e contribuiu
AIDS, a malária e outras doenças; (g) garantir para definir a agenda do desenvolvimento
a sustentabilidade ambiental e (h) estabelecer sustentável para as próximas décadas”14. Nessa
uma parceria mundial para o desenvolvimento. Conferência se estabeleceram os caminhos e os

10
Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos. IBAM/Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro,1997.
11
Idem.
12
Ver a íntegra dos ODMs, bem como comentários sobre os avanços registrados no site: http://www.pnud.org.br/odm.
aspx.
13
Sequinel, Maria Carmen Mattana. http://www.ipardes.gov.br/biblioteca/docs/bol_24_6e.pdf.
14
Introduction to the Proposal of The Open Working Group for Sustainable Development Goals (tradução do site) www.
itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/ODS-port.pdf

8 Revista de Administração Municipal – RAM


Comitês de discussão no sentido de desenvolver ODS7. Garantir acesso à energia barata,
os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. confiável, sustentável e moderna para todos.
O documento final da Rio+20, “O Futuro ODS8. Promover o crescimento econômico
que Queremos”, entre outras coisas, definiu sustentado, inclusivo e sustentável, emprego
um mandato para estabelecer um Grupo de pleno e produtivo, e trabalho decente para
Trabalho Aberto (GTA) a fim de desenvolver um todos.
conjunto de objetivos para o desenvolvimento
ODS9. Construir infraestrutura resiliente,
sustentável para consideração e ação
promover a industrialização inclusiva e
apropriada pela Assembleia Geral, em sua 68ª
sustentável e fomentar a inovação.
sessão. Ele também forneceu a base para a sua
conceituação. A Conferência do Rio concluiu ODS10. Reduzir a desigualdade entre os países
que os ODS devem ser coerentes e integrados e dentro deles.
com a agenda de desenvolvimento das Nações ODS11. Tornar as cidades e os assentamentos
Unidas para além de 201515. humanos inclusivos, seguros, resilientes e
Em junho de 2015 o Secretário Geral da ONU sustentáveis.
lançou as bases da agenda de desenvolvimento ODS12. Assegurar padrões de consumo e
pós-2015, onde se incluem os Objetivos do produção sustentáveis.
Desenvolvimento Sustentável, que foram ODS13. Tomar medidas urgentes para
firmados em setembro desse mesmo ano. combater a mudança do clima e seus impactos
Segundo o Boletim do PNUD, em linhas gerais (Reconhecendo que a Convenção-Quadro das
são 17 os pontos focais dos ODS16: Nações Unidas sobre a Mudança do Clima –
ODS1. Acabar com a pobreza em todas as suas CQNUMC – é o principal fórum internacional e
formas, em todos os lugares. intergovernamental para negociar a resposta
ODS2. Acabar com a fome, alcançar a segurança global à mudança do clima).
alimentar, melhorar a nutrição e promover a ODS14. Conservar e promover o uso sustentável
agricultura sustentável. dos oceanos, mares e recursos marinhos para o
ODS3. Assegurar uma vida saudável e promover desenvolvimento sustentável.
o bem-estar para todos, em todas as idades. ODS15. Proteger, recuperar e promover o uso
ODS4. Garantir educação inclusiva e equitativa sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir
de qualidade, e promover oportunidades de de forma sustentável as florestas, combater à
aprendizado ao longo da vida para todos. desertificação, bem como deter e reverter a
ODS5. Alcançar igualdade de gênero e degradação do solo e a perda de biodiversidade.
empoderar todas as mulheres e meninas. ODS16. Promover sociedades pacíficas e
ODS6. Garantir disponibilidade e manejo inclusivas para o desenvolvimento sustentável,
sustentável da água e saneamento para todos. proporcionar o acesso à justiça para todos e

15
Idem.
16
OS ODS in: http://www.pnud.org.br/Noticia.aspx?id=4009.

Revista de Administração Municipal – RAM 9


construir instituições eficazes, responsáveis e compatíveis com os distintos conjuntos de
inclusivas em todos os níveis. Municípios brasileiros, como de permitir a
ODS17. Fortalecer os mecanismos de medição e controle dos avanços e conquistas
implementação e revitalizar a parceria global dos governos locais na direção da consecução
para o desenvolvimento sustentável. dos ODS de forma compatível e coerente com a
respectiva realidade.
A comissão interministerial criada
posteriormente pelo Governo Brasileiro para Reflexões Sobre a Diversidade do
refletir sobre e propor detalhamento das
diretrizes para o alcance dos ODS sugeriu
Universo Municipal Brasileiro e os ODS
alternativas de redação e um conjunto de ações/ É certo que os Objetivos do Desenvolvimento
atividades . Naturalmente, como recomenda a
17 Sustentável foram formulados de forma a se
própria ONU, os ODS genericamente propostos aplicarem às distintas realidades que têm os
demandam adaptação às respectivas realidades países. Contudo, a busca de atingi-los deve se
nacionais. Por exemplo, recomendam ODS dar de forma diferenciada e compatível com
específicos para pequenos as realidades locais, suas características, perfil
países insulares, ou para produtivo, cultura etc.
países que não dispõem de “Os ODS devem ser Por exemplo, quando se
litoral etc. de natureza global e observa o ODS 1 – Acabar
com a pobreza em todas
No caso do Brasil, que é universalmente aplicáveis
um país continental e fede- as suas formas e todos os
rativo e, portanto, com um
a todos os países, levando lugares, nos perguntamos:
sistema político e uma or- em conta as diferentes Como caracterizar a
ganização estatal, sobretu- realidades nacionais, pobreza, em suas distintas
do a partir da Constituição dinâmicas sociais, capacidades formas e em relação aos
Federal de 1988, profun- diversificados lugares de
damente descentralizada, e níveis de desenvolvimento, nosso país? Pobreza, em
espera-se que os ODS se e respeitando políticas e seu sentido mais amplo,
realizem de fato nos Mu- prioridades nacionais” refere-se sempre ao nível
nicípios e localidades, tra- relativo de renda tomando
duzindo assim prioridades Parágrafo 247 de O Futuro que por referência a renda
e compromissos nacionais Queremos média da população do
em ações efetivas na dire- respectivo lugar, quanto
ção do desenvolvimento sustentável. cada um ganha e o que pode comprar com
Contudo, a diversidade do universo de seu ganho. Está por certo presente em cada
Municípios brasileiros exige que se evitem localidade do país, mas é distinta em cada
soluções, recomendações metodológicas e situação.
indicadores simétricos, incapazes de permitir a Mas, não apenas na renda se pode
efetiva mensuração da evolução na direção dos caracterizar pobreza. Também há que se
rumos das ODS em cada lugar do território. considerar os mecanismos de acesso e
Na direção de se especificar métodos e mobilidade social que dispõe cada cidadão
indicadores de evolução dos ODS em relação em cada lugar. As condições de alimentação e
ao universo de Municípios brasileiros e sua nutrição estão, entre outros fatores, na raiz da
diversidade é que se impõe um estudo criterioso pobreza e justamente se constituem na essência
e, decorrente deste, a normatização de uma do ODS 2 – Acabar com a fome, alcançar a
tipologia de Municípios capaz de não apenas segurança alimentar, melhorar a nutrição e
de apoiar a concepção de políticas públicas promover a agricultura sustentável. Contudo, aí

17
http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/ODS-pos-bras.pdf.

10 Revista de Administração Municipal – RAM


já avançamos sobre outro aspecto que não afeta Dentre os objetivos formulados, há muitos
apenas os pobres ou aqueles que convivem com que são ou devem ser comuns a todos os
situações de insegurança alimentar, mas alcança Municípios e lugares. Entretanto, o desafio para
também as formas de produção e consumo de buscá-los será sempre diferente em cada lugar
alimentos e, em especial, coloca em foco a ideia ou conjunto de lugares. Alguns, como o ODS
de agricultura sustentável. 4 – Garantir educação inclusiva e equitativa
Observe-se que apenas tomando esse de qualidade, e promover oportunidades de
exemplo que correlaciona os dois primeiros aprendizado ao longo da vida para todos –,
objetivos, já teríamos um forte apelo para devem estar no centro das preocupações e
identificarmos indicadores específicos aos compromissos de todos os gestores públicos, em
distintos lugares, seja quando formulamos todos os níveis de governo, pois numa educação
políticas para combater a pobreza e a fome, e de qualidade reside a perspectiva de alcançar
mensuramos avanços ou retrocessos relativos efetivamente o desenvolvimento sustentável.
ao alcance deste objetivo em cada situação do Da mesma forma o ODS 5 – Alcançar igualdade
país, seja quando correlacionamos pobreza de gênero e empoderar todas as mulheres e
à insegurança alimentar e estas à produção meninas – é também um desafio comum a
de alimentos e, mais que isso, à agricultura todas as localidades, mas que, nesse caso, se
sustentável, quando nos remetemos a diferentes reveste de faces distintas em função dos traços
situações do ponto de vista territorial. As porções culturais de cada lugar, do porte demográfico,
do território onde os alimentos são produzidos, das características de inserção e de acesso ao
de forma sustentável ou não, ocupam grande mercado de trabalho, por exemplo.
parte do país. A agricultura de exportação, Já em relação aos ODS 6 e 7, respectivamente
no caso do Brasil uma das principais fontes Garantir disponibilidade e manejo sustentável
de receita e geradora de conflitos recorrentes da água e saneamento para todos e Garantir
em relação ao meio ambiente, é, por exemplo, acesso à energia barata, confiável, sustentável e
uma questão central para os Municípios que moderna para todos, voltamos às características
abrigam essas atividades e menos importantes da situação do Município em relação ao
para aqueles que apenas são consumidores de território e ao seu porte demográfico. Tal como
alimentos. no caso da Agricultura – tratada no ODS 2 –,
Examinemos o ODS3 – Assegurar uma será preciso identificar se no Município situam-
vida saudável e promover o bem-estar para se mananciais de água ou estabelecimentos
todos, em todas as idades. Esse parece ser produtores de energia ou se, ao contrário, são
um objetivo comum a todos os lugares. Municípios que concentram o consumo desses
Contudo, a ideia de vida saudável é bastante bens. Nesses casos merecem especial atenção
variável de um lugar para outro. Nas maiores os Municípios e localidades que encontram nos
cidades, nas que convivem com altas taxas de mananciais também seus locais de despejos
urbanização, vida saudável pode representar de dejetos, fato que normalmente ocorre nas
o enfrentamento das demandas históricas localidades urbanas situadas às margens de
em saneamento básico, habitação, saúde rios ou em áreas de grandes extensões rurais,
pública, alimentação, com ações específicas aos quando ocorre o despejo de agrotóxicos.
distintos estamentos etários. Já nos Municípios De forma similar também se encontram em
de menor população, de economias estagnadas, situações intermediárias alguns Municípios
de falta de oportunidades de acesso social e que nem são produtores de energia, nem
inclusão, vida saudável será antes de tudo a fortes consumidores, mas que abrigam em
oportunidade de integração às facilidades da seus territórios linhas de transmissão, dutos
vida contemporânea, sem descuidar de manter de petróleo e gás ou cursos d’água onde estão
as condições de salubridade que, de alguma situadas unidades hidroelétricas. Cada situação
forma, essa estagnação faz perdurar. exigirá um olhar atento em relação à consecução
desses objetivos.

Revista de Administração Municipal – RAM 11


Como se vê, para cada ODS focalizada de per alguma maneira em sua realidade encontrará
si ou de forma combinada será possível observar pontos de tangência que dialogam com cada
que sua interpretação, as políticas públicas um dos ODS. Contudo, antes de transformar
destinadas ao seu alcance, os indicadores de intenções em gestos, deve procurar entender
monitoramento serão sempre distintos em o contexto em que se inscreve sua localidade
função das características específicas de cada e como cada um desses ODS se relaciona com
lugar ou de um conjunto típico de lugares. essa realidade. De outro lado, os formuladores
Tomemos outro exemplo onde os propósitos de políticas nos outros níveis de governo,
se referem menos a uma localidade ou especialmente no federal, na medida em que
Município, como o ODS 13 – Tomar medidas os 17 ODS abrangem praticamente o conjunto
urgentes para combater a mudança do clima de obrigações e compromissos de suas esferas
e seus impactos –, que envolve muitas ações de ação, precisam igualmente entender como
que se complementam se estrutura e caracteriza
com inciativas municipais, o universo municipal
mas que parte de Todo gestor público, brasileiro e buscar adequar
preocupações globais especialmente o gestor as políticas públicas às
e se concretiza muito
em função de políticas
municipal, deve procurar ter distintas
universo.
realidades desse

públicas definidas em em mente os 17 objetivos do O universo de


escala federal ou regional. desenvolvimento sustentável Municípios brasileiros não
Na verdade, muitos é homogêneo. Todavia, a
dos efeitos de políticas simetria no tratamento
públicas na direção do alcance dos objetivos dos Programas Nacionais de fomento e apoio
do desenvolvimento sustentável dependem técnico, bem como os sistemas de contribuição
da ação concertada dos diferentes níveis de intergovernamental, na maioria dos casos
governo em associação com a sociedade civil. vêm entravando suas implementações e
Contudo, em alguns casos a inciativa da ação a cooperação propriamente dita por não
local pode ser menos autônoma. considerar essa diversidade.
E há ainda objetivos que se referem a um Na medida em que os Objetivos do
tipo específico de localidade, como o ODS 14 Desenvolvimento Sustentável constituem
– Conservar e promover o uso sustentável dos um pacto global cuja construção decorreu
oceanos, mares e recursos marinhos para o de muitos outros acordos e compromissos
desenvolvimento sustentável –, que reveste- setoriais, e que em nome da sustentabilidade do
se de importâncias específicas em função das planeta e da evolução da qualidade de vida das
características do sítio geográfico. Certamente, distintas populações e grupos sociais que nele
em Municípios costeiros esse objetivo assume habitam buscamos até aqui situar o percurso
uma importância consideravelmente maior do dessa evolução e ainda procurar demonstrar
que nos Municípios não dotados de mar, ou em poucos exemplos a diversidade do universo
que não mantenham qualquer relação com os municipal brasileiro em face da consecução
recursos marinhos. dos ODS em cada lugar. E, mais ainda, tendo
Como visto, existem muitas questões a em vista que a maioria desses objetivos deve
serem exploradas quando se coloca para os se realizar nos Municípios e localidades,
gestores municipais a formulação de políticas advogamos neste artigo a construção de um
e a implementação de ações direcionadas sistema classificatório do conjunto de nossos
a colocar sua localidade nos rumos do Municípios.
desenvolvimento sustentável. Certamente, Entendemos que apenas com um
todo gestor público, especialmente o gestor instrumento desse tipo o governo brasileiro
municipal, deve procurar ter em mente os 17 terá condições de monitorar os avanços e de
objetivos do desenvolvimento sustentável. De direcionar políticas adequadas às distintas

12 Revista de Administração Municipal – RAM


realidades que constituem esse universo, na algumas políticas públicas e na distribuição
direção da desejável conquista dos ODS. do Fundo de Participação dos Municípios,
já demonstra a fragilidade desse corte e sua
Fundamentos para a Construção de pouca eficácia quando se pensa em formular e
Conjuntos Típicos dos Municípios implementar políticas públicas universais. De
Brasileiros qualquer modo a simples observação dos dados
demográficos e de sua distribuição no universo
Com efeito, apenas a distribuição
municipal já se faz eloquente para demonstrar
demográfica, único indicador considerado em
sua heterogeneidade.

Tabela 1 – Distribuição Demográfica, por porte de Municípios

Porte Município (PNAS) Total Municípios % Total de Pessoas %


até 20.000 hab. (Pequeno I) 3.915 70,35 32.683.865 17,14
até 50.000 hab. (Pequeno II) 1.043 18,74 31.379.266 16,45
até 100.000 hab. (Médio) 324 5,82 22.263.598 11,67
até 900.000 hab. (Grande) 266 4,78 62.338.112 32,68
mais de 900.000 hab. (Metrópole) 17 0,31 42.067.853 22,06
Total 5.565 190.732.694
Fonte: IBGE, Censo 2010.

Observe-se que apenas 5%, ou seja, em escoamento de mercadorias, o emprego, o


278 dos então 5.565 Municípios brasileiros18, perfil social e antropológico das respectivas
possuíam em 2010 população igual ou superior populações, o bioma onde estão localizados
a 100.000 habitantes. Entretanto, neles residem são, entre muitas outras variáveis, aspectos ou
55,74% de toda a população do país. Ou seja, indicações de diversidade.
nos 5.287 Municípios então restantes estavam O fator, bem como as variáveis que
distribuídos os demais 44,26% da população devem constituir o ponto de partida para o
brasileira. Agrava-se ainda a diversidade estabelecimento de conjuntos de Municípios,
quando se observa que em 3.915 Municípios será necessariamente a distribuição por
com menos de 20.000 habitantes, ou seja em porte demográfico e, necessariamente, as
70,35% do total de Municípios, residem apenas características da composição da população,
17,14% da população do país. por faixas etárias, gênero, raça/etnias. Ou seja,
Tais dados já seriam suficientes para se dados que o IBGE colhe regularmente e que em
propor uma distinção entre esses dois ou si representam importante insumo para essa
três grandes conjuntos de Municípios que caracterização.
constituem o universo de Municípios brasileiros. A partir daí poderiam ser identificados
Entretanto, as distinções não ficam apenas conjuntos de indicadores capazes de fornecer
no porte demográfico. A localização geográfica, outras classificações para os nossos Municípios.
o tamanho do território, a situação em relação Em princípio se identificam os seguintes
às redes regionais de cidades, as características grupos de análise e variáveis compatíveis
de seus setores produtivos, a circulação e o com aspectos da sustentabilidade e

18
Observe-se que os dados do censo demográfico do IBGE (2010), informam um total de 5.565 Municípios. Hoje, seis
anos depois registra-se um número total de 5.572 Municípios. Não foi possível identificar a faixa de população em que
esses sete novos Municípios se situam. Certamente encontram-se no primeiro grupo, com população de até 20.000
habitantes. Contudo, entendemos que a localização precisa, praticamente não altera a proporcionalidade comentada no
texto. Assim, optamos por manter o dado oficial disponível.

Revista de Administração Municipal – RAM 13


diretamente correlacionados aos Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável:
NEGOCIAÇÕES DA AGENDA DE
• Variáveis institucionais, como: instrumentos
de governo – planos de ação; planos DESENVOLVIMENTO PÓS-2015
diretores de desenvolvimento municipal
e urbano etc.; composição das receitas ELEMENTOS ORIENTADORES DA
tributárias próprias, níveis de receita POSIÇÃO BRASILEIRA (p.12)
transferidas, posição em relação à Lei de
Responsabilidade Fiscal; proporção de Para avaliação mais realista do
pessoal empregado em relação à população cumprimento de metas e de
total; níveis de arrecadação de ICMS nos objetivos, o Brasil reconhece a
respectivos territórios; programação de
investimentos; existência e funcionamento importância metodológica da
de conselhos municipais etc.; produção desagregada de dados.
• Variáveis territoriais/ambientais, como: A necessidade de fomentar um
tamanho, localização em relação aos biomas
e às regiões geográficas; características
desenvolvimento nacional que
do sítio geográfico; posição e papel reduza as disparidades regionais
relativo à rede urbana regional; nível de e que valorize a diversidade torna
implementação do cadastro ambiental fundamental desagregar dados por
rural; existência e aplicação de normas de
controle da produção e do uso do solo para
região, bem como entre o meio
fins urbanos; códigos ambientais; presença rural e urbano. Desagregar dados
de mananciais no território; pertencimento por unidade espacial demonstraria
à bacia hidrográfica; presença e extensão a inter-relação entre a melhora em
de orla marítima (quando for o caso);
oferta e distribuição de água tratada, esgoto indicadores de redução da pobreza
sanitário, coleta e destinação de resíduos e de sustentabilidade e políticas
sólidos; oferta e condições das habitações de gestão territorial, inclusive
etc.;
• Variáveis socioeconômicas, como:
do meio urbano. Além disso,
distribuição da produção econômica por por motivos históricos, sociais,
setor produtivo; PIB; PIB per capita; pessoal culturais ou econômicos, grupos
empregado por setor; níveis salariais e vulneráveis a formas variadas
tendências do mercado de trabalho por
gênero, escolaridade; óbitos no primeiro ano
de discriminação e intolerância
de vida; mortalidade e morbidade; índices enfrentam posição desvantajosa
de doenças endêmicas; cobertura vacinal; para a realização de direitos e
produção e consumo de energia elétrica; garantias fundamentais.
veículos registrados e em circulação; IDHM
etc.;

14 Revista de Administração Municipal – RAM


Certamente alguns aspectos específicos Em todas essas mobilizações trabalha-se
também deverão ser considerados no sistema com o consenso de que tais conquistas deverão
classificatório. Referimo-nos, por exemplo, se dar nas localidades, nos Municípios, e que os
ao fato de a localidade sediar atividade gestores municipais, bem como as respectivas
de mineração; ser foco de investimento populações, devem ser sensibilizados e
público ou privado de grande porte, com a movidos por esses objetivos. E certamente esse
previsão de impactos notáveis e mensurados é um consenso importante.
em Estudos de Impacto Ambiental – EIA e Em recente reunião da Federação
Relatórios de Impacto sobre o Meio Ambiente Latino-americana de Cidades, Municípios e
– RIMA; pertencer a Regiões Metropolitanas Associações de Governos Locais – FLACMA,
e aglomerados urbanos; situar-se em faixa de ocorrida em Santo Domingo, República
fronteira nacional; conter em seu território Dominicana, representantes de 20 países
reservas indígenas ou quilombos; pertencer do continente cunharam a declaração final
à lista dos Municípios que não observam os com o título: “Unidade na Diversidade:
preceitos de conservação de florestas no Bioma FLACMA e a plataforma do Desenvolvimento
Amazônia, entre outras particularidades que os Municipal Latino-americano”, onde afirmaram:
distingam. “Confirmamos nossa vontade de transitar
por um processo eficiente de convergência do
Conclusões – Algumas Recomendações municipalismo latino-americano, respeitando
aos Gestores Municipais a especificidade na diversidade (...) Temos
A identificação das variáveis aqui desafios similares que se expressam através
superficialmente mencionadas deveria ser de diversas vozes, distintas ênfases e variados
necessariamente aprofundada e permitir mecanismos; o desafio construir uma agenda
a construção de conjuntos homogêneos desde a perspectiva do local”19.
de Municípios, agrupados segundo as Contudo, mesmo que se reconheça em muitas
características observadas. A superposição reflexões e documentos oficiais a diversidade
desses agrupamentos, analisados de forma das localidades e suas tipologias, a questão do
combinada, poderia permitir a construção tratamento simétrico do universo de Municípios
de um sistema classificatório por tipologias brasileiros não tem sido objeto de qualquer
de Municípios, criando-se, assim, políticas movimento efetivo. Relegar a segundo plano um
adequadas para cada conjunto, indicadores esforço desse tipo pode representar a perda de
de monitoramento e avanço igualmente foco na consecução de políticas públicas capazes
compatíveis com as distintas realidades, sempre de permitir ao país e suas distintas localidades
tendo em mente a conquista desses objetivos. resultados efetivos no alcance dos ODS.
Muitas instituições governamentais e não Enquanto uma inciativa com essa finalidade
governamentais, vem se debruçando sobre a não se concretiza, continuamos no país com
compreensão e disseminação dos Objetivos políticas públicas simétricas e setoriais de
do Desenvolvimento Sustentável. Há eventos relacionamento cooperativo entre os níveis
setoriais, promovidos por instituições nacionais de governo e que terminam por constituir
e organismos das Nações Unidas em todo o um ônus adicional aos Municípios, sobretudo
continente e mundo a fora. aqueles menores e menos dotados de recursos
O segmento focalizado nas maiores cidades financeiros ou institucionais.
se mobiliza e cria grupos de trabalho com Nessa direção procuramos nesse artigo
recomendações específicas associadas aos ODS chamar a atenção dos gestores municipais, seja
para as cidades, lócus da maioria da população para conhecerem e refletirem sobre os ODS,
global, prepara recomendações para a próxima seja para, ao fazê-lo, terem em mente o papel
reunião promovida pela ONU, a Habitat III, que e a posição em que seu Município se situa
deverá se realizar na Cidade de Quito, Equador, nesse universo diverso constituído por nossos
no próximo ano. Municípios.

Revista de Administração Municipal – RAM 15


Referências Bibliográficas
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itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/ODS-pos-bras.pdf.
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Human Settlements. habitat.igc.org/vancouver/van-decl.htm - (tradução do autor).
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Patriota, Tania - in Apresentação do Relatório da Conferência Internacional sobre população e Desenvolvimento –
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Declaração Final da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social. http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/
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Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos. IBAM/Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 1997.
OS ODS. http://www.pnud.org.br/odm.aspx.
Sequinel, Maria Carmen Mattana. http://www.ipardes.gov.br/biblioteca/docs/bol_24_6e.pdf.
Introduction to the Proposal of The Open Working Group for Sustainable Development Goals. www.itamaraty.gov.br/
images/ed_desenvsust/ODS-port.pdf.
Federación Dominicana de Municipios – FLACMA acuerda líneas de trabajo que guiaran el movimento municipalista
em 2016. http://fedomu.org.do/flacma-acuerda-lineas-de-trabajo-que-guiaran-movimiento-municipalista-
latinoamericano-en-2016/

16 Revista de Administração Municipal – RAM


Política Nacional de Resíduos
Sólidos: a reprodução da
discriminação estrutural na fronteira
entre o público e o privado
Andrea de Moraes Barros*
Edinei João Garcia**

Resumo: A PNRS delimitou responsáveis para a gestão de resíduos sólidos no Brasil. O Setor
Público e o Setor Privado interagem ensejando uma problemática quanto à delimitação de
atribuições nas etapas da operação logística. O presente artigo problematiza estas indefinições
que colaboram para a manutenção do trabalho informal e também para a morosidade na
estruturação e universalização de canais reversos oferecidos aos cidadãos/consumidores.

Expressões-chave: Resíduos Sólidos, Operação Logística, Discriminação Estrutural.

Introdução coleta, classificação e destinação ambientalmente


adequadas dos produtos e embalagens pós-
A Lei nº 12.305, promulgada em agosto de consumo, e também para a morosidade na
2010, instituiu a Política Nacional de Resíduos estruturação e universalização de canais reversos
Sólidos (PNRS), indicando responsáveis e oferecidos aos cidadãos/consumidores.
instrumentos operacionais e contratuais para
a gestão de resíduos sólidos no Brasil. Neste
* Bacharel em Direito pela Fundação D. André
cenário, o Setor Público e o Setor Privado
Arcoverde – Valença\RJ. Especialista em Direito
interagem de forma ainda indefinida. Isso enseja de Resíduos Sólidos pela Ludwig-Maximilians-
uma problemática relacionada à delimitação Universität München (LMU) /Alemanha. Doutoranda
de atribuições nas etapas da operação em Ciências Econômicas e Sociais na Universidade
logística de coleta, transporte, classificação, de Osnabrück (UOS) /Alemanha. Associada à
armazenamento e destinação ambientalmente organização Circus (Circuito de Interação de
adequada dos resíduos sólidos urbanos, seja Redes Sociais), realiza atividades de coordenação
para disposição final ou inserção na cadeia pedagógica no Programa de Formação e
produtiva como matéria prima secundária. Capacitação de Cooperativas de Catadores no âmbito
Este artigo tem como objetivo problematizar esta do Programa Dê a Mão para o Futuro
Endereço eletrônico: andrea@circus.org.br
nova fronteira entre as responsabilidades públicas
e privadas, cujas indefinições (após cinco anos de ** Bacharel em Psicologia pela UNESP de Assis/SP.
Associado à organização Circus, realiza atividades
PNRS) reproduzem elementos da discriminação
de coordenação e pesquisa no Observatório Latino-
estrutural e colaboram para a manutenção do americano de Logística Reversa
trabalho informal que garante operações de Endereço eletrônico: edinei@circus.org.br

Revista de Administração Municipal – RAM 17


Nesse sentido pergunta-se: o setor procedimentos e meios destinados a
empresarial teria responsabilidades no âmbito viabilizar a coleta e a restituição dos
do serviço de coleta seletiva? Caso seja positiva resíduos sólidos ao setor empresarial, para
a resposta: a partir de qual etapa do serviço reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros
(coleta, transporte, classificação, destinação)? ciclos produtivos, ou outra destinação final
Acreditamos que estas questões sejam ambientalmente adequada”.
fundamentais para efetivar os canais reversos Com o objetivo de consolidar a logística
dos produtos e embalagens pós-consumo reversa como uma operação logística sob
(resíduos sólidos urbanos) conforme previsto responsabilidade compartilhada entre setor
na PNRS. público e privado, as definições exatas de cada
uma das partes estariam descritas em contratos
Responsabilidade Compartilhada, coletivos denominados de acordo setorial. No
Logística Reversa e Acordo Setorial inciso I, artigo 3º da PNRS o acordo setorial está
A PNRS apresenta como maior avanço o definido na seguinte redação:
conceito da responsabilidade compartilhada “I – Acordo Setorial – ato de natureza
sobre o ciclo de vida dos produtos (ARAÚJO, contratual firmado entre o poder público e
2011, p. 71), que é definido no artigo 3º, inciso fabricantes, importadores, distribuidores ou
XVII, desta Lei: comerciantes, tendo em vista a implantação
“XVII – Responsabilidade Compartilhada: da responsabilidade compartilhada pelo
conjunto de atribuições individualizadas e ciclo de vida do produto”.
encadeadas dos fabricantes, importadores, Os acordos setoriais, portanto, devem
distribuidores e comerciantes, dos tratar das obrigações do setor empresarial
consumidores e dos titulares dos serviços na responsabilidade compartilhada, a partir
públicos de limpeza urbana e de manejo dos da norma geral contida nas regras descritas
resíduos sólidos, para minimizar o volume nos artigos 30 a 36 da Lei nº 12.305/2010,
de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem os quais se apresentam como uma tentativa
como para reduzir os impactos causados de delimitação de competências entre os
à saúde humana e à qualidade ambiental Municípios e o setor empresarial.
decorrentes do ciclo de vida dos produtos”.
Ao ancorar este conceito na PRNS o legislador
A divisão de competências no âmbito
reitera os deveres dos titulares dos serviços de da responsabilidade compartilhada
limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, ao Para lançar luz a essa problemática de
mesmo tempo em que institui a responsabilidade divisão de competências, descreveremos
do setor empresarial (fabricantes, importadores, abaixo quais são as competências atribuídas
distribuidores e comerciantes) e delimita as ao titular do serviço de limpeza pública. E na
obrigações do cidadão/consumidor. Assim, sequência retomaremos as descrições das
poder público, iniciativa privada e consumidor competências que deveriam ser atribuídas ao
compartilhariam de obrigações encadeadas setor empresarial.
e complementares sobre o ciclo de vida dos Do ponto de vista da prestação do serviço
produtos. público de coleta seletiva, há prerrogativa
Para viabilizar a implementação de uma constitucional para delegar aos Municípios
operação que deve ser conduzida pelo setor a competência de “organizar e prestar,
empresarial na responsabilidade compartilhada diretamente, ou, sob regime de concessão ou
a PNRS previu o instrumento de logística permissão, os serviços públicos de interesse
reversa, definido no artigo 3º, inciso XII: local”, conforme se afere do inciso V, do art.
“XII – Logística Reversa: instrumento 30, da Constituição Federal de 1988. Este é o
de desenvolvimento econômico e social caso dos serviços de limpeza urbana e manejo
caracterizado por um conjunto de ações, de resíduos sólidos que historicamente têm
sido prestados pelos Municípios. Após 19 anos

18 Revista de Administração Municipal – RAM


(Constituição é de 1988), o congresso brasileiro manejo de resíduos sólidos se encontra definida
concluiu a legislação para o Saneamento no art. 7º da Lei nº 11.445/2007 e compreende
Básico, conforme Lei nº 11.445/2007 que as seguintes etapas: coleta, transbordo e
institui a Política Nacional de Saneamento transporte, a triagem para fins de reuso ou
Básico. Nesta lei foram delimitadas as ações/ reciclagem, de tratamento, inclusive por
competências municipais para o saneamento compostagem, e de disposição final dos resíduos
básico, afirmado o caráter público desses urbanos, e ainda varrição, capina e poda de
serviços e ainda os divide nos seguintes ramos árvores em vias e logradouros públicos e outros
(art. 3º, inc. I): (a) abastecimento de água eventuais serviços pertinentes à limpeza pública
potável, (b) esgotamento sanitário, (c) limpeza urbana. A figura 1 demonstra graficamente a
urbana e manejo de resíduos sólidos e (d) subdivisão dos serviços relacionados ao manejo
drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. de resíduos sólidos urbanos, que nos interessa
A abrangência dos serviços de limpeza urbana e prioritariamente neste artigo.

Figura 1
Diagrama do Saneamento Básico: destaque para gestão de resíduos

No que se relaciona à responsabilidade do público de limpeza urbana e de manejo dos


setor empresarial (fabricantes, importadores, resíduos sólidos.
distribuidores e comerciantes) os acordos O retorno de produtos e embalagens pós-
setoriais e termos de compromisso firmados consumo ao ciclo produtivo se inicia com o
com o poder público coloca obrigações ao recolhimento de embalagens e produtos pós-
mesmo de estruturar e implementar sistemas consumo, seguida da triagem e prensagem
de logística reversa, mediante retorno de destes de acordo com sua classificação. Desta
produtos comercializados em embalagens forma, importa aos responsáveis por cada
plásticas, metálicas ou de vidro, e aos demais setor produtivo em geral a realização adequada
produtos e embalagens após o uso pelo destas etapas, nos quais, no momento histórico
consumidor, de forma independente do serviço atual, se integram os sistemas de logística

Revista de Administração Municipal – RAM 19


reversa. Ademais se incorporam a estes com o Setor Público com a finalidade de oferecer
serviços a organização da comercialização, ou ao consumidor/cidadão canais para o descarte
seja, os procedimentos administrativos para adequado dos produtos e embalagens pós
concretização da comercialização da matéria- consumo. Ao estabelecer um ou vários sistemas
prima secundária, atividades que integram de destinação dos produtos e embalagens pós
os produtos e embalagens pós-consumo consumo, isso quer dizer, a partir do momento que
a um sistema de circulação e produção de um serviço logístico esteja disponível ao cidadão,
mercadorias – o ciclo produtivo. o mesmo deverá adequar a gestão dos resíduos
Estamos diante do seguinte problema: o setor gerados em seu espaço doméstico (produto ou
privado (fabricantes, distribuidores, comerciantes embalagem pós-consumo) a fim de garantir sua
e importadores) compartilha responsabilidades destinação ao canal reverso adequado e disponível.

Figura 2
Diagrama da responsabilidade compartilhada: responsáveis e competências

Cooperativas de catadores: operador pelos programas de coleta seletiva formais ainda


é muito pequena” (BRASIL, 2012).
logístico ou alvo de assistência?
Estas experiências com programas de coleta
Os índices brasileiros de recuperação de seletiva são possíveis em função da operação lo-
resíduos sólidos em 2013 apontam para a gística realizada majoritariamente por cooperati-
recuperação de 27% do potencial de resíduos vas de catadores, seja em regime de contratos por
sólidos recicláveis (CEMPRE, 2013). Em termos serviços prestados (em sua minoria), convênios
monetários isso representa uma movimentação ou sem vínculos institucionais com as Prefeituras
financeira de 10 bilhões de reais. Municipais.
O processo de transformação de resíduos A pesquisa CicloSoft1 realizada pelo CEMPRE
sólidos em mercadorias tem início com o em 2014 constatou a presença do serviço de
trabalho dos catadores de materiais reutilizáveis coleta seletiva em 927 Municípios brasileiros
e recicláveis, mesmo porquê neste setor “a como podemos observar na figura 3.
participação dos resíduos sólidos recuperados

1
Existem três grandes referências que apresentam dados sobre a existência da coleta seletiva em Municípios brasileiros:
o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil (ABRELP, 2014), o Diagnóstico dos Resíduos Sólidos Urbanos (IPEA, 2012), e
a pesquisa CicloSoft (CEMPRE, 2014). Estas três referências utilizam dados do IBGE, SNIS, DATASUS e bancos próprios.
Optamos em apresentar dados da CicloSoft, pois a mesma apresentou informações sobre a presença estrutural das
cooperativas de catadores nas operações de coleta seletiva, informação compatível com a nossa análise. No entanto, convém
também sinalizar que os dados da CicloSoft contêm fragilidades relacionadas aos dados indicados pelos Municípios.

20 Revista de Administração Municipal – RAM


Figura 3
Municípios com coleta seletiva no Brasil

Fonte: Ciclosoft, 2014

Neste universo de 927 Municípios com estão operando a coleta seletiva e/ou central
coleta seletiva foi verificada a presença da de triagem através dos serviços prestados
operação de cooperativas e catadores em 76% pelas cooperativas de catadores de materiais
dos Municípios, ou seja, mais de 704 localidades recicláveis, conforme demonstrado na figura 4.

Figura 4
Modelos de coleta seletiva

Os dados sugerem dúvidas, questionamentos, operação e a coleta seletiva também se expande,


mas é inevitável constatar a presença sólida das não deveriam aumentar também os números
organizações de catadores atuando na operação de contratos entre cooperativas e prefeituras?
da coleta da fração seca do RSU. O que revela Ou entre cooperativas e os responsáveis pelos
um operador logístico com recursos humanos, sistemas de logística reversa?
culturais e tecnológicos com condições de Se por um lado, a participação das
assumir boa parte das operações logísticas e em organizações de catadores tem sido cada vez
mais de um canal reverso. Contudo, questiona- mais fiscalizada e de certa forma exigida, uma
se: se as cooperativas estão ampliando sua vez que a PNRS prioriza sua participação

Revista de Administração Municipal – RAM 21


em sistemas de coleta seletiva e logística recicláveis oriundos dos serviços de limpeza
reversa. Por outro lado, as mesmas continuam urbana e de manejo de resíduos sólidos; (d)
sem contrato de prestação de serviços. Uma realização de atividades definidas em acordo
pesquisa realizada nos 39 Municípios da Região setorial ou termo de compromisso. Isso decorre
Metropolitana de São Paulo (RMSP) concluiu do artigo 36, inc. de I a IV combinado com § 1º
que “a contratação do serviço das organizações deste mesmo artigo da Lei 12.305/2010.
de catadores pelas prefeituras (...) ainda é uma Em termos legais, a relevância das
realidade distante” (BESEN et al., 2014, p. 272). organizações de catadores de materiais
Como dito anteriormente, os acordos reutilizáveis e recicláveis é reconhecida na
setoriais visam à implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Porém, ao
responsabilidade compartilhada e foram mesmo tempo em que se reconhece seu aspecto
adotados pelo Governo Federal brasileiro e funcional para a “minimização do volume
pelo setor empresarial para tentar estruturar de resíduos sólidos gerados e a redução dos
os sistemas de logística reversa por meio do impactos ambientais a eles associados”, como
fomento de organizações de catadores de aponta Araújo (2011, p.72), esta lei se apresenta
materiais recicláveis. Para tanto, dentre outras como uma normativa que se implementa através
medidas, poderá (a) implantar procedimentos da reprodução de elementos da discriminação
de compra de embalagens ou produtos usados; estrutural, ao contrário do que deveria ser o
(b) disponibilizar postos papel do Estado, segundo
de entrega de resíduos Os acordos setoriais foram Oliveira (2011, p. 2). A
reutilizáveis e recicláveis; discriminação estrutural
adotados pelo Governo
(c) atuar em parceria com é conceituada aqui como
cooperativas ou outras Federal brasileiro e pelo “aquela que existe de forma
formas de associação de setor empresarial para tentar sistemática e decorre
catadores de materiais estruturar os sistemas de das relações de poder e
reutilizáveis e recicláveis. que se enreda no seio da
Assim se apreende da
logística reversa por meio sociedade, confundindo-se
leitura do caput do artigo do fomento de organizações com os valores culturais
33, combinado com seus §§ de catadores de materiais e sociais” (OLIVEIRA,
1º e 3º da Lei 12.305/2010. recicláveis 2011, p. 4). Segundo esta
No cumprimento da autora, é dever do Estado a
responsabilidade compartilhada pelo ciclo intervenção mediante “medidas especiais e
de vida dos produtos os titulares dos serviços ações afirmativas” junto a grupos atingidos pela
de limpeza urbana e manejo de resíduos discriminação estrutural, os quais estão sujeitos
sólidos devem priorizar a organização, o a situações prolongadas de “marginalização
funcionamento, bem como a contratação de histórica” (OLIVEIRA, 2011, p. 4). Contudo,
cooperativas e outras formas de associação não está explícito na PNRS a definição de que
de catadores de materiais reutilizáveis e as cooperativas de catadores são operadores
recicláveis no que tange às seguintes atividades: logísticos. Estas são apresentadas como
(a) adoção de procedimentos para reaproveitar entidades ou grupos sociais (como um
os resíduos sólidos reutilizáveis e recicláveis parceiro), que ao serem assistidos, podem
oriundos dos serviços públicos de limpeza contribuir ao mesmo tempo para aumento dos
urbana e de manejo de resíduos sólidos; (b) índices de reciclagem. Assim, a PNRS revela
estabelecimento de sistema de coleta seletiva; para os responsáveis da logística reversa, não
(c) articulação com os agentes econômicos e um operador logístico para seu Sistema de
sociais medidas para viabilizar o retorno ao ciclo Logística Reversa, e sim, um sujeito coletivo
produtivo dos resíduos sólidos reutilizáveis e demandante de proteção e assistência social.

22 Revista de Administração Municipal – RAM


Conclui-se, portanto, que apesar de crescer diluir na indefinição de competências entre
a cada ano o número de Municípios com os setores público e privado, em combinação
programas de coleta seletiva, o universo de com a discriminação estrutural, que atinge
Municípios ainda é reduzido e a abrangência dos as cooperativas de catadores, impedindo sua
serviços de coleta seletiva restrita. E as poucas estruturação como operadores logísticos.
operações de coleta, classificação e destinação Diante deste contexto, prorroga-se o alcance da
que são realizadas por cooperativas de catadores universalidade e regularidade dos serviços de
continuam sendo realizadas de forma precária coleta seletiva no âmbito do manejo de resíduos
devido a discriminação estrutural reproduzida sólidos e dos sistemas de logística reversa.
pelos responsáveis pelo manejo dos resíduos Após cinco anos de promulgação da PNRS,
sólidos (poder público) e pela logística reversa o cidadão/consumidor não tem acesso a
(fabricante, distribuidor, importador). Portanto, canais reversos para as embalagens e produtos
tudo indica que o esperado efeito sinérgico pós-consumo e as cooperativas de catadores
da responsabilidade compartilhada pode se continuam operando de forma desumana.

Referências bibliográficas
ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães de. JURAS, Ilidia da Ascenção Garrido Martins. Comentários à Lei dos Resíduos
Sólidos: Lei 12.305, de 2 de agosto de 2010 (e seu regulamento). São Paulo: Editora Pilares, 2011.
BESEN, Gina Rizpah et al . Coleta seletiva na Região Metropolitana de São Paulo: impactos da Política Nacional de
Resíduos Sólidos. Ambient. soc., São Paulo, v. 17, n. 3, p. 259-278, Sept. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2014000300015&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 04 jul. 2016, 12:59:00.
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CEMPRE. Compromisso Empresarial para a Reciclagem. Review 2013. Disponível em:<http://www.cempre.org.br/
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OLIVEIRA, Patricia Fonseca Carlos Magno de. Erradicação da pobreza na atuação da defensoria pública: as várias
dimensões do acesso à Justiça na defesa dos direitos humanos dos catadores de materiais recicláveis, à luz da Lei
12.305/10. Disponível em: <http://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/13149/Patricia_F._Carlos_Magno_de_
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e Praxis, Rio de Janeiro, vol. 5, nº 8, 2014, p. 152-171. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/
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Revista de Administração Municipal – RAM 23


A Regulação dos Aterros Sanitários a
Partir da Avaliação de Indicadores de
Desempenho
Pedro Alexandre Moitrel Pequeno*

Resumo: A disposição final dos resíduos sólidos em aterros sanitários deve observar aspectos
técnicos, operacionais e também os relativos às questões jurídicas e administrativas, tanto do
operador, normalmente privado, como do órgão público contratante. Visando o equilíbrio dos
interesses, mas também por força da legislação brasileira, surge a regulação como mecanismo
institucional para garantir a qualidade dos serviços, a partir de indicadores cujas metodologias
para seu desempenho devem constar de um Plano de Operação, a ser elaborado pelo operador
e aceito consensualmente pelo poder concedente e pelo regulador. Desta forma, o Estado do Rio
de Janeiro, no âmbito da Política Estadual de Resíduos Sólidos, vem desenvolvendo, através da
entidade reguladora estadual, instrumentos normativos que possam garantir a universalização
e sustentabilidade desses serviços considerados essenciais.

Expressões-chave: Saneamento Básico; Gestão e Manejo dos Resíduos Sólidos; Regulação dos
Aterros Sanitários.

Introdução sejam os processos de tratamento, sempre


A população brasileira, com haverá alguma parcela sem possibilidade de
aproximadamente 200 milhões de habitantes reaproveitamento, considerada como rejeito,
e distribuída por quase seis mil municípios que deverá ser enterrada.
(IBGE, 2015), gera diariamente em torno de 180 No Estado do Rio de Janeiro, o maior
mil toneladas de resíduos sólidos considerados aterro sanitário localiza-se no Município de
domiciliares. Apenas metade desse total é Seropédica, recebendo em torno de 10.000
destinada a aterros sanitários, recebendo toneladas diariamente, provenientes do próprio
tratamento adequado. A parcela restante ainda município de Seropédica, do município do Rio
é disposta nos chamados lixões (ABRELPE, de Janeiro e de outros municípios vizinhos.
2014).
Discute-se muito se enterrar resíduos
sólidos em aterros sanitários já não seria * Engenheiro Civil Sanitarista; Mestre em
Saneamento e Saúde Ambiental, pela Fiocruz;
um procedimento ultrapassado, devendo-se
Doutorando em Engenharia Ambiental, pela UERJ;
então partir para soluções mais avançadas Engenheiro Regulador, Gerente da Câmara de
tecnologicamente, com recuperação energética Resíduos Sólidos da AGENERSA - Agência Reguladora
e econômica. de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio
Entretanto, é praticamente consenso entre de Janeiro e professor e consultor em saneamento
os especialistas que por mais eficientes que ambiental.

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Figura 1
Vista do Aterro Sanitário de Seropédica/RJ

Fonte: www.ciclusambiental.com.br

Nos Estados Unidos e em diversos países da Com a aplicação da Lei 11.107/2005 – Lei dos
Europa, mesmo com a adoção de tecnologias Consórcios Públicos, os municípios começam a
mais avançadas para tratamento dos resíduos, a se organizar para a gestão regionalizada dos
escassez de áreas adequadas para implantação resíduos sólidos, como opção aparentemente
de novos aterros sanitários, junto a exigências mais vantajosa, podendo propiciar redução
ambientais cada vez mais restritivas, resultaram dos custos e criar escalas de operação mais
na diminuição da quantidade desses aterros e adequadas para os aterros sanitários (BRASIL,
o prolongamento da vida útil dos já existentes 2007).
(ISWA, 2014). Este artigo apresenta um breve relato
Isso tem sido possível através de incentivos à de como o Estado do Rio de Janeiro vem se
reciclagem e a outros processos de recuperação estruturando para a adoção de um modelo de
econômica dos resíduos sólidos, mas gestão de resíduos sólidos baseado tanto no
também com base em arranjos institucionais apoio individual aos municípios, mas também,
sustentáveis, com controle e regulação da e principalmente, através da gestão associada
prestação dos serviços. e formação de consórcios intermunicipais,
No Brasil, o cenário desconfortante é agravado incluindo a inserção da regulação para o
pela insuficiente capacidade orçamentária dos controle da prestação dos serviços.
municípios que, por questões políticas, evitam
cobrar dos usuários encargos proporcionais aos O processo no Estado do Rio de
custos demandados. Em relação às despesas, Janeiro
observa-se que raramente os municípios têm O Estado do Rio de Janeiro, ao desenvolver
consignadas corretamente essas obrigações a Política Estadual de Resíduos Sólidos,
nos planos plurianuais, nas leis de diretrizes realizou estudos de regionalização e criação
orçamentárias e nas leis orçamentárias anuais. de consórcios públicos intermunicipais para

Revista de Administração Municipal – RAM 25


gestão associada dos resíduos sólidos. O ainda são lançados em lixões, correspondendo
objetivo é garantir a disposição adequada de a aproximadamente 20 Municípios de pequeno
aproximadamente 15 mil toneladas de resíduos porte, sem lançamento adequado e contrariando
sólidos domiciliares, gerados diariamente nos a Lei nº 12.305/2010, que instituiu a Política
92 Municípios fluminenses. Nacional de Resíduos Sólidos (SEA/SGRS, 2016).
Estima-se que atualmente mais de 90% A Figura 2 apresenta o cenário tendencial,
dos resíduos sólidos domiciliares coletados já com os consórcios já existentes, outros em
estejam sendo dispostos em aterros sanitários formação e alguns municípios que optaram por
licenciados. Menos de 10% desses resíduos não se associarem.

Figura 2
Regionalização dos Resíduos Sólidos no Estado do Rio de Janeiro

Fonte: SEA/RJ/Superintendência de Gestão de Resíduos Sólidos, 2016.

A Política Nacional de Saneamento Básico, estadual, a partir de trabalho desenvolvido


estabelecida pela Lei nº 11.445/2007, em Acordo de Cooperação Técnica com a
estabelece ser obrigatório o controle da Secretaria de Estado do Ambiente durante a
prestação dos serviços através da adoção de elaboração da Política Estadual de Resíduos
mecanismos de regulação, com designação da Sólidos, foi designada para atuar no controle
entidade reguladora pelo titular dos serviços. da prestação dos serviços de resíduos sólidos,
Desta forma, a AGENERSA û Agência tanto em relação aos consórcios públicos, como
Reguladora de Energia e Saneamento do Estado também, dependendo do caso, para os aterros
do Rio de Janeiro, como entidade reguladora municipais e privados.

26 Revista de Administração Municipal – RAM


Os aterros sanitários atuais sob o O aterro sanitário de Seropédica, cuja imagem
aérea pode ser visualizada na Figura 1, se
ponto de vista institucional
enquadra nesta modalidade institucional,
Em função de lacunas observadas na tendo como contratante o município do Rio de
legislação, que poderiam gerar graves riscos Janeiro.
ambientais e de saúde pública pela inadequada A partir dos consórcios intermunicipais,
disposição final dos resíduos sólidos coletados implementados com o auxílio do Governo
pelas prefeituras municipais, o Estado do Rio Estadual, há expectativas de que os aterros
de Janeiro, quando da elaboração da Política regionais consorciados comecem a ser
Estadual de Resíduos Sólidos, aprovou a Lei operados, podendo permitir o encerramento
no.6362, de dezembro de 2012, que estabelece de alguns lixões ainda existentes. Entre esses
critérios para a não interrupção desses serviços casos destacam-se os aterros dos Municípios
e classifica os aterros sanitários em quatro de Vassouras, de Paracambi e de São Fidélis, a
modalidades institucionais. atender, respectivamente, os consórcios do Vale
Aterro sanitário municipal – aquele com do Café, Sul Fluminense e Noroeste (PERS, 2013).
licença ambiental emitida em nome do
Município, ou de ente integrante de sua Os principais marcos regulatórios e o
administração indireta, e que seja operado pelo papel da regulação do saneamento
próprio Município ou por ente integrante de
sua administração indireta. básico
Aterro sanitário municipal concedido –aquele Foram necessários muitos anos de poucos
cuja operação tenha sido outorgada, em regime avanços e intensos debates para que o setor do
de concessão ou permissão, à empresa privada, saneamento pudesse estabelecer novos marcos
pelo Poder Público. regulatórios consistentes e atualizados.
Aterro sanitário regional – aquele constituído Em consonância com a Constituição Federal,
no âmbito das regiões metropolitanas, no artigo 23, que estabelece ser competências da
aglomerações urbanas e microrregiões, ou União, dos Estados e dos Municípios promover a
em regime de gestão associada, notadamente melhoria do Saneamento Básico, e no artigo 30,
mediante consórcio público que o Estado que estabelece como atribuição dos municípios
integre. legislar sobre assuntos de interesse local, como
Aterro sanitário privado ou autorizado é o caso da limpeza urbana, foram promulgadas
– aquele empreendimento privado que, as Leis Federais nº 11.107/2005, que versa
possuindo licenciamento ambiental e alvará sobre Constituição de Consórcios Públicos; a
de funcionamento para disposição final de Lei Federal nº 11.445/2007, que estabelece
resíduos sólidos, não possua outorga, em Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico;
regime de concessão ou permissão, do Poder e a Lei Federal nº 12.305/2010, que institui a
Público local, dos conselhos deliberativos das Política Nacional de Resíduos Sólidos.
regiões metropolitanas, aglomerações urbanas A Lei Federal de Saneamento, nº
ou microrregiões, ou das assembléias gerais 11.445/2007, define em seu art. 3º que entre
dos consórcios públicos. os serviços considerados de saneamento
Entre os aterros sanitários existentes, básico, figuram os relativos aos resíduos
constata-se que em sua maioria são aterros sólidos, incluindo a limpeza urbana e manejo
implementados pela iniciativa privada, definidos de resíduos sólidos, compostos pelo conjunto
pela lei estadual como aterros sanitários de atividades, infra-estruturas e instalações
autorizados, normalmente contratados pelas operacionais de coleta, transporte, transbordo,
municipalidades em contratos de curto prazo. tratamento e destino final do lixo doméstico
Outro modelo institucional gradativamente e do lixo originário da varrição e limpeza de
adotado é o da concessão municipal para logradouros e vias públicas (BRASIL, 2007).
operação, em alguns casos também incluindo o O art. 11. estabelece que entre as condições
fornecimento da área e as obras de implantação. de validade dos contratos está a existência de

Revista de Administração Municipal – RAM 27


normas de regulação, incluindo a designação da O art. 3º dessa lei estadual estabelece que,
entidade de regulação e de fiscalização. em caso de perigo ou risco iminente ao meio
O art. 12. estabelece que a entidade de ambiente ou à saúde pública, o Estado do Rio
regulação definirá as normas técnicas relativas de Janeiro poderá, motivadamente, adotar
à qualidade, quantidade e regularidade dos providências relacionadas ao funcionamento
serviços; as normas econômicas e financeiras de aterros. E quando medidas acauteladoras
relativas às tarifas, aos subsídios e aos não forem suficientes ao resguardo do interesse
pagamentos por serviços prestados aos usuários público, poderá intervir no aterro, com a
e entre os diferentes prestadores envolvidos; a assunção da sua operação, no estado em que se
garantia de pagamento de serviços prestados encontrar, entre outras determinações.
entre os diferentes prestadores dos serviços; Já o art. 6º estabelece que a regulação dos
os mecanismos de pagamento de diferenças aterros sanitários regionais e autorizados
relativas a inadimplemento dos usuários, será feita pela AGENERSA, a partir de data
perdas comerciais e físicas e outros créditos fixada pelo Chefe do Poder Executivo, e que
devidos, quando for o caso. a regulação dependerá de autorização pelo
No Capítulo V da mesma Município, nos casos dos
lei federal, que trata espe- aterros sanitários públicos
cificamente da Regulação,
Há não mais de vinte anos municipais e concedidos.
o art. 21 estabelece que o as ações de regulação Foram ainda aprovadas
exercício da função de re- desempenhadas por agências as Leis nº 6.333/2012 e
gulação atenderá aos prin- reguladoras em relação aos 6.334/2012, que, respec-
cípios de independência tivamente, autorizam o
decisória, incluindo auto-
serviços de abastecimento de Estado do Rio de Janeiro a
nomia administrativa, or- água e esgotamento sanitário, participar do Consórcio de
çamentária e financeira da já apresentam um histórico Resíduos Sólidos na Baixa-
entidade reguladora. de realizações. Entretanto, em da Fluminense e de diver-
Cabe observar que, ao sos outros Consórcios para
se analisar o art. 21 citado, relação aos resíduos sólidos a Resíduos Sólidos.
constata-se que as entidades regulação apenas se inicia Em todos esses
reguladoras devem ter instrumentos estaduais,
características que fazem delas instituições a Agenersa figura como o ente regulador
independentes. No entanto, percebe-se que designado para o controle da prestação
muitas entidades reguladoras no Brasil não vêm dos serviços de resíduos sólidos, conforme
atendendo a esse princípio, podendo resultar em condições preestabelecidas.
fragilidades no controle dos serviços. Mesmo que de forma ainda bastante
No âmbito estadual é importante se destacar incipiente, há não mais de vinte anos as ações
o Decreto Estadual nº 43.153/2011, que dispõe de regulação desempenhadas por agências
sobre a participação do Estado do Rio de reguladoras, em sua maioria autarquias
Janeiro nos consórcios públicos, estabelecendo estaduais, em relação aos serviços de
diversas condições, entre elas a participação da abastecimento de água e esgotamento sanitário,
AGENERSA, como entidade reguladora. já apresentam um histórico de realizações.
Destaca-se também a Lei Estadual nº 6.362, Entretanto, em relação aos resíduos sólidos a
de dezembro de 2012, que classifica os aterros regulação apenas se inicia.
sanitários sob o ponto de vista institucional, cujas Apesar do controle pela prestação dos
modalidades já foram descritas anteriormente, serviços de saneamento ser uma necessidade
mas também estabelece condições para que percebida pela sociedade, os conceitos sobre
o Estado do Rio de Janeiro intervenha na regulação são ainda pouco conhecidos, não
operação dos aterros, se assim a gravidade de apenas pelos poderes concedentes, mas
determinadas situações ensejarem. também pelos próprios operadores.

28 Revista de Administração Municipal – RAM


A Figura 3 apresenta o triângulo equilátero autarquia ou uma empresa municipal. Nesses
da regulação que, apesar de já ser muito casos, o serviço poderia ser interrompido pela
explorado, é ainda pouco conhecido pelos falta de pagamento pelo cidadão usuário.
outros setores da sociedade. No caso dos aterros sanitários, os usuários
normalmente não são os cidadãos diretamente,
Figura 3 mas sim a própria prefeitura municipal,
Triângulo equilátero da Regulação que desempenhará tanto o papel de poder
concedente, como de usuário daquele aterro.
A interrupção dos serviços, considerados
Usuários essenciais, pelo não pagamento pelo cliente
órgão público, dificilmente poderá ocorrer,
o que faz da regulação um novo desafio a ser
enfrentado.
A entidade reguladora, observado o disposto
nos documentos licitatórios e no Plano de
Operação, deve regular os serviços efetuando
Regulador
toda e qualquer mediação administrativa entre
o poder concedente e/ou o operador, a fim de
assegurar a prestação adequada dos serviços.
Como tarefa básica, a entidade reguladora
deverá determinar os reajustes das tarifas,
Operador Poder Concedente conforme critério definido contratualmente,
revisando ordinariamente a cada período
previsto contratualmente, sendo mais comum
O regulador, tendo a atribuição de manter a cada cinco anos a contar da assinatura dos
o equilíbrio dos interesses dos três vértices, contratos, e extraordinariamente, em virtude
nem sempre coincidentes, estaria no centro do de eventos específicos, com vistas a assegurar
triângulo, em cujos vértices estariam o poder o equilíbrio econômico-financeiro.
concedente, os usuários e o operador. A entidade reguladora deverá ainda avaliar
Nos casos de abastecimento de água e e aprovar a execução de novos serviços
esgotamento sanitário, o poder concedente, acessórios decorrentes do avanço tecnológico
como titular dos serviços, é o município. Uma na exploração do potencial econômico da
ressalva deve ser feita em relação às regiões massa de resíduos sólidos, possibilitando que
metropolitanas, onde, a partir de decisão recente o operador possa obter receitas acessórias aos
do Superior Tribunal Federal (STF), a partir do contratos.
julgamento da Ação de Inconstitucionalidade Deverá também aplicar penalidades cabíveis
– ADIN 1852, a titularidade desses serviços por não cumprimento contratual, ou em relação
deve ser compartilhada entre os municípios a normas regulamentares e legais incidentes,
integrantes a essa região e o Estado em que sendo assegurado ao operador o contraditório
estão inseridos (STF, 2013). e a ampla defesa, que decorrem do princípio do
Os usuários que consomem água a partir devido processo legal.
de ligação às redes públicas, pagam as tarifas Entre suas rotinas, a entidade reguladora
correspondentes ao próprio consumo, podendo deverá examinar a qualidade dos serviços,
o operador ser uma empresa estatal estadual, visando ao cumprimento dos indicadores de
como no Estado do Rio de Janeiro a CEDAE, desempenho elencados, bem como as normas
ou uma empresa privada contratada pelo técnicas e padrões necessários à prestação
titular, normalmente em regime de concessão. dos serviços. Especial atenção deverá ser
O operador pode também ser o município dada à regularidade, segurança, continuidade,
diretamente, ou indiretamente, a partir de uma modicidade tarifária, eficiência, atualidade

Revista de Administração Municipal – RAM 29


tecnológica, exercendo o controle sobre os bens 1.2 - Econômico-Financeiros
reversíveis, mantendo arquivadas informações, • Regularidade econômica (Demonstração
dados e documentos disponíveis de qualquer dos Custo dos Serviços; Sistemática
natureza relacionados aos serviços regulados. Tarifária; Subsídios; Subsídios Cruzados;
CAPEX; OPEX; Taxa Interna de Retorno;
Os indicadores de qualidade e Receitas Ordinárias; Receitas Acessórias);
desempenho • Contabilidade Regulatória e Plano de
Em conformidade com suas atribuições Contas;
legais e regimentais, a entidade reguladora • Regularidade societária e fiscal (Federal,
estadual criou setor técnico específico para Estadual e Municipal);
regulação dos resíduos sólidos e nomeou grupo • Geração de receitas acessórias (influenciada
de trabalho para desenvolver instrumentos pelo estabelecimento de outros fluxos
normativos que tratem de indicadores de internos como triagem para reciclagem,
qualidade e desempenho. Esses indicadores compostagem, utilização de biogás, MDL
devem ser observados pelos operadores dos etc.);
aterros sanitários regulados, a partir de um • Contabilização e aplicação das receitas
Plano de Operação pactuado entre as partes. acessórias.
Muito se discute no ambiente da regulação, 1.3 - Jurídico-Legais
principalmente no âmbito da ABAR – Associação • Regularidade trabalhista;
Brasileira de Agências de Regulação, sobre • Regularidade quanto ao atendimento às
os indicadores de qualidade e desempenho condicionantes das Licenças Ambientais.
a serem aplicados na avaliação dos serviços
2 - Condições Técnico-Operacionais
(Galvão et all, 2007)
2.1 - Gerenciamento dos Serviços
Os indicadores qualitativos, que não podem
• Elaboração e atendimento ao Plano de
ser mensurados, mas apenas estimados, como
Operação;
por exemplo, “Atende”, “Não atende”, “Bom”,
• Rotinas administrativas e Operacionais
Regular”, podem ser subjetivos e não permitirem
(Organogramas; Fluxogramas; Rotinas
avaliações mais concretas. Por esta razão, os
das equipes de gerenciamento,
indicadores quantitativos são mais apropriados.
incluindo vigilância; Rotinas das equipes
Por estarem na composição dos custos e nas
operacionais).
tarifas cobradas, todos os aspectos necessários à
operação dos aterros sanitários, especialmente 2.2 - Ampliação, adequação, manutenção e
em contratos de concessão, devem ser operação da estrutura física
observados e permanentemente controlados. • Manutenção das instalações previstas no
Em função disso, foram elencados diversos projeto licenciado;
indicadores de desempenho, que praticamente • Manutenção das áreas de influência
são itens operacionais a serem observados pelo externas (delimitação, isolamento visual
operador, não apenas técnicos e operacionais, e ambiental da vizinhança, sinalização de
mas também jurídicos e administrativos. identificação e de acesso; manutenção dos
1 - Indicadores Institucionais, Econômico- acessos etc.) e das vias internas;
Financeiros e Jurídico-Legais • Manutenção e Operação das Estações de
1.1 - Institucionais Transbordo (se houver);
• Participação e Controle Social; • Manutenção da estrutura administrativa
• Comunicação Social e Comunicação Visual; (recepção/guarita; escritórios; almoxarifado;
• Atendimento a Usuários e Serviço de oficina; vestiários; banheiros etc.);
Atendimento ao Consumidor (SAC); • Manutenção e Operação do Sistema de
• Registro e procedimentos quanto aos Monitoramento Remoto (se houver);
Índices de Reclamações e ocorrências na • Manutenção do sistema de pesagem de
Ouvidoria. veículos (balança rodoviária), incluindo a

30 Revista de Administração Municipal – RAM


regularidade quanto às normas de aferição; O Plano de Operação
• Implementação e manutenção do sistema de Como característica de contratos de longo
impermeabilização da base do aterro; prazo, em que a tecnologia disponível e os
• Implementação e manutenção do sistema métodos operacionais podem se alterar ao
de drenagem de águas pluviais (provisória e longo do tempo, as questões administrativas,
definitiva); legais e fiscais também podem sofrer alterações,
• Implementação, manutenção e operação do exigindo flexibilidade no controle dos serviços.
sistema de drenagem e de tratamento de O Plano de Operação, pactuado entre o
efluentes líquidos (chorume); poder concedente, o regulador e o operador,
• Implantação e operação do sistema de é um instrumento utilizado para permitir
monitoramento das águas subterrâneas. que a forma de prestação dos serviços seja
• Disponibilidade de material para permanentemente atualizada, em função de
recobrimento; Qualidade do material para novas demandas, de novas exigências legais,
recobrimento; dos recursos disponíveis, e dos indicadores de
• Controle da ocorrência de focos de queima desempenho e qualidade desejados.
espontânea; O operador, ao elaborar o Plano de Operação,
• Recobrimento dos resíduos e manejo das deverá observar os indicadores elencados e
células, com Controle da Capacidade de demonstrar detalhadamente a metodologia
Encaixe do Aterro (operação de aterramento para sua consecução, bem como propor a forma
dos resíduos e manejo das células visando de mensurá-los. Em casos de não conformidades
garantir a vida útil projetada para o aterro, detectadas em função do estabelecido no Plano
ou sua otimização); de Operação, o operador poderá estar sujeito a
• Implantação, manutenção e operação do sanções ou penalidades.
sistema de drenagem, de queima e/ou Essas sanções, que poderão ser de
aproveitamento e de emissão de gases; advertência, ou até mesmo penalidades
• Manejo adequado de resíduos sólidos de pecuniárias, também deverão ser definidas em
serviços de saúde (lixo hospitalar); comum acordo entre o poder concedente, o
• Manejo adequado dos resíduos da operador e o regulador, quando da apreciação
construção civil; e aprovação do Plano de Operação.
• Redução das quantidades de resíduos a A elaboração do Plano de Operação deverá
serem aterrados (triagem para reciclagem, demandar prazo, normalmente proposto
compostagem etc.); para 180 dias, também pactuado entre as
• Redução da geração de biogás (relacionado partes, durante o qual a entidade reguladora
com a triagem e processamento da parcela aplicará apenas sanções de advertência pelas
compostável); não conformidades, não devendo aplicar
• Operação e Manutenção de equipamentos sanções de multas, salvo aquelas estabelecidas
(tratores de esteira, pás carregadeiras, cami- em contrato, estando o operador sujeito a
nhões basculantes, retroescavadeiras etc.); notificações para estabelecimento de prazos
• Controle da presença de vetores de pequeno para o enquadramento nas respectivas
porte (moscas ou outros) e de aves vetores conformidades.
(urubus, garças ou outras);
• Controle da presença de animais (cachorros, Considerações finais
porcos, bois ou outros); A ineficiência na gestão municipal dos
• Controle da presença de catadores; resíduos sólidos pode ser explicada pela
• Disposição final e/ou Tratamento dos inadequação dos arranjos institucionais, por
Resíduos Sólidos problemas orçamentários e pela deficiência
• Estrutura e ações para emergências e ou ausência de fiscalização e regulação da
contingências prestação dos serviços.

Revista de Administração Municipal – RAM 31


Para superação desses problemas, os do setor no Estado do Rio de Janeiro, com
municípios vão depender da participação intensa destaque para a inserção da regulação através
e efetiva da esfera estadual, principalmente da Agenersa, como ente regulador estadual,
no fomento e aporte financeiro, mas também poderá permitir aos municípios, como titulares
na capacitação técnica. É fundamental o dos serviços, e também ao setor privado, como
engajamento dos prefeitos e das câmaras operador, maior segurança quanto às inerentes
municipais no entendimento da importância incertezas na prestação de serviços púbicos, o
do ordenamento institucional e orçamentário, que certamente resultará em indicadores de
capazes de superar os problemas de receitas e qualidade mais satisfatórios.
despesas, muito característicos dos serviços de Face aos avanços nas ações de planejamento,
resíduos sólidos. Em função das características principalmente pela elaboração do Plano
de cada região e da necessidade de economia de Estadual, na formação dos consórcios e no
escala, há também a necessidade de se entender estabelecimento da regulação, espera-se que,
o potencial da gestão associada, incluindo o em médio prazo, possam surgir avanços na
conceito de consórcio criado pela lei. qualidade dos serviços relativos à disposição
A elaboração de uma série de decretos final dos resíduos sólidos no Estado do Rio de
e de leis estaduais visando ao ordenamento Janeiro.

Referências Bibliográficas
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BRASIL. Casa Civil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília - DF, 1988.
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______ Lei Federal nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Brasília - DF, 2007.
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_______Lei Federal nº 12.305, de 2010.
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SNIS. Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto - 2013. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Saneamento
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http://www.ciclusambiental.com.br/ciclus_ctr.php
http://www.ersar.pt/website_en/
http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/773393/acao-direta-de inconstitucionalidade-adi-1852-df

32 Revista de Administração Municipal – RAM


As Organizações Policiais e
a Gestão Pública
Cesar José de Campos*

Resumo: Este trabalho busca trazer reflexões sobre a importância das instituições policiais
serem compreendidas como organizações públicas prestadoras de serviços de segurança, com os
mesmos dilemas e desafios dos sistemas organizacionais em geral, porém com a especificidade
e complexidade características da atividade policial. Suas exigências e dilemas são semelhantes
aos demais sistemas organizacionais, mudando apenas em sua característica, mas não na sua
essência.
Alerta para a importância das atividades de segurança pública como fator indispensável
ao desenvolvimento econômico e social em qualquer sociedade. Chama a atenção para a
complexidade das questões relacionadas à segurança pública e propõe a participação de
equipes multidisciplinares como um dos caminhos para a melhoria da qualidade dos serviços de
segurança pública prestados à sociedade.
Apresenta o Programa Delegacia Legal, implantado no Estado do Rio de Janeiro, desde 1999, ao
longo de seis governos, como uma experiência bem-sucedida de mudança organizacional em
uma organização policial – a PCERJ – Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, obtendo, inclusive,
o reconhecimento internacional da Organização das Nações Unidas – ONU, com o “Best Practices
Certificate” do Dubai International Award e UN-Habitat.

Expressões-chave: Gestão pública, segurança pública, delegacia legal.

Apresentação inverso, têm sido crescentes os insucessos e as


Este artigo é o relato da experiência de limitações dos Governos Estaduais em relação
implantação do Programa Delegacia Legal para ao tema.
a modernização e informatização da Polícia A singularidade desta experiência relatada
Civil do Estado do Rio de Janeiro – PCERJ, que decorre de não ter sido identificada, em 1999,
modificou o trabalho das delegacias policiais nenhuma outra experiência no Brasil que tivesse
em todo o Estado. A intenção é divulgar uma realizado uma mudança organizacional tão
experiência efetiva de modernização em uma radical em uma organização policial, que criou
organização policial, e abrir possibilidades um novo patamar operacional nas atividades
de estudos, análises e intervenções em outras de investigação e de polícia judiciária. Com uma
organizações policiais, diante do grande desafio visão sistêmica da instituição policial, viu-se
que a segurança pública tem apresentado em com clareza que tratava-se de uma organização
todas as instâncias de governo. As questões de pública prestadora de serviços de segurança
segurança pública entraram, inclusive, no rol de
prioridades dos Municípios e tem aumentado * Administrador (UFRJ), Msc Engenharia de
a participação das administrações municipais Produção (Coppe/UFRJ), MBA em Gestão do
na busca de soluções para tais problemas, Conhecimento (Coppe/UFRJ). Coordenador Geral do
pois envolvem a segurança dos cidadãos, o Programa Delegacia Legal, Governo do Estado do
desenvolvimento econômico e a paz social Rio de Janeiro.
nas suas regiões. E por outro lado, no sentido Endereço eletrônico: camposcj2@gmail.com

Revista de Administração Municipal – RAM 33


à população, com desafios nas questões de Delegacia Legal (SOARES, 2006). Não havia
natureza administrativa, gerencial, estratégica experiências semelhantes em outros Estados.
e operacional. As questões para as quais se buscava respostas,
O Programa Delegacia Legal envolveu o durante a implantação, não eram específicas
redesenho de processos, a redefinição de de segurança pública, em seu sentido técnico,
funções, o intenso uso de tecnologia existente na mas sim questões que se referiam ao sistema
época, o amplo treinamento, os novos padrões organizacional Polícia Civil.
de operação logística e novos ambientes de Assim, desde 1999 foram levantadas
trabalho. Foi adotada a técnica da reengenharia, dúvidas, perguntas, reflexões sobre os aspectos
por ser a mais avançada abordagem na época organizacionais do sistema de segurança
(1999) para projetos desta natureza e por se pública, tais como:
caracterizar pelo repensar fundamental e pela 1. estudos organizacionais na área da
reestruturação radical das atividades de uma segurança pública;
organização. Foi um redesenho do “por quê 2. estudos à luz das práticas e técnicas de
e do como fazemos”, no âmbito da segurança RH/gestão de pessoas no que se refere à
pública em que todas as atividades realizadas formação, treinamento, aperfeiçoamento,
pela Polícia Civil foram analisadas, redefinidas, motivação e remuneração de policiais;
redistribuídas e informatizadas. 3. estudos sobre o padrão de qualidade dos
O Programa Delegacia Legal, em 2006, foi serviços de segurança pública;
reconhecido pela ONU – Organização das Nações 4. estudos sobre os problemas de logística nas
Unidas com o Prêmio Dubai, coordenado pelo organizações policiais;
Un-Habitat, como um projeto merecedor do 5. carência de debate e de estudos referentes a
“Best Practices Certificate” (CAMPOS, 2015). produtividade no trabalho policial;
Assim, este artigo não é um estudo teórico- 6. carência de debate e de estudos sobre a
crítico, mas um relato de uma experiência de relação custo X benefício nas atividades de
modernização baseada nas melhores técnicas segurança pública.
e ferramentas gerenciais disponíveis na época,
Por que uma atividade tão necessária para
que gerou resultados na prestação de serviços
a sociedade recebe tão pouca atenção em seus
à população e gerou impactos no sistema de
aspectos organizacionais?
segurança estadual.
O Programa não teve seu foco nos estudos de
Atualmente, todas as 163 delegacias policiais
controle ou prevenção da criminalidade, pois os
do Estado do Rio de Janeiro, localizadas na
vejo como decorrência do comprometimento da
capital e nos diversos Municípios do interior e
organização policial com a proteção do cidadão
da região metropolitana (VELOSO, FERREIRA,
e da sociedade para produzir desenvolvimento,
2008) seguem o modelo Delegacia Legal. Todas
paz e prosperidade. Procuro, sim, manter o
são informatizadas e integradas em rede, com a
foco no funcionamento da organização policial
linguagem e os procedimentos unificados, com
em relação ao seu desempenho, aos seus
relatórios gerenciais para todas as atividades,
resultados, à sua qualidade de serviços e à
com ambientes adequados ao trabalho policial,
sua racionalidade organizacional. O Programa
além de não mais possuírem carceragens para
Delegacia Legal teve como foco a melhoria da
presos à disposição da justiça.
infraestrutura como estratégia fundamental
Introdução para a evolução dos resultados no que diz
Desde o início da implantação do Programa respeito a atendimento e investigação.
Delegacia Legal no Estado do Rio de Janeiro, O professor Jorge da Silva, Cel. reformado
que modernizou e informatizou a Polícia da PMERJ, em seu livro, (SILVA, 2003, p. 28),
Civil, surgiram alguns questionamentos apresenta um diagnóstico preciso sobre as
sobre a segurança pública, para se entender dificuldades na segurança pública ao afirmar:
melhor os desafios no processo de mudança “A polícia não deve ser encarada como um mal
organizacional que se desenvolvia, denominado necessário. Pelo contrário, deve ser entendida

34 Revista de Administração Municipal – RAM


como um bem essencial à convivência social, poder absoluto e autônomo, cujos limites eram
e não um apêndice indesejável. Se é preciso estabelecidos apenas pela autoridade e vontade
melhorar a polícia no Brasil, isso não é tarefa a máxima do rei e da Corte (HOLLOWAY, 1997).
ser deixada somente para os próprios policiais”. A relação entre a polícia e a população
É possível perceber na citação acima que já se iniciou contaminada de autoritarismo,
tal distanciamento é uma dificuldade a ser desconfiança e distanciamento. Para acomodar
ultrapassada. Até mesmo os gestores públicos a Corte, era comum a Intendência Geral da
e administradores, em sua grande maioria, Polícia expulsar de suas casas os habitantes
ainda se colocam distantes deste tema. Não nativos do Rio de Janeiro, para dar lugar
percebem que sua contribuição pode ser efetiva aos funcionários do Rei e suas respectivas
e transformadora das condições de segurança famílias (HOLLOWAY,1997). Houve também a
pública em nossos Estados e Municípios, criação de uma nova força policial, em 1809,
deixando de ser um “caso ou problema de subordinada à Intendência, chamada de Guarda
polícia”. Avanços aconteceram, aumentando Real de Polícia, organizada militarmente, com
o interesse e o entendimento, relacionados ampla autoridade para manutenção da ordem
ao tema segurança pública. Já se tornaram e perseguição de criminosos e escravos. Foi
rotineiras as matérias na mídia falando de a primeira organização policial em tempo
estatísticas criminais, manchas criminais, integral (BATISTA, 2003). Esta Guarda Real de
direitos humanos, violência policial e desvios Polícia deu origem ao longo dos anos à criação
de conduta. A população ainda se relaciona de outras forças policiais nas províncias, que
com os temas de segurança pública apenas mais tarde, já na República, vieram a se tornar
pela aprovação e reprovação, depois de fatos o que conhecemos hoje como as atuais polícias
ocorridos e danos causados. militares dos Estados. A sua constituição era,
Este distanciamento em relação ao tema majoritariamente, de indivíduos que saíam
segurança pública é consequência de duas de classes sociais inferiores livres, dentre
fortes variáveis, dentre tantas outras. Uma, os com fama de mais brutais e violentos, o
relacionada à criação da atividade policial que agravava a sua relação com a sociedade
no Brasil. E a outra, do grau de complexidade (HOLLOWAY,1997). Estas duas instituições
da segurança pública, que envolve inúmeros foram, portanto, o ponto de partida para o que
conhecimentos de natureza organizacionais, hoje conhecemos como polícias no Brasil.
psicológicos, sociológicos, científicos, jurídicos, O segundo aspecto que influi no distancia-
políticos etc. mento da sociedade em relação à segurança
Historicamente, a formação oficial da polícia pública é a complexidade do tema. É um fato
brasileira se deu com a vinda da família real inegável que a complexidade da segurança pú-
para o Brasil em 1808, cujos problemas de blica, em certas situações, constrange policiais,
segurança eram uma de suas preocupações, estudiosos e pesquisadores que são surpreen-
porque metade da população era escrava didos com resultados inesperados e até mesmo
(GOMES, 2007). sucessos sem esclarecimentos plausíveis. São
Em 1808, a Intendência Geral da Polícia da inúmeros os casos de análise de resultados e
Corte e do Estado do Brasil foi criada por D. previsões com explicações absolutamente in-
João VI para a repressão a crimes comuns e consistentes e superficiais (CAMPOS, 2015).
também como órgão administrativo e político, Pode-se observar o fato objetivo da redução
responsável pelas obras públicas e informações ou do aumento de certos delitos em uma
à Corte sobre o comportamento do povo e determinada localidade, mas nem sempre as
de possíveis manifestações de movimentos razões para tal variação são de forma objetiva
populares, centralizando poderes legislativos, associadas ao fato. Tal correlação exige estudo
executivos (polícia) e judiciais. Ou seja, desde e análise, identificação de variáveis relevantes e
a sua formação a atividade policial brasileira possíveis interferências, que exige trabalho de
foi contaminada com um certo pensamento de especialistas multidisciplinares.

Revista de Administração Municipal – RAM 35


Assim, é difícil para o cidadão comum do fato ocorrido e das evidências apresentadas
entender as nuances, os sinais, as reações, (BITTNER, 2003).
os efeitos, as causas e os desvios que podem As características descritas acima não fazem
ocorrer no trabalho policial. da atividade policial algo que não se inclua no
A complexidade dos eventos na segurança estudo e análise de um sistema organizacional
pública pode ser observada se imaginarmos (PROENÇA JR). Podem ser estudadas, analisadas
dois proprietários de veículos, com escolaridade e entendidas como uma atividade de uma
superior, profissionais ou empresários, que organização pública, prestadora de serviços à
são responsáveis por uma colisão entre seus população (CAMPOS, 2015).
veículos, sem causar nenhum tipo de vítima. Suas exigências e dilemas são semelhantes
Eles discutem, de forma veemente, sobre a aos demais sistemas organizacionais, mudando
responsabilidade de quem causou o acidente. apenas em sua característica, mas não na sua
Em sendo ineficaz a discussão, não conseguem essência. A polícia é um sistema organizacional
entrar em um acordo sobre quem causou o que envolve objetivos e metas, formação,
acidente e quem deveria ser o responsável pelos treinamento, qualidade, estrutura, logística,
danos. E enquanto isso, centenas ou milhares de ética, controle, relação custo-benefício,
pessoas estarão prejudicadas pela interrupção eficiência, eficácia, resultados, motivação,
da via pública causada pelos veículos colididos. produtividade, e tantas outras questões
Diante de tal situação é exigida a presença de inerentes a um sistema organizacional
uma autoridade policial, com grau de instrução (CAMPOS, 2015). Encontramos mais estudos e
de ensino médio e formação policial de alguns artigos sobre a atividade policial no seu sentido
meses, para dar solução ao impasse existente, técnico de “fazer polícia”, do que estudos e
esclarecendo aos donos dos veículos, com artigos sobre os aspectos organizacionais de
escolaridade superior, sobre direitos, deveres e “como funciona a polícia”.
responsabilidades de cada um. E é nesse sentido que a experiência do
Nesta situação hipotética alguns aspectos Programa Delegacia Legal trouxe o desafio
podem ser observados sobre o trabalho policial de compreender a Polícia Civil do Estado do
e sua complexidade. São as características do Rio de Janeiro – PCERJ, como um sistema
sistema organizacional voltado para a prestação organizacional por conta de ter sido um
de serviços de segurança pública. processo de mudança em uma organização
O primeiro aspecto da atividade policial policial (CAMPOS, 2015).
está no fato de a sociedade delegar ao agente
policial a autoridade de intervir em situações Características do Programa
que não deveriam estar acontecendo e que Este programa de modernização foi um
algo deve ser feito para normalizar a situação. marco de revitalização da PCERJ, pelas suas
Seria uma espécie de autorização exclusiva ao inovações em relação aos processos de trabalho,
agente público policial para tratar dos diversos à logística, ao treinamento e na melhoria
problemas humanos, cujo uso da força pode até das condições de atendimento à população,
ser necessário para a sua solução (BITTNER, que envolveu mais de R$ 600 milhões em
2003). investimentos em obras, equipamentos,
O segundo aspecto seria a necessidade de treinamento e tecnologia da informação, ao
o agente policial ter os recursos intelectual, longo de seis governos estaduais, por mais de
emocional, psicológico e técnico suficientes 15 anos.
para entender e avaliar a situação para o qual Em seus objetivos, o Programa Delegacia Le-
foi chamado a intervir e a dar solução (CAMPOS, gal não abrangia a gestão do trabalho policial
2015). em si. O Programa se voltou, exclusivamente,
E o terceiro aspecto é o poder discricionário para os aspectos organizacionais de infraestru-
do agente policial para escolher qual decisão tura e dos processos de trabalho da Polícia Civil
tomar, a partir de seu entendimento e avaliação do Estado Rio de Janeiro – PCERJ, para:

36 Revista de Administração Municipal – RAM


1. aumentar a autoestima do policial civil; dedicados ao novo padrão de atendimento ao
2. incrementar a capacidade investigativa; público nas delegacias e o treinamento dos
3. melhorar o atendimento à população; policiais aos novos processos foi realizado pela
4. eliminar as carceragens das delegacias NUSEG/UERJ.
policiais.
O modelo de gestão
Tais objetivos foram atingidos pela Um dos fatores críticos de sucesso foi o
informatização, pelo treinamento intensivo, modelo de gestão de projeto, instituindo o
pelo uso de novas tecnologias, pela melhoria Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal,
dos ambientes de trabalho e pela redefinição com autonomia gerencial e orçamentária para a
dos processos de trabalho, adotando-se implantação do projeto.
a metodologia da relação entre os fatores
“relevância” e “ concretude” para cada ação Uso intensivo de tecnologia
desenvolvida (CAMPOS, 2015). Considerando a tecnologia existente em
As ações do Programa Delegacia Legal 1999, a informatização dos processos de
atingiram também as atividades da Polícia trabalho, a comunicação on-line entre as
Técnico-Científica, como a modernização e delegacias e o banco de dados, a captação de
informatização do Instituto Félix Pacheco – IFP e imagens digitalizadas, o georreferenciamento
da nova sede do Instituto de Medicina Legal – IML. de dados criminais, foram na época um grande
avanço para a segurança pública no Brasil.
Parceria com Universidades para atuar em
assuntos de segurança pública Projeto arquitetônico e mudança de layout
O diagnóstico, a análise dos processos de O projeto arquitetônico e a mudança do
trabalho, dos ambientes e do layout, do sistema layout interno trouxeram melhorias para a
informatizado de registro de ocorrência, do atividade policial e para a prestação de serviços
sistema informatizado de inteligência policial, à população. A eliminação da carceragem anexa
da estrutura do banco de dados de informações às delegacias chegou a liberar mais de 50% do
criminais e da estrutura de rede de comunicação efetivo policial nas delegacias para a atividade-
de dados foram realizados pela Coppetec/UFRJ. fim. Quando o policial “deixa de guardar preso”,
A supervisão de estágio de Serviço Social, ele fica disponível para a realização do real
Psicologia, Pedagogia e Comunicação Social trabalho da Polícia Civil – a investigação.
Figura 1
As novas delegacias policiais: modelo Delegacia Legal

Fonte: Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal

Revista de Administração Municipal – RAM 37


Informatização administrativa e operacional SIP – Setor de Inteligência Policial
A informatização completa dos processos Um dos avanços na concepção do Programa
de trabalho realizados pela delegacia policial, Delegacia Legal foi a criação, dentro de cada
sem transcrição de dados, nem retrabalho, delegacia, de um setor dedicado ao trabalho
reduziu de 64 livros de controles obrigatórios de inteligência policial com atenção voltada
ou burocráticos para apenas seis. Foram para os fatos e acontecimentos ocorridos no
desenvolvidos diversos aplicativos para âmbito da circunscrição da delegacia. O sistema
as atividades de registro de ocorrência; de está estruturado sob a forma de prontuários
inteligência policial; de georreferenciamento; individuais com informações e dados sobre os
de controle de armas e munições; laudos autores de crimes.
periciais; controle de acesso; além de links
com banco de dados do Tribunal de Justiça, Figura 3
Ministério Público, Detran etc. A informatização Sistema de Controle Operacional (SCO):
criou reais condições de gerenciamento do inteligência policial
trabalho policial, em todos os seus aspectos
tanto administrativos, quanto operacionais.
Figura 2
Tipo de ambiente interno das Delegacias Legais

Fonte: Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal Fonte: Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal

Banco de Dados Único Síndicos


Foi adotado o modelo de banco de dados Para exercer as funções relacionadas com
único para receber todas as informações a manutenção predial e de equipamentos, e
geradas pelas delegacias, permitindo a consulta com o controle de material de consumo, foi
ao banco de dados por todos os policiais, de criada a função de “síndico de delegacia”. É
acordo com os respectivos níveis de acesso. Pela um profissional não policial que não pode se
primeira vez todos produziriam conhecimento envolver com qualquer atividade de natureza
para a organização policial e todos usufruiriam policial, sob pena de ser demitido. Cada síndico
dos resultados. reduziu em pelo menos quatro policiais civis
em cada delegacia ocupados com funções
Georreferenciamento
administrativas. Estes foram deslocados para a
Com o simples preenchimento do campo atividade-fim.
de endereço da ocorrência, automaticamente,
esta informação é incluída no sistema de O Atendimento
georreferenciamento, criando as “manchas Melhorar o atendimento da população
criminais”. nas delegacias policiais, na medida em que a

38 Revista de Administração Municipal – RAM


imagem dominante na população era de que casas de custódia/cadeias públicas para
“tinha medo de entrar em uma delegacia”, foi abrigar todos os presos temporários que antes
um dos principais objetivos. O atendimento permaneciam nas delegacias.
não se restringia apenas ao primeiro contato Foram construídas 18 casas de custódia/
do policial com o cidadão, mas um conceito de cadeias públicas, gerando mais de 7.000 vagas
atendimento amplo, que envolvesse uma parte para os presos provisórios à disposição da
de triagem e uma parte de assistência técnica Justiça.
com o policial.
A triagem e o recebimento do cidadão são Figura 5
Interior das novas cadeias públicas/casas de custódia
feitos por universitários de serviço social e
psicologia, e o atendimento técnico de polícia,
como por exemplo o registro de ocorrência, é
realizado pelos policiais civis.
Figura 4
Modelo Delegacia Legal: balcão de atendimento

Fonte: Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal

Figura 6
Um dos modelos de cadeia pública/casa de custódia

Fonte: Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal

Casas de Custódia/Cadeias Públicas


O modelo que o Brasil adotou para o sistema
de segurança pública sempre manteve a
custódia de presos provisórios, à disposição da
justiça, sob a responsabilidade da Polícia Civil.
Observamos que em algumas delegacias chegava
a mais de 70% do efetivo policial envolvido
com as atividades de guarda, vigilância, revista,
alimentação, cuidados médicos, transporte
e escolta de presos. Com a implantação do
modelo Delegacia Legal, as carceragens foram
eliminadas das delegacias e foram construídas Fonte: Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal

Revista de Administração Municipal – RAM 39


Treinamento a Distância Os Impactos
Para responder às mudanças tecnológicas Desde a sua implantação, alguns impactos
e aos novos procedimentos adotados no causados pelo Programa Delegacia Legal
trabalho policial dentro das delegacias legais começaram a ser identificados por conta
foi necessária a adoção de diversos programas da interdependência existente entre as
de treinamento. Uma das estratégias adotadas organizações integrantes do sistema de
foi o treinamento a distância para familiarizar segurança, como Ministério Público, sistema
o policial com o novo ambiente tecnológico prisional, DETRAN, Tribunal de Justiça, Guarda
e motivá-lo a se treinar fora dos horários de Municipal etc. Neste trabalho selecionamos
trabalho, com casos reais de investigação, cuja alguns destes impactos, conforme se pode ler a
construção da linguagem e do conteúdo foi feita seguir.
por policiais.
O treinamento a distância foi estruturado Participação de profissionais
em módulos com diversos conteúdos, com 12 multidisciplinares
horas de atividades, com avaliações parciais Até 1999, não se ousava incluir na análise e
online e avaliação final presencial. na proposição de soluções para os problemas
Em 2003, a adoção pioneira de e-learning de segurança outras profissões que não fossem
no treinamento policial motivou a premiação relacionadas ao sistema jurídico criminal, ou
nacional da Associação Brasileira de seja, policiais civis ou militares, promotores,
Treinamento a Distância. procuradores, defensores, juízes, advogados ou
até mesmo militares das forças armadas. Com a
Figura 7 experiência da participação de pesquisadores,
Interior das novas cadeias públicas/casas de custódia sociólogos, antropólogos e policiais na redação
do livro intitulado Violência e criminalidade
no Estado do Rio de Janeiro: diagnóstico e
propostas para uma política democrática de
segurança pública (GAROTINHO; SOARES,
1998), abriu-se uma nova possibilidade de
participação de equipes multidisciplinares na
área de segurança pública.
Abriu-se um novo mercado de trabalho na
área da segurança pública com estudantes
universitários para os serviços de recepção
e triagem, os síndicos para as atividades
de manutenção, além dos profissionais
de tecnologia da informação, estatísticos,
Fonte: Grupo Executivo do Programa Delegacia Legal engenheiros, arquitetos e administradores para
garantir um padrão de excelência nos serviços
Logística de apoio operacional às atividades policiais.
Com a informatização das delegacias legais e Criação da Secretaria de Estado de
com a padronização dos materiais construtivos
Administração Penitenciária – SEAP
e dos materiais de consumo, tornou-se possível
a implantação de sistemas de gerenciamento Em resposta à demanda por vagas no
de aquisição e consumo de materiais, além sistema prisional, causada pela eliminação das
da manutenção predial e de equipamentos. carceragens das delegacias, foi criada a Secretaria
Cada delegacia passou a receber de forma de Estado de Administração Penitenciária
programada o material necessário, de acordo (SEAP), com quadro de funcionários próprio
com o seu histórico de consumo e o seu volume e especializado para suprir as necessidades
de ocorrências criminais. do serviço. Qualquer situação de rebelião tem

40 Revista de Administração Municipal – RAM


condições de ser totalmente controlada pela É sinal de doença grave e contagiosa, com risco
equipe de intervenção tática da SEAP. de matar o paciente. É necessário entendermos
que o sistema de segurança pública é formado
Aumento do efetivo policial na atividade-fim
por organizações públicas que prestam serviço
A criação da função de síndico, a adoção de à população e, como tal, devem ser gerenciados
estagiários no atendimento da população, a e devem prestar contas à população sobre a
informatização dos processos de trabalho e a qualidade de seus serviços e o cumprimento
eliminação das carceragens foram mudanças de seus objetivos. Não podem ser autônomas,
que deslocaram policiais de funções de natureza nem distantes das demais obrigações do poder
estritamente administrativa para a atividade-fim. público para com a população.
Unificação da linguagem policial e saber da Os insucessos e fracassos na segurança
organização pública têm forçado a participação cada vez
maior de outras instâncias de governo na busca
Antes da implantação das delegacias legais,
pela melhoria de resultados. A Força Nacional
cada delegacia constituía-se em um verdadeiro
e as Guardas Municipais são um exemplo.
feudo, isolada. Após a implantação da rede
A frustração pelos resultados na segurança
interligando todas as delegacias legais a uma
pública passou a ser rotina e a melhoria das
central de dados, a PCERJ unificou a linguagem
organizações policiais se torna inevitável para
dentro da organização e passou a ter condições
superarmos tal frustração. O envolvimento
de consolidar e analisar dados e informações
dos Municípios nas atividades de segurança
para a produção de conhecimento.
pública vem crescendo cada vez mais, variando
Interligação das delegacias com os juizados desde fiscalização do trânsito até policiamento
especiais criminais ostensivo até com guarda armada, mas nem
Para dar mais agilidade aos Juizados sempre consegue melhores resultados. O
Especiais Criminais foi providenciada a modelo das guardas municipais segue os vícios
interligação entre os Juizados e as Delegacias das organizações policiais existentes e não
Legais, com objetivo de, ao registrar uma são estruturadas como organizações públicas
ocorrência criminal de baixo poder ofensivo, o prestadoras de serviços de segurança, que
cidadão tenha a data da audiência no Juizado têm de prestar contas à população de forma
Especial Criminal (JECRIM) da circunscrição rotineira e permanente.
daquela delegacia. O policial acessa o sistema Entretanto, tais dificuldades e frustrações
de agendamento de audiência e recebe como podem ser um fator de motivação política e
resposta a data e a hora da audiência no JECRIM. de mobilização da sociedade para se buscar
uma mudança de abordagem e de postura
Dados disponíveis para pesquisas e diante do quadro da segurança pública. Esta
estatísticas atividade tão essencial para o desenvolvimento
Com a adoção de um banco de dados social e econômico de nosso país não deve ser
único para armazenamento das informações mantida distante das universidades, dos órgãos
criminais foram criadas as condições de pesquisa, das associações de interesse, dos
para a publicação de dados estatísticos da partidos políticos e da sociedade em geral,
criminalidade, demonstrando uma postura de para proporcionar o debate e o estudo entre
total transparência sobre a evolução e controle as organizações públicas prestadoras de
da criminalidade. serviços de segurança. Por que são numerosos
os livros e artigos sobre gestão, governança
Conclusão e administração voltados para as empresas
Muito trabalho há que ser feito na segurança públicas e privadas em geral, e para a atividade
pública no Brasil. Primeiramente, é necessário que assegura o ambiente adequado para
reconhecer que mais de 50 mil homicídios por emergir a prosperidade é tão pouco debatido e
ano, sem estado de guerra, é uma grave anomalia. estudado em seus aspectos organizacionais? É,

Revista de Administração Municipal – RAM 41


de fato, intrigante observar que diante deste grande policial em si e os aspectos da gestão do sistema
problema – a segurança pública – permanecemos organizacional das polícias, para melhorar a
ou incapazes, ou impotentes para lidar com o tema. formulação de políticas públicas e a execução
É necessário mobilizar técnicos para de projetos de modernização das organizações
analisar os aspectos da gestão da atividade policiais.

Referências Bibliográficas
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GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e
mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.
GAROTINHO, Anthony; SOARES, Luiz Eduardo. Violência e criminalidade no Estado do Rio de Janeiro: diagnóstico e
propostas para uma política democrática de segurança pública. Rio de Janeiro: Hama, 1998.
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do séc. XIX. Rio de Janeiro: Ed.
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Acesso em: 20 jan. 2012.
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SOARES, Luiz Eduardo. Legalidade libertária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
VELOSO, Fernando; FERREIRA, Sergio Guimarães (orgs.). É possível: gestão da segurança pública e redução da violência.
Rio de Janeiro: Ed. Contra Capa, 2008.

42 Revista de Administração Municipal – RAM


Parecer
Posturas municipais. Proliferação de
pombos. Controle de zoonoses
Guilherme Malvar da Costa*

Consulta
Prefeitura consulente solicita orientação acerca de possíveis medidas para controle de
pombos no Município, já que estes têm se reproduzido de forma descontrolada e ameaçado
a saúde e bem-estar da população local.

Resposta pelos alimentos costumeiramente oferecidos


pelas pessoas, e ainda problemas urbanísticos,
Os pombos domésticos (Columba livia) são como danos a fachadas, monumentos, pinturas
animais originários da porção mediterrânea da e superfícies dos aparelhos urbanos em decor-
Europa, do norte da África e da Ásia ocidental, rência da acidez de suas fezes, o entupimento
tendo sido introduzidos na América do Sul por dos sistemas de drenagem de águas pluviais e o
volta do século XVI. São largamente adaptados comprometimento do funcionamento de equi-
aos centros urbanos, em grande parte por pamentos diversos em razão do acúmulo de fe-
três fatores: oferta abundante de abrigo que a zes, penas e restos de ninhos.
arquitetura urbana oferece; ausência ou pouca Sob este prisma, cabe dizer que aos
influência de predadores naturais, como as aves Municípios, no exercício de sua autonomia (art.
de rapina; e grandes quantidades de alimentos 18) e competências legislativa e administrativa
disponíveis, sejam resíduos incorretamente (arts. 29 e 30) conferidas pela Constituição
dispostos, sejam alimentos oferecidos de forma da República Federativa do Brasil de 1988
eventual ou permanente por pessoas. (CRFB/88), cumpre a edição das denominadas
Pombos são também conhecidos transmis- posturas municipais, normas de iniciativa
sores de inúmeras doenças a humanos, tais legislativa concorrente entre os Poderes
como criptococose, histoplasmose, clamidiose, Executivo e Legislativo, decorrentes do poder
salmonelose, dermatites e alergias, geralmente de polícia de que dispõe o Estado e cujo objetivo
associadas a fungos e bactérias que se desen- precípuo é o de fixar as condicionantes de
volvem em suas fezes e secreções corporais atividades, bens e serviços que sejam danosos
e a diversos ectoparasitos associados, como ou inconvenientes ao bem-estar da população
carrapatos e piolhos. Além disso, a presença local. Nessa prerrogativa enquadra-se a edição
de pombos pode ocasionar graves problemas
ambientais, como a contaminação de águas e * Graduando em Direito, da Consultoria Jurídica do
de culturas agrícolas em razão de suas fezes e IBAM.
a proliferação de roedores e insetos atraídos Endereço eletrônico: guilherme.malvar@ibam.org.br

Revista de Administração Municipal – RAM 43


de normas objetivando, por exemplo, a defesa para a efetividade dos objetivos pretendidos.
do meio ambiente, da higiene, da saúde e do É preciso que, paralelamente à vedação
sossego públicos, o que inclui a adoção de imposta, o poder público municipal desenvolva
medidas referentes às plantas e animais nocivos campanhas educativas que levem à população
aos munícipes. os esclarecimentos necessários sobre o porquê
Nesse contexto, é possível ao Município da proibição, os benefícios sociais que podem
estabelecer, por intermédio da sua atividade dela advir, os potenciais riscos caso a norma
legiferante, a proibição de manutenção e continue sendo descumprida.
alimentação de pombos em vias, praças e demais São também cabíveis, de forma integrada,
locais públicos. Isso porque o tamanho das diversas outras ações de controle populacional
populações de pombos sofre influência direta dos pombos, diretamente implementadas
do número de habitantes humanos, e a elevada pelo poder público ou por instituições
concentração destes animais e a sujidade que especializadas em controle de pragas. Dentre
provocam, com suas penas e dejetos, colocam as medidas podemos citar: exclusão mecânica
em perigo a saúde e a qualidade de vida dos (instalação de redes, telas, alvenaria etc.);
munícipes, incluindo a pessoa que pratica o ato. dissuasão de pouso (aplicação de substâncias
Ao editar lei proibindo a prática da repelentes, instalação de fios de eletrorrepulsão
alimentação de pombos em locais públicos, etc.); desconforto ambiental (auditivos, como
está o Município cumprindo com sua obrigação equipamentos de ultrassom, e visuais, como
constitucional de promover o direito social à refletores luminosos).
saúde (art. 6º, CRFB/88). Com efeito, na forma Vale frisar que são proibidas ações
do art. 196 da CFRB/88, a “saúde é direito de envolvendo maus-tratos ou mesmo a eliminação
todos e dever do Estado, garantido mediante dos pombos, já que estes, por encartarem o rol
políticas sociais e econômicas que visem à de fauna silvestre exótica constante da Portaria
redução do risco de doença e de outros agravos IBAMA nº 93/1998, encontram proteção
e ao acesso universal e igualitário às ações legal na Lei nº 9.605/1999 (Lei de Crimes
e serviços para sua promoção, proteção e Ambientais). De acordo com o art. 2º, I da
recuperação.” Portaria IBAMA nº 141/2006, que regulamenta
Nos termos do art. 197 da Constituição, as o controle e o manejo ambiental da fauna
ações e serviços de saúde possuem relevância sinantrópica nociva (aquela que interage de
pública, “cabendo ao Poder Público dispor, forma negativa com a população humana,
nos termos da lei, sobre sua regulamentação, causando-lhe transtornos significativos de
fiscalização e controle, devendo sua execução ordem econômica ou ambiental, ou que
ser feita diretamente ou através de terceiros”. represente riscos à saúde pública), por controle
Por conseguinte, a prevenção de doenças é de fauna entende-se exclusivamente a “captura
também dever do ente municipal. De fato, a de espécimes animais seguida de soltura, com
obrigação do ente municipal para com a saúde intervenções de marcação, esterilização ou
não se resume ao tratamento das doenças, mas administração farmacológica; captura seguida
consiste, de igual forma, na prevenção destas, de remoção; captura seguida de eliminação; ou
envolvendo políticas públicas dos mais diversos eliminação direta de espécimes animais”. Mais
ramos, tais como saneamento básico, higiene, adiante, assim estabelece o art. 4º, §1º da citada
limpeza e conservação dos logradouros, dentre portaria:
outros. Art. 4º - O estudo, manejo ou controle
É dizer, ações e serviços de fiscalização da fauna sinantrópica nociva, previstos em
e controle constituem atos de gestão programas de âmbito nacional desenvolvidos
administrativa, sendo portanto de competência pelos órgãos federais da Saúde e da
exclusiva do Poder Executivo. Por óbvio, a Agricultura, bem como pelos órgãos a eles
simples edição de lei proibindo aos munícipes vinculados, serão analisados e autorizados
que alimentem pombos geralmente não se basta DIFAP ou pelas Superintendências do

44 Revista de Administração Municipal – RAM


IBAMA nos Estados, de acordo com a catus) e roedores sinantrópicos comensais
regulamentação específica vigente. (e.g. Rattus rattus, Rattus norvegicus e Mus
§1º - Observada a legislação e as musculus);
demais regulamentações vigentes, são [...] (grifos nossos).
espécies passíveis de controle por órgãos Por fim, mais adequado seria se as medidas
de governo da Saúde, da Agricultura e do aqui sugeridas fossem introduzidas no
Meio Ambiente, sem a necessidade de ordenamento local por meio de alteração no
autorização por parte do IBAMA: código de posturas ou legislação local que verse
[...] acerca do controle de zoonoses, aproveitando
c) animais domésticos ou de produção, toda a sistemática de sanções já existente,
bem como quando estes se encontram de forma a propiciar melhor entendimento e
em situação de abandono ou alçados facilidade de observância e aplicação da lei pelos
(e.g. Columba livia, Canis familiaris, Felis administrados e pela própria administração.

Revista de Administração Municipal – RAM 45


Parecer
Regularização fundiária dos
ribeirinhos. Cessão de uso.
Demarcação das terras.
Considerações
Jean Marc Weinberg Sasson*

Consulta
Indaga o consulente a respeito da regularização fundiária dos ribeirinhos e a respectiva
demarcação das terras.

Resposta restaram tão somente a obrigação legal do


Poder Público de promover e proteger o
Inicialmente, podemos afirmar que os patrimônio cultural brasileiro, por meio de
ribeirinhos devem ser reconhecidos como inventários, registros, vigilância, tombamento
Povos e Comunidades Tradicionais segundo o e desapropriação, e de outras formas de
Decreto nº 6.040/2007, que institui a Política acautelamento e preservação (art.216, §5º, CF).
Nacional de Desenvolvimento Sustentável Assim, a questão fundiária nas áreas
dos Povos e Comunidades Tradicionais, ribeirinhas da Amazônia mostra-se de todo
com ênfase para o acesso aos territórios dramática, uma vez que estas áreas são
tradicionais e aos recursos naturais, “povos e patrimônio público pertencentes à União. Dessa
comunidades tradicionais”, assim entendidos: maneira, o ribeirinho não possui a titularidade
“ grupos culturalmente diferenciados e que se da terra, mas apenas a posse da área ocupada,
reconhecem como tais, que possuem formas o que por si só gera insegurança jurídica. Por
próprias de organização social, que ocupam isso, faz-se necessária a regularização fundiária
e usam territórios e recursos naturais como dessas áreas implementando políticas públicas
condição para sua reprodução cultural, social, que viabilizem a superação dos impasses
religiosa, ancestral e econômica, utilizando sociais, jurídicos e ambientais.
conhecimentos, inovações e práticas geradas e Em outras palavras, as áreas ribeirinhas
transmitidos pela tradição.” são de domínio da União (art. 20, II e III, CF),
No entanto, diferentemente dos indígenas
e quilombolas que tiveram suas propriedades
reconhecidas expressamente pela Constituição * Advogado, Assessor Jurídico do IBAM.
Federal (art.67 e 68 do ADCT), aos ribeirinhos Endereço eletrônico: jmws_adv@hotmail.com

46 Revista de Administração Municipal – RAM


as quais não podem ser vendidas, doadas, ou V - titulação de reconhecimento
alugadas. Contudo, é possível o acesso ao solo e de domínio aos remanescentes das
aos recursos naturais por meio de autorização comunidades de quilombos;
do uso da União ao ocupante da terra. VI - autorização de uso para comércio,
Nesta esteira, torna-se preponderante a nos termos do art. 9º da Medida Provisória
avaliação da Secretaria de Patrimônio da União nº 2.220/2001.”
– SPU que identificará quais são as áreas da Aos ribeirinhos, é comum a utilização do
União ocupadas e cadastrar as famílias que Termos de Autorização de Uso Sustentável –
ocupam estas terras. Após o cadastro, a SPU TAUS, que podem ser emitidos em nome das
poderá emitir os seguintes instrumentos de famílias, da comunidade ou da associação, se
regularização fundiária, previstos no art. 8º da houver, nos termos do art. 9º da IN:
Instrução Normativa SPU nº 02/2014:
“Art. 9º Quando houver necessidade
“Art. 8º No âmbito dos programas de de reconhecimento de ocupação em área
regularização fundiária de interesse social da União como medida intermediária
em áreas da União poderão ser usados os no processo de regularização fundiária,
seguintes instrumentos de destinação: poderá ser utilizada a Autorização de Uso
I - concessão de uso especial para Sustentável – TAUS, nos termos da Portaria
fins de moradia - CUEM, nos termos da SPU nº 89/2010.”
Medida Provisória nº 2220/2001, Lei nº
No mais, no âmbito da Amazônia Legal, a
9.636/1998, Lei n° 10.257/2001 e IN SPU nº
regularização fundiária de áreas rurais situadas
02 de 23/11/2007;
parcial ou totalmente em áreas inalienáveis
II - concessão de direito real de uso -
da União é de competência do Ministério do
CDRU, nos termos do Decreto-Lei 271/67,
Desenvolvimento Agrário, que promoverá a
da Lei nº 11.952/2009, Lei nº 9.636/1998, e
alienação da área ou outorga de Concessão
Portaria SPU nº 89/2010;
de Direito Real de Uso – CDRU (art.15, caput),
III - cessão, nos termos do Decreto-Lei
competindo à SPU a identificação das áreas
nº 9.760/1946 e Lei nº 9.636/1998, na
inalienáveis da União para a outorga de CDRU
seguinte modalidade:
pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário
a) sob regime de Concessão de Direito
(art.15, §1º).
Real de Uso - CDRU, nos termos do Decreto-
Em suma, por tudo que precede, aos
Lei nº 271/1967, da Lei nº 9.636/1998 e da
ribeirinhos amazônicos não caberá a titulação
Lei n° 10.257/2001;
da terra por eles ocupadas, mas tão somente o
IV - doação, nos termos da Lei nº
reconhecimento da União da sua ocupação e a
9.636/1998;
respectiva autorização de uso destas terras.

Revista de Administração Municipal – RAM 47


Parecer
PL – Poder Legislativo. Concessão de
Honrarias. Denominação de próprios
públicos. Princípios da Moralidade
e da Impessoalidade. Legislação
eleitoral. Considerações
Maria Victoria Sá e Guimarães Barroso Magno*

Consulta
Câmara indaga acerca da possibilidade de conceder honrarias e denominar próprios
públicos em ano eleitoral.

Resposta Portanto, a concessão de honrarias e


homenagens pelo Legislativo deve se dar
A prestação de homenagens e concessão de nos estritos limites da LOM e demais atos
honrarias é prática corrente nos Municípios normativos que versem acerca do tema. Deve
justamente com o intuito de prestigiar ainda, prestigiar os demais princípios reitores
pessoas e entidades que, por sua atividade, da atividade administrativa encartados no
tenham contribuído de algum modo para o caput do art. 37 da Lei Maior, mormente os da
desenvolvimento local ou para o bem-estar moralidade e impessoalidade.
coletivo. Assim, são homenageadas não só O Princípio da Moralidade, de acordo com
pessoas vivas, mas também pessoas já falecidas, a lição de José dos Santos Carvalho Filho (in
estas brindadas, muitas vezes, com o nome de Manual de Direito Administrativo. 13ª ed. Rio
ruas, edifícios e praças públicas. de Janeiro: Lumen Juris, 2005), impõe que o
Não restam dúvidas de que tais homenagens se administrador público não dispense os preceitos
tratam de matérias de interesse local, inserindo- éticos que devem estar presentes em sua
se na esfera de competência típica do Município conduta. A administração deve não só averiguar
(art. 30, I, da Constituição Federal). Via de regra, os critérios de conveniência, oportunidade e
as leis orgânicas determinam que a Câmara
Municipal tem competência exclusiva para
conceder títulos e honrarias, mediante Decreto * Graduanda em Direito, da Consultoria Jurídica do
Legislativo ou Resolução do Poder Legislativo, IBAM.
conforme dispuser o Regimento Interno. Endereço eletrônico: maria.victoria@ibam.org.br

48 Revista de Administração Municipal – RAM


justiça em suas ações, mas também distinguir o mercado, autorizar publicidade institucional
que é honesto do que é desonesto. Isso tanto em dos atos, programas, obras, serviços e
relação aos administrados em geral, quanto em campanhas dos órgãos públicos ou das
relação aos agentes da Administração. respectivas entidades da Administração
Já o Princípio da Impessoalidade reflete a indireta, salvo em caso de grave e urgente
aplicação do conhecido princípio da finalidade, necessidade pública, assim reconhecida pela
segundo o qual o alvo a ser alcançado pela Justiça Eleitoral;”
Administração é somente o interesse público, Em decorrência do dispositivo acima
e em sendo perseguido interesse particular transcrito, desde 2 de julho de 2016, conforme
ocorre o chamado desvio de finalidade, cuja estabelece o art. 62, VI, “b” da Resolução nº
sanção é cominada no art. 2º, “e”, da Lei nº 53.850 do TSE, o Poder Legislativo municipal
4.717/65 (Lei da Ação Popular). está impedido de promover, sob qualquer forma,
Nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes, publicidade de seus atos institucionais, salvo
Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo em hipóteses excepcionais acima salientadas.
Gonet Branco (in Curso de Direito Constitucional. Paralelamente, é de se dizer que as normas
3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 835): eleitorais buscam resguardar a igualdade da
“o princípio da impessoalidade disputa entre candidatos. Não existem, em tese,
consubstancia a idéia de que a Administração matérias que não possam ser aprovadas pelo
Pública, enquanto estrutura composta de Legislativo em ano eleitoral, algumas, porém,
órgãos e de pessoas incumbidas de gerir a podem influenciar diretamente as eleições e
coisa pública, tem de desempenhar esse estas sim, sofrem restrições.
múnus sem levar em conta interesses Dentro deste contexto, há que se explicitar
pessoais, próprios ou de terceiros, a não que não é qualquer dos atos citados na Lei
ser quando o atendimento de pretensões que implicam em descumprimento da regra
parciais constitua concretização do interesse eleitoral. Há que influenciar na disputa, a teor
geral”. do disposto no art. 73, caput, da Lei das Eleições.
Considerando o período eleitoral, somente Em outras palavras, a conduta vedada deve ser
as homenagens que podem influenciar o pleito de tal intensidade que possa comprometer a
que se aproxima é que devem ser analisadas isonomia de chances entre os candidatos.
com cautela. As homenagens a cidadãos de Os atos e ações do Poder Público, incapazes
relevância para o município e sem envolvimento de desequilibrar a disputa eleitoral ou de
político no pleito, devidamente justificadas, não influenciarem no resultado das eleições, não
sofrem restrições da lei eleitoral, salvo quanto a devem sofrer limitação, pois o bem jurídico
publicidade. protegido encontra-se salvaguardado. O
Com efeito, o art. 73 da Lei nº 9.504/1997 Direito Eleitoral não possui o condão de
elenca uma série de atos proibidos aos agentes impor injustificadas barreiras às atividades
públicos no período que antecede ao pleito. normalmente desenvolvidas pela Administração
Dentre os atos proibidos, consta inciso VI, Pública, salvo aquelas inseridas na própria
alínea “b”, do referido dispositivo, o de realizar Constituição Federal (art. 14, § 9º), sob pena de
publicidade institucional dos atos: afrontar outros princípios constitucionais.
“Art. 73. São proibidas aos agentes Desta forma, em tese, não há impedimento
públicos, servidores ou não, as seguintes de que os parlamentares continuem a efetuar
condutas tendentes a afetar a igualdade de as entregas de medalhas, de títulos de cidadania
oportunidades entre candidatos nos pleitos honorária e méritos.
eleitorais: Entretanto, é evidente que o homenageado
VI - nos três meses que antecedem o não pode ser candidato nas eleições, sob pena de
pleito: se configurar uso indevido da máquina pública e
b) com exceção da propaganda de produtos mesmo abuso de poder nos termos do art. 22 da
e serviços que tenham concorrência no LC nº 64/90, o que, conforme as circunstâncias,

Revista de Administração Municipal – RAM 49


poderá tornar não só o homenageado, como Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral
os vereadores que prestarem a homenagem, ou Regional, relatando fatos e indicando
inelegíveis. provas, indícios e circunstâncias e pedir
O que configura tal vedação é a possibilidade abertura de investigação judicial para apurar
da honraria afetar ou ter o potencial de afetar uso indevido, desvio ou abuso do poder
o resultado das eleições, que, por sua vez, econômico ou do poder de autoridade, ou
pode caracterizar improbidade administrativa, utilização indevida de veículos ou meios
desvio de finalidade e até mesmo ilícito eleitoral, de comunicação social, em benefício de
conforme as circunstâncias. candidato ou de partido político, obedecido
Nesse sentido, é de se dizer que as o seguinte rito:
condutas vedadas do art. 73, Lei 9.504/97 se (...)
constituem em espécie do gênero abuso de XIV - julgada procedente a representação,
autoridade, representando um rol meramente ainda que após a proclamação dos eleitos,
exemplificativo. Assim, ainda que a concessão o Tribunal declarará a inelegibilidade
de honrarias não se enquadre em uma das do representado e de quantos hajam
condutas vedadas pelo dispositivo a ação pode, contribuído para a prática do ato, cominando-
conforme as circunstâncias que envolverem lhes sanção de inelegibilidade para as
o caso, ser reputada como abuso do poder eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos
de autoridade, igualmente punível pela Lei subsequentes à eleição em que se verificou,
Eleitoral. além da cassação do registro ou diploma
Sobre a caracterização do abuso de poder, é do candidato diretamente beneficiado pela
pertinente a lição de Eduardo Fortunato Bim: interferência do poder econômico ou pelo
“Não existe forma fixa, uma fórmula pela desvio ou abuso do poder de autoridade ou
qual é possível detectar o abuso de poder dos meios de comunicação, determinando
no processo eleitoral; muito pelo contrário, a remessa dos autos ao Ministério Público
o abuso de poder, seja ele de qualquer Eleitoral, para instauração de processo
espécie for, é forma maleável de se burlar a disciplinar, se for o caso, e de ação penal,
legitimidade das urnas. É caracterizado não ordenando quaisquer outras providências
pelos seus meios, que podem ser abuso do que a espécie comportar;”
poder econômico, dos meios de comunicação Logo, a concessão de honrarias no presente
ou o político, dentre outros, mas sim por sua ano, desde que nos estritos limites da LOM e
lesividade à legitimidade nas eleições. O rol respeitados e os princípios reitores da atividade
do art. 22 da LC 64/90 não é taxativo.” administrativa encartados no caput do art.
Como alerta, ressaltamos que, mesmo não 37 da Lei Maior, mormente os da moralidade
configurando, objetivamente, conduta vedada e impessoalidade e repita-se, sem qualquer
pela legislação eleitoral, se utilizada com conotação de ordem eleitoral, é perfeitamente
finalidade “eleitoreira” para aferir qualquer tipo factível. Todavia, a publicidade deste ato já se
de vantagem no pleito eleitoral que se aproxima encontra vedada desde 2 de julho.
poderá caracterizar abuso de autoridade a Por tudo que precede, concluímos
ensejar inelegibilidade, na forma do art. 22 da objetivamente no sentido de que, observadas
Lei Complementar 64/1990. Confira-se: as cautelas indicadas ao longo deste
“Art. 22. Qualquer partido político, pronunciamento, não vislumbramos óbices
coligação, candidato ou Ministério Público para a concessão de honrarias e homenagens
Eleitoral poderá representar à Justiça pela Câmara em ano eleitoral.

50 Revista de Administração Municipal – RAM

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