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R E OUPA MODA A historia das roupas é menos anedética do que parece. Levanta todos os pro- blemas, os das matérias-primas, dos processos de fabrico, dos custos de produco, da fxidez cultural, das modas, das hierarquias sociais. Variado, o traje por toda a parte se obstina em denunciar as oposigOes sociais. As leis suntudrias correspon- dem portanto a sensatez dos governantes, mas mais ainda as inquictacdes das clas- ses altas da sociedade quando se véem imitadas pelos novos-ricos, Nem Henrique JV nem a sua nobreza poderiam consentir que as mulheres e as filhas da hurguesia parisiense se -vestissem de seda. Mas nunca ninguém péde opor-se a paixdo arrivista buao desejo de usar a roupa que, no Ocidente, é sinal de promoeao social. Os go- yernos também nunca impediram o luxo ostentatério dos grandes senhores, as ex- traordinarias paradas das recém-paridas, em Veneza, ou as exibicdes a que os en- terros dao ocasifio, em Napoles. ‘© mesmo se passa nos universos mais mediocres. Em Rumegies, aldeia da Flan- dres, perto de Valenciennes, em 1696, no dizer do cura, que escreve o seu diario, os camponeses ricos sacrificam tudo ao luxo do trajar, “‘os jovens andam de cha- péus agaloados a ouro e prata, e depois o resto; as mocas com penteados de um péde altura e as outras vestimentas a condizer...’’ Ei-los, com inaudita insoléncia, a “‘ir ao botequim todos os domingos...’’. Mas os dias vio passando ¢ vai o mesmo cura e ja diz: “Se excetuarmos os domingos, quando eles vao a igreja ou ao bote- quim, andam [ricos e pobres] tao pouco asseados que as mocas se tornam um re- médio para a concupiscéncia dos homens ¢ os homens para a das mogas...’”'4 Aqui temos as coisas em ordem, insertas no ambiente cotidiano. Mme. de Sévigné, meio agradada, meio indignada, recebe bem, em junho de 1680, uma ‘‘bela lavradeiri- nha do Bodégat [Bretanha] com 0 seu vestido de pano da Holanda com recortes de tafetd ¢ mangas golpeadas...”” a qual, infelizmente, Ihe deve 8 mil libras!. Mas éuma excecdo, como 0 sao, numa representacdo da festa do patrono de uma aldeia alema, em 1680, umas camponesas de gola frisada. Habitualmente, andam todos descaleos ou quase, ¢ até mesmo no mercado de uma cidade basta uma olhadela Para distinguir burgueses de gente do povo. Sea Sociedade ndo mudasse.., Tudo mudaria menos se a sociedade se mantivesse quase estdvel. B é quase Sempre csse o casy até 0 topo das hicrarquias instaladas. Na China, e muito antes do séeulo XV, 0 traje de mandarim é 0 mesmo, desde as imediagoes de Pequim, nova capital (1421), até as provincias pioneiras do Se-tchuan ¢ do Iunan. Ba rou Pade seda bordada com ouro que o Pe. de Las Cortes desenha em 1626 ¢ a mesma que mostram tantas gravuras do século XVIII, com as mesmas “‘botas de seda de liversas cores”, Em casa, os mandarins vestem-se com roupas simples de algodio. as suas funcGes que usam essa veste brilhante, mascara social, autentificacdo 281 282 Um juiz. Pintura chinesa sobre seda do sécuto XVII. Antiga colegdo Loo. da sua pessoa. Ao longo dos séculos, a mascara nao muda, numa sociedade, ¢ cer- to, quase imével. Mesmo as perturbagées trazidas pela conquista tartara, a partir de 1644, no conseguem romper o antigo equilibrio. Os novos senhores impuseram 408 seus stiditos os cabelos curtos (exceto um rabicho) e modificaram a grande tl nica de outrora. Foi tudo: afinal, pouca coisa. Observa um viajante em 1793: “Na China, a forma da roupa raramente muda por moda ou por capricho. O vestuario que convém ao estado de um homem e & estagiio do ano em que 0 usa € sempre feito da mesma maneira. As proprias mulheres no tem modas novas, a nao set no arranjo das flores ¢ outros ornamentos que pdem na cabeca.””45 Também 0 Ja pao € conservador, talvez contrafeito, depois da rude reacdo de Hideyoshi. Eile durante séoulos fiel ao quimono, roupa de vestir em casa pouco diferente do atual, op ‘‘Jinbaori, vestimenta de couro pintado nas costas’” que & de regra para sa rual, Nessas sociedades, regra geral, as mudancas so todas ao sabor das transfor” magées politicas que afetam toda a ordem social. Na {ndia, semiconquistads pelos mugulmanos, 0 traje dos vencedores, os mongéis, torna-se regra, pelo menos Pété [Se my SrOVNEAT ALE! (Saal O habitat, 0 vemdrio «a moda pssicon pyjama co chankan), Odos 08 retraton dos prineipen Rajaputis on mosteam [com urns tinea excegio] com o traje de Corte, prova irrefutavel de que alta nobreza hindu tinha em geral aceitado 98 habitos © modos don sobermos mo: Ma Ma Gy mesmo se Verified no Império turco. Onde quer que nih Ah a influtncia dos sultdes-osmanidas, o seu traje impde-se th elnever alte fone pngua Argel como na Poldnia eristd onde a moda turca 96 tardiantente, ¢ 1a efndea moda francesa do s€culo XVII, Todas estas imitagies no teri, eeu. rao, qualsaues variaybes: 0 modelo permanece Imdvel, Mourad) d'Oro Werte Fabeau général dle I'Eimpire ottoman, editado em ¥741, obwcrva que "a ri an que liranivam as malheres européias no agitam o sexo no Oriente: I, qua ge todos andar com o mesmo penteado, o mesmo corte de roupa, o mesmo gence fe tecido”™, Em Argel, porém, turca desde 1516 ¢ destinada a permanccé:-Io alt W730, « moda ferninina pouco Variou ao longo de tras séeulos. A descrigin exata que devemos 4 um cativo, 0 Pe, Haedo, por volta de 1380, *poxteria tervir com prnito poucas corregBes para comentar gravuras de 1830”, fora © | $e sd houvesse _ pobresi». Se assim fosse, 0 problema nem sequer se apresentaria. ‘Tudo perimancceria jmvel, Nao haveria riqueza, nem Jiberdade de movimentos, nem mudangas possl- veis, Os seus trajes, fossem cles bonitos ou feios, seriam sempre iguais, Bonito é oraje de festa, muitas vezes transmitido de pais para filhos ¢ que, a despeito da infinita variedade dos trajes populares nacionais ¢ regionais, s¢ mantém ao Jongo dos séculos igual a si proprio. Feia € a roupa cotidiana de trabalho que utiliza os menos dispendiosos dos recursos locais ¢ muda ainda menos do que 0 outro, Séo assim as mulheres indias da Nova Bspanha no tempo de Cortez, na sua longa tiniea de algoddo, mais tarde de 1a, por vezes bordada, como sie as do sécu- lo XVAIE, Claro que o traje masculino mudou, mas apenas na medida cm que © vencedor ¢ 0% missiondrios exigem um vestudrio decente que conda a nudez de outrora, No Peru, assim como se vestiam no século XVIII, assim se vestem hoje os indfyenas; um quadrado de 1a de Ihama tecida em casa com um buraco no meio por onde a pessoa passa a cabeca: ¢ 0 poncho. Imobilidade também na {ndia ¢ des- de sempre: o hindu continua a vestir-se com o dhoti, hoje como ontem, como sem- pte, Na China, “os aldedes e 0 povinho” sempre “fizeram a roupa de pano d pod |...) de toda a espécie de cores': trata-se de uma longa camisa aperiadth ha cintura, Os camponeses do Japfio, em 1609 ¢ sem davida séculos antes, vestiam= ## de quimonos forrados de algodio!5!. Voiney, na sua Voyage d'Exypte (1783), ‘“panta-se com o traje dos egipcios, “uma rodilha de pano enrolada as pregas na Sébeya rapada; uma vestimenta muito comprida, do pescogo aos tornozelos, que Mais tapa 0 corpo do que o veste’”!, Bum traje muito antigo, mans antigo ainda do Mue © dos ricos mamelucos que, alias, Por la ficou no século XII. uate traje dos pobres mugulmanos que o Pe. Labat descreve na Africa Negra, Como ha Vit ele de evoluir se 6 praticarnente inexistente? ‘Nao tem camisas, envolvem 0 on any dos calgoes com um bocado de pano que atam na cintura; a maioria anda # tabega © pes nus.2353 283 O habitat, o vestudrio ¢ a moda 284 Os pobres da Europa andam um pouco mais vestidos, mas também N&O se dig a fantasias. Jean-Baptiste Say escreve em 1828: ‘Confesso au a sinto a menor atragiio pelas modas iméveis dos turcos & dos outros povos do Oriente. Parecem eternizar 0 seu estipido despotismo. [...] Os nossos aldedes so um pouco turcos relativamente 4 moda; so escravos da rotina, e vemos velhos quadros das guerras de Luis XIV onde os camponeses € as camponesas estéio representados com roupas que pouco diferem das que hoje se observam.””!%4 Podemos fazer a mesma refie. xo relativamente a um periodo anterior. Se compararmos, por exemplo, na Pina- coteca de Munique, um quadro de Pieter Acrtsen (1508-1575) e duas telas de Jan Brueghel (1568-1625), todos os trés representando o povo dos mercados, é bastante divertido verificar primeiro que, em todos os casos, se reconhecem a primeira vista Os humildes vendedores ou pesvaduies ¢ os grupos de burgucses, clientes ou tran- seuntes: © traje diferencia-os imediatamente. Mas a segunda constatagio, mais curiosa, é que durante o quase meio século que separa os dois pintores, 0 traje bur- gués mudou muito: os colarinhos altos 4 espanhola rodeados de uma gola aos ca- nudos de Aertsen s&o substituidos pelo verdadeiro frisado que usam os homens e as mulheres de Brueghel; entretanto, o traje popular das mulheres (gola aberta sem pé, corpete, avental sobre a saia franzida) manteve-se exatamente igual, com uma diferenca apenas na coifa, sem diivida regional, Numa aldeia do Alto Jura, em 1631, uma vitiva recebe, segundo o testamento do seu marido, ‘‘um par de sapatos e uma camisa, e isto de dois em dois anos, ¢ um yestido de pano grosso de trés em trés anos’?!99_ E certo que, semelhante na sua aparéncia, o traje camponés, no entanto, mu- da em certos pormenores importantes. No século XIII comeca a usar-se roupa inte- rior, na Franca e em outros paises. Na Sardenha, no século XVIII, é de regra, em sinal de luto, conservar a mesma camisa durante um ano: quer pelo menos dizer que o camponés usa camisa‘e que deixar de troca-la é um sacrificio. Ora, sabemos que outrora, no século XIV, segundo tantos quadros conhecidos, ricos e pobres dormiam nus nas suas camas. Alias, um demégrafo do século XVIII observava que ‘‘a sarna, a tinha e todas as doencas cutaneas e outras cuja origem é a falta de limpeza cram outrora tio vul- gates apenas por falta de roupa interior’’!5°. Com efeito, essas doencas, como pro- vam os livros de medicina c de cirurgia, no desapareceram por completo no século XVII, mas entraram em regressio. O mesmo observador do século XVIII assinala ainda, no seu tempo, a generalizacao, entre os camponeses, de vestudrio de I gros- sa. Escreve ele: “O camponts francés anda mal vestido e os trapos que cobrem a sua nudez mal o protegem do rigor das estagdes; contudo, o seu estado, relativa- mente ao vestuario, parece menos deploravel do que antigamente, ndo sendo a rou- pa para o pobre um objeto de luxo, mas uma deft i ice 1 i fesa necessdria contra o frio: 0 Pano cru, vestudrio de muitos campy oneses, N&O Os prote; ici: ente [...] mas desde ha alguns anos [...] aumentou Erie a Une aereE| © ntimero de camponeses que usam vestuario de la: é fAcil prova-lo, pois desde ha al eterna ti dade de tecidos grossos de la; Fae eo eens no Teng sion diet e © como nao se exportam sao. ‘jamente usados para vestir maior numero de franceses,""157 ™ S40 necessaria Trata-se de melhoramentos tard dos camponeses da Camponeses conversando: Flandres, século XVI. Atribuido a Brueghel, 0 Velho. Museu de Besancon, (Foto Giraudon) Bresse, os camponeses “‘s6 andam vestidos de pano cru tingido de preto” com cas- cade carvalho e “este habito estd tio generalizado que os bosques esto todos de- sfadados. Alids, 0 vestudrio, na Borgonha, nao é [nessa altura] um artigo impor- tante no orgamento [camponés}’”!5*, Também na Alemanha, no inicio do século XIX, 0 camponés continua vestido de pano cru. No Tirol, em 1750, os pastores Tepresentados como personagens de um presépio tem uma blusa de pano cru até 08, Joclhos, mas pernas e pés estao nus ou calgados com uma simples sola presa por uma tira de couro enrolada nas pernas. Na Toscana, regidio que passa por Tica, € ainda no século XVIII, 0 homem do campo veste-se exclusivamente com tecidos feitos em casa, isto ¢, panos de canhamo e panos com metade de cfinhamo e meta- de de 1a (mezzalane)'®?, Europa, loucura da moda ‘or Podemos agora chegar a Europa dos ricos ¢ das modas que passam sem ¢ sa- ve ft é eo MMOS 0 risco de nos perdermos no meio de tantos caprichos. Primeiramente, 285 Q habitat, o vestudrio e a moda 286 mm respeito apenas a.um pequeno niimero de pessoas sstes caprichos dize 3 bemos que estes cap talvez porque as outras € mesmo as mais misers. jue fazem muito barulho ¢ furor, r vtis as contemplam e encorajam, até nas suas extravagancias, Sabemos também que esta loucura da mudanga, ano apés ano, tardou ainstalar se verdadeiramente. Claro que ja na corte de Henrique IV um embaixador venezia- no observa: “Um homem [...] nao ¢ tido por rico se nfo tiver vinte ¢ cinco ov trinta roupas diferentes ¢ tem de mudar todos os dias. Mas 2 moda nao ¢ apenas abundéncia, quantidade, profusio. Consiste em mudar tudo a qualquer momento, E uma questao de estagaio, de dia, de hora. Ora, um tal império da moda nao im. poe o seu rigor antes de 1700, momento, alids, em que a palavra, que encontroy uma segunda juventude, corre o mundo com 0 seu novo sentido: seguir @ atualida- de. Tudo entao esta na moda no sentido atual. Até af, as coisas nao tinham andado realmente tao depressa. Com efeito, se entrarmos muito no passado, acabaremos por encontrar aguas tranqililas, situagdes antigas andlogas as da India, da China ou do Isla, tal como as descrevemos. A regra da imobilidade exerce-se plenamente, uma vez que, até 0 prin- cipio do século XII, o traje se manteve na Europa precisamente igual ao que era nos tempos galo-romanos: longas tiinicas, para as mulheres caindo até os pés, para os. homens até os joelhos. Afinal, séculos e séculos de imobilidade. Quando ha uma mudanga, como o alongamento do vestuario masculino no século XII, é vivamente criticada. Orderic Vital (1075-1142) deplora as loucas vestimentas do seu tempo, na sua opiniao absolutamente supérfluas: ‘Os costumes antigos foram quase comple- tamente modificados por novas invengoes.’”!“! Afirmacdo muito exagerada. Mesmo a influéncia das Cruzadas foi menor do que se pensava: introduziu a seda, 0 luxo das peles, sem alterar fundamentalmente as formas da roupa, nos séculos XII XII. A grande mudanca é a que, por volta de 1350, encurta de uma assentada 0 ves- tudrio masculino, de maneira escandalosa aos olhos das pessoas sensatas, dos ido- sos, dos defensores da tradig&o, Escreve um continuador de Guillaume de Nangis: “Mais Ou menos neste ano, os homens, e particularmente os nobres, os escudeiros € 0 seu séquito, alguns burgueses e seus criados arranjaram roupas to curtas € té0 éstreitas que deixam perceber 0 que o pudor manda ocultar. Foi para 0 povo coisa muito espantosa.”'® Esta roupa justa ao corpo ha de durar, e os homens nunca mais sears va arias compridas. Quanto &5 mulheres, os corpetes também se apetam, Dereabiaic sa eae em amplos decotes — outro motivo de as iledervanine a ca latar desses anos a primeira manifestagao da mo m tro lado, ciquantoo ital a ae NO vestuario vai impor-se na Europa. Por or propagasio da roupa cui ‘fa ea aa unifbnise t6do eonlincs ans Eadaplarse at ips ‘4 faz-se de maneira desigual, nao isenta de orien : AeA TH Gienics, el © veremos formar-se as modas nacionais, influenciande italiano, um traje hig oS Cutras: um traje francés, um traje borgonhés, wm trale » um traje ingles, etc.; a Europa de Leste 5s o deslocamento de Bizancio. sofrerd a influéncia crescente das ie, apds o deslocamento sito las modas turcas'®3, A Europa passa a ser multico!s até o século XIX pelos ° i ae Aes eee Xe uy menos, se bem que muiitas vezes pronta para aceitar 0 /2e gio privilegiada. 0 M, nas classes altas, o costume do pano Pret de Preponderancia politica do Império re traje italiano do Renascimento, com gran O habitat, 0 vestudrio e a moda 288 decotes quadrados, mangas largas, redes ¢ bordados a ouroe Pris; brocatios dou. rados, cetins ¢ veludos carmesim, que tinha feito escola numa grande parte da Ey. "4 ituh Ja sobriedade espanhola, panos escuros, gibao colado, cal. ropa, € substituido pela s¢ e : iexdompor umn fread des bufantes, capa curta, colarinho muito alto rem - *g isado. No sécu. fo XVII, pelo contrario, 0 traje dito francés, com sedas de cores vivas, de corte mais livre, levaré pouco a pouco a melhor. A Espanha, claro, sera a mais lente a deixar se seduzir. Filipe IV (1621-1665), hostil ao luxo do Barroco, impoe A sua aristocracia a moda austera herdada dos tempos de Filipe II. A Corte levantou du. rante muito tempo obstaculos ao vestido de color; 0 estrangeiro ali s6 era recebido convenientemente ‘‘vestido de preto”. Um enviado do principe de Condé, entio aliado dos espanh6is, s6 pode obter audiéncia depois de ter mudado de roupa ¢ posto 0 traje escuro de ceriménia. Sé apés a morte de Filipe LV, em 1670, a moda estrangeira penetra na Espanha, no seu proprio coracdo, em Madri, onde o bastar- do de Filipe IV, o segundo Don Juan de Austria, lhe traria o sucesso', Entretan- to, a Catalunha j4 em 1630 tinha sido conquistada para as novidades do vestuario, dez anos antes de se revoltar contra Madri. Nesta mesma data, na Holanda, a corte do stathouder também tinha cedido a tentacdo, embora nao fossem raros os recal- citrantes. No Rijksmuseum, o retrato do burgomestre de Amsterdam, Bicker, de 1642, representa-o com a roupa tradicional, a espanhola. Claro que é também uma questio de geracdes, pois no quadro de D. van Santvoort em que o burgomestre Dirk Bas Jacobsz se fez pintar em 1635 com a sua familia, a sua esposa e ele prd- prio est&o ainda de frisados, 4 moda antiga, ao passo que os filhos estao vestidos segundo os novos gostos (ver infra, p. 300). O conflito entre as duas modas existe também em Mildo, mas com outro significado: Milo esta ent&o na posse espanho- Jae numa caricatura dos meados do século um espanho! vestido tradicionalmente parece repreender um milanés que optou pela moda francesa. Poderemos ver na difuséo desta pela Europa a medida da decadéncia da Espanha? Estas sucessivas preponderAncias sugerem a mesma explicagdo que demos @ propésito da expansio do traje mogol na India ou do traje osmnida no Império turco: a Europa € uma Unica e mesma familia, a despeito ou por causa das suas querelas. O mais admirado, no forgosamente o mais forte, nem, como créem 0s franceses, 0 mais amado ou 0 mais requintado, dita as leis. E evidente que as pre- ponderancias politicas, que afetam toda a Europa como se um belo dia esta mudas- se a diego do seu percurso ou o seu centro de gravidade, nao afetam imediata- mente o reino das modas. Ha descompassos, aberragées, lacunas, lentid6es. Pre- poderants ete S século XVII, a moda francesa sé se afirma soberana NO oe mist aeesteek Le res onde o luxo dos espanhéis é entiio inaudito, 08 a pa}, com uma bizarra mistura de Corea ry cng Oupe de seda [importada = ae > istura de cores vivas’”!®5. Nos quatro cantos da Europa das Luzes, a moda é lancada, a partir de Paris, por bot ins que cedo apare- cem. Passam a reinar incontestavelmenan Por Ponecas manequins 4 ae i ente. Em Veneza, antiga capital da m\ do bom gosto dos séculos XV e XVI, uma das mais antigas lojas chamavasts © chama-se ainda, A Bonec ‘a Fi * a las mais antigas lojas cham inhia ‘4 da Franca, La Piavola de Franza, Jé em 1642 a rainl da Poléni eee 2 xesse, mio ge Pallet z imperador) pedia a um correio espanhol que Ihe nee costuteito pudesse titan eens, UMA boneca vestida A francesa pata que ote E bem evidente oS 2 Modelo”, pois os usos poloneses ja nao The agradavalt! i as suas reticéncias, Arges Tedusdes a uma moda dominante nio passam $° ‘SA margem, fica a imensa inércia dos pobres, como ja vimos- Os ros0li, espécie de miniisculas andas que as mulheres utilizavam para se proteverem das pogas de dgua, nas ruas de Veneza, e cuja moda se espalhou durante algumn tempo para fora da cidade, no século XVI. (Bayerisches Nationalmuseum, Munique) Ha também, e isto emerge acima do virar da maré, as resisténcias locais, os com- Partimentos regionais. O desespero dos historiadores do traje vem, com certeza, das dissidéncias, das aberrac6es relativamente aos movimentos de conjunto. A Corte 46s Valois da Borgonha esta demasiado perto da Alemanha e é demasiado original Para seguir a moda da Corte da Franca. Pode haver, no século XVI, generalizagéo anquinhas ou, mais ainda, ao longo dos séculos, ubiqitidade das peles, mas ca- * dual as usa A sua maneira. O frisado pode variar desde um favo modesto até Cenorme frisado de renda que Isabelle Brandt usa no retrato em que Rubens a re- Beseata seu lado; ow a mulher de Cornelis de Vos no quadro do museu de Bruxe- ‘Sem que 0 pintor aparece com ela ¢ as suas duas fillas. | Bee, a Chegam a Saragoea, um dia, doppo disnar, trés viajantes venezianos, ue en chtios de alegria de viver, sensiveis, inteligentes, satisfeitos oo es ae : eng cl" Procissdo com 0 Santo Sacramento, seguida por uma multi adior, “de a mulheres. ““As mulheres muito feias’’, diz maldosamente © nn hep ou mein de todas as cores o que era coisa estranha, com 2 Oa curios eC” & moda veneziana ¢ mantilhas A moda de toe YE ist, 0b sidade Cmpurra-os para o espetaculo. Mas quem quet Sane idles, poem-se as tara *Pontado a dedo. Homens e mulheres, ao passarem Contarini: “TU oporquet@®> langando-thes piadas. Escreve 0 nosso vee dO que se us nat ES- Patha, Ung aes He wiemphe [colarinhos de renda mais larg Tentenda-se (odo © P 148 Holand wt Chegou a Holanda toda a nossa terra © wenger pr FZ aecisepatt®: Ou um jogo de palavras com olanda, © pano We A a. giver thos meg yP@ interior}, outros: ‘Que grande saladal” Com aie alia a Lyon em nos seguro de si, o abade Locatelli, ao chesar ¢ z SS 289 4 duque tuoso: que. (Pow 2 lt it (1548-1628). Traies! Matlatena da Baviera, por Pieter de Witte, dito Candid (1548-1623). reca de Mutt fu, ouros, pedrarias, pérolas, bordados e rendas preciosos. Pinaco! ? Maverisches Stausgemildesummlungen) 290 O habitat, 0 vesmudrio e néo resistiu muito tempo As “‘criancas que corriam atras dele” na STi Mipgar 0 pao de agicar[chapéu alto deabas argas).. as nceade eer ercwes @ npletamente & francesa’, com “um chapéu de Zani™ de abst extreiian, ee gran- Ge colarinho, mais de médico do que de Padre, uma sotaina que me chegava ao neio das coxas, meias pretas, sapatos estreitos [...] com fivelas de Prata em vez, He lacos. Com tal traje [...] j4 nem me julgava padre,’ @ moda \ 1664, Aparentemente, a moda é livre nas suas ages, nos seus caprichos. Com efei- | to, 0 seu caminho esta em grande medida tragado de antemfo c, afinal, o leque ) das suas op¢des ¢ limitado. j Pelos seus mecanismos, ela depende das transferéncias culturais, pelo menos | dasregras da sua difusdo. E uma difusio deste género ¢ lenta por natureza, ligada amecanismos, a presses. Thomas Dekker (1572-1632), 0 dramaturgo inglés, diverte- _ sca falar das roupas que os seus compatriotas foram buscar as outras nacées: “A braguilha veio da Dinamarca, 0 colarinho do gibiio e o seu corpete, da Franga, as ‘asas’ ea manga estreita da Itdlia, o colete curto de um feirante de Utrecht, as enor- mes gregas da Espanha, as botas da Polénia.””!7 Estes certificados de origem nao _ Sao forgosamente exatos, mas a diversidade dos ingredientes sem divida o é¢ levou _ mais de uma estacdo para fabricar uma receita que agradasse a todos. No século XVIII, tudo se precipita, ¢ portanto se anima, mas a frivolidade nao se torna por isso regra deste reino sem fronteiras de que gostam de falar teste- munhas ¢ atores. Escutemos, mas nada de acreditar cegamente, o que Sébastien Mercier, bom obscrvador, jornalista de talento, mas por certo no um grande espi- Tilo, escreve em 1771: ““Temo a chegada do inverno por causa da dureza da esta- F ] E entao que se fazem essas ruidosas e insipidas assembléias onde todas 45 paixdes fiiteis exercem o seu ridiculo império. O gosto pela frivolidade dita as leis da moda. Todos os homens se metamorfoseiam em escravos efeminados, todos ficam subordinados ao capricho das mulheres.”” Bis de novo lancada ‘‘esta torren- fede modas, de fantasias, de divertimentos, nenhum deles para durar”’. “Se me _ sso a fantasia de fazer um tratado da arte dos frisados em que espanto ngo mer- aria os leitores ao provar-Ihes que ha trezentas ou quatrocentas maneiras de wat 0 cabelo de um homem honesto.”” Esta citagdo vem no tom habitual do au- »matcadamente moralista, mas sempre preocupado em distrair. Por isso somos ados a levé-lo mais a sério quando aprecia a evolugio da moda feminina do i tempo. As anquinhas, os tecidos talhados em franja das “‘nossas maes’”, escre- Sel, “os arames de armar, essa multido de mosquinhas que faz, algumas nates: os vetdadeiros emplastros, tudo isso desapareceu, exceto a altura desmesurada 8 Penteados: © sentido do ridiculo nao conseguiu corrigir este ultimo oe aa Sefcto € temperado pelo gosto ¢ pela graga que presidem eee aa atrenja mee Em suma, as mulheres andam hoje mais benipolle nied: ! Yelae ae Teunindo leveza, decéncia, frescor ¢ graga. Bstes ne Paved onio.eb Hi 5] renovam-se mais depressa do que os vestidos onde brilha Prata; re f Soe ate "4: Dor assim dizer, vao atrds dos matizes das flores das diversas estabes 291 O habitat, o vestudrio e a moda 292 Fis um belo testemunho: a moda elimina ova ene Portanto ificuldade. A inovagdio em causa sao as chitas estampadas, tecidos de algo. dupla dificul baratos. Mas ndo entraram na Europa de um dia para 0 Outro, do relativament® Mais diz que anda tudo ligado, neste baile da moda em que og E a histéria dos téxteis diz a eee wirtineia vies. convidados sao menos livres do que parece a Pr fA A Sera a moda verdadciramente uma coisa futil? On como pensamos, um sinal que testemunha profundamente uma. sociedade, uma Rees uma civlizagiet Os seusimpulsos, as suas potencialidades, as suas reivin licages, a sua al legriade viver? Em 1609, vindo de Manila onde fora capitao general interino, Rodrigo Vivero nau- fragou nas costas do Japao a bordo de um grande navio (2 mil toneladas) que o leva- va para Acapulco, na Nova Espanha. Quase imediatamente 0 naufrago se transfor- mou em hdspede festejado destas ilhas, curiosas para um estrangeiro, depois numa espécie de embaixador extraordinario que tenta, alias em vao, fechar as ilhas ao co- mércio holandés, que pensard também, igualmente em vio, em mandar vir mineiros da Nova Espanha para melhor explorar as minas de prata e cobre do arquipélago, Acrescentemos que este simpatico personagem é inteligente, bom observador. Um dia, tem uma discussao com o secretario do x6gum em Iedo. O secretario censura aos espanhdis o seu orgulho, a sua presungao, depois, a propdsito, refere-se & sua maneira de vestir, 4 “variedade dos seus trajes, dominio no qual séio tao inconstantes que de dois em dois anos aparecem vestidos de maneira diferente’. Como nio atri- buir estas mudang¢as a sua leveza de animo e a de governantes que permitem tal abu- 80? Quanto a si, mostraria ‘com o testemunho das tradicbes e de velhos documentos que ha mais de mil anos a sua nag&o nao mudava de traje’"!7, Tendo vivido dez anos na Pérsia, Chardin (1686) é igualmente categérico: ‘Vi trajes de Tamerlio guardados no tesouro de Ispahan’’, escreve; ‘‘s40 talhados co- mo os que hoje se fazem, sem qualquer diferenca.’’ Porque ‘‘as roupas dos orien- tais nao estao sujeitas 4 moda; séio sempre feitas da mesma maneira; ¢ [...] 05 per sas [...] também nao mudam as suas cores, padrées e aspecto dos tecidos’”!. . Nao creio futeis estas observacdes. Com efeito, o futuro pertence, quanto mals oe on por aoe ee as sociedades suficientemente fiiteis para se preo- sedi oecnnee res, de material, de formas do traje e também em mudar tura com as ias trad Bes, Nao eke do mundo — isto é, as sociedades em rup- venges novas e de desaberagt diz Chardin que os persas ‘nao so vidos de in dades ¢ comodidades da vida . > que créem possuir tudo o que € preciso as necessi- Por ai se ficam’’!"4? Virtude e prisdo da tradigao--- Ovacdo, instrumentos de todos os progressos, Sélt ‘© que vai até a roupa, a forma dos sapatos € 0S PeM” vimento inovador.., ‘ambém um certo desafogo para alimentar um m2" Mas a moda tem tambéi mM Oo} grande parte, do desejo d lee pelotao que os segue, de Outros significados. Sempre pensei que ela vem, &™ os privilegiados de se distinguirem nae que custar do ove uma barreira, como diz. um siciliano de passage” lue tanto leve as pessoas nobres a desprezt Novos 44 CO'PO dos stimos homens do mundo’”". E Pre Tajes dourados”” ou novos sinais distintivos, er Sas, tanto para hot . “tudo mudou e nove NE as pessoas de qualidade gene Para mulheres, se confundem com as que adotall (1779). Com toda a evidencia, a pressio dos sezuil? Podemos encontrar de novo estes turcos, desenhados por Bellini no século XV, quase sem alteragées nos quadros do século XIX. Museu do Louvre, colegio Rothschild. (Foto Roger- Violet) tes ¢ imitadores nao cessa de animar a corrida. Mas, se assim é, 6 porque a prospe- ridade privilegia, empurra para diante um certo mimero de novos-ricos. Ha subida na escala social, afirmacao de um certo bem-estar. Ha progresso material: sem ele, nada mudaria to depressa. Alids, a moda é conscientemente utilizada pelo mun cholas Barbon tecia-lIhe louvores: ‘‘Fashion or alteration of Dress. p life of Trade’’; sracas a ela ‘‘o grande corpo do comércio mantém-se em movime! ©0 homem vive em eterna primavera sem “nunca ver 0 outono do seu vestusitio Os fabricantes de seda de Lyon, no século XVILL, exploraram a tirania da moda fran- cesa para impor os seus produtos no estrangeiro ¢ afastar a concorréncia. As suas Sedas sio magnificas, mas os artesdos da Itdlia os copiam sem custo, sobretudo quando: se divulga a pratica do envio de amostras. Os fabricantes de sedas de Lyon acharam a réplica: contratam desenhistas, chamados “ilustradores de seda”, que, todos os anc’, Tenovam por completo os modelos. Quando as e6pias chegam ao mercado, et fora demoda. Carlo Poni publicou cartas que niio deixam diividas sobrea saga. 1att- ca dos habitantes de Lyon nessa circunstancia'”*. ‘ig: A moda é também a busca de uma nova linguagem para derrubar 4 a0 te, aura Maneira de cada geragdo renegar a precedente & distinguir-se dela (pelo uae vando se trata de uma soeiedade em que exista conflito de geracded), Diz Wry e 1714: “Os costureiros tm mais trabalho para inventar do due pam Cee 38.0 problema, na Europa, é justamente inyentar, abalar as Tinguagens passa i» Valores seguros, a Igreja, a monarquia, esforcam-se tanto mais por comer t Mesmo rosto, pelo menos a mesma aparéncia; as religiosas usam 0 traje das eus tes da Idade Média; beneditinos, dominicanos, franciscanos, sao Fiels 208 $° do comercial. Em 1690, Ni- is the spirit and nto” oT, ° 293 O habitat, 0 vestudrio ¢ a moda simonial da monarquia inglesa remonta pelo menos a guer. jog se quer na contracorrente, Sébastien Mercicy ra das Duas Rosas. B um jogo que : x nie. S N 3 nio se engana quando escreve (1782): “Quando vejo os Mee, digo para mim pré- prio: era assim que andavam todos no reinado de Carlos VI... antiqiissimos trajes. O ce! Duas palavras a propdsito da geografia dos téxteis 294 ‘Antes de concluirmos, uma historia do traje deve levar-nos até uma histéria dos t€xteis e dos tecidos, a uma geografia da produgao e das trocas, ao trabalho lento dos teceldes ¢ as crises regulares que a peniiria das materias-primas arrasta. A Europa tem falta de 14, de algodao e de seda; a China, de algodao; a india e © Isla, de la fina; a Africa Negra compra tecidos estrangeiros no litoral atlantico ou do oceano {ndico, a prego de ouro ou de escravos. E essa a maneira que tém ‘0s povos pobres desse tempo de saldar as suas compras de luxo! HA, com certeza, uma certa fixidez das zonas de producdo. Assim, desenha-se uma zona, uma zona de la, muito pouco mével entre o século XV e o século XVIII, se excetuarmos a experiéncia da América e das suas las (muito finas) de vicunha ¢ (grosseiras) de Ihama. Cobre 0 Mediterraneo, a Europa, o Ira, a India setentrio- nal, a fria China do Norte. A China tem pois os seus carneiros e a sua “la é muito vulgar e muito barata”. Contudo, nao sabem “‘fazer panos 4 maneira da Europa e admiram muito os da Inglaterra”’, se bem que ndo os comprem porque na China ‘“‘custam incomparavel- mente mais do que os mais belos tecidos de seda’’. As suas las espessas sao grossei- ras, espécic de buréis!®!, Fazem no entanto algumas sarjas “‘muito finas e preciu- sas [...] com que habitualmente os velhos ¢ as pessoas de consideracdio se vestem durante o inverno”’'®, E que os chineses sé t8m a dificuldade da escolha. Tém a seda, 0 algodao, mais duas ou trés fibras vegetais de trabalho facil. Quando chega 0 inverno, no Norte, mandarins e senhores cobrem-se de zibelinas ¢ até os pobres se vestem de pele de carneiro!®. ___ Sendo os mais humildes dos bens culturais, os téxteis conseguem deslocar-s Ae €m novas regides. A ld encontra o seu territério de eleigdo na Australia, ee aoe IX. A seda aborda o mundo europeu, sem duvida na época de Trajano -117); 0 algodio sai da india e submerge a China a partir do século XII; chega a as cedo a0 Mediterraneo, através do mundo Arabe, por volta do século X. feed 7 Viagens, as mais brilhantes foram as da seda. Ciosamente guardada, ‘ulos para vir da China para 0 Mediterraneo. De inicio, os chineses 240 ser i Zino faa seisados, nem os persis sassfnidas que separavam a China de Br irda em ambas as dit 5. ini a Ao foi ape- nas 0 construtor de Santa Sofia, o s diregdes, Justiniano (527-565) nio foi ape ‘ autor do cédigo be seu nome, foi oimper < gO que recebeu 0 r dui oe ndo conseguido, na seqiiéncia de aventuras diversas, intro- fiago do precioso fe. Beene # Amoreira branca, a dobagem dos eastlos.# mente durante séculos, neio ganhou assim uma fortuna pela qual velou cios®- Todavia, - no femPo em que este livro comega, no século XV, a seda ja hd quase Aluglaterra da ld: placa de latdo gravado, proveniente de Northleach (Gloucestershire), re- presentando 0 mercador William Midwinter (falecido em 1501), os pés pousados num car- neiro e num novelo de id com a sua marca, (Fototeca A, Colin) Guatrocentos anos est na Sicflia ¢ em Andaluzia. No século XVI aparece — e com cla a amoreira — na Toseana, na Venécia, na Lombardia, no Baixo-Piemonte, a0 longo do vale do Rédano. Por fim, no século XVIII, chega a Sabdia. Sem este avanco Sllencioso das drvores ¢ da criagao do bicho-da seda, a industria da seda, na Italia ¢fora da Itdlia, nfo teria tido o singular destino que foi o seu a partir do século XVI. Nio menos espetaculares sio as viagens do algodoeiro e do algodao. A Euro- Pabem cedo trava conhecimento com o precioso (éxtil, sobretudo a partir do séeu- '0 XIII, quando, na seqii@ncia de uma diminuigdo da criagio de carneiros, ala se 0M rara, Difunde-se entdo um tecido ersatz, os fustdes, feitos com uma teia de iho Cuma trama de algodiio. $di0 muito bem aceitos na Itélia, mais ainda ao nor- ‘dos Alpes, onde comega a boa estrela do Barchent, em Ulm e Augsburgo, nessa tat ansalpina que Veneza, de longe, domina e anima. A grande cidade & com ives O Porto de importagéio do algodiio, fiado ou em fardos de algodaio o Baul a nico "1 rama). De Veneza, no século XV, duas vezes por ano, grandes nas em i 4 Stria. Claro que 0 algodao também ¢ trabalhado local aeslescoe Sian po © arredores de Alepo, ¢ exporta-se para a Europa. No séer le one deconinn n° Ce aleodio az, semethante ao tecido tradicional dos nossos aventals 111 ht Servia para o vestudirio popular no sul da Franga. Mais tarde, no re dos ia, tecidos finos, estam- » shegardo aos mereados da Buropa as chitas da {ndia, tecidos finos, a 18 “indiennes” que fardo as delicias da clientela feminina até o dia em al los, 295 O habitat, o vestudrio ea moda a revolugao industrial permitir aos ingleses fabricar tao bem como os habeis tece- 3 ias ¢ arruind-los. . : Bs ae ga eaahitio mantiveram-se quase nos seus locais de origem, resvalan- do para leste, para a Polénia, paises balticos, Russia, sem escaparem & Europa, (No entanto, hi jhamo na China.) Estes téxteis nao tiveram sucesso fora dos paises ocidentais (incluindo a América), mas prestaram grandes servicos: lengdis, toalhas de mesa, roupa interior, sacos, blusas, calgas de camponés, pano de vela, cordames, tudo veio de um ou outro destes téxteis ou de ambos. Alias, na Asi até na América, 0 linho substitufa-os sem dificuldade, até Nos mastros dos navios, se bem que os juncos chineses ¢ japoneses lhe preferissem as ripas de bambu, cujos méritos os especialistas de arte néutica néo cessam de louvar. . Se abordassemos agora a histéria do fabrico dos tecidos, depois as caracteris- ticas de diversos ¢ intimeros panos, seriam necessarias paginas e paginas mais um gordo diciondrio dos termos utilizados, muitos dos quais, que chegaram até nds, nao designam sempre os mesmos produtos ou por vezes designam algum que nio conhecemos exatamente. Mas, no segundo volume desta obra, forcosamente retornaremos ao grande capitulo das indistrias téxteis. Cada coisa a seu tempo. Modas em sentido lato e oscilagdes de longa duragao 296 A moda nao rege apenas o vestuario. O Di ionnaire sentencieux define a pa- layra: “Maneira de se vestir, de escrever e de agir que os franceses viram e reviram de mil maneiras diferentes para conseguirem mais delicadeza, mais graca e por ve- 2es mais ridiculo.”’ Esta m oda que toca em tudo é a maneira como cada civilizagao se orienta. E tanto o pensamento como o traje, a expresso de sucesso como 0 ges- to de coquetterie, a maneira de receber A mesa, 0 cuidado ao fechar uma carta, a maneira de falar: assim, diz-se (1768) que ‘'os burgueses tém ctiados, as pes. Soas de condigao lacaios e os curas aios””, B a maneira de comer: a hora da refei- 40, na Europa, varia conforme os lugares e as classes sociais, mas também con- forme a moda. Jantar, no século XVIIL, era 0 que nés chamamos almogar: ‘Os artesdos jant 4m As nove horas [da manhii, as pessoas da provincia as duas, 0s ho- mens de negécios ds duas e meia, os senhores as trés.”” Quanto a “‘ceia’” (0 nosso Jantar) € *'as sete horas nas cidades Pequenas, as oito nas grandes, as nove em Paris © as dez na Corte, Os senhores e 08 finan orte. Oss 0s financeiros [isto iam regularmente, 0s éeretins [sic] quando podem”. Donde a expr eee al ceiam ree : : Ste aina fon oa ee) tuandcnd @ expresso quase proverbial: “A Sot shai ekg vanibem Jo? teitt de caminhar e nio menos a de saudar. Dever se-i vindo dos nobres meso © idbito de se descobrir diante dos rels, na Franga, td vindo dos “veréncias espantaram Carlos VIII ¢ terdo set 0 dado a0 corpo, iltimos casos, pois Set Tespeito, que ha ta i . s , ambé i fe ei elas, aos trends que os ec ™ oscilagdes muito lentas da mods napolitanos cujas re POUCO sobre estes tras € observe-se, a logas as tendan 40 Tosto, ao cabelo, Demoramo-nos Um O habitat, 0 vestudrio e a moda previpitado © um poueo incoerente dos pregos no di ey menos lentas sio ainda uma das faces, uma d puropéia entre os séculos XV ¢ XVIII. ‘A higiene do corpo deixa mesmo muito a descjar, em todas as épocas e para toda a gente. Bem cedo 08 privilegiados assinalam a repelente sujeira dos pobres Um ingles (1776) espanta-se com a ““incrivel falta de limpeza’” dos pobres da Fran. a, da Espanha e da Itdlia: torna-os “menos sios ¢ mais desfigurados do que os da Inglaterra’ '8*. Acrescente-se que em toda a parte, ou quase, o campones mas- cara-se com a sua miscria, cxibe-a, protege-se com ela do senhor ou do agente do fiseo. Mas, enfim, ¢ nao saindo da Europa, serdo os privilegiados limpos? $6 com a segunda metade do século XVIII os homens comecam a usar, em yez de um simples saio com duas pernas, ‘‘calces que se mudam todos os dias € que mantém a limpeza”’. B, exceiuando as grandes cidades, nao ha banheiras, jé 0 afirmamos. Do ponto de vista dos banhos ¢ da limpeza do corpo, 0 Ocidente assistiu mesmo, do século XV para o século XVIII, a uma regressao fantdstica. Os banhos, longinqua heranca de Roma, eram habitos em toda a Europa medieval. Banhos privados mas também banhos ptiblicos muito numerosos, com as suas ca- binas de vapor, as suas banheiras ¢ camas de repouso, ou grandes piscinas ¢ a pro- miscuidade dos corpos nus, homens e mulheres misturados. As pessoas encontravam- se ld tao naturalmente como na Igreja, ¢ estes estabelecimentos balnedrios eram destinados a todas as classes a ponto de estarem submetidos a direitos senhoriais, tal -dia. Estas idas-e-vindas mais las realidades do luxo e da moda por uma criada A banteira do séeulo XV, ou o estratagema — um buraco aberto na pared por wna eri feitora— que permiitu a Lieiart, conde de Forest, expiara bela Euryant no OQ a Vic lolette, Paris, B.N. (Clich@ Giraudon) 297 O habitat, o vestudrio e a moda 298 como os moinhos, as forjas e a distribuicao de bebidas!®*. Quanto As casas abas. tadas, todas possuiam os seus ‘‘quartos de banho”” na cave, constitufdos por uma estufa e tinas, geralmente de madeira, com aduelas & maneira das pipas, Cattos 0 Temeraio, possufa, luxo raro, uma banheira de prata que 0 seguiia para os cam” pos de batalha: encontraram-na no scu campo depois do desastre de Granson (1476)'8", A partir do século XVI, os banhos puiblicos comecam a escassear, Parecem, conta-se, a seguir a alguns contagios e a terrivel sifilis. Sem bém por causa dos pregadores, catélicos ou calvinistas, encarni: © perigo moral ¢ a ignominia. Todavia, os quartos de banho manter-se-Zo durante muito tempo nas casas particulares, mas pouco a pouco o banho torna-se uma me- dicagao, j4 nfo um habito de higiene. Na Corte de Luis XIV, s6 excepcionalmente, em caso de doenca, se recorre ao banho'®®. Alids, em Paris, os banhos piblices que se mantém acabam, no século XVII. , Por passar para as maos dos barbeitos. cirurgides. $6 na Europa do Leste, até nas aldeias, se mantém a pratica dos banhos publicos com uma espécie de inocénci ia medieval. No Ocidente tornam-se muitas vezes casas de tolerdncia para clientes ricos. A partir de 1760, entram de barcos especialmente cons! Saint-Louis mantiveram-se di quase desa. ddvida tam. icados em denunciar na moda os banhos no Sena, organizados a bordo truidos. Os Banhos Chineses instalados perto da ilha lurante muito tempo na moda. Estes estabelecimentos Gam, Porém, de reputacdo duvidosa e por isso a limpeza nio fez proressos decisivos!#. Segundo Rétif de la Bretonne, em Paris quase ninguém toma banho “e os que tomam fazem-no duas ou trés vezes por verao, isto €, por ano” (1788)'%, Em Londres, em 1800, nao havia um tinico estabelecimento de banhos ¢, mais tar. de ainda, uma dama inglesa muito bela, Lady Mary Montagu, conta que respon- deu um dia a alguém que Ihe chamava a ateneao para a limpeza duvidova das sume méos: “Chamais a isto sujo? Que dirieis se visseis os meus pes! 714 Nestas condigées, nao é de estranhar a exigiiidade da Produgio de sabiio, cuja origem, no entanto, remonta A Gélia romana. A sua raridade era um problema e esta talvez ai uma das razdes para a grande mortalidade infantil!®2, Os saboes du- tos de soda do Mediterraneo servem Para a higiene pessoal, incluindo os sabonetes “‘que devem ser raiados e perfumados para terem o direito de passar pelas faces de todas as nossas elegantes’”!3, Qs sabdes Uquidos de potassa (no Norte) destinam-se a lavagem de lencdis ¢ outros tecidos, Triste balango, em suma, ¢, no entanto, a Europa é por exceléncia o continente do sabao, que nio existe na China, tal como a roupa de baixo. cremes, exigido em Ve; : “Mostra.me que rouge usas, dir-te- Ge ue &."" Os perfumes stio muitos: esstneian de violeta, de rosas, de jasmim, ¢ junquilho, de bergamota, de litio, de iris, de muguer, e ha muito que Espanta impds o gosto pelos perfumes Violentos, & base de almiscar e Ambar!%#, Observ™ O habitat, 0 vestudrio wa moda las (1779): “Cada francesa Julga pér na sua folleite o genio do gosto © dy ‘a em tudo quanto usa ¢ imagina que n&o hé ornamento que se posta invel : mbelezar a figura humana que no the pertenga por direito exclusive," lr to esa soFstieagio sit A avangada, afirmi-o 0 Dietiomaire sentencius, go dar esta definigio: “A tal elle econiunts de todos 08 pds, de todas ay ensén- ti, de todos 08 cremes prOprios para desnaturar uma pessoa ¢ tornar a velhice ga propria fciira jovens ¢ bonitas. E com cla que se reparam os defeitos do talhe do rosto, que se formam obrancelhas, que se remedeiam os dentes, que se constrdi um rosto, que, enfim, se muda de aspecto ¢ de pele,” Maso assunto mais frivolo ainda & 0 das modas capilares, mesmo no que res- ita aos homens!97, Deverao andar de cabelos compridos ou curtos? Aceitarao ou nio barba e bigode? Grande é a surpresa de ver que neste dominio tao particular os eaprichos individuais sio sempre contrariados. No inicio das guerras da [tdlia, Carlos VIII e Luis XII usam cabelo comprido esiio imberbes. A nova moda, barba ¢ bigode, mas com cabelo curto, veio da Ita- fia, ao que nos contam, com o papa Julio II, do que podemos duvidar, mais tarde imitado por Franciso I (1521) ¢ Carlos V (1524). Estas datas néio tém valor seguro, Ocerto é que a moda conquista toda a Europa. “Quando, em 1536, Francois Oli- vier, que depois foi chanceler, se apresentou no Parlamento para ser nomeado Majtre des Requéles, a sua barba assustou as Camaras reunidas ¢ deu lugar a protestos. Olivier s6 foi nomeado sob condigéio de renunciar & barba.”? Mas a Igreja insurgiu- se ainda mais do que os parlamentos contra o costume de ‘deixar crescer 0 pélo do rosto”. Ainda em 1559 foi necessaria uma ordem real para a emissdo de decre- tos para por na ordem um bispo ou arcebispo de capitulos recalcitrantes ¢ que ti- nham a seu favor a tradigao ¢ a antiga moda. Claro que néo ganharam. Mas os vencedores cansaram-se do scu éxito. Essas modas, com efeito, nado duram mais que um século. Com 9 inicio do reinado de Las XIII, os cabelos alongam-se de novo, barbas ¢ bigodes reduzem-se. Uma vez mais, 0 pior é dos retardatarios. A luta mudou de objeto, mas nao de sentido. Eis que depressa os portadores de barbas compridas sao “de certo modo estrangeiros na sua terra, Ao vé-los somos tentados a crer que vem de uma regido distante. Fo! © que aconteceu com Sully, [...] Tendo sido atraido & Corte por Lufs XIII, que Gueria consulté-lo numa questdo importante, nio puderam 0s jovens cortestios impedit-se de rir a0 ver o herdi com uma barba comprida, uma roupa que ja na ee uma postura grave ¢ maneiras prdprias da velha Corte ‘Logieanen tie ine id comprometida, nao para de diminuir até que por np Ae abanione: tata a barba de topete. $6 os irméos cartuxos ain ere oF rena 18 Bosia de 3), Porque a Tareja, comp sempre, ¢ de acordt igo dos tempos segundo as _mudangas uma vez aceitas, mantém-nas «0 xe : nod das mee née menos evidente, Quando, por vol de Ie a emp as, mies antificiais!? que em breve levardé 4s perucal, a ee elar com Ws periea Se Vez se ergue contra 4 moda, O padre Lig ie wn controvérsia. Nem POF i dei ee & tonsura unto Foi objeto ie Vil, Constantinopla » deixou de haver perucas ¢, no principio do século : um ingl eleganci tar para © ey ara perucas’?! Porteva Mesmo para a Europa “pélo de cabra trabalhado pari pT nds exaani . aco das ‘sencial, nestes capitulos fuitcis, é realmente & duragado, te XIV, 56 volta 48, mais oy parece com L menos um século. A barba, que des 299 re retrato de famifia de 1635, de D. van Sanvoort, o burgomesire Dirk Bas Jacobse e sua mulher seguern ainda a moda espanholan trajes escuros, favos, barbacon- pride bigade farfalhudo; mas 0s flhos esta todos vestidose ‘nova moda holando-francese: calcio estreito de cor, grandes golas caidas de enmbrata c rendas. O filho mais velho, com> ont enn um pequeno bigode e uma sugestdo de barber Austerdam, Rijksmuseum. (Foto Roger-Viollet) 10 Siga a norma das nossas observacdes, assinale- mos um texto de 1779, sem diivi ‘4 exato, pelo menos para a Franga: ‘Os campo ramag 2 Bente do povo ...] sempre raparae a barba de qualquer maneira ¢ trou? declaragan ss bastante curtos e muito deseutdnee noes Sem querermes tomar declaragio a letra, arn estar de um lado. Que concluir? or si s6 pouco precisa. Na verdade, todas estas realidades nao sto apenas de necessidades prementes: 0 homem alimenta-se, habita, veste-se porque nao ode fazer outra coisa, mas, posto isto, poderia alimentar-se, habitar, vestir-se de Poineta diferente daquela que usa. As reviravoltas da moda dizem-no de mancira mumeronica”, © a8 oposigdes do mundo, a cada momento do passado e do presen- Je, ce maneira “sincrdnica’””. Com efeito, af, ndo estamos no dominio exclusivo 1 oe eas, mas antes nO das “coisas ¢ das palavras”, entendendo-se este diltimo Bi ’ além do seu sentido vulgar. Trata-se de linguagens, com tudo 0 que homem Ihes dé, Ihes introduz, tornando-se inconscientemente prisionciro delas, ante da sua escudela de arroz ou da fatia do seu pio de cada dia. Oimportante, para seguirmos os passos de livros inovadores como 0 de Mario “Praz!®, é comecar por pensar que estes bens, estas linguagens devem ser vistos em junto, No ambito das economias em sentido lato, sim, sem discussio. Das so- ‘cledades, sim, sem divida. Se o luxo nao é um bom meio de sustentar ou de pro- mover uma economia, é um meio de segurar, de fascinar uma sociedade. Enfim, foram as civilizacSes, estranhas companhias de bens, de simbolos, de ilusdes, de fantasmas, de esquemas intelectuais... Em suma, até o mais profundo da vida ma- fl estabelece-se uma ordem complicada em que intervém os subentendidos, as .déncias, as pressdes inconscientes das economias, das sociedades, das civilizagbes. O habitat, 0 vesiudrio ¢ a moda 301

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