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oro ‘Marcos Marcionto (Came Paosero Grco: Andheia Cust aysragoes: Renata Junquelia/ Bamboo Studios Iwwwbamboostudia.combr] Conseuyo Enron: AnaStahiZilles(Unisinos) “Angela Paiva Dionisio (UFPE] Carlos Alberto Faraco[UFPA) Egon de Oliveira Rangel PUC-SP) Gitvan Moller de Oliveira UFSC pol Henrique Monteagudo [Universidade Sentiago de Compostela] ‘Kanaulil Rajagopalan [Unicamp] ‘Marcos Bagnc[Un8 ‘Maria Marta Pecera Schere[UFES] Rachel Gazollade Andrade [PUC-SP] ‘Salma Tannuss Muchail PUC-SP} ‘Stella Maris Borton-Ricardo[Un8) ‘GP-BRASIL.CATALOGHGAO WA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDTORES DE LYROS, RI oe a 16 ana cipro pega ailngi Maroon, sate. 20. (eualngsiat) a ga Saiseesanss.04 ge prgus Estes snd, 2Unuaponoues-Vorio-Ese i LT Se 08 anus umaene oe Direitos reservados 8 PARABOLA EDITORIAL ua Dr, Mario Vicente, 394 -Ipironga (04270-000 So Paulo, SP pe (11) 5061-9262 | 5061-8075 | os (11 2589-9263, home page:wnw-parabolaeditorielcom.br ‘email parabola@parabolaeditrialcombe Tees os dciosesnados Neshura pare desta obra pode se epredide ou ‘eres por qua forma lou Guabaser eos Geico ou macnn ek indo faedpin vero) ou arqdvada em quake stems ou banc de dads son pei por exo da Pabela Etre ck ISBN; 978-85-88456-62-4 1» eaigao: 4 reimpressio: setembro de 2012 | conforme nove acordo ortogrsfico da Lingua Portuguesa © do texto: Marcos Bagno, 2007 © da edicio: Pardbota Editorial, S40 Paulo, fevereio de 2007 Mas 0 que 6 mesmo variagao linguistica? A ilusdo da lingua homogénea S pessoas que vivem em sociedades com uma longa tradigao escrita, com uma historia literdria de muitos séculos e um sis- tema educacional organizado se acostumaram a ter uma ideia de ingua muito influenciada Por todas essas instituicdes, Para elas, sO merece o nome de Jingua um conjunto muito particular de , de palavras e de regras gramaticais que foram cuidadosamente =eclonadas para compor o que vamos chamar Resse livro aqui de norma-padrao, isto é, 0 mo- S210 de lingua “certa", de “bem falar” que, nes- 8s sociedades, constitui uma espécie de tesou- © nacional, de patriménio cultural que, assim =om0 as florestas, Os rios, a flora, a fauna e os Monumentos arquiteténicos, Srecisaria ser preservado da ruina e da extingdo. Ore, a escrita, a literatura e a escola sdo institui¢Ges eminentemente sociais, $50 invencGes culturais, Criagées artificiais e muito recentes na historia da Semanidade — as formas mais antigas de escrita tm menos de 6.000 anos, 8 seja, durante 99% da histéria da nossa espécie ninguém escreveu nem = nada, e até hoje uma grande parcela dos seres humanos permanece =ssiM, excluida da escrita e da leitura! Portanto, o que se convencionou chamar de “lingua” nas sociedades letradas é,na "=cade, um produto social, artificial, que no corresponde aquilo que a lingua jelmente é. Mas sera que a gente pode mesmo pensar nesse modelo de lingua ‘Mas o que é mesmo variagaolinguistica? como um produto, semelhante ao iogurte, ao vinho, a borracha, ao papel, a0 azeite e a tantas outras inven¢des humanas? Pode, mas com uma diferenca: essa “lingua” é um produto de um tipo diferente, um produto sociocultural, elabo- rado ao longo de muito tempo, pelo esforgo de muita gente — por isso ela é uma grande abstracao ou, como se diz hoje em dia, um patriménio imaterial. Bem, ent&o, se 0 que nds chamamos de “lingua” 6 sé uma aparéncia, uma iluséo nascida dos nossos habitos culturais e das nossas relagdes sociais, como é a lingua, de fato? A realidade heterogénea das linguas Ao contrario da norma-padrao, que é tradicionalmente concebida como um produto hormogéneo, como um jogo de armar em que todas as pecas se encaixam perfeitamente umas nas outras, sem faltar nenhuma, a lingua, na concep¢ao dos sociolinguistas, é intrinsecamente heterogénea, muiltipla, variavel, instével e esté sempre em desconstrugéo e em reconstru¢do. Ao contrario de um produto pronto e acabado, de um monumento histérico feito de pedra e cimento, a lingua é um processo, um fazer-se permanente e nun- ca concluido. A lingua é uma atividade social, um trabalho coletivo, empre- endido por todos os seus falantes, cada vez que eles se pdem a interagir por meio da fala ou da escrita. Justamenie pelo carater heterogéneo, instdvel e mutante das linguas huma- nas, a grande maioria das pessoas acha muito mais confortavel e tranquilizador pensar na lingua como algo que ja terminou de se construir, como uma ponte firme e sdlida, por onde a gente pode caminhar sem medo de cair e de se afogar na correnteza vertiginosa que corre lé embaixo. Mas essa ponte nao é feita de concreto, é feita de abstrato... O real estado da lingua é 0 das aguas de um rio, que nunca param de correr e de se agitar, que sobem e descern conforme o regime das chuvas, sujeitas a se precipitar por cachoeiras, a se estreitar entre as montanhas e a se alargar pelas planicies... Também ao contrario do que muita gente acredita, a lingua ndo esta regis- trada por inteiro nos diciondrios, nem suas regras de funcionamento $80 exa- tamente (nem somente) aquelas que aparecem nos livros chamados grama- _ticas. E mais uma ilusao social acreditar que 6 possivel encerrar num Gnico livro a verdade definitiva e eterna sobre uma lingua Nadia na lingua é por aceso: por uma pedagogia da varlacto linguistica Com tudo isso, a gente est querendo dizer gue, na contramao das crencas difundidas, a variacdo e a mudanea linguisticas € que sdo 0 “estado ‘tural” das linguas, o seu jeito proprio de ser. Se a lingua € falada por seres manos que vivem em sociedades, se esses seres humanos e essas socie- des sdo sempre, em qualquer lugar e em qualquer época, heterogéneos, versificados, instaveis, sujeitos a conflitos e a transformacdes, o estranho, o radoxal, 0 impensavel seria justamente que as linguas permanecessem taveis e homogéneas! Or isso, ndo tem sentido falar da variagao linguistica como um “problema”. “ira e mexe recebo mensagens de pessoas que perguntam como tratar em Sela de aula o “problema da variag&o”. Podemos comegar respondendo que ° problema esté em achar que a variag&o linguistica é um “problema” que pode ser “solucionado”. 0 verdadeiro problema 6 considerar que existe uma "gua perfeita, correta, bem-acabada e fixada em bases solidas, ¢ que todas S inlimeras manifestacdes orais e escritas que se distanciem dessa lingua al SO COMO ervas daninhas que precisam ser arrancadas do jardim para ue as flores continuem lindas e coloridas! Assim, nao so as variedades linguisticas que constituem “desvios” ou “distorcdes” de uma ngua homogénea e estavel. Ao contrério: a construgao de uma norma-padrao, de um modelo idealizado de lingua, é que represen- im controle dos processos inerentes de acao e mudanga, um refreamento artifi- cial das forgas que levam a lingua a variar e 2 mudar — exatamente como a construgao, uma barragem, de uma represa, impede gue as Aguas de um rio prossigam no cami- NO que vinham seguindo naturalmente nos ultimos milhdes de anos. amos pensar no caso do Brasil. Sem dilvida, a ossa sociedade é, sob os mais diversos pontos vista, uma das mais heterogéneas do mun- Em qualquer rua movimentada de uma cida-. Ge brasileira passam — a pé, de carro, de 6ni- de bicicleta, de motocicleta, de cadeira mias pessoas desavisadas, os linguis- - tas ndo consideram 0 processo d constituigao de uma norma-padrao. como uma coisa intrinsecamente portamento linguifstico. Os linguis- _tas simplesmente chamam: a aten- silo para o fato da normatizacao da lingua nao ser um processe “natu ral, mas sim o resultado de agoes Tumanas conscientes, ditadas por - Recessidades politicas ¢ culturais, ‘Pas quais impera frequente uma ideologia obscurantista, | dogmatica e autor - Alguns line ‘guistas (mas nem todos!) Soe tural desejavel, desde que constituida com o auxi- lio da pesquisa cientifica e | em projetos sociais democrati © ndo excludentes, : ‘Maso que é mesmo variacao linguistica? de rodas, as vezes até a cavalo... — pessoas de ambos os sexos, das mais diferentes faixas etarias, de miiltiplas origens étnicas, de todas as classes sociais, de todos os graus de escolaridade, das mais diferentes profiss6es, das mais diferentes religides, de diversas orientacdes sexuais, de diferentes opinides politicas, vestidas de todos os modos possiveis etc. Como seria possivel imaginar que toda essa gente, tdo diversificada em ‘tudo 0 mais, tivesse que falar a sua lingua sempre da mesma maneira? Heterogeneidade linguistica e social objetivo central da Sociolinguistica, como disciplina cientifica, é precisamen- te relacionar a heterogeneidade linguistica com a heterogeneidade social. Lin- gua € sociedade esto indissoluvelmente entrelagadas, entremeadas, uma in- fluenciando a outra, uma constituindo a outra. Para o sociolinguista, é impossi- Vel estudar a lingua sem estudar, ao mesmo tempo, a sociedade em que essa lingua é falada, assim como também outros estudiosos — socidlogos, antro- pOlogos, psicdlogos sociais etc. — ja se convenceram que nao da para estudar a sociedade sem levar em conta as relagdes que os individuos e os gru- pos estabelecem entre si por meio da linguagem. Assim, 0 que temos nas sociedades com- plexas e letradas é uma realidade linguis- tica composta de dois grandes polos: (1) a va- riagao linguistica, isto é, a lingua em seu es- : tado permanente de transformacao, de flui- dez, de instabilidade e \) )anorma-padrdo, produ- ~~ to cultural, modelo artificial de lingua criado justamente para tentar “neutralizar” os efei- "Nada na lingua & por acaso: por uma pedagogia da variaco lingulstica la Variacao, para servir de padraéo para os comportamentos lingufsticos considerados adequados, corretos e convenientes. Entre esses dois polos, existe uma grande zona intermedidria, em que a nor- ma-padrao influencia a variagao linguistica e a variacao linguistica influencia a norma-padrdo. Por isso, mesmo reconhecendo que a norma-padrao é um pro- Guto cultural, uma “lingua” artificial, por assim dizer, a gente nao pode deixar de reconhecer que ela existe — ainda que somente no nivel do discurso, da ideo- ‘ogia —, faz parte da vida social, e tem que ser levada em conta sempre em toda investigacao sobre lingua e sociedade. O conceito de variagao linguistica € a espinha dorsal da Sociolinguistica. Para jjudar a gente a compreender esse fendmeno complexo e fascinante, os sociolinguistas formularam alguns conceitos e definigdes, todos derivados do verbo variar. E importante ter clareza dessa terminologia para evitar emprega- -la de forma equivocada como, infelizmente, acontece com muita frequéncia. Variagao O primeiro desses conceitos, como ja vimos, é 0 de variagao. Dizer que a ngua apresenta variacao significa dizer, mais uma vez, que ela é heterogénea. Agrande mudanga introduzida pela Sociolinguistica foi a concep¢do de lingua como um “substantivo coletivo": debaixo do guar- da-chuva chamado Lincua, no singular, se abrigam diversos conjuntos de realizagGes possiveis dos recursos expressivos que esto a disposi¢ao dos falantes. ———— A variagao ocorre em todas os niveis da lingua: B variagaéo fonético-fonolégica > pense em quantas prontincias vocé conhece para 0 R da palavra PORTA no portugués brasileiro; ‘Maso que é mesmo variagaolinguistica? ® variacdo morfoldgica > as formas PEGAJOSO e PEGUENTO exibem sufixos diferentes para expressar a mesma ideia, ® variacdo sintdtica > nas frases UMA HISTORIA QUE NINGUEM PREVE 0 FINAL / UMA HISTORIA QUE NINGUEM PREVE © FINAL DELA / UMA HISTORIA CUJO FINAL NIN- GuEM preve, 0 sentido geral é o mesmo, mas os elementos estdo organiza- dos de maneiras diferentes; ® variacgao semantica = a palavra vexame pode significar “vergonha" ou "pressa”, dependendo da origem regional do falante; ® variacao lexical > as palavras muo, XIx| € URINA se referem todas a mes- ma coisa; ® variacao estilistico-pragmatica > os enunciados QUEIRAM SE SENTAR, POR FAVOR € VAMO SENTANO Ai, GALERA COrtespondem a situag6es diferentes de interagdo social, marcadas pelo grau maior ou menor de formalidade do ambiente e de intimidade entre os interlocutores, e podem inclusive ser pronunciados pelo mesmo individuo em situagdes de interacao diferentes. Heterogeneidade, sim, mas ordenada Um dos postulados basicos da Sociolinguistica € o de que a variagao nao é aleatoria, fortuita, cadtica — muito pelo contrario, ela é estruturada, organi- zada, condicionada por diferentes fatores. Daf o titulo do nosso livro ser: Nada na lingua é por acaso. A Sociolinguistica trabalha com o conceito de heterogeneidade ordenada. vamos ver 0 que é isso. Pronuncie com cuidado as duas palavras abaix« RASP, RASGA, Observe que na primeira palavra aparece um som [s], enquanto na segunda aparece um som [z], embora as duas se escrevam com a mesma letra s. Por qué? Muito simples: os de RasPA vem antes de um /p/, que é uma consoante surda, isto é, produzida sem a participacao das pregas (ou cordas) vocais, € por isso 0 $ se pronuncia como [s], que também € um som surdo. JA no caso de RASGA, 0s esta diante de uma consoante sonora, 0 /g/ (produ- Zida com a participagao das pregas vocais), e por isso ele se realiza como um [z], que também é uma consoante sonora. E 0 contexto fonético, ou seja, @ influéncia de uma consoante sobre a outra, que vai explicar, neste caso, a Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogta da varlagdo linguistica acao |s] ~ [z]. A sonoridade (ou vozeamento) de um fonema vai provocar sonorizacao do outro; a ndo sonoridade (ou ndo vozeamento) de um fonema provocar a nao sonoridade do outro. estamos diante de um fenédmeno de variacgao que esta condiciona- 0 apenas linguisticamente — todo e qualquer falante de portugués, in- endentemente de sua origem social ou regional, sexo, grau de esco- ridade etc., vai apresentar, na sua fala, essa alternancia [s] ~ [z] em @S COMO RASPA/RASGA, ESCAMA/ESGANA, FISCO/FISGO, DESTINO/DESMAIO etc. um fendmeno tao impregnado na lingua que ninguém se da conta dele, e nao chama a atencao, ndéo desperta nenhum tipo de reacdo negativa u positiva da parte dos falantes, que nem sequer tém consciéncia de gue ele acontece. 4 coisa jé muda de figura quando, com o mesmo par de palavras RasPAa/ GA, acontece a seguinte variacdo: v —_ ~ iY) a] N.8.: 0 simbolo [f] representa o som do x em Xixi, e 0 [3] representa o som do Jem JA. Quando um falante que pronuncia ra[s]Pa ouve uma pessoa pronunciar ralflea, com 0 “s chiado”, essa variagéo de prontincia logo chama a atencao, provo- ca alguma reacao da parte do primeiro falante, que tem consciéncia da diferenca — é muito provavel que procure identificar seu interlocutor ‘\econa pram: . Se comeca- como proveniente de um estado ou de uma re- mos pelo outro par ¢ porgue eu giao diferente da sua. |—————--_ Meso, autor do livro, nao sou fa : lante do “s chiado’ Aaui estamos diante de um tipo de variagao que nao condicionada apenas linguisticamente, mas também extralinguistica- mente, isto é, condicionada por algum fator de ordem social — neste caso, a origem geogréfica do falante. No portugués brasileiro, diversas areas geogra- ficas apresentam 0 “s chiado”, como o Rio de Janeiro, o Para, o Nordeste em geral, zonas do Mato Grosso, algumas comunidades da ilha de Santa Catarina (onde fica Florianopolis), entre outras. Maso que é mesmo variacéa linguistica? Outro exemplo da heterogeneidade ordenada, des- Lee Nc ta vez no plano morfossintatico, esta nos casos Pirie ice variaveis de concordancia nominal. Observe as Cor ah leas trés frases abaix (a) aquelas casinha amarelinha (b) *aquela casinhas amarelinha (c) *aquela casinha amarelinhas. Somente a frase (a) ocorre no portugués bra- sileiro, enquanto (b) e (c) nao ocorrem (por isso, estao assinaladas com um asterisco, simbolo usado pelos linguistas para identificar uma construcdo improvavel ou impossivel). A fra- se (a) 6 usada por praticamente todos os bra- sileiros, inclusive os altamente escolarizados em situag6es de fala espontaneas, distensas. Dai se deduz claramente que existe uma regra por tras dessa construgao, uma regra que diz: , regra que é per- feitamente obedecida por todos os que se servem dela. Atencao! A palavra ReGRA esté sendo usada aqui com um sentido muito diferente daquele que aparece nas gramaticas normativas. Ali, regra é uma espécie de “lei” que dita e impGe o que é “certo” e condena o que é “errado”. Na perspectiva cientifica, regra @ tudo aquilo que revela uma regularidade (as palavras regra e regular tm a mesma origem). Quando conseguimos detectar e descrever alguma coisa que acontece na lingua com regularidade, com previsibilidade, segundo uma ldgica linguistica coe- rente, fazemos essa descrigdo na forma de uma regra (como a que enun- ciei acima: ). Quando, no discurso do senso comum, se diz que determinado uso vai “contra as regras da lingua” ou “desobedece as regras do portugués”, o que se esta querendo dizer é que tal uso desrespeita as regras exclusivas e excludentes, padronizadas e escolhidas artificialmente como as “cer- tas" pela tradic¢éo normativa. Usos COMO AQUELAS CASINHA AMARELINHA OU VOCE SABE QUE EU TE AMO OU O TIME QUE EU TORCO etc. sdo perfeitamente regrados, € a prova maior disso é justamente a regularidade com que eles ocorrem na lingua! Com isso, fica claro que é simplesmente impossivel Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacéo linguistica espeitar as regras da lingua, simplesmente porque é impossivel fa- lar sem obedecer regras linguisticas! neterogeneidade ordenada tem a ver, entao, com essa caracteristica fas- ante da lingua: o fato dela ser altamente estruturada, de ser um sistema organizado e, sobretudo, um sistema que possibilita a expressdo de um mes- mo contetido informacional através de regras diferentes, todas igualmente cas e com coeréncia funcional. E mais fascinante ainda: um sistema Que nunca esta pronto, que o tempo todo se renova, se recompoe, se trutura, sem todavia nunca deixar de proporcionar aos falantes todos elementos necessdrios para sua plena interag&o social e cultural. € la- mentavel que uma coisa téo maravilhosa, complexa e apaixonante tenha Go reduzida, na tradi¢ao escolar, a uma divisdo estUpida entre “certo” e do”, ainda mais estdpida porque se baseia em Preconceitos sociais e culturais que j4 deviamos ter abandonado ha muito tempo... Fatores extralinguisticos @ra fazer um trabalho de investigaco minucioso sobre a variac¢ao linguisti- Os sociolinguistas selecionam um conjunto de fatores sociais que podem auxiliar na identificagao dos fenémenos de variacao linguistica. Que fatores Sociais S40 esses? Dentre os muitos possiveis, os que tém se revelado mais nteressantes para a pesquisa sao os seguintes: @® ORIGEM GEOGRAFICA: a lingua varia de um lugar para o outro; assim, Podemos investigar, por exemplo, a fala caracteristica das diferentes re- gides brasileiras, dos diferentes estados, de diferentes areas geograficas dentro de um mesmo estado etc.; outro fator importante também é a origem rural ou urbana da pessoa; B® STATUS SOCIOECONOMICO: as pessoas que tém um nivel de renda muito baixo néo falam do mesmo modo das que tém um nivel de renda meédio ou muito alto, e vice-versa; B® GRAU DE ESCOLARIZAGAO: 0 acesso maior ou menor a educacao for- mal e, com ele, a cultura letrada, a pratica da leitura e aos usos da escrita, é um fator muito importante na configuracao dos usos linguisticos dos diferentes individuos; B® IDADE: os adolescentes nao falam do mesmo modo como seus pais, nem estes pais falam do mesmo modo como as pessoas das geracdes anteriores; Mas 0 que é mesmo variagao lingustica? B® SEXO: homens e mulheres fazem usos diferenciados dos recursos que a lingua oferece; B® MERCADO DE TRABALHO: 0 vinculo da pessoa com determinadas pro- fissdes e oficios incide na sua atividade linguistica: uma advogada nao usa 0S Mesos recursos linguisticos de um encanador, nem este os mes- mos de um cortador de cana; B® REDES SOCIAIS: cada pessoa adota comportamentos semelhantes aos das pessoas com quem convive em sua rede social; entre esses compor- tamentos esté também o comportamento linguistico. As pesquisas linguisticas empreendidas no Brasil t€m mostrado que 0 fator soci- al de maior impacto sobre a variagao linguistica é o grau de escolarizagao que, em nosso pais, est muito ligado ao status socioeconémico: a escola de qualidade e a possibilidade de permanéncia mais prolongada no sistema educacional so bens sociais limitados 4s pessoas de renda econémica mais elevada. Estudos sociolégicos apontam que existe uma relacao muito estreita entre escolaridade e ascens&o social: os melhores empregos e os postos de comando da sociedade estdo reservados predominantemente aos cidadaos mais escolarizados. Com esse conjunto de fatores podemos estudar a lingua falada por grupos sociais especificos: como falam os jovens do sexo masculino, entre 18 e 25 anos, com escolaridade inferior a 4 anos, que vivem na periferia da cidade de $80 Paulo? Como falam as mulheres agricultoras do sertéo da Paraiba com mais de 60 anos, analfabetas? Como falam os homens com mais de 40 anos, com curso superior completo, com renda superior a 10 salérios minimos, mo- radores da zona sul do Rio de Janeiro? Selecionando fatores sociais e fend- menos linguisticos relevantes para o estudo, a pesquisa sociolinguistica per- mite que a gente faca um retrato bastante fiel de como é a realidade dos usos da lingua no Brasil. variacao estilistica Mas a variacao linguistica néo ocorre somente no modo de falar das diferen- tes comunidades, dos grupos sociais, quando a gente compara uns com os outros. Ela também se mostra no comportamento linguistico de cada indivi- duo, de cada falante da lingua. Nés variamos 0 nosso modo de falar, individual- Nadia na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica mente, de maneira mais consciente ou menos consciente, conforme a situa- Ge interag&o em que nos encontramos. a situagao pode ser de maior ou menor formalidade, de maior ou menor ensao psicolégica, de maior ou menor pressao da parte do(s) interlocutor(es) 2 do ambiente, de maior ou menor insegurancga ou autoconfianga, de maior u menor intimidade com a tarefa comunicativa que temos a desempenhar Cada um desses tipos de situacao vai exigir do falante um controle, uma ngao e um planejamento maior ou menor do seu comportamento em eral, das suas atitudes e, evidentemente, do seu comportamento verbal. udo isso pode ser sintetizado no conceito de monitoramento estilistico. monitoramento estilistico é uma escala continua, que vai do grau minimo ‘au maximo, a depender de todos os fatores que acabamos de elencar: minimo monitoramento owe ojUaWeJOUOW 0 monitoramento opera n&o $6 na lingua fala- mas também na lingua escrita. Nao escre- ‘os um bilhete para o namo- rado da mesma maneira como crevemos uma carta de apre- ntagéo a uma empresa onde mos tentando obter uma vaga para trabalhar. sociolinguistas fatizam sempre er Individuo varia a sua maneira de alar, monitora mais ou menos 0 seu ‘Mas 0 que é mesmo variacdo linguistica? social, faixa etaria etc. Trata-se de um comportamento que é adquirido muito rapidamente no convivio social, como é facil verificar observando a variacao dos modos de falar das criangas quando se dirigem a outras criangas da mesma idade, a criangas maiores, a adultos familiares, a adultos desconhecidos etc. 0 monitoramento da fala, sobretudo quando se trata de exibir respeito e conside- aco pelos outros, faz parte do aprendizado das normas sociais que prevale- cem em cada cultura, normas que sao apreendidas por observacao e imitacao, mas também ensinadas explicitamente as criangas pelos pais e outros adultos. No caso do monitoramento da escrita, ele vai depender, é claro, do grau de letramento do individu, isto é, 0 grau de sua inser¢ao na cultura da leitura e da escrita. Uma pessoa que foi alfabetizada, mas nao ultrapassou os primeiros anos da escola formal nem criou o habito de ler e de escrever com frequéncia, certamente nao vai dispor dos mesmos recursos de monitoramento estilistico de alguém que cursou a universidade, tem bom desempenho no dominio da escrita, conhece as convengGes dos diferentes géneros textuais, maneja um vocabulario mais amplo e diversificado etc. O grau de letramento elevado tam- bém favorece, é claro, a producao de textos falados mais monitorados, em que a pessoa tenta reproduzir na oralidade mais formal tracos caracteristicos dos géneros textuais escritos mais monitorados. Classificagao da variagao sociolinguistica A variagaéo sociolinguistica costuma vir acompanhada, nos textos especializados, de alguns adjetivos que vale a pena conhecer. ® variacao diatépica > é aquela que se verifica na comparacao entre os modos de falar de lugares diferentes, como as grandes regides, os es- tados, as Zonas rural e urbana, as areas socialmente demarcadas nas grandes cidades etc. O adjetivo piaTopico provém do grego bIA-, que signi- fica “através de", e de TOpos, “lugar”. B® variacéo diastratica > é a que se verifica na comparacao entre os modos de falar das diferentes classes sociais. 0 adjetivo provém de DiA- e do latim sTRATUM, “camada, estrato” B® variacéo diamésica — € a que se verifica na comparacao entre a lin- gua falada e a lingua escrita. Na andlise dessa variacdo é fundamental © conceito de género textual. 0 adjetivo provém de DIA- e do grego Mesos, “meio”, no sentido de “meio de comunicagao" Nada na lingua 6 por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica B variacao diafasica > é a variacao estilistica que vimos mais acima, isto é, uso diferenciado que cada individuo faz da lingua de acordo com o grau de monitoramento que ele confere ao seu comportamento verbal. 0 adjetivo provém de piA- e do grego PHASIS, “expresso, modo de falar”. B® variacao diacrénica > é a que se verifica na comparagao entre diferen- tes etapas da histéria de uma lingua. As linguas mudam com o tempo (vamos ver isso mais de perto no capitulo 8) e o estudo das diferentes etapas da mudanca 6 de grande interesse para os linguistas. O adjetivo provém de pIA- e do grego KHRONOS, “tempo”. Variedade Outro conceito muito importante na Sociolinguistica é o de variedade linguisti- ca. Uma variedade linguistica € um dos muitos “modos de falar” uma lingua. Como jé vimos, esses diferentes modos de falar se correlacionam com fatores Sociais como lugar de origem, idade, sexo, classe social, grau de instrucdo ete. Podemos delimitar ¢ descrever quantas variedades lingufsticas quisermos, de acordo com os fatores sociais que incluirmos na nossa investigacao, como nos exemplos que dei mais acima: 0 modo de falar dos jovens do sexo mas- culino, entre 18 € 25 anos, com escolaridade inferior a 4 anos, que vivem na periferia da cidade de Sao Paulo é uma variedade lingulstica. O uso que fa- zem da lingua as mulheres agricultoras do sertao da Paraiba com mais de 60 anos, analfabetas, 6 outra variedade. Os tracos linguisticos caracteristicos s homens com mais de 40 anos, com curso superior completo, com renda perior a 10 salarios minimos, moradores da zona sul do Rio de Janeiro tam- dem constitui uma variedade especifica — e assim por diante... Partindo da nocao de heterogeneidade, a Sociolinguistica afirma que toda lin- Sua 6 um feixe de variedades. Cada variedade linguistica tem suas carac- isticas proprias, que servem para diferencia-la das outras variedades, Por emplo, nem todas as variedades linguisticas do portugués brasileiro apre- sentam 0 “s chiado" em final de silaba (Fe[f]ra) ou final de palavra (re[SIrals]); mas variedades usam Tu como pronome de 2 pessoa, enquanto outras usam voce; a maioria das variedades que apresentam o Tu eliminaram a ter- minagao -s na conjugacgdo verbal (Tu FaLA, TU COME), enquanto outras (poucas) conservam 0 -S (TU FALAS, TU COMES), € por ai vai... ‘Mas 0 que é mesmo variagaolinguistica? Outro postulado fundamental da Sociolinguistica é esse aqui: toda e qual- quer variedade linguistica é plenamente funcional, oferece todos os recursos necessérios para que seus falantes interajam socialmente, 6 um meio eficiente de manuten¢ao da coesdo social da comunidade em que é empregada. A ideia de que existem variedades linguisticas mais “feias" ou mais "bonitas”, mais “certas" ou mais “erradas”, mais “ricas" e mais "“po- bres" é fruto de avaliagdes e julgamentos exclusivamente socioculturais € decorrem das relacdes de poder e de discriminac&o que existem em toda sociedade — vamos tratar disso melhor no capitulo 3. Para 0 estudioso da linguagem, todas as variedades linguisticas se equivalem, todas tem sua ldgica de funcionamento, todas obedecem regras gramaticais que podem ser descritas e explicadas. Classificando as variedades linguisticas Assim como a variag&o linguistica é classificada em tipos, também as varie- dades linguisticas costumam ser designadas por nomes particulares: ‘estudo dos dialetos fez surgir, no B® dialeto >é um termo usado ha muitos -século XIX, uma disciplina chama- séculos, desde a Grécia antiga, para de- = Des oe: 8 signar 0 modo caracteristico de uso da cursora jolinguistica moder fi 3 Oe A dierenens iarenor lingua num determinado lugar, regiao, plinas é que a Dialetologia se inte- provincia etc. Muitos linguistas empre- ressava sobretudo em descrever os _gam o termo dialeto para designar 0 que falares rurais, isolados, considerados a Sociolingulstica prefere chamar de va- “na época como mais “puros” ¢ “a- ~ténticos", nao influenciados pelas riedade | modas e corrupgaes da vida urbana B® socioleto > designa a variedade linguisti- moderna. A Sociolinguistica abando- ca propria de um grupo de falantes que com- nou essa visio romantica e passou a tiham as acterist Ve oe partilham as mesmas caracteristicas de falar das aglomeragées urbanas, socioculturais (classe socioeconémica, ni- socialmente complexas, do mundo vel cultural, profissao etc.) — B® cronoleto > designa a variedade propria de determinada faixa etaria, de uma gera- cao de falantes. B idioleto > designa o modo de falar caracteristico de um individuo, suas preferéncias vocabulares, seu modo proprio de pronunciar as palavras, de construir as sentengas etc. "Nadia na lingua @ por acaso: por uma pedagogia da variagéo linguistica Odas essas palavras esta presente o elemento -LETO (também escrito as ‘LECTO), derivado do grego Lexsis, “palavra, aco de falar”, de onde tam- D&m provém a palavra LEXIco. se terminologia, no entanto, néo é muito empregaca nos trabalhos sociolinguisticos, @ gente encontra mais frequentemente as expresses variedade regional, lade social, variedade generacional (ou de geracao) etc. Nem tudo na lingua varia falar da variac&o, dissemos que ela pode se verificar em todlos os niveis da ia: fonético-fonoldgico, marfoldgico, sintatico, semantico, lexical, estilistico- agmatico. A essa altura, pode surgir uma dtivida: tudo o que existe numa ua pode estar em variacdo? A resposta é nao. coisa da lingua nao apresenta varia- Por exemplo: Oa RG er Creer tay TOM Mettler ® a pronuncia da consoante /f/ nao apre- senta (pelo menos que se saiba até agora) diferencas nas miitiplas varie- ies dades regionais, sociais etc. do portu- gués brasileiro. O mesmo ja no vale Para a consoante /s/ que, como vimos, pode ser pronunciada como um som sibilan- te surdo [s] ou sonoro [z], ou como um som chiante surdo [f] ou sonoro [3], dependen- do de contextos fonéticos e das va- riedades regionais; O artigo definido vem sempre co- locado antes do nome (a casa) € nunca depois dele (*casa a). Os pronomes obliquos nao ad- mitem outros elementos entre eles € 0 verbo: ANA ME SUSTENTOU DU- RANTE MUITO TEMPO, Mas nunca *ANA ME DURANTE MUITO TEMPO SUSTENTOU; Mas 0 que & mesmo vatiacao linguistica? B® os verbos regulares tm sempre uma terminacdo -o na 1? pessoa do singular do presente do indicativo (Eu Alo, EU BEBO, EU PARTO), € Nunca um ~A, UM -E OU um -Mos (*EU AMA, *EU BEBE, *EU PARTIMOS). O mesmo nao acontece com a 1# pessoa do plural, que apresenta, segundo as variedades, uma terminac¢ao -mos OU -Mo para todas as conjugagGes, ou uma terminacdo -A para a 1° conjugacaio @-€ para a 2* e a 3° conjugacdes (NOs AMAMOS/NOs AMAMO/NOS AMA, NOS BEBE- MOS/NOS BEBEMO/NOS BEBE, NOS PARTIMOS/NOS PARTIMO/NOS PARTE); B® overbo costar € sempre seguido da preposicao be, em qualquer variedade linguistica, de modo que ninguém no Brasil vai dizer *cu NAO GOSTO JILO. 0 mesmo nao acontece com 0 verbo RESPONDER, que pode ser transitivo dire- 0 (RESPONDA © QUESTIONARIO) OU indireto (RESPONDA AO QUESTIONARIC). Os exemplos poderiam encher centenas de paginas. O importante é ressaltar que as regras da lingua que nao apresentam variagao sdo chamadas de re- gras categoricas, pertencem ao repertério lingulstico de todos os falantes, de todas as regides, classes sociais, graus de instrugdo etc. J4 as regras que apresentam variacdo, como as que vimos nos exemplos acima, sao chama- das de regras varidveis ou simplesmente variaveis. Variavel & variante Uma variavel sociolinguistica, portanto, é algum elemento da lingua, algu- ma regra, que se realiza de maneiras diferentes, conforme a variedade lin- guistica analisada. Cada uma das realizacdes possiveis de uma variavel 6 chamada de variante. A definicao mais simples de variante é a de “cada uma das formas diferentes de se dizer a mesma coisa”. Por exemplo, ® a variavel (r), no portugués brasileiro, em final de palavra (como em cAN- TAR, FAZER, AMOR), pode apresentar as seguintes variantes: (1) [r] — vibrante simples; (2) [] - vibrante multipla; (3) [u] — retroflexa (’r caipira”); (4) [h] - aspirada; (5) [2] — zero ("canta”, “am6"), entre outras... ® a variavel (pronome-objeto direto de 3° pessoa) pode apresentar as seguintes variantes: (1) pronome obliquo (COMPRE! O LIVRO MAS O ESQUEC! EM casa); (2) pronome reto (COMPREIO LIVRO MAS ESQUECI ELE EM CASA); (3) prono- me nulo (COMPREI © LIVRO MAS ESQUECI « EM CASA); B® a variavel (transitividade do verbo assisna) apresenta duas variantes: (1) transitividade direta: assist! O FiLMe, ¢ (2) transitividade indireta: Assism| AO FILME. "Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao lingulstica te que a gente conheca 0 estado atual, real da lingua, como ela é de fato usada pelos falantes, por meio da frequéncia de uso da variante X e da fante Y. Descobrir quais elementos da lingua se encontram em variacdo grande importancia também para o entendimento dos fenédmenos da mudanga linguistica, que vamos ver no capitulo 8. Vernaculo formos procurar a palavra vernéculo num bom diciondrio, como o Houaiss, 2 gente vai encontrar o seguinte: » adjetivo 1 préprio de um pais, nacao, regiao Ex.: 2 Derivacio: sentido figurado. diz-se de linguagem correta, sem estrangeirismos na pronincia, vocabu- lario ou construgées sintaticas; castigo ) substantive masculino 3 lingua propria de um pafs ou de uma regido; lingua nacional, idioma vernéculo Ex.: 0 ensino do v. 4 definigao dada pela Sociolinguistica ao termo vernaculo, no entanto, esca- 2 dessas acepcdes tradicionais. 0 linguista norte-americano William Labov, me mais importante da Sociolinguistica variacionista, transformou ver- lo num termo técnico com o seguinte significado » Verndculo >“o estilo em que se presta o minimo de atengdo ao monitoramento da fala”, © vernaculo parece ser, portanto, a fonte mais segura para a investigacdo dos Omenos de mudanca linguistica que afetam determinada lingua num dado mento histOrico. Cada grupo social tem o seu vernacula, isto é, 0 estilo que, na @riedade linguistica prépria dessa comunidade, representa a fala mais esponta- , Menos Monitorada, que emerge sobretudo nas interag6es verbais com menor u de formalidade e/ou com maior carga de emotividade. Labov, por exemplo, Mas o que é mesmo varlacdolingulstica? sugere, como estratégia para fazer emergir 0 estilo menos monitorado, que o pesquisador pergunte a seu informante: “Vocé jé esteve numa situacdo em que se vi proximo de morrer?” As narrativas resultantes dessa pergunta trazem as marcas mais caracteristicas do vernaculo, uma vez que o falante, tornado pela excitacdo da narrativa, presta menos atencao a forma como esta falando e muito mais atengo ao contevido do que esta contando. Por meio do estuco do vernaculo podemos identificar, por exemplo, quais séo as regras gramaticais que realmente pertencem ao portugués brasileiro con- temporaneo, aquelas que séo as mais usualmente empregadas pelas pessoas em suas interacdes cotidianas. Ao mesmo tempo, podemos identificar quais sd as regras que est&o deixando de ser usadas, caindo em obsolescéncia, com probabilidade de desaparecer da lingua num futuro proximo. Estudando o vernaculo brasileiro mais geral, por exemplo, as pesquisas sociolingu(sticas tem revelado que os pronomes obliquos de 3* pessoa o/a/os/ as estado praticamente extintos da nossa lingua. S6 empregam esses prono- mes as pessoas que tiveram acesso a escolarizaco formal plena, e mesmo assim somente em situagdes de alto monitoramento estilistico de sua fala, mas sobretudo na escrita de géneros textuais mais monitorados. Com isso podemos dizer, com boa margem de seguranca, que os pronomes obliquos o/ A/os/as nao pertencem ao vernaculo brasileiro. No lugar deles, nds, brasileiros, estamos usando os pronomes retos ELe/ELA/ELES/ELAS OU simplesmente dei- xando vazio 0 lugar sintatico que deveria ser ocupado por um objeto direto, como nos exemplos que demos mais acima: COMPRE! O LIVRO MAS ESQUECI ELE EM CASA OU COMPREI O LIVRO MAS ESQUECI « EM Casa. AS pesquisas tém mostrado que essa Ultima estratégia, a do chamado “pronome nulo", € a mais empregada Por todos os brasileiros, falantes de todas as variedades linguisticas. O vernaculo e 0 ensino O conceito de vernaculo, tal como definido na Sociolinguistica, pode ser uma contribuigao muito importante para a elaborac&o de estratégias de ensino. Se ja sabemos que determinadas regras gramaticais desapareceram do uso normal, cotidiano, como fazer para que elas sejam aprendidas e apreendidas Por nossos alunos e alunas? Vale a pena insistir em ensinar coisas que quase ninguém mais usa no dia a dia da lingua? Nada na lingua @ por acaso: por uma pedagogla da variac&o lingufstica mo a gente vai ver no capitulo 8 sobre a mudanca linguistica, os géneros =soritos mais monitorados sao o Ultimo refligio dos usos linguisticos mais con- s=svadores. E nos textos monitorados que esses usos sobrevivem por mais t=mpo, antes de desaparecerem por completo. Ora, uma das fungdes mais moortantes do ensino é precisamente dotar os alunos e alunas de recursos Que !hes permitam produzir textos (orais e escritos) mais monitorados sticamente, textos que ocupam os niveis mais altos na escala do prestigio al. Dai a importancia de reconhecer as formas linguisticas j4 desapareci- Ses da fala espontanea, mas ainda exigidas socialmente na fala/escrita formal, ere ensind-las, no sentido mais literal do verbo ensinar, isto 6, transmitir a uma pessoa um conhecimento que ela de fato nao possui nem tem outro modo de scquirir a nao ser pela educacao formal, sistematica, programada. caso dos pronomes obliquos o/a/os/as é exemplar. Nenhuma crianga bra- ‘a, seja de qualquer regio ou de qualquer classe social, tem contato com esses pronomes antes de se iniciar na leitura e na escrita, antes de comecar Seu processo de letramento. Essa falta de contato revela que os adultos, mo os mais letrados, nao empregam esses pronomes na vida familiar, situagdes mais intimas e descontraidas de uso da lingua. oisa € diferente com outros pronomes como EU, TU, VOCE, NOS, A GENTE, ELE, ES, ELAS, ME, MIM, TE, SE, Por exemplo, que estao vivos e atuantes no verna- brasileiro e que qualquer criancinha que comega a falar utiliza sem proble- 2. Dai a import&ncia de delimitar corn precisdo o que é necessério ensinar e © que nao é necessario ensinar. Muito tempo de sala de aula é desperdigado M prdticas irrelevantes de ensino de coisas que a crianga jé sabe e domina, como boa falante da lingua, enquanto outras coisas, mais importantes e inte- essantes, sd deixadas de lado. Vamos voltar a isso mais adiante. Como analisar um evento de interacao verbal? imeira vista, a Sociolinguistica parece trabalhar com uma quantidade uito grande de conceitos, e pode ser dificil para o nao especialista colo- todos eles em pratica num exercicio de anélise da lingua real. Tradicio- naimente, a realidade linguistica brasileira tem sido analisada em termos pares dicotémicos, de polarizacées radicais do tipo lingua padrao/lin- 2 n&o padrao, lingua culta/lingua popular, lingua escrita/lingua falada, gua formal/lingua coloquial etc., num procedimento que esconde o cara- Mas 0 que & mesmo variagao linguistica? ter dinémico e mutante das situagOes de interac&o verbal. Diante de uma amostra de lingua em uso, os analistas costumavam (e ainda costumam) atribuir a ela um rétulo Unico e fechado: “Esse 6 um exemplar de lingua coloquial” ou de “lingua culta” etc. Todos esses adjetivos sao problemati- cos, € vamos tratar deles nos proximos capitulos. Sera entéo que existe um modo diferente de analisar as situacGes de uso da lingua, sem cair nessas oposi¢des extremadas? Existe, sim. Uma das solugdes para superar esse problema 6 a adogao do conceito de continuum (uma palavra latina que podemos traduzir, para os nossos obje- tivos, como “linha continua”, “sequéncia que nao se interrompe", e cujo Plural é continua, com silaba ténica no m1). Em vez de imaginar a realidade lingutstica dividida em duas ou mais variedades estanques, que nao interagem umas com as outras, alguns sociolinguistas que trabalham na vertente chamada interacional preferem investigar a situagdo de uso, o momento em que ocorre a interacao: quem esta dizendo o qué, a quem, onde, quando, dentro de que relagdes da hierarquia social, com que inten- cdo etc. ? Esses investigadores se concentram ent&o muito menos nas ques- t6es propriamente linguisticas, estruturais (fonético-fonologicas, morfossin- taticas etc.) e muito mais no modo como os atores sociais em cena se valem desses recursos da lingua para levar adiante sua tarefa comunicati- va. E onde € que entra a nogao de continuum aqui? Allinguista e educadora Stella Maris Bortoni-Ricardo foi uma das primeiras pes- soas no Brasil a aplicar os postulados tedricos e metodolégicos da Sociolin- guistica (variacionista e interacional) as questdes da educagao em lingua ma- terna. Depois de muitos anos de reflexdo e intensa pratica como professora Universitaria, orientadora de pesquisas e formadora de docentes, Bortoni-Ricardo construiu um modelo extremamente simples e€ ao mesmo tempo muito Util Para o estudo da variacao lingufstica nas interagdes verbais, com énfase nas interagdes em sala de aula. Neste modelo, a autora rejeita a andlise polarizada € argumenta que toda situacao de interacao verbal pode ser analisada com base em trés continua: HU) +letrado -monitorado <—<—— es monitorado "Nada na lingua ¢ por acaso: por uma pedagogia da varlacdo linguistca © continuum rural-urbano diz respeito aos ante- cedentes sociais e culturais do falante: ter lo e vivido na zona rural (ou numa cidade uena) ou ter sido criada numa grande ropole sao fatores que influenciam muito a vi- de mundo da pessoa, suas crengas e valores, relacao com 0 meio ambiente e, é claro, seu modo de falar a lingua. Sabemos que ha todo um cabulario e toda uma série de regras fonético- ~onolégicas e morfossintaticas que caracterizam Os falares rurais do que os urbanos e vice- Sa, € Que tudo isso também varia de uma re- Seografica para outra. Também existe, no cen- deste continuum, um espaco sociocultural que rtoni-Ricardo classifica de rurbano: sao as peri- eras das nossas metrépoles, onde vivem impor- ‘tes contingentes de pessoas que migraram do mppo para a cidade, em busca de melhores con- Gigdes de vida, e que ndo se integraram ainda com- Setamente a cultura urbana e também nao aban- ram totalmente sua cultura rural. ontinuum oralidade-letramento nos indica se a atividade verbal naquele Momento da interagéo esta mais préxima das praticas orais ou mais proxi- ma das praticas letradas, ou seja, praticas que de algum modo se apoiam na ura ena escrita. Durante uma mesma aula, por exemplo, a professora alternar entre esses dois tipos de praticas: quando se dirige aos alunos a chamar sua aten¢do, para pedir alguma mudanga de atitude deles, para ontar a eles alguma historia ou comentar algum relato de experiéncia pes- feito por eles, a professora esta no universo da oralidade, e seu modo de certamente vai trazer as marcas disso. Se, logo em seguida, ela comeca E isso que explica, por exemplo, por que tantos jovens nascidos e criados na periferia de Sao Paulo, uma das _| maiores aglomeragdes urbanas do mundo, usam 0 chamado "R caipi- ra’, antigamente restrito as cidades _ do interior do estado e & zona rural — € provavel que seus familiares te- nham vindo do interior para a capi- tal mas nao tenham podido se incor- Porar totalmente a cultura urbana e, por conseguinte, incor-_ : porar plena- mente os tra- cos linguis- ticos que ca- racterizam tradicional- mente a va- riedade pau- listana (como 0 inf simples vie brado em pa- lavras como “porta”, “sor- te”, “curva” etc). 2 explicar algum conceito que esté sendo estudado, usando a terminologia pria da disciplina, ou se escreve algo na lousa e comenta, ou se Ié ern voz 2.um texto escrito, sua fala decerto apresentaré caracteristicas diferentes ue apresentava ainda ha pouco. Por exemplo, na conversa com os alu- ela pode dizer coisas como “péxe", “péjo", "fala", “as coisa”, “océs”, fizemo", enquanto na atividade mais marcada pelas praticas de letramento Maso que & mesmo variagao linguistica? i € provavel que ela use formas como "peixe", “beijo”, “falar”, “as coisas”, “vocés” “fizemos", mais proximas da ortografia oficial e das regras normativas. O continuum de monitoramento estilistico nos indica o grau de atencao q 0 falante presta ao que esta dizendo. Como ja explicamos mais acima, esse como dizer “houveram problemas’, “eles devem permanecerem aqui mes- | mo”, “eu entregarei-the o relatério” etc., | ei que, num excesso de zelo pela monitoramento maior ou menor é decorrente do entrecruzamento de diver- sos fatores presentes no momento da interac: Quanto mais monitorado 0 estilo de fala, mais provavel é a ocorréncia das formas prescritas pela norma-padréo, de construgdes gramaticais mais elaboradas e de vocabulario considerado regras da gramatica normativa. mais requintado e erudito. 9", a pessoa acaba infringing Com esse modelo de andlise proposto por Bortoni-Ricardo fica mais facil compreender ocorréncia de variaco linguistica num mesmo espaco-tempo de interac: verbal, na fala de uma mesma pessoa, como a professora que ora diz “vamo vé" e ora diz “verernos", que ora diz “xové" e ora diz “deixe-me ver", ou 0 aluno que normalmente diz “paiaco” e “trabaia” mas, ao ler em voz alta texto do livro, diz “palhaco” e “trabalhar’... Essa mesma professora, se tiver antecedentes rurais, digamos, do interior de So Paulo, pode usar 0 “R caipi- ra" ao ralhar com um aluno chamado Eduardo e usar um /r/ vibrado ou um /h aspirado ao ler em voz alta um texto como “o vento forte fez bater a po verde da casa de Marcia”, por considerar a pronuincia “caipira” inadequa em situagdes mais monitoradas, em atividades mais letradas. Podemos representar esses dois momentos distintos da produgao verbal professora do seguinte modo: (1) Eduaf[ildo, cé qué presta’tengao e para de brinca? + rural «Qe +oral aC} == -monit.«Qy= = (2) [leitura] “O vento folr}te fez batefr] a pofr}ta velr]de da casa de Ma{r]eia”™ ==ee= +urbano = + letrado = +monit. prose oore wee) tere +oral aeamanennnenenQ= + letrado -monit.«===s0e0eeee22(= +monit. Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica modelo de andalise da variacao linguistica tem se revela- © muito util para a compreensao do que acontece em sala ee = aula (e também, é claro, em outras situagdes de comuni- 40). Por isso, sugiro que vocé leia 0 livro de Bortoni-Ricardo, sg € a primeira (e bem-sucedida) experiéncia de formulacéo 3 G= uma pedagogia da variacdo linguistica. Tenho certeza que he ser muito Citil para o trabalho e para a vida! fueeen TN ESQUECER Toda lingua humana é heterogénea por sua propria natureza. A heterogeneidade linguistica esta vinculada 4 hetero- geneidade social. Os elementos que determinam a variacao podem ser de or- dem linguistica (estrutural) ou extralinguistica (social) ou uma combinagao das duas. Nao existe falante de estilo Gnico. Todo falante dispoe de uma gama variada de estilos mais ou menos monitorados, Uma variedade linguistica 6 0 modo de falar a lingua ca- racteristico de determinado grupo social ou de determinada regiao geografica. Variantes linguisticas so maneiras diferentes de dizer 2 mesma coisa. O vern&culo é 0 estilo de lingua falada em que a pessoa monitora 0 minimo possivel sua produgao verbal. 2 @e & Me @ Mas o que mesmo variagao lingutstica?

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